Viagem a Índia

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    O PODER INIMIGO DOS VERSOS: IRONIA E DISTOPIA EM UMA VIAGEM NDIA, DE

    GONALO M. TAVARES

    Telma Maciel da Silva

    Universidade Estadual de Londrina

    RESUMO Este artigo visa o romance Uma Viagem ndia, de Gonalo Tavares. Conhecido por usar as relaes intertextuais no processo criativo, em seu mais recente livro o autor reescreve a mtica viagem de Vasco da Gama rumo ndia, imortalizada por Cames em seu famoso pico Os Lusadas, mas agora a aventura est localizada na Europa do sculo XXI. Portanto, este trabalho procura examinar o aspecto distpico no romance, tendo em vista a ironia subjacente no processo de escrita como um todo.

    ABSTRACT This paper aims to analyze the Gonalo Tavares novel, Uma viagem ndia. Known by using the intertextual relations in the creation process, in his most recent book the author rewrites the Vasco da Gamas mythical trip to India, immortalized by Cames on his famous epic Os Lusadas, but at the present time the adventure is placed in the Europe of the XXI century. Therefore this work intends to verify the dystopic aspect on the novel in view of the underlying irony in the writing process as a whole.

    PALAVRAS-CHAVE Distopia; intertextualidade; Gonalo M. Tavares.

    KEYWORDS Dystopia; intertextuality; Gonalo M. Tavares.

    No procurou proezas extraordinrias, porque viveu o suficiente para perceber as vrias epopias que existem num s dia de Inverno onde o tdio e o frio empurram

    levemente o homem para a janela. A imobilidade como epopia nfima, eis o que descobriu j

    depois de estar cansado. Gonalo M. Tavares

    O volume recm-lanado Uma viagem ndia melancolia contempornea (um

    itinerrio), pela Editora Leya, invoca uma das figuras mais retomadas na Literatura

    Portuguesa ao longo dos ltimos cinco sculos, Luis Vaz de Cames. Esta mais uma

    TRICEVERSA Revista do Centro talo-Luso-Brasileiro de Estudos Lingusticos e Culturais ISSN 1981 8432 www.assis.unesp.br/cilbelc TriceVersa, Assis, v.4, n.1, jul.-dez.2010 CILBELC

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    obra do escritor angolano/portugus cujo carter intertextual elemento fundador da

    escritura. O jovem autor, com apenas quarenta anos de idade, j dono de uma vasta

    produo literria, com cerca de trinta livros publicados. Deste montante, uma

    quantidade significativa dedicada (re)leitura de autores variados dentro do que se

    poderia chamar genericamente de Literatura Universal. Nesta perspectiva, o projeto

    O Bairro ganha destaque, uma vez que traz livros (at agora so nove) cujos

    personagens so estes grandes escritores que, na pena de Tavares, passam a habitar

    um mesmo bairro. Para cada um dos volumes, um habitante diferente: Sr. Brecht, Sr.

    Calvino, Sr. Swendenborg, Sr. Henri, Sr. Breton, Sr. Walser, Sr. Kraus, Sr. Juarroz e Sr.

    Valry.

    Alm desse projeto que, segundo o prprio Gonalo Tavares deve ser levado a

    cabo durante toda a sua vida produtiva, h outros volumes em que estas relaes

    intertextuais so basilares, como o caso de Biblioteca, que traz narrativas curtas

    precedidas por nomes de escritores. Nesse sentido, um aspecto vinha chamando a

    ateno da crtica, em especial da portuguesa: trata-se da falta de escritores lusos,

    seja como habitantes de O Bairro, seja como verbetes da Biblioteca. Uma viagem

    ndia, portanto, acaba com esta total ausncia de autores portugueses no projeto de

    releitura dos clssicos empreendido pelo escritor.

    O romance pico, se que podemos chamar assim, tem como base Os Lusadas e

    refaz a viagem mtica de Vasco da Gama, mas Cames no nica referncia presente

    no livro. Como afirma o prprio Eduardo Loureno, responsvel pelo prefcio: Este

    prosaico poema, antipoema e hiper-poema, com a conscincia aguda da sua

    ficcionalidade, navega e vive entre os ecos de mil textos-objectos do nosso imaginrio

    de leitores. (TAVARES, 2010, p.9)

    Assim como o texto camoniano, o de Tavares tambm dividido em dez cantos,

    sendo, portanto, escrito em versos, conforme o modelo, ainda que no obedea

    mtrica dos decasslabos heroicos (ou a qualquer outra mtrica), seguida risca em Os

    Lusadas. Os versos livres de Uma viagem ndia indicam, j de incio, uma leitura

    distpica do texto original. Trata-se de uma pardia, no apenas do texto e, por

    conseguinte, das aventuras heroicas encarnadas pelas personagens de Cames, mas

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    sobretudo de seu modelo pico, que alis j nasceu distanciado no tempo do

    arqutipo fundador, ou seja, as epopeias clssicas.

    Deste modo, a viagem proposta pelo autor de Jerusalm muito mais temporal

    do que propriamente espacial. Bloom, a personagem que encarna o aventureiro dos

    tempos modernos, sintetiza uma srie de referncias literrias, fazendo com que este

    retorno ndia mtica dos portugueses promova uma aproximao, como que por meio

    de uma mquina do tempo, entre Ulisses e todos os seus filhos gerados revelia.

    Bloom Ulisses, Vasco da Gama, Leopold, mas no tem nada de heri, ou

    talvez seja, como o prprio autor afirma, um heri da mesquinhez, um heri das

    coisas mnimas e insignificantes (NETTO, 2011). um covarde em busca de

    sabedoria, da sabedoria que fica em outro continente, longe das suas mos sujas de

    sangue. Esta covardia talvez faa de Bloom uma figura que s olha pra frente; como

    fugitivo que , no pode olhar para trs e correr o risco de se tornar esttua de sal,

    no pode baixar a guarda e, por isso, odeia o passado:

    Falaremos da hostilidade que Bloom, o nosso heri, revelou em relao ao passado, levantando-se e partindo de Lisboa numa viagem ndia, em que procurou sabedoria e esquecimento. E falaremos do modo como na viagem levou um segredo e o trouxe, depois, quase intacto (p.28).

    Mas no sabemos que passado este que Bloom odeia. o prprio, de filho que

    matou o pai? Ou de homem que perdeu a mulher amada pelas mos deste mesmo pai?

    E como entender algum que odeia o passado e parte, com destino ao velho mundo,

    em busca de sabedoria e de esquecimento, como se as duas coisas fossem

    complementares? Parece-nos bastante curioso que o protagonista de uma obra que

    tem a memria como um de seus principais alicerces parta para a ndia, lugar-sntese

    da construo do herosmo portugus, em busca de esquecimento.

    Temos, portanto, j no primeiro canto da nossa epopeia supra-moderna uma

    vez que ao chamarmos de epopeia moderna a referncia seria imediatamente a

    Ulisses, de Joyce, elemento que, claro est, no passou desapercebido por Tavares,

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    dada a coincidncia de nomes entre os protagonistas uma diferena bsica entre

    a busca dos heris camonianos, cheios e grandeza e coragem, e deste heri da

    mesquinhez, que guia sua busca pelo desespero da perda e da culpa.

    Somos colocados, deste modo, diante de mais uma reafirmao do carter

    distpico e irnico do romance-poema, cuja forma pardica homenageia os textos

    fundadores ao mesmo tempo em que assume um certo distanciamento em relao a

    eles. Linda Hutcheon, na introduo de Uma teoria da pardia, fala sobre a forma

    como esse gnero, repudiado e tido como parasitrio durante muito tempo, comeou

    a ser encarado na modernidade:

    Os artistas modernos parecem ter reconhecido que a mudana implica continuidade e ofereceram-nos um modelo para o processo de transferncia e reorganizao desse passado. As suas formas pardicas, cheias de duplicidades, jogam com as tenses criadas pela conscincia histrica. (HUTCHEON, 1985, p.15)

    Nesse sentido, a pardia como repetio com distncia crtica, que marca a

    diferena em vez da semelhana (HUTCHEON, 1985, p.15) oferece ao artista uma

    possibilidade de leitura da sua realidade por meio de elementos arquetpicos. Na obra

    de Gonalo Tavares esta atitude pardica parte elementar de seu projeto literrio,

    que intenta lanar um novo olhar sobre o passado, buscando o que ele prprio tem

    chamado de pistas que teriam sido deixadas pelos escritores com o intuito de

    revelar suas respectivas pocas.

    Os Lusadas so, deste modo, uma presena ao mesmo tempo distante e profunda

    nesta nova viagem ndia. Profunda porque a todo tempo lembra ao leitor

    contemporneo que esta nova jornada no a jornada fundadora, aquela que

    (re)criaria a identidade de um povo nos sculos seguintes; e distante na medida em

    que quase no aparece, no que se refere ao plano da estria, fixando-se como

    presena fantasmagrica, que ora assombra ora guia o leitor. fato que temos uma

    pardia da forma (diviso em cantos) e, de maneira alusiva, de muitas das peripcias

    vivenciadas em Os Lusadas, mas o distanciamento temporal transformou, e j o

    tinha feito antes em Ulisses, as aventuras picas em lutas do cotidiano.

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    Bloom , assim, um anti-heri para uma anti-epopeia. E se a epopeia intenta

    contar os herosmos de um povo, esta nova verso talvez nos traga, em propores

    igualmente ampliadas, a mesquinhez deste mesmo povo.1 Desmistificado, o heri

    retoma seu direito aos sentimentos baixos, s coisas mnimas e, at, a certos

    momentos quase escatolgicos:

    Ah, mas Bloom no s pensamento nem reflexo. Agora, por exemplo, tira uma ramela do olho. Age, enfim, como se o seu dedo indicador fizesse as limpezas certas e necessrias no momento H. O que o dedo que avana em direo ao prprio olho para caar a pequena, e aparentemente insignificante parcela intil da matria, seno um ato decisivo, um ato que no se pode adiar? De facto, nem sempre o homem se pode preocupar com o mundo (p.250).

    A ironia, j disse Linda Hutcheon (1985), um elemento que tem sido, e muito,

    ligado s prticas pardicas. No livro Paris no tem fim, do espanhol Enrique Vila-

    Matas, o protagonista, ao participar de um simpsio sobre a ironia, se prope a pensar

    sobre o assunto. Em dado momento, ele afirma o seguinte: No gosto da ironia feroz,

    mas a que se move entre a iluso e a esperana (VILA-MATAS, 2007, p.10).

    Parece ser justamente este o tipo de ironia que vemos em Uma viagem ndia.

    No trecho citado acima, no temos uma contraposio simplista ao herosmo de Os

    Lusadas, mas uma retomada, uma releitura com distncia crtica, conforme j dito,

    de todo um estilo pico, seja ele o clssico ou o moderno, sendo este ltimo uma

    pardia do primeiro. Ou seja, quando contrape ao e pensamento, Tavares nos

    coloca diante dos dois Ulisses, o de Homero, o heri das aes, e o de Joyce, o heri

    dos pensamentos. Bloom, contudo, no nem um nem outro. Nele, nesse Bloom do

    sculo XXI, quase cem anos mais velho do que seu modelo, h espao para o

    pensamento e para a ao; e, muitas vezes, pensamentos e aes ganham matizes

    quase cmicos, porque muito (ir)reais.

    1 preciso dizer que, aqui, a palavra povo ganha uma abrangncia maior. No estamos, portanto, nos referindo apenas ao povo portugus, mas ao ocidente como um todo, uma vez que, mesmo tendo Os Lusadas como texto-base, o livro no busca revelar os problemas ou temas portugueses, mas nos coloca diante do itinerrio, como o prprio subttulo anuncia, das angstias de nosso tempo.

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    Ainda o protagonista de Vila-Matas dir que a ironia um potente artefato para

    desativar a realidade. (VILA-MATAS, 2007, p.32) E talvez seja por isso que este

    romance, chamado tecnicamente de poesia contempornea em sua ficha

    catalogrfica, nos guia to bem por estes mares nunca dantes navegados desta

    viagem, to irreal quanto as outras, mas ainda mais desafiadora. No por nos oferecer

    perigos maiores, mas por nos lembrar que a travessia nunca est completa; h sempre

    um mar inavegvel maneira antiga, conforme as palavras de Eduardo Loureno, a

    exigirem um heri capaz de naveg-lo:

    uma viagem menos epopeia que irnica travessia de um espao mitolgico, de ns como Ocidentais, imersos, se no submersos, pelos sonhos dos outros, revividos como nossos e dos nossos como de ningum. (p.12)

    O nosso viajante no busca o Eldorado e sabe que ser feliz no impede o dia

    seguinte (p.232). Por isso, depois de ter sido feliz e lhe terem tirado a felicidade, ele

    vive todos os dias seguintes que lhe restam e recebe ditames do narrador a quem no

    pode ouvir:

    No por acaso que no consegues, por mais que tentes, atingir em cheio o dia qualquer que ele seja como se faz s baleias com um arpo. Os dias tm um invlucro espesso, uma armadura do material mais resistente que existe: tudo aquilo que no se sabe onde est o centro est seguro. Assim so os nossos dias que bem queramos aniquilar com um arpo. Baleia absurda, sem corpo, o tempo. (p.42)

    Estes versos, que compem ainda o primeiro canto, dimensionam o tipo de

    aventura que o leitor vivenciar com Bloom. Do espao, em geral, pouco saberemos,

    ainda que o nosso heri encarne a figura do flaneur, dimenso que, no por acaso,

    ficar muito mais patente quando de sua primeira passagem por Paris. Mas falemos

    antes da primeira etapa da aventura: Bloom est em Londres e, na capital Inglesa,

    corre os primeiros perigos de sua viagem. Depois de uma tentativa de assalto, da qual

    sai ileso, ele vtima de um plano de vingana e, novamente, corre risco de morte.

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    Do mesmo modo que Vasco da Gama sai ileso da emboscada de Baco em Mombaa,

    Bloom, como que protegido pelos deuses, consegue se safar dos mercenrios ingleses.

    O que chama a ateno, neste sentido, o fato de que no na costa africana

    que o protagonista desta viagem enfrenta os seus maiores perigos. Aqui, a Europa

    quem vai desafiar o nosso viajante, que, apesar de ficar muito pouco tempo a bordo

    de um barco, se encontra quase sempre deriva. Bloom sequer passar pela costa

    africana, dado que, para a ndia, ele segue de avio, este objeto da modernidade que,

    por vezes, nos faz sentir falta do ar, do cho, do fogo e da gua (p.94).

    A Europa , assim, a terra dos perigos, de onde preciso fugir para salvar-se.

    Mas por que o heri de Gonalo Tavares no seguiu de Lisboa rumo ndia sem fazer

    estas escalas em terras hostis? Esta viagem aparentemente intil de Bloom pela

    Europa parece seguir os ensinamentos de Fernando Pessoa, que, em Mar portugus,

    parte integrante de Mensagem, escreve: Quem quer passar alm do Bojador/ Tem

    que passar alm da dor (PESSOA, 1980, p. 58).

    O prprio Bloom, mimetizando o longo monlogo de Vasco da Gama, nos d,

    tambm, uma pista: S no foge das grandes tragdias/ aquele a quem antes de fugir

    lhe foge a vida,/ escreveu Cames, no sculo XVI (Idem, p. 142). O trecho citado est

    no Canto III, estrofe 82, de Uma viagem ndia. Esta , no por acaso, a mesma

    localizao em Os Lusadas: O Miralmomini s no fugiu,/ Porque antes de fugir lhe

    foge a vida (CAMES, 2009, p. 100).

    Tudo isso deixa claro que as referncias ao que temos chamado aqui de textos

    fundadores se do em um plano bastante profundo da obra. A personagem narra vrias

    histrias ao mesmo tempo, sendo a sua prpria aquela que fica mais ao alcance do

    leitor. Neste jogo quase cnico que Gonalo Tavares estabelece com o imaginrio

    artstico de vrias geraes, o leitor convidado a desentranhar e recriar as narrativas

    fantasmagricas que o perseguem nessa nova viagem.

    Tais procedimentos sero encontrados ao longo de todo o livro. Vejamos, por

    exemplo, o nico trajeto que Bloom percorre por mar, entre a Inglaterra e a Frana,

    rumo a uma Paris sonhada: Paris era uma festa/ e, no entanto, as pessoas estavam

    felizes/ (Mas no sonho) (p.93). As partculas adversativas no entanto e mas do

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    um contraponto irnico ideia de festa: as pessoas eram felizes, em Paris, apesar de

    a cidade ser, ou ter sido, uma festa. Em trecho um pouco adiante, lemos ainda:

    Acordou pois Bloom e de imediato disse: para Paris,/ onde as pessoas fazem festas,

    mas continuam felizes (p.93). A referncia, nos dois trechos, mais do que clara:

    Hemingway, autor que, curiosamente, tambm o lastro para o livro de Vila-Matas,

    Paris no tem fim, de que falamos acima.

    A referncia a Hemingway, no entanto, no se d apenas pela aluso ao ttulo do

    livro Paris uma festa. Na verdade, temos neste pequeno trecho um dilogo um

    pouco mais profundo com a obra supracitada, na medida em que nela, o narrador

    afirma estar contando a histria de quando ramos muito pobres e muito felizes,

    trecho que, alis, central em Vila-Matas, cujo narrador afirma ironicamente: Fui a

    Paris em meados dos anos setenta e l fui muito pobre e muito infeliz (p.10).

    Sabemos, por meio do volume Biblioteca, que o escritor espanhol faz parte do

    cabedal de leituras de Tavares,2 fato este que nos possibilita pensar que estamos

    diante, portanto, de uma dupla referncia, ou seja, ao texto-base, de Hemingway, e

    ao derivado, de Vila-Matas, o que, conforme vimos, acontece tambm com Uma

    viagem ndia, que se relaciona tanto com as epopeias de inspirao clssica quanto

    com Ulisses, de Joyce.

    Mas Bloom realmente feliz na sua primeira visita a Paris. Na Cidade Luz, ele

    parece ter encontrado a sua Pasrgada, a terra cantada por Baudelaire em seu poema

    O Convite viagem: L, tudo paz e rigor/ Luxo, beleza e langor (BAUDELAIRE,

    1985, p.145). Em Paris, Bloom procura o seu homem da multido, aquele homem-

    sntese, que no se deixa ler, imortalizado por Edgar Allan Poe (2010), um homem

    que mimetiza a cidade e seus restos noturnos:

    Mas se para conhecer uma flor bastar cheir-la, uma cidade, se olhada com ateno, apenas o indcio de um homem: e esse homem sbio, ladro ou polcia. Um nico homem (mas onde estar ele?) resume as maravilhas da cidade, as suas perverses,

    2 Enrique Vila-Matas um dos verbetes do livro-dicionrio Biblioteca, o que indica que foi lido pelo escritor portugus.

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    o modo como os lquidos circulam na cidade (p.94).

    Paris parece sintetizar a polis moderna, aquela que criou o homem da rua, o

    sujeito que v a rua e se encanta, se encabula com ela, como nas palavras do nosso

    Joo do Rio: A rua nasce, como o homem, do soluo, do espasmo. H suor humano na

    argamassa do seu calamento(RIO, 2008, p.30). Os cantos sobre a capital francesa

    so cantos de amor, odes apologticas, cujo excesso deixa entrever um riso irnico,

    de canto de boca. Nestes trechos aparecem os grandes mitos que transformaram esta

    cidade em sonho de consumo ocidental:

    Paris voluptuosa. Os editores vivem na penria para os poetas poderem ter [garrafeira e uma biblioteca. Uma garrafa de vinho por dia, dois versos; uma investida erecta no bordel principal da cidade, mais verso, verso e meio, no regresso casa, sair (depois) janela para insultar os burgueses que passam, eis como se diverte um poeta. Em Paris os poetas e at os loucos so [delicados (p.96).

    A cidade anunciada a Bloom como um cais para a felicidade, um lugar onde

    at o ar luxuoso (p.97):

    Cheira a metafsica por todo o lado, h nevoeiros e carregadores disponves para lhe levarem a mala. E h ainda inmeras possibilidade de se exercer nestas terras o erotismo que se aprendeu noutras. Bloom est contente. No est na ndia, mas Paris perfeita (p.97).

    Do mesmo modo que Vasco da Gama encontraria amigos em Melinde depois de

    ter sido trado em Mombaa, o nosso heri far amizade com um francs. A Paris

    voluptuosa, por agora, a capital onde Bloom aperfeioa a habilidade para fazer

    amigos, somente depois de correr outros perigos em outras paragens que esta

    cidade se converter na Ilha dos Amores.

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    Para Jean M, o amigo recm adquirido, ele conta parte dos motivos de sua

    viagem: procuro uma mulher ou algo que me faa deixar/ de a procurar (p.99). Em

    seguida, chegar Alemanha e, logo adiante, a Viena, capital austraca, cidade

    vertical, onde passar quase todo o tempo deitado, ou seja, na horizontal, vtima de

    uma doena que nem ele nem os mdicos so capazes de diagnosticar.

    A chegada ndia comemorada e o narrador explica o motivo de o protagonista

    ter demorado tanto a chegar:

    Bloom fora coerente. No se apressara demasiado a chegar ndia; a tcnica e as mquinas so um engano: tudo parece fcil, rpido, e os homens apressam-se, esquecendo a biologia que trazem e o modo orgnico como a prpria sensatez cresce. Bloom fora sensato. Em 2003 poderia demorar menos de um dia a chegar ndia, e demorou meses. (Porm, nunca se tem idade suficiente para ir ndia, sempre existe, em qualquer europeu, uma excessiva juventude.) (p.278)

    Bloom viaja sozinho e no tem degredados para mandar assuntar os inimigos e,

    assim, ter que enfrentar por si seus prprios contratempos. Tendo chegado ao outro

    continente, sabe que ainda lhe falta outra filosofia (p.296), mas encontrar,

    tambm, um amigo, que se prope a falar da ndia: Mas a ndia tem homens e tem

    mulheres disse Anish./ O ouro foi todo levado, mas por vezes parece que ainda/ o

    querem levar de novo (p.296).

    Tendo em vista que a empresa mercantilista portuguesa tinha quatro metas

    bsicas: a busca pelas especiarias, a descoberta de novos territrios, a expanso do

    catolicismo e a procura por ouro, o trecho acima demonstra certa desconfiana do

    indiano em relao a Bloom, o Europeu, que novamente vinha em busca de riquezas

    naquele pas. Se nOs Lusadas, os portugueses levam a f crist como sua verdade

    suprema, aqui, Bloom quem busca na f e na cultura hindu algum alento.

    Contudo, mesmo os sbios hindus acabam por se mostrarem mercantis. Outra

    vez, Gonalo Tavares nos oferece um elemento distpico. Bloom roubado por um

    sbio e por seus seguidores, mas, como vingana, consegue levar da ndia uma edio

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    rara do pico Mahabarata e, com muita astcia, negociar seus livros, tambm raros,

    que lhe tinham sido tirados, em troca de um cordo de ouro que pertencia ao guru.

    Em 2003, os portugueses abrem mo do ouro em troca de sabedoria, mas uma

    sabedoria, em forma de livro raro, que Bloom j carregava consigo. A Europa sai mais

    uma vez vitoriosa em sua nova viagem ndia, visto que a astcia do europeu faz com

    que o sbio-ladro perca um de seus grandes tesouros. O roubo da edio rara do

    Mahabarata , neste sentido, bastante emblemtica. No se trata apenas de um livro

    antigo, mas de uma obra que sintetiza o povo hindu, talvez de modo ainda mais

    profundo do que Os Lusadas no que se refere aos portugueses.

    Concluso

    O episdio do velho do restelo (canto IV), tido como um dos mais importantes

    de Os Lusadas, um dos poucos momentos em que aparecem crticas explcitas s

    ambies mercantilistas portuguesas. A viso pessimista em relao quela arriscada

    empresa surge na voz do ancio que dispara vituprios com o intuito de dissuadir os

    navegantes, alertando-os para as muitas possibilidades de desgraas que aquela

    ambio poderia causar. Em Uma viagem ndia, no h uma referncia direta ao

    velho do restelo, mas sua voz, agora mais irnica do que raivosa, parece ecoar por

    toda a obra.

    As crticas, entretanto, no so direcionadas simplesmente ao desejo de um povo

    pelo poder. Todo um modelo de vida colocado em xeque. A viso ocidental, muitas

    vezes maniquesta e excessivamente pragmtica, ironizada em muitas passagens ao

    longo do livro, tanto pelo narrador quanto pelo prprio protagonista. Em dado

    momento, por exemplo, pegamos Bloom raciocinando sobre suas tragdias pessoais:

    Venho de grandes tragdias, mas continuo consumidor. / A vida no pra pensou

    Bloom / ainda estamos vivos / enquanto podemos comprar. (TAVARES, 2010, p.213)

    Nota-se que os versos finais desta estrofe ainda estamos vivos/ enquanto

    podemos comprar vem em tom conclusivo, no como contraposio. Bloom, nesse

    sentido, faz parte da roda viva e se deixa levar por ela. No temos aqui uma

    personagem que vai questionar, por meio de seus atos e falas, as mazelas de seu

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    tempo. Em verdade, Bloom o heri de sua poca, assim como o Vasco da Gama de

    Cames o foi da sua. Dotado de inteligncia, ele se defende dos idiotas e dos sbios

    que o querem roubar. Sai ileso fisicamente, mas j no pode se salvar da sensao de

    perda de algo que ele prprio no sabe o que :

    Perdido o cu na viagem ndia, sentia-se agora a perder o resto. J no toco o cho com a parte do corpo a que vulgarmente se chamam ps. Estou entre o solo e o cu, em stio intermdio, pousado sobre nada, em caminho indeciso. (O pior stio para estar vivo entre aquilo que um dia nos exige e aquilo que o eterno promete. No meio, eis o stio pior (p. 435).

    Bloom se torna uma espcie de anjo cado. Ao perder a esperana no cu, no

    sabe mais pisar no cho com o corpo, e este estado de quase dormncia diante do

    mundo o grande desconsolo daquele que viajou, viveu todas as aventuras que lhe

    eram possveis, mas que no encontrou nelas quase nada do que procurava, talvez

    mesmo por no saber ao certo qual era o objeto da procura. Somente depois de muito

    viajar, o nosso heri descobre, no cansao, que metade das grandes verdades / so

    pequenas mentiras (p. 439). Ele foi ndia e de l trouxe uma obra rara: o

    Mahabarata. Trouxe o sentimento pico dos indianos, algo que no lhe pertencia e

    que, tampouco, quiseram dar-lhe pacificamente, mas que ele, como bom europeu,

    soube tirar com astcia, uma vez que a violncia j tinha sido aprendida do lado de l.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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