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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES VICENTE CASANOVA DE ALMEIDA Monteverdi e o Stile Concitato: uma poética guerreira no Oitavo Livro de Madrigais de 1638 São Paulo 2014

Vicente Casanova de Almeida Vc

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Monteverdi e seus madrigais

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULOESCOLA DE COMUNICAES E ARTES

    VICENTE CASANOVA DE ALMEIDA

    Monteverdi e o Stile Concitato: uma potica guerreira no Oitavo Livro de Madrigais de 1638

    So Paulo 2014

  • VICENTE CASANOVA DE ALMEIDA

    Monteverdi e o Stile Concitato: uma potica guerreira no Oitavo Livro de Madrigais de 1638

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Msica.

    rea de concentrao: Musicologia Histrica

    Orientador(a): Prof. Dra. Monica Isabel Lucas

    [Verso corrigida, disponvel na Biblioteca da Escola de Comunicaes e Artes, ECA, e na

    Biblioteca Digital de Teses e Dissertaes, BDTD da USP)

    So Paulo 2014

  • Nome: ALMEIDA, Vicente Casanova de. Ttulo: Monteverdi e o Stile Concitato: uma potica guerreira no Oitavo Livro de Madrigais de 1638

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Msica.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof.Dr: Instituio:

    Julgamento: Assinatura:

    Prof.Dr: Instituio:

    Julgamento: Assinatura:

    Prof.Dr: Instituio:

    Julgamento: Assinatura:

  • memria de nio Casanova, iniciador de uma senda musical.

  • AGRADECIMENTOS

    CAPES, Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior, pelo financiamento inicial desta pesquisa.

    FAPESP, Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, pela continuidade do apoio no financiamento deste trabalho.

    USP, Universidade de So Paulo, solcita em todos os aspectos cientficos e burocrticos que envolvem a pesquisa. Tambm pelo seu vasto acervo cientfico e excelncia no ensino de ps-graduao.

    orientao da Prof.Dra. Monica Isabel Lucas, Prof.Dr. Paulo Mugayar Khl e Prof.Dr. Marcello Stasi.

    Ao apoio essencial da famlia e amigos.

  • ...tu irs observar e perceber que h um maravilhoso poder no canto de um exaltado esprito vibrante se tiveres em considerao Pitgoras e Plato que afirmam que os cus so, na verdade, um grande esprito que tudo ordena com seus movimentos e tons. Marsilio Ficino (1433-1499) De Vita Triplici.

  • ALMEIDA, V.C. Monteverdi e o Stile Concitato: uma potica guerreira no Oitavo Livro de Madrigais de 1638. 2014. 192f. Dissertao (Mestrado) Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014.

    RESUMO

    Este trabalho apresenta uma investigao acerca do Oitavo Livro de Madrigais de 1638, de Claudio Monteverdi (1567-1643), obra oferecida Sacra e Cesrea Majestade Imperador Ferdinando III, ascensionado ao trono mximo do Ocidente em 1637. So delineados o contexto histrico que envolve a obra bem como questes relativas publicao e dedicatria da coleo de madrigais. apresentada tambm uma anlise de seu prefcio segundo preceptivas retricas do gnero demonstrativo ou epidctico que revelam chaves discursivas e importantes e tpoi que so substanciais para o entendimento da questo tica e pattica em msica. Tais questes incidem diretamente nas diretrizes performticas previstas por Monteverdi para realizao do stile concitato, procedimento musical encontrado nos Madrigali Guerrieri. Tambm realizada uma exegese do textos poticos dos madrigais onde revelada a figurao do Eros guerreiro e militante contemplado nas elegias de Proprcio e Ovdio bem como nos livros de emblemas amatrios do XVI XVII. Por ltimo, procura-se demonstrar que o stile concitato e seus procedimentos peculiares so dispositivos de ornato dos afetos sugeridos pelos textos dos madrigais, manejados habilmente na msica do compositor.

    Palavras-chave: Monteverdi. Oitavo Livro de Madrigais. Stile Concitato.

  • ALMEIDA, V.C. Monteverdi and the Stile Concitato: a warrior poetics in the Eight Book of Madrigals of 1638. 2014. 192f. Thesis (MA) Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014.

    ABSTRACT

    The present work is an investigation about Claudio Monteverdi's (1567-1643) Eight Book of Madrigals of 1638, offered to the Sacre and Cesarean Majesty of the Emperor Ferdinand III, ascended to the Ocident high throne in the year 1637. We trace the work historical context and the questions about its publication and dedicatory. We present an analysis of its preface according to the rethoric prescriptions of the demonstrative or epidictic genre which reveals significant discoursive keys and tpoi to the comprehension of the ethical and pathetical matter in music. These questions directly affect Monteverdi's performatic guidelines in his stile concitato, a musical procedure found inside the Madrigali Guerrieri. We also do an exegesis of the poetic texts of the madrigals where is revealed the warrior and militant Eros figuration conceived in Propertius and Ovid's elegies as well as in the amatory emblem books of XVI and XVII centuries. Finally, we intend to demonstrate that the stile concitato and its procedures are embellishment devices of the affects of the poetic texts in the madrigals, artfully managed in the composer music.

    Keywords: Monteverdi. Eight Book of Madrigals. Stile Concitato.

  • SUMRIO

    INTRODUO...........................................................................................................11

    1 O OITAVO LIVRO DE MADRIGAIS DE 1638........................................................131.1 A OBRA DADOS HISTRICOS SOBRE A COMPOSIO, DEDICATRIA E CONTEDO POTICO MUSICAL......................................................................13

    2 O PREFCIO DE 1638..........................................................................................222.1 ORGANIZAO RETRICA DO DISCURSO PREFACIAL.........................242.2 THOS, PTHOS E A TRIPARTIO EM GNEROS CONCITATO, MOLLE ET TEMPERATTO.................................................................................382.3 PRRICO E ESPONDAICO NAS DIRETIVAS PERFORMTICAS...............592.4 LGOS E MLOS NO DISCURSO MUSICAL.............................................64

    3 O EROS MILITANTE E GUERREIRO...................................................................703.1 NA EMBLEMTICA OU LIVROS DE IMPRESE DOS SCULOS XVII E XVIII.....................................................................................................................703.2 NAS ESCOLHAS POTICAS DE MONTEVERDI EM 1638........................84

    3.2.1 Breve considerao sobre as fontes textuais..................................843.2.2 Madrigali Guerrieri...........................................................................86

    4 AB OCULOS PONERE: EVIDENCIAO DOS PROCEDIMENTOS MUSICAIS NA PARTITURA.......................................................................................................105

    4.1 EVIDENCIAO DOS PROCEDIMENTOS MUSICAIS NOS MADRIGALI GUERRIERI.......................................................................................................106

    4.1.1 Altri Canti d'Amor...........................................................................1064.1.2 Hor ch'el ciel e la terra...................................................................1104.1.3 Gira il nemico, insidioso amore......................................................1134.1.4 Se vittorie s belle...........................................................................1154.1.5 Armato il cor d'adamantina fede.....................................................1164.1.6 Ogni amante guerrier..................................................................1174.1.7 Ardo, avvampo, mi struggo............................................................1184.1.8 Combattimento di Tancredi i Clorinda............................................1204.1.9 Ballo: Movete al mio bel suon........................................................122

    5 CONSIDERAES FINAIS.................................................................................124

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................................127

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA..............................................................................133

    ANEXOS..................................................................................................................135FIGURA 1 Alciato. Emblemi Emblema 106....................................................136FIGURA 2 Ayres. Emblemata Amatoria. Emblema 33....................................137FIGURA 3 Alciato. Emblemi. Emblema 107....................................................138FIGURA 4 Alciato. Emblemi. Emblema108.....................................................139FIGURA 5 Vaenius. Amorum. Emblemata.Emblema 25.................................140FIGURA 6 Ayres. Emblemata Amatoria. Emblema 22....................................141FIGURA 7 Vaenius. Amorum Emblemata. Emblema 44.................................142

  • FIGURA 8 Vaenius. Amorum Emblemata. Emblema 46.................................143FIGURA 9 Vaenius. Amorum Emblemata. Emblema 47.................................144FIGURA 10 Vaenius. Amorum Emblemata. Emblema 48...............................145FIGURA 11 Vaenius. Amorum Emblemata.Emblema 53.................................146FGURA 12 Vaenius. Amorum Emblemata. Emblema 58................................147FIGURA 13 Vaenius. Amorum Emblemata. Emblema 68...............................148FIGURA 14 Vaenius. Amorum Emblemata. Emblema 73...............................149FIGURA 15 Thronus Cupidinis. Frontispcio...................................................150FIGURA 16 Thronus Cupidinis. Emblema 1....................................................151FIGURA 17 Thronus Cupidinis. Emblema 3....................................................152FIGURA 18 Thronus Cupidinis. Emblema 5....................................................153FIGURA 19 Bocchi. Symbolicarum Quaestionum...........................................154FIGURA 20 Alciato. Emblemi. Primeira verso, 1531.....................................155FIGURA 21 Alciato. Emblemi. Verso francesa, 1534....................................156FIGURA 22 Alciato. Emblemi. Verso francesa, 1584....................................157FIGURA 23 Altri Canti d'Amor. Sinfonia. c.1-8................................................158FIGURA 24 Altri Canti d'Amor. c.48-59...........................................................159FIGURA 25 Altri Canti d'Amor. c.106-12.........................................................160FIGURA 26 Altri Canti d'Amor. c.136-9...........................................................161FIGURA 27 Altri Canti d'Amor. c. 190-3..........................................................162FIGURA 28 Altri Canti d'Amor. c. 206-18........................................................163FIGURA 29 Hor ch'el ciel e la terra. c. 1-11.....................................................165FIGURA 30 Hor ch'el ciel e la terra. c. 24-9....................................................166FIGURA 31 Hor ch'el ciel e la terra. c. 49-51..................................................167FIGURA 32 Hor ch'el ciel e la terra. c. 56-8....................................................168FIGURA 33 Hor ch'el ciel e la terra. c. 59-63..................................................169FIGURA 34 Hor ch'el ciel e la terra. c. 4-10....................................................170FIGURA 35 Hor ch'el ciel e la terra. c. 28-31..................................................171FIGURA 36 Gira il nemico, insidioso Amore. c. 17..........................................172FIGURA 37 Gira il nemico, insidioso Amore. c. 18-29.....................................173FIGURA 38 Gira il nemico, insidioso Amore. c. 10-5.......................................174FIGURA 39 Gira il nemico, insidioso Amore. c. 31-7.......................................175FIGURA 40 Se vittorie s belle. c. 68-71..........................................................176FIGURA 41 Se vittorie s belle. c. 82-3............................................................177FIGURA 42 Armato il cor. c. 20-2....................................................................178FIGURA 43 Armato il cor. c. 39-44..................................................................179FIGURA 44 Ogni amante guerrier. c. 1-11...................................................180FIGURA 45 Ogni amante guerrier. c. 16-26.................................................181FIGURA 46 Ogni amante guerrier. c. 163-8.................................................182FIGURA 47 Ardo avampo. c. 22-8. c. 22-8......................................................183FIGURA 48 Ardo avvampo. c.49-54................................................................184FIGURA 49 Ardo avvampo. c. 85-90...............................................................185FIGURA 50 Ardo avvampo. c.140-5................................................................186FIGURA 51 Combattimento. Trotto del cavallo. c. 18-20/28-30/33-7..............187FIGURA 52 Combattimento. c. 70-2................................................................188FIGURA 53 Combattimento. c. 439-445..........................................................189FIGURA 54 Ballo: Movete al mio bel suon. Prima pars. c. 53-8......................190FIGURA 55 Ballo: Movete al mio bel suon. Prima pars. c. 153-6....................191FIGURA 56 Ballo: Movete al mio bel suon. Seconda pars. c. 62-6.................192

  • 11

    INTRODUO

    Esta investigao objetiva um aprofundamento cientfico aos tpicos

    substanciais evolvidos no Oitavo Livro de Madrigais de Claudio Monteverdi

    (1567-1643) procurando, primeiramente, delinear o contexto histrico e as questes

    de publicao da coleo de madrigais, dedicatria e contedo potico musical.

    Aps uma incurso histrica, realizaremos o estudo da organizao retrica

    prefacial, onde ser possvel observar o substrato referencial utilizado na publicao

    e estabelecer uma investigao das argumentorum sedes, como tpoi achados no

    endxon de autoridades antigas convidadas a dialogar no discurso do promio.

    Deste modo, evidenciaremos que a reflexo prefacial estrutura-se retoricamente e

    organiza-se de forma basilar cumprindo com diretrizes do gnero epidctico, cuja

    matria a censura e o elogio. As tpicas que, num primeiro contato, permaneciam

    veladas, iro ser evidenciadas mostrando que as categorias tripartidas do plano

    tico e pattico em msica mencionadas pelo compositor encontram substrato na

    tradio das harmnicas antigas tambm referidas nos variados tratados vindos

    luz no XVI e XVII. Tambm aprofundaremos a questo chave da seconda prattica,

    reiterada no prefcio de Monteverdi em suas diretivas performticas, a

    predominncia do texto e dos afetos sobre os procedimentos musicais, recuperando

    os argumentos basilares dos embates entre antigos e modernos do incio do XVII e a

    declarao de seu irmo, Giulio Cesare, em defesa da excelncia do compositor em

    seu campo. Tambm iremos demonstrar que o stile concitato proposto por

    Monteverdi est enraizado exatamente sobre a demanda da seconda prattica em

    mobilizar os afetos, fato pelo qual as paixes exaltadas e guerreiras so habilmente

    ornadas pelo compositor atravs deste dispositivo musical. Com o propsito de

    adentrarmos tambm no plano das escolhas poticas do compositor, realizaremos

    um estudo da figura reincidente do Eros guerreiro e militante nos madrigais, j

    estabelecido na mitologia, na filosofia e nas genealogias divinas antigas. Sua figura

    tambm foi contemplada no XVI e XVII atravs de emblemas amatrios em diversas

    colees europeias que disponibilizaremos em nosso estudo. Atravs de uma

    exegese realizada no plano textual dos madrigais a figura do Eros militante e

    guerreiro ser delineada e a organizao dos Madrigali Guerrieri poder ser

  • 12

    compreendida atravs desta tpica. Enfim, a partitura ir mostrar que o stile

    concitato um procedimento musical decoroso mobilizao de afetos exaltados e

    guerreiros e que adequa-se ocasio de coroao e homenagem ao Rei guerreiro

    Ferdinando III.

  • 13

    1.O OITAVO LIVRO DE MADRIGAIS DE 1638

    1.1.A OBRA: DADOS HISTRICOS SOBRE A COMPOSIO, DEDICATRIA E

    CONTEDO POTICO-MUSICAL

    A produo madrigalista monteverdiana est dividia em trs perodos

    distintos, cada um com caractersticas especficas e nem sempre com linhas

    demarcatrias evidentes. Entretanto, os perodos contemplados na diviso da

    produo monteverdiana de madrigais guiam-se pelas publicaes que marcam

    mudanas no estilo das composies, como o caso dos momentos pr e ps

    embates da seconda prattica.

    O primeiro perodo composicional o da juventude, onde o compositor

    permanecia ainda sob tutela de seu mestre Marc'Antonio Ingegneri, em Cremona. O

    Primo Libro de Madrigali publicado em 1587 e menciona no frontispcio: [...] di

    Claudio Monteverde, cremonese discepolo del sig. Marc'Antonio Ingegneri []

    (MONTEVERDI, 2011, p.3). Semelhante meno reiterada no Secondo Libro de

    1590 e ambos so publicados pelo editor Angelo Gardano.

    No ano de 1590 Monteverdi entra em servio da famlia Gonzaga e da corte

    de Mntua. O Terzo (1592), Quarto (1603) e Quinto Libro de Madrigali (1605)

    pertencem a este perodo. Transparece nestas publicaes o importante embate

    entre antigos e modernos e a querela de Monteverdi com Artusi sobre as

    inadequaes da msica da seconda prattica s prescries do contraponto

    codificado por Zarlino. Todos os livros desta fase so publicados por Ricciardo

    Amadino. O Quinto Libro, por sua vez, apresenta a indicao do uso de [...]

    clavicembalo, chitarrone od altro simile istromento (MONTEVERDI, 2011, p.3) para

    realizao do contnuo.

    Do Sesto ao Nono Libro de Madrigali todas as publicaes pertencem fase

    veneziana do compositor. Ela tem incio quando Monteverdi ascende em 1613 ao

    posto de Mestre de Capela da Baslica de So Marcos, o mais alto e mais almejado

    de toda a Europa no perodo. Todas estas ltimas colees de madrigais preveem o

    uso de baixo contnuo na constituio de suas partes. Os editores e impressores

  • 14

    diferem nesta fase. O Sesto Libro (1614), por exemplo, ainda impresso por

    Ricciardo Amadino. J o Settimo, intitulado Concerto (1632), publicado por

    Bartholomeo Magni. Os dois ltimos, a saber, o Ottavo (1638) e Nono Libro de

    Madrigali (1651 publicado postumamente) so publicaes de Alessandro Vicenti.

    Agora iremos tratar dos dados histricos acerca do Ottavo Libro de Madrigali

    de 1638. Sero contempladas questes que envolvem a dedicatria de Monteverdi

    Ferdinando III, imperador do Sacro Imprio Romano Germnico, e tambm questes

    relativas s escolhas poticas do compositor, dentre outros pontos essenciais que

    dizem respeito obra.

    O Oitavo Livro de Madrigais, publicado em 1638, a princpio, seria dedicado

    Majestade do Imperador Ferdinando II, o qual desposou Eleonora Gonzaga em

    1622, em segundas npcias. No entanto o imperador veio a falecer antes da devida

    publicao e apresentao do engenhoso livro de madrigais. A casa de Habsburgo,

    lembra Geofrey Chew (1993), comissionou todo o processo de produo e

    publicao do Oitavo Livro de Madrigais e a data de publicao apontada por Chew

    e confirmada por Fabbri a de primeiro de setembro de 1638, informao retirada

    do prprio texto dedicatrio destinado ao patronato imperial.

    Chew (1993, p.154) mostra uma viso geral cronolgica sobre o perodo

    circundante publicao do Oitavo Livro de Madrigais, disponibilizada abaixo para

    efeito de nos situarmos sobre as questes aqui referidas:

    1600 G.M. Artusi, L'Artusi (Veneza: Vicenti)

    1607 Monteverdi, Scherzi Musicali (com a Dichiaratione de G.C. Monteverdi)

    1607 Monteverdi, L'Orfeo

    1618-48 Guerra dos Trinta Anos

    1634 Batalha de Nrdlingen

    1635 Paz de Praga

    1636 Encontro eleitoral em Regensburg

    (22 de dezembro: Ferdinando Ernesto eleito Rei dos Romanos

    1637 Fevereiro: Ferdinando II morre

    1638 Publicao do Oitavo Livro de Madrigais

    (1 de Setembro: data da dedicatria de Monteverdi)

  • 15

    O fato do bito de Ferdinando II, lembra-nos Fabbri (2006), no restringiu os

    esforos do compositor em publicar seu mais novo trabalho. O autor lembra-nos

    que:

    A partir do momento da morte de Ferdinando II em 1636 a qual forou Monteverdi a alterar a dedicatria considera-se que a coleo deveria estar totalmente pronta para impresso e publicao por volta daquele mesmo ano: no obstante, a coleo de madrigais contm uma boa soma de msicas de publicaes mais antigas, incluindo o madrigal Armato il cor d'adamantina fede (pela primeira vez publicado no livro Scherzi Musicali, em 1632), o Combattimento di Tancredi i Clorinda, escrito em 1624, e tambm o Ballo delle Ingrate, que remonta ao ano de 1608. (FABBRI, 2006, p.238, traduo nossa)

    Fabbri erroneamente refere-se data de morte de Ferdinando II como sendo

    o ano de 1636, porm Chew esclarece que a data correta fevereiro de 1637, como

    aponta de fato a historiografia. Fabbri, por sua vez, indica um outro problema

    encontrado quando observamos a datao do Oitavo Livro de Madrigais: a questo

    referente ao Combattimento di Tancredi i Clorinda, a msica teatral de cmara com

    texto de Torquato Tasso sobre o pico de mesmo nome do sculo XVI. Ele lembra

    que a data referida por Monteverdi no argumento prefacial no condizente com a

    datao expressa no frontispcio do Combattimento, tal como foi impresso

    anteriormente, na dcada de 1620. A datao de Monteverdi indica o ano de 1624

    que refere-se apresentao realizada no Palazzo Mocenigo, primeira audio

    pblica da obra. Fabbri lembra que na parte superior da edio do Combattimento a

    data mostra o ano de 1626, permanecendo o impasse relativo ao a esta obra.

    Vale lembrar tambm que o Oitavo Livro de Madrigais no obteve outras

    reimpresses aps a data oficial de publicao, o ano de 1638, no sendo corrigido

    e reeditado nos perodos seguintes morte do compositor. O editor da transcrio

    moderna sobre a qual iremos basear esta investigao, Andrea Bornstein (2011),

    utilizou a cpia conservada no Civico Museo Bibliografico Musicale di Bologna para

    tal empreendimento, cujo frontispcio do original transcrevemos abaixo a ttulo de

    observao de algumas informaes pertinentes para este estudo:

    BASSO CONTINUO.| MADRIGALI | GUERRIERI ET AMOROSI | com alcuni opuscoli in genere rappresentativo che faranno| pre brevi Episodi fr i canti senza gesto.| LIBRO OTTAVO | DI CLAUDIO MONTEVERDE | Maestro di Capella della Serenissima Republica di Venetia. | DEDICATI | Alla

  • 16

    Sacra Cesarea Maest | DELL' IMPERATOR | FERDINANDO III | CON PRIVILEGIO | [freggio] | IN VENETIA | apresso Alessandro Vicenti . M D C XXXVIII. (MONTEVERDI, 2011, p.4)

    Em seguida ao frontispcio da obra, temos o texto dedicatrio onde

    observamos a justificativa verossmil de Monteverdi acerca da prpria inteno

    dedicatria para a devida impresso e publicao dos madrigais. Abaixo,

    transcrevemos um trecho onde Monteverdi justifica sua ousadia em fazer publicar

    sua nova obra:

    Apresento aos ps de Vossa Majestade, como ao Nume tutelar da Virtude, estas minhas composies Musicais. FERDINANDO, o grande genitor de Vossa Majestade, dignando-se por sua inata bondade permitir de agrad-lo e honr-lo com esta obra, concedeu-me quase um oficial passaporte para confi-la impresso. E aqui audaciosamente eu publico-as, consagrando-as ao reverendssimo nome de Vossa Majestade, herdeiro no menos dos Reinos e do Imprio do que do valor e benignidade de vosso genitor. [] (MONTEVERDI, 2011, p.4, traduo nossa)

    Monteverdi, neste texto dedicatrio e encomistico, lembra Ferdinando III

    que seu pai, Ferdinando II, deixou a autorizao oficial ou direito de impresso e

    publicao da obra. Indica tambm que audaciosamente publica suas msicas,

    evocando na forma laudatria os atributos de seu antigo patrono mximo,

    Ferdinando II, responsvel por dar o passe oficial publicao dos madrigais.

    Os adjetivos elencados pelo compositor, utilizados na chave discursiva da

    laus (louvor, elogio), tambm reaparecem dispostos dentre o prprio contedo

    textual dos madrigais. Ainda sob o prisma analtico de Fabbri devemos observar que

    j no madrigal de abertura da coleo o compositor reverencia Ferdinando III como

    rei guerreiro, cujos lauris de Csar e a coroa imortal de Marte e Bellona (em aluso

    aos deuses romanos da guerra) repousam sobre o esprito do novo dirigente do

    Sacro Imprio.

    O discurso guerreiro de Monteverdi serve tanto ao louvor empreendido ao

    imperador quanto consubstancia o teor guerreiro dos prprios madrigais, que ser

    estudado mais tarde atravs do tpos da militia amoris elegaca no contexto das

    peripcias guerreiras do Eros militante e do amans pugnator (o amante guerreiro). O

    primeiro madrigal da srie de Madrigali Guerrieri, o Altri Canti d'Amor j estampa o

    teor guerreiro laudatrio, porm ainda no apresenta a figura do Eros militante, que

    vir mais tarde. Seu contedo textual retoma a adjetivao encomistica, expressa

  • 17

    primeiramente na dedicatria e atualizada no contexto do prprio madrigal. Segundo

    o observamos no texto, um orgulhoso coro canta e glorifica o sumo valor do novo

    protetor do Ocidente:

    De Marte eu canto, furioso e orgulhoso os duros conflitos e as batalhas audazes, o estridir das espadas e o faiscar das lanas no meu belicoso e soberbo canto. Tu, para quem Marte e Bellona teceram com lauris cesreos a coroa imortal, aceita esta nova e verde obra, pois enquanto guerras canta e guerras toca, grande Fernando, o orgulhoso coro, do teu sumo valor canta e glorifica. (MONTEVERDI 2011, p.6-31, traduo nossa)

    O canto inicial de Marte, gneo e furioso como o dos guerreiros, porm

    guarda os caminhos que mais tarde, no decorrer do livro, revelaro que a verdadeira

    guerra monteverdiana amorosa, revelada atravs de tpicas antigas basilares para

    o entendimento da obra como um todo. Um outro local no livro onde encontramos a

    laus o texto de Rinuccini, no madrigal Ogni amante guerrier, cujo discurso

    parafraseado da nona elegia da obra Amores pertencente poeta romano Ovdio.

    Monteverdi, pela exigncia do decoro de ocasio, opta por alterar o nome

    original que aparece no texto de Rinuccini - o de Henrique IV, rei da Frana

    (destinatrio original do poeta) pelo nome do novo imperador do Ocidente. Fabbri,

    acerca da questo, esclarece-nos:

    [O madrigal] 'Altri Canti d'Amor, tenero arciero' alude em geral a um 'gran Fernando' [grande imperador Fernando], enquanto que o prprio imperador Ferdinando III 'sempre invito' [sempre invicto] e 're novo del romano impero' [novo rei do imprio romano] recebe especfica meno no madrigal 'Ogni amante guerrier', nel suo gran regno' (especialmente na segunda parte, 'Io che nel otio naqcui e d'otio vissi...') e no ballo 'Volgendo il ciel per immortal sentiero', ambos textos de Rinuccini compostos no incio do sculo dezessete e dedicados ao rei francs, Henrique IV, o qual foi propriamente adaptado [por Monteverdi] ao novo destinatrio. (FABBRI, 2006, p.238, traduo nossa)

    Sobre o aspecto guerreiro presente j no subttulo do livro Madrigali

    Guerrieri Fabbri atenta para os esforos do compositor em achar (no sentido

    latino de inventio, ou, seja, encontrar) os argumentos, procedimentos e

    justificativas que findam por coadunar-se no stile concitato, conjunto de artifcios

    musicais decorosos para louvar Ferdinando III, e para cantar a guerra amorosa.

    Toda argumentao acerca do assunto desenvolvida por Monteverdi no

    famoso prefcio obra, considerado por alguns musiclogos como evidncia

  • 18

    psicolgica ou evidncia do estado de esprito de um compositor j totalmente

    inserido dentro de uma nova esttica que pela cronologia seria consequncia

    natural do contexto e tempo do compositor. Em contrapartida a este argumento,

    optamos como proposta analtica partir de uma instrumentalizao retrica, capaz de

    revelar o acesso s argumentorum sedes (as sedes de argumentos) agenciadas

    para construo objetiva da obra, desmistificando questes que ainda permaneciam

    obscuras em torno deste objeto de estudo.

    Uma estrutura retrica poder ser vista tanto na organizao do discurso do

    prefcio quanto na estruturao geral do livro, alm de manifestar-se no princpio

    norteador das escolhas poticas de Monteverdi, o acesso s tpicas elegacas

    disponveis em livros de emblemas amatrios e tambm na produo potica

    pertencente ao perodo. A construo musical dos madrigais, como veremos adiante,

    tambm sustentada em preceptivas retricas que erigem-se sobre o movere gli

    affetti, ou seja, sobre a manipulao dos afetos e sua mobilizao atravs da

    msica.

    Sobre o recurso tcnico musical proposto por Monteverdi o stile concitato

    Fabbri (2006) lembra que esta engenhosa indstria composicional monteverdiana foi

    louvada por compositores oltremontani na forma de emulao deste artifcio

    estilstico em suas prprias obras. Este fato usado no prefcio para composio do

    thos do compositor no momento do louvor sua pessoa e obra. Dentro desta

    chave laudatria, o texto prefacial indica que Monteverdi foi o primeiro a descobrir

    um gnero guerreiro (ou concitato) pois observou que a msica que o precedeu

    situou-se apenas dentre o gnero molle e temperato, ignorando o concitato. Deste

    modo, justifica-se seu empenho, zelo e no pouca fadiga, como indica o prefcio, na

    busca pelo pthos concitado, a exaltao guerreira que retomada atravs do

    argumento de Plato na Repblica.

    Fabbri elenca alguns autores e documentos sobre os quais verificamos o

    alcance e prestgio do engenhoso stile concitato monteverdiano. O pesquisador

    lembra que:

    [...] a significncia de sua inveno terica e prtica foi rapidamente reconhecida pelos msicos contemporneos (no obstante os problemas de circulao acerca da msica impressa []), recebendo uma imediata e larga difuso tambm em termos geogrficos a qual bem revela a fama e a estima internacional usufruda pelo septuagenrio compositor. (FABBRI,

  • 19

    2006, p.241, traduo nossa)

    Nosso interlocutor revela uma carta de 1639 de Andre Maugars1, violista e

    letrado francs, na qual o compositor reverenciado como o grande Monteverdi e

    tambm como um dos principais compositores do mundo. Cito Maugars atravs de

    Fabbri:

    Encontrava-me disposto a acabar por aqui, porm, verifiquei um erro que minha memria estava prestes a me fazer cometer, esquecendo que o grande Monteverde [Monteverdi], maestro compositor da Igreja de So Marcos, descobriu uma assombrosa e maravilhosa maneira de composio, conveniente tanto para instrumentos quanto para vozes, o que faz com que eu o considere um dos principais compositores do mundo; Envi-lo-ei alguns de seus mais recentes trabalhos quando, se for do agrado de Deus, eu passar por Veneza. (MAUGARS, apud FABBRI, 2006, p.241, traduo nossa)

    Johann Albert Ban2, assim como Maugars, reverencia o engenhoso dispositivo

    tcnico de Monteverdi no seu Zang-Bloemzel, de 1642, lembrando das questes

    intrnsecas concernentes ao stile concitato, principalmente nos termos dos perfis

    rtmicos e do movere gli affetti:

    Contudo, dentre tantos outros, tenho em grande estima principalmente o Senhor Claudio Monteverde [Monteverdi], Pomponio Menna [Nenna] e o Prncipe de Venosa [Don Carlo Gesualdo]; nos seus trabalhos tenho encontrado elementos os quais correspondem particularmente queles anteriormente por mim ilustrados. E no ltimo ano, 1641, tive a oportunidade de ler o prefcio do Senhor Monteverdi, no qual ele observa e descreve as diferenas de velocidade e propores, ilustrando a metrificao da msica vocal Grega, ou seja, o metro espondeu, o qual tem duas slabas longas, e o metro prrico, que detm slabas curtas. Ele toma o primeiro (que apropriado para palavras temperadas e majestosas) a partir da mensurao inteira, chamada semibreve; e no segundo, que o prrico, empreende dezesseis semicolcheias delineando a linha vocal, o qual se adapta convenientemente expresso de matrias agitadas. De acordo com sua opinio sobre estas questes, atravs de procedimentos semelhantes, os antigos conheciam a maneira adequada para expressar as mais variadas situaes. (BAN, apud FABBRI, 2006, p.242, traduo nossa)

    Heinrich Schtz, da mesma forma, prestou reverncia ao compositor

    emulando dois madrigais dos Scherzi Musicali, de 1632, no Symphoniarum Sacrum

    seconda pars, impresso em Dresden em 1647. Um deles o madrigal republicado

    1 MAUGARS, Andre. Response faite un curieux sur le sentiment de la musique d'Italie, escrite Rome le premier octobre 1639. In: THOINAN, Ernst. Andre Maugars clebre jouer de viole. Ed. Baron, 1965.

    2 BAN, Johann Albert. Zangh-Bloemzel. In: Vogel E., 'Claudio Monteverdi: Leben, Wirken im Lichte der zeitgenossischen Kritik und Verzeichnis seiner im Druck erschienenen Werke', Vierteljahrsschrift fr Musikwissenschaft, iii (1887), 315450.

  • 20

    por Monteverdi no Oitavo Livro de 1638, o Armato il cor, d'adamantina fede, com

    texto de Rinuccini. O outro madrigal o famoso Zefiro torna, tambm emulado por

    Schtz, ambos no moteto Es steh Gott auf.

    Barbara Strozzi, segundo Fabbri (2006), tambm coloca-se como seguidora

    de Monteverdi, mesmo que indiretamente, quando da composio de suas Cantate,

    ariette e duetti, de 1651, coleo tambm dedicada ao imperador Ferdinando III. O

    stile concitato usado (pelo menos no baixo contnuo) para a linha trem Parigi e

    torbidossi Senna (Paris sacudiu, o Senna spero floresceu) no lamento Su'l Rodano

    severo (FABBRI, 2006, p.242, traduo nossa).

    Outro fato importante revelado por Fabbri (2006) que cronologicamente

    Monteverdi e seu Oitavo Livro de Madrigais situavam-se j num perodo de total

    eclipse da prtica madrigalista. A partir do momento em que o gosto modificou-se na

    primeira metade do sculo XVII, a preferncia alterou-se para a msica de cmara,

    com poucas vozes e preferencialmente concertata, alm de rias e canes

    acompanhadas de baixo contnuo. O musiclogo tambm aponta para o crescente

    interesse pela msica no formato voz acompanhada de guitarra barroca, alade, ou

    instrumentos similares:

    [] bastante significativo que perto do incio da dcada de 1640 Monteverdi tenha publicado a sua maior e mais exigente coleo de madrigais, enquanto que h mais de vinte anos o gnero j havia cado num irreversvel declnio, suplantado por rias e canzonettas; isto parece um claro sinal da intangvel confiana do compositor em sua proeminncia no campo da msica secular. (FABBRI, 2006, p.245, traduo nossa)

    Dentro deste contexto, Fabbri ainda revela outras circunstncias envolvidas

    no perodo da produo composicional monteverdiana, especialmente no que se

    refere demanda de publicaes musicais da poca circundante ao Oitavo Livro:

    Enquanto o sistema de impresso e publicao veneziano estava em profunda recesso, e enquanto a popularidade das antologias de canes solo crescia ainda mais com o sistema de tablaturas da guitarra espanhola Monteverdi reafirmava-se e, de forma criativa, atualizava os ideais da tradio polifnica (e tambm no que concerne s escolhas poticas como testemunha a presena do poeta Petrarca), embora assim o fizesse de forma diferenciada em relao ao sculo dezesseis; e na maior parte das vezes, no somente nos madrigais a duas ou trs vozes (como o Stimo Livro de Madrigais) empreendia essa atualizao, porm tambm assim fazia em obras de maior tamanho e flego vocal, sem contar aquelas em stile concertato. (FABBRI, 2006, p.245, traduo nossa)

  • 21

    A inventividade monteverdiana e a capacidade para renovar seu vocabulrio

    estilstico nos seus procedimentos composicionais fica evidente sob o ponto de vista

    da variedade de estilos e tcnicas usadas no Oitavo Livro de Madrigais (FABBRI,

    2006, p.245, traduo nossa). Monteverdi com frequncia era louvado, como mostra

    o discurso potico de Bellerofonte Castaldi, onde este sublinhava a grande

    variedade estilstica e eloquncia do discurso musical monteverdiano, especialmente

    no que se refere ao objetivo substancial de mobilizao de afetos. Em um soneto,

    Castaldi dirige um encmio s qualidades do compositor, afirmando: Nas invenes

    ousado e prtico, nobre, vrio e belo, sempre verde se mostra e ningum iguala-se

    a ele sob o Sol (CASTALDI, apud FABBRI, 2006, p.246, traduo nossa).

    Seu empenho compositivo encontrou, mais uma vez, sedimento potico em

    grandes figuras recorrentes na sua produo musical. No Oitavo Livro de Madrigais

    esto elencados os principais poetas que nortearam sua vasta produo. Figuram

    lado a lado Petrarca, Strozzi, Guarini, Rinuccini, Tasso, e dentro do estilo do sculo

    XVII, o prprio Giambattista Marino e o conde Fulvio Testi.

    importante ressaltar que a prima pars do Oitavo Livro de Madrigais, os

    Madrigali Guerrieri, no recebem tal nomenclatura ao acaso. Na observao do

    contedo potico, relevaremos que Monteverdi aponta para o tpicas elegacas

    onde figuram essencialmente os eptetos do Eros militante e guerreiro encontrado

    em genealogias divinas e nos discursos elegacos romanos. Estas tpicas so

    amplamente conhecidas e frequentadas no sculo XVI e XVII, e so encontradas

    com frequncia na poesia e msica do perodo, fato que exorta-nos observao de

    uma outra fonte imprescindvel ao nosso estudo: os livros de emblemas (imprese, ou

    emblemata amatoria) que carregam imagens jungidas a epigramas e sonetos de

    amor. Estes, por sua vez, mostram referncias aos nomes de Proprcio, Tibulo,

    Ovdio, Sneca, dentre outros, onde o argumento guerreiro preponderante e onde

    o ator principal o Eros (Cupido, puer, ou Amor) militante.

  • 22

    2. O PREFCIO DE 1638

    Objetiva-se neste captulo a elucidao de questes importantes sobre a

    organizao retrica do discurso prefacial de Monteverdi ao Oitavo Livro de

    Madrigais. Faremos uma investigao sobre o elenco de autoridades antigas e as

    argumentorum sedes frequentadas para composio discursiva, alm do

    esclarecimento de questes envolvidas nas diretivas performticas do stile concitato.

    Tambm sero estudadas as questes pertinentes aos apontamentos de Monteverdi

    que fazem referncia principal tpica da seconda prattica: o governo do lgos

    sobre o mlos, ou seja, a proeminncia do texto e dos afetos por ele sugeridos sobre

    a msica. Abaixo, portanto, disponibilizamos a traduo do prefcio de Monteverdi

    coleo de madrigais de 1638:

    Tenho considerado as principais paixes ou afetos de nosso nimo como sendo trs, a saber, a ira, a moderao e a humildade ou splica; deste modo os melhores filsofos declaram, e a prpria natureza na nossa voz assim indica, tendo os registros grave, mdio e agudo. A arte da msica aponta claramente para estes trs termos agitado, mole e temperado. Em todos os exemplos de compositores precedentes eu encontrei apenas exemplos do mole ou do temperado na suas msicas, mas nunca do agitado, um gnero j descrito por Plato no terceiro livro de sua Retrica [sic] nestas palavras: Tome aquela harmonia que deve convenientemente imitar as pronunciaes e os acentos de um bravo homem que est engajado numa guerra. E, deste modo, estando eu consciente que so os contrrios que com grandeza movem nossa alma, e que este o propsito que toda boa msica deveria possuir como Bocio afirma, dizendo: A Msica est ligada a ns, e tanto enobrece como corrompe o carter tenho me aplicado com no pouca diligncia e fadiga para redescobrir este gnero. Aps refletir que no metro prrico o tempo rpido e, de acordo com os melhores filsofos, usava saltos agitados e marciais, e que no espondaico o tempo lento e oposto quele, comecei, portanto, a considerar a semibreve [figura da semibreve], que soada uma vez, propus que correspondesse a um golpe da mensurao espondaica; quando esta foi dividida entre dezesseis semicrome [figura da semicolcheia], rebatidas uma aps a outra e combinadas com palavras que expressam ira e desdm, reconheci assim, nesta breve amostra, uma semelhana com o afeto que procurei, embora as palavras no sigam na sua prpria mensurao a rapidez do instrumento. Para obter uma melhor prova, tomei o divino Tasso, como o poeta que expressa com grande propriedade e naturalidade as qualidades que ele deseja descrever, e selecionei sua descrio do combate de Tancredo e Clorinda, que me deu duas paixes contrrias para colocar em msica, guerra ou seja, splica, e morte. No ano de 1624 esta obra foi ouvida pelos melhores cidados da nobre cidade de Veneza em um nobre salo de meu patro e especial protetor, o Senhor Girolamo Mocenigo, um proeminente cavaleiro e um dentre os comandantes da Serenssima Repblica; ela foi escutada e louvada com muito aplauso e prazer. Depois do aparente sucesso da minha tentativa de descrever a ira, procedi com

  • 23

    grande zelo em uma profunda investigao e compus outros trabalhos desta mesma estirpe, tanto eclesisticos como de performance de cmara. Alm disso, este gnero encontrou tal honra entre outros compositores que eles no apenas o elogiaram verbalmente, mas, para meu prazer e honra, eles tambm demonstraram seus elogios escrevendo obras em imitao minha. Por esta razo, cogitei que seria melhor tornar conhecido o fato de que a investigao e o primeiro ensaio neste gnero, to necessrio arte da msica, veio de mim. Isso pode ser dito com razo, pois at o presente a msica tem sido imperfeita, possuindo apenas dois genera - mole e temperado. Aos msicos, de incio, especialmente entre aqueles que eram chamados a tocar o baixo contnuo, pareceu mais ridculo do que louvvel martelar numa mesma corda dezesseis tempos no mesmo tactus, ento eles reduziram esta multiplicidade de golpes a uma batida apenas por tactus, onde veio a soar o espondaico ao invs do p prrico, destruindo a semelhana com a fala agitada. Tome conhecimento, portanto, que o baixo continuo deve ser tocado, juntamente com as partes de acompanhamento, na forma e na maneira em que este gnero foi escrito. De forma similar, tu encontrars todas outras direes necessrias para a performance das outras composies que encontram-se em gneros distintos [ o caso dos Madrigali Amorosi]. Para as variadas maneiras de execuo deves tomar conhecimento, sobretudo, de trs coisas: texto, harmonia e ritmo. Minha descoberta desse gnero guerreiro me deu ocasio para escrever alguns madrigais que intitulei guerrieri. Assim, entendendo que a msica executada diante de grandes prncipes nas suas cortes para agradar seus delicados gostos constitui-se de trs tipos, de acordo com determinado mtodo de execuo - msica teatral, msica de cmara e msica de dana assim tambm nomeei as obras do meu presente trabalho com os ttulos guerriera, amorosa e rappresentativa. Sei que esta obra ser imperfeita, pois detenho ainda pouca habilidade particularmente no gnero guerreiro, porque ele novo e omne principium est debile [todo comeo dbil, fraco]. Eu, portanto, rogo ao meu benevolente leitor, o qual ir esperar de minha instruda pena uma grande perfeio no dito gnero, aceitar minha boa inteno, porque invenis facile est adere [ fcil aderir s invenes]. Adeus. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI, 1973, p.416-17,18)

    O estudo apresentado a seguir pretende descortinar o fundo retrico da

    organizao discursiva de Monteverdi no prefcio e propor uma abordagem realista

    deste objeto para um entendimento amplo e verossmil de sua constituio, pois no

    plano da partitura o conhecimento sobre as questes levantadas no prefcio ser de

    grande valia no entendimento de seus procedimentos musicais. Ressaltamos que,

    para as citaes de autoridades antigas que seguiro, alm das referncias

    especficas de autor, obra e pgina utilizadas por ns, o leitor encontrar a

    referncia universal que permitir o acesso ao trecho citado em qualquer edio que

    possuir para consulta.

  • 24

    2.1.ORGANIZAO RETRICA DO DISCURSO PREFACIAL

    Buscamos, para iniciarmos esta incurso investigativa, as prescries

    retricas vlidas e observadas no perodo de ao de nosso compositor, procurando

    no ignorar o revixit das artes retricas e a vasta difuso dos contributos de Ccero e

    Quintilianus, e do annimo ad Herenium, autores que circularam pelo sculo XVI e

    XVII, perodo no qual situa-se a obra monteverdiana.

    As evidncias aqui levantadas atestam que o discurso prefacial do Oitavo

    Livro de Madrigais orientado retoricamente. Seu contedo interno revela chaves

    discursivas do gnero retrico epidctico, do qual Monteverdi em nenhum momento

    pareceu afastar-se. O prefcio evidencia tambm outras chaves discursivas que

    fornecem o cimento para a estrutura do edifcio prefacial pelo agenciamento de tpoi

    ou loci lugares-comuns, de onde o carter probatrio e todas justificativas

    utilizadas direcionam-se verossimilhana como instrumento da persuaso.

    O plano narrativo revela ainda o agenciamento de autoridades antigas que

    concorrem para o encarecimento da causa defendida pelo compositor: seu prprio

    labor e artificioso engenho compositivo, j louvado muito antes da publicao do

    Oitavo Livro de Madrigais pelo pblico corteso italiano e oltremontani.

    O thos de Monteverdi construdo retoricamente atravs do elogio ao seu

    engenhoso e verde fruto: o stile concitato. Este procedimento tcnico est, por sua

    vez, situado como lugar-comum nos argumentos de autoridades antigas

    concernentes questo tica e pattica nos discursos de finais do sculo XVI e

    meados do XVII, em autores como Girolamo Mei (1572, Discorso sopra la musica

    antica et moderna) e Giovanni Battista Doni (1634, Tratatto de Generi e Modi della

    Musica; 1635, Compendio del tratatto), os quais apresentam um discurso muito

    semelhante ao usado no prefcio do compositor.

    Principiamos, portanto, pelo estudo do primeiro pargrafo prefacial. Logo de

    incio Monteverdi contempla os tpoi ou loci, de onde retira toda a argumentao

    probatria e as justificativas composicionais. Hansen (2012) lembra que os tpoi ou

    loci so colees de endxas (argumentos vlidos e aceitos) como opinies das

    melhores autoridades. Deste modo, o autor do prefcio cumpre com as prescries

    retricas para a composio discursiva que sugerem a eleio dos argumentos mais

  • 25

    favorveis causa a ser exposta e defendida, atravs do processo que o orador

    empreende na busca das camadas de fundamento discursivo. Estas camadas so

    provas tcnicas ou artsticas (do grego psteis technoi) - conforme o argumento

    retrico aristotlico - nas quais o engenho do orador faz-se necessrio para cumprir

    com um de seus deveres, como diz Ccero (II, 27, 115): [...] provar que a causa

    defendida verdadeira (CCERO, 2002 p.254, traduo nossa, grifo nosso). Sobre

    a distino entre as provas dependentes ou no da ars (arte como tekhn), Hansen

    (2012) sentencia, apoiando-se no argumento das retricas antigas:

    A persuaso (pisteis) pode ser 'atcnica', ou seja, fora da arte [] ou 'entcnica', ou seja, dentro da arte, usando os lugares [lugares-comuns, tpoi ou loci]. [] A persuaso 'entcnica' inventada (heurein) e ela que usa os lugares. Retoricamente, pressupe-se que s podemos convencer algum a respeito de alguma coisa que ele j conhece ou sabe. (HANSEN, 2012, p.165)

    Os tpoi ou loci, como colees de endxas, so partilhados por muitos, e so,

    evidentemente, objetos utilizados na conduo da persuaso no discurso. Conforme

    Ccero (2002), os outros dois deveres do orador, prescritos nas doutrinas retricas,

    so o de obter a simpatia do ouvinte ou destinatrio do discurso e, finalmente, lev-

    lo mudana de estado de nimo conforme a causa assim o exigir, atravs de

    dispositivos especficos. Deste modo nomeia tambm Quintiliano, na Insitutio

    Oratoria (I, III, Cap.V, 2), afirmando: O orador deve atender estes trs ofcios:

    ensinar, mover e deleitar. (QUINTILIANO, 1996, p.338-9, traduo nossa).

    Lembra-nos tambm Ccero no De Oratore (II, 116-117) a tarefa do orador

    referente ao elenco de argumentos probatrios que podem ser duplamente

    qualificados:

    Na fase probatria, por sua vez, se apresenta ao orador uma dupla tarefa: a primeira afeta quelas coisas que no dependem do talento do orador [psteis technoi; probationes extra artem], pois, por serem objetivas, se tratam de um modo regulamentado, como documentos, declaraes de testemunhas, pactos, acordos, interrogatrios, leis, consulta ao Senado, jurisprudncia, decretos, informes de juristas e coisas semelhantes, as quais no so produzidas pelo orador, pois ao orador estas coisas se apresentam da prpria causa; a segunda tarefa a que se situa em sua totalidade na anlise e argumentao do prprio orador [psteis technoi]: e assim como na primeira tarefa h de se pensar como tratar o que se argui, nesta ltima, por sua vez, h de se pensar em como encontrar argumentos novos. (CCERO, 2002, p.254-5, traduo nossa)

  • 26

    Ao principiar suas sentenas, Monteverdi demonstra situar-se exatamente

    diante dos argumentos probatrios favorveis sua causa - os quais mencionamos

    acima atravs de Ccero obtendo-os necessariamente como psteis technoi, ou

    provas artsticas (ou seja, recorrendo aos tpoi ou loci, colees de argumentos

    partilhados dentre as maiores autoridades)

    Usando o termo fontes, Ccero (De Oratore, II, 34, 147), sobre a necessidade

    de se recorrer a estes recursos, lembra:

    Deve-se dirigir o esprito a essas fontes e a isto que repetidamente venho chamando de lugares [tpoi ou loci], de onde trazemos qualquer recurso para todos tipos de discursos; e tudo se reduz (seja isso prprio de uma arte, de um esprito atento ou do costume) a conhecer a zona em que te dispes a caar e seguir a pista do que tu buscas; uma vez que tenhas delimitado com tua reflexo todo este lugar, com a nica condio de ele estar situado na prtica real, nada te escapar e tudo que de verdade exista avanar frente e cair em tuas mos. (CCERO, 2002, p.268-9, traduo nossa, grifo nosso)

    Vejamos, a seguir, a maneira pela qual Monteverdi procede rigorosamente

    dentro destas prescries. Citamos seu primeiro pargrafo prefacial:

    Tenho considerado as principais paixes ou afetos de nosso nimo como sendo trs, a saber, a ira, a moderao e a humildade ou splica; deste modo os melhores filsofos declaram, e a prpria natureza da nossa voz assim indica, tendo os registros grave, mdio e agudo. A arte da msica aponta claramente para estes trs termos agitado, mole (brando) e temperado. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI 1973, p.416 traduo nossa, grifo nosso)

    A reflexo indicada (destacada por ns tambm na meno anterior de

    Ccero) no o produto, evidentemente, de uma divagao aleatria, mas sim da

    busca objetiva de sedes argumentativas para composio do discurso. Vale dizer: de

    um labor prprio do orador diante da necessidade probatria e de encarecimento de

    sua prpria causa, na defesa da mesma (no caso, como dissemos, o prprio stile

    concitato).

    O prefcio da coleo de madrigais de Monteverdi circunscreve a

    argumentao sempre na forma tripartida, direcionando-a particularmente ao plano

    pattico (os pthe ou paixes, afetos). Demonstraremos, no prximo captulo, a raiz

    oculta neste recorrente argumento ternrio de seu prefcio, buscando primeiramente

    a chave tica (os caracteres morais) encontrada nas sentenas das autoridades

  • 27

    antigas frequentadas pelos interlocutores cujos argumentos constituem as tpicas

    aqui agenciadas. Em seguida, veremos como a questo do pattico em msica

    manipulada por interlocutores cronologicamente pertencentes ao seu perodo de

    produo musical.

    Como dispositivo discursivo do gnero epidctico, na continuidade narrativa do

    prefcio, o texto apresenta os melhores filsofos como as autoridades detentoras

    da opinio vlida e aceita (ou endxa) onde esto o fundamento da reflexo

    indicada, e as figuras de Plato e Bocio evocadas. De fato, estes argumentos so

    encaixados na engrenagem da mquina discursiva conforme a necessidade

    probatria assim exija. Podemos notar, sobretudo, que o elenco ternrio de

    Monteverdi direciona-se particularmente s questes referentes s qualidades da

    voz. O fato bastante significativo, pois um outro importante tpos est sendo

    frequentado como argumento probatrio: os elementos e qualidades da voz

    diastemtica, tema recorrente nas harmnicas gregas e nos discursos sobre msica

    do XVI e XVII.

    Sobre a concitao anmica, objeto primordial da reflexo indicada no

    prefcio, observamos a correspondncia com o tpos antevisto, evidentemente, na

    forma tripartida que a prpria arte musical aponta, como indicado nas sentenas

    iniciais No mbito de tal arte, Monteverdi classifica as trs instncias pertencentes

    tpica tica e pattica como trs distintos gneros: genere concitato, molle et

    temperato, ou seja, agitado ou concitado, mole ou brando e, por ltimo, temperado.

    O argumento idntico ao encontrado em Mei no Discorso de 1572, e em Doni no

    Compendio de 1635.

    O discurso fornece claramente a certeza de que Monteverdi situa-se dentro

    das preceptivas do gnero demonstrativo ou epidctico, especificamente na chave da

    laus - ou seja, do elogio ou louvor, no caso, ao seu prprio labor compositivo.

    Aristteles sustenta-nos a observao em um trecho de sua Retrica (1367b, 25-30),

    lembrando: O elogio um discurso que mostra em todo seu esplendor a grandeza

    da virtude. Convm, pois, mostrar que os atos so deveras produzidos pela virtude

    (ARISTTELES, 1966, p.75-6, grifo nosso). O thos do compositor, portanto,

    composto exatamente dentro destas prescries, de maneira virtuosa, pois o texto

    apresenta-se no mbito de um discurso epidctico, e procura, como tambm lembra-

  • 28

    nos Ccero (2002), pela eloquncia discursiva, que o objetivo ltimo.

    Ccero (De Oratore, II, 43, 182), por exemplo, corrobora a lei retrica evocada

    por Aristteles, lembrando que:

    [...] para ganhar [a benevolncia e simpatia do pblico ou juiz] resulta ser muito efetivo realar o carter, os princpios, os feitos e os modos de vida daqueles que promovem a causa e dos que so defendidos [pelo orador]; e, de igual modo, vituperar os adversrios, e dispor favoravelmente ao mximo possvel o nimo do auditrio, no somente ao orador, mas principalmente a quem [ou causa que] o orador defende. (CCERO, 2002, p.283, traduo nossa)

    Quintiliano, na Institutio Oratoria (I, III, Cap. IV, 5), tambm sentencia sobre o

    gnero demonstrativo ou epidctico, lembrando que este constitui-se basicamente de

    [...] discursos de louvor ou censura. (QUINTILIANO, 1996, p.332-3, traduo

    nossa). Tambm apresenta a origem grega do referido gnero, dizendo:

    H, pois, como mencionei, um gnero cujo contedo o elogio e o vituprio, porm, pela melhor de suas partes se chama laudatrio; outros chamam o mesmo de demonstrativo: Ambos nomes provm, segundo se cr, da lngua grega, pois o denominam epidiktikn ou enkomiastikn. (QUINTILIANO, 1996, p.334, traduo nossa, grifo nosso)

    A matria de encmio ou elogio, no caso do prefcio de Monteverdi, , como

    demonstram as evidncias, a virtude de sua prpria aplicao na observao das

    obras de compositores precedentes que, segundo ele, no possuam o engenho

    necessrio escrita musical do gnero concitato, na chave pattica da ira, da

    agitao ou da concitao guerreira, fato que confere a credibilidade necessria

    sua causa, lembrando da necessidade probatria em questo. Confirmando a nossa

    observao at aqui empreendida, a argumentao do compositor trabalhada nas

    duas chaves do discurso epidctico ou encomistico, primeiro louvando seu prprio

    labor, empenho e capacidade, depois vituperando a pouca diligncia daqueles que o

    precederam no campo da arte musical, os compositores do passado, promovendo

    assim a dignificao de sua imagem:

    Em todos os exemplos de compositores precedentes eu encontrei apenas exemplos do [gnero] mole ou do temperado na suas msicas, mas nunca do agitado, um gnero j descrito por Plato no terceiro livro de sua Retrica [sic] nestas palavras: Tome aquela harmonia que deve convenientemente imitar as pronunciaes e os acentos de um bravo homem que est engajado numa guerra (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI, 1973, p.416, traduo nossa)

  • 29

    Concluiramos erroneamente que Monteverdi empreendeu, de fato, um

    levantamento de obras de compositores precedentes na busca de algum vestgio

    tangvel de um conjectural genere concitato, no obtendo eficcia em seu intento,

    caso no estivssemos munidos do conhecimento das prescries retricas do

    gnero demonstrativo, ou epidctico. Porm, de posse do instrumental retrico,

    conseguimos revelar que seu argumento, evidentemente, cumpre com a adequao

    ao gnero retrico epidctico, onde so agenciados lugares comuns do louvor (ou

    laus), e da censura (ou vituperium). Conforme Quintiliano (Inst.Orat. I, III, Cap. IV,

    14) [] os vocbulos louvor e vituprio designam a prpria natureza de uma coisa

    (QUINTILIANO, 1996, p.337, traduo nossa, grifo nosso) e tal a natureza, no

    caso, do carter (ou thos) de Monteverdi conforme a maneira em que construdo

    neste gnero. Consequentemente, erigem-se os atributos louvveis na defesa de

    sua causa.

    Hansen (2012), do mesmo modo, aponta exatamente para esta edificao do

    carter do orador, dentro das prescries retricas que apontam para a persuaso

    entcnica, ou seja, utilizando as provas artsticas (psteis technoi): [...] inventamos

    o sujeito da nossa fala com lugares-comuns ticos, que o compem como tipo

    honesto, bom, prudente, sbio, digno, etc., autorizado a falar (HANSEN, 2012,

    p.165, grifo nosso). Os adversrios, por outro lado, so compostos com os atributos

    contrrios, ou seja, na chave do vituprio. Demonstramos, deste modo, que o

    discurso de Monteverdi no prefcio em nenhum momento afasta-se das prescries

    da laus (louvor), que aponta justamente para a construo de um carter digno e

    virtuoso como instrumento da persuaso. J do contrrio, o vituperium edifica o

    carter dos adversrios (no caso, os compositores do passado, incapazes de tornar

    a arte musical perfeita).

    Ccero (De Oratore, II, 82, 335), sobre a chave laudatria do discurso, lembra:

    E quem deseje impulsionar a audincia dignidade [da causa em si e do orador que a expe e defende] reunir os exemplos de nossos maiores, [] dar nfase indelvel recordao que nossa deciso deixar para posteridade e defender que da glria nasce o proveito, e que este sempre est vinculado ao prestgio social. (CCERO, 2002, p.355, traduo nossa)

    Reafirma a sentena no De Inventione (I, 16, 22-23), lembrando das quatro

  • 30

    formas de obteno da benevolncia ou simpatia do pblico (juiz ou destinatrio do

    discurso). Para tal, podemos:

    a) falar de ns mesmos, elevando nossos mritos e servios, expondo os infortnios que nos sucederam e as dificuldades que nos ameaaram, e da maneira como triunfamos; b) falar dos nossos adversrios, hostilizando seus esforos e depreciando seus intentos, mostrando sua incompetncia; c) podemos falar dos ouvintes, elogiando e elevando sua sabedoria, seu valor, louvando sua posio social, sua reputao e autorizada opinio; e finalmente, d) podemos falar dos feitos, elevando e elogiando nossa prpria causa. (CCERO, 1997, p.114-15)

    Para efeito de visualizarmos a organizao do texto prefacial conforme as

    amplas diretrizes retricas conferidas acima por Ccero, realizamos um quadro

    explicativo onde cada tpico discriminado podendo ser comparado com o texto

    integral traduzido por ns no incio deste captulo:

    CCERO, De Inventione: MONTEVERDI, prefcio:a)falar de ns mesmos, elevando nossos mritos e servios, expondo os infortnios que nos sucederam e as dificuldades que nos ameaaram, e da maneira como triunfamos;

    Este o caso do prefcio no momento em que se apresenta a composio do thos de Monteverdi no discurso atravs da chave da laus ou louvor, elogio, ou encmio;

    b) falar dos nossos adversrios, hostilizando seus esforos e depreciando seus intentos, mostrando sua incompetncia;

    Isto acontece no prefcio quando dirigido o vituprio aos compositores que precederam Monteverdi;

    c) falar dos ouvintes, elogiando e elevando sua sabedoria, seu valor, louvando sua posio social, sua reputao e autorizada opinio;

    o caso do prefcio quando Girolamo Mocenigo, patrono das artes e protetor do compositor, louvado junto ao nobre pblico veneziano;

    d) podemos falar dos feitos, elevando e elogiando nossa prpria causa.

    Isto acontece quando no plano narrativo discorre-se sobre o processo composicional e sobre as questes interpretativas do stile concitato, elencando as questes ticas e patticas junto a questes referentes ao ritmo, como a oposio entre prrico e espondaico.

    No que refere-se ao plano do argumento das autoridades antigas, Plato

  • 31

    evocado atravs da Repblica sobre o pthos concitado e especialmente sobre a

    adequada emulao das vozes guerreiras. O prefcio apresenta o trecho da

    Repblica (399a) que a chave principal das justificativas de Monteverdi:

    [] um gnero j descrito por Plato no terceiro livro de sua Retrica [sic] nestas palavras: Tome aquela harmonia que deve convenientemente imitar as pronunciaes e os acentos de um bravo homem que est engajado numa guerra. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI 1973, p.416, traduo nossa)

    O argumento platnico refere-se harmonia conveniente em determinadas

    situaes que, segundo o filsofo, estariam bipolarizadas. Apenas Frgio e Drico

    seriam sancionados por vincular the relativos bravura e coragem (direcionados ao

    guerreiro, protetor da plis) e de moderao e sabedoria (direcionados ao filsofo e

    ao poltico, dirigentes da plis). Veremos, atravs de Lippman (1964), Zanoncelli

    (2005) e Panti (2008) que tal argumento um tpos nas harmnicas gregas antigas,

    cuja raiz remonta ao filsofo conselheiro de Pricles, Damon de Oa.

    Atravs de Monteverdi, o ideal platnico da Repblica - de [...] imitar as

    pronunciaes e os acentos de um bravo homem que est engajado em uma

    guerra - ir circunscrever-se ao stile concitato, dispositivo musical que funciona

    como ornato nos textos que sugerem o pthos guerreiro em questo. tambm

    reconhecida no prefcio a funo primordial da msica em estabelecer o movimento

    entre afetos contrrios (outro tpos reincidente de raiz pitagrica que remete-nos

    questo da concordia discors, ou a harmonia do que discordante), motivo pelo qual

    utilizado Bocio e sua assertiva presente no De Institutione Musica, como o

    discurso mostra. Este filsofo, por sua vez, havia reconhecido que os contrrios so

    mobilizados pela msica atuando na alma humana, enobrecendo ou corrompendo o

    carter. Bocio, portanto, citado seguido de sua importante sentena:

    E, deste modo, estando eu consciente que so os contrrios que com grandeza movem nossa alma, e que este o propsito que toda boa msica deveria possuir como Bocio afirma, dizendo: A Msica est ligada a ns, e tanto enobrece como corrompe o carter por esta razo eu tenho me aplicado com no pouca diligncia e fadiga para redescobrir este gnero. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI 1973, p.416-17 traduo nossa)

    As preceptivas do gnero retrico no qual o discurso est escrito no so

    abandonadas e so elencados em seguida os lugares-comuns do elogio, como v-

  • 32

    se na frase: [...] por esta razo eu tenho me aplicado com no pouca diligncia e

    fadiga para redescobrir este gnero [o gnero guerreiro ou concitato]

    MONTEVERDI, apud DE'PAOLI 1973, p.417, traduo nossa). Ccero, mais uma

    vez, suporta-nos esta observao, sustentando que, no caso do elogio, a excelncia

    como atributo de virtude vem muitas vezes circunscrita a um grande esforo e

    fadiga, como procedimento para construo da dignidade do emissor do discurso

    (CCERO, 2002). Como mostramos anteriormente no De Inventione, Ccero (1997)

    aponta justamente para este dispositivo discursivo pelo qual o orador fala de si

    mesmo, elevando seus mritos e servios, e aponta os infortnios, a fadiga e o

    esforo perante os quais triunfou.

    Lembrando as prescries encontradas no De Oratore fica claro o

    agenciamento de lugares-comuns do louvor quando so utilizados os atributos de

    um carter proativo, diligente e esforado na criao de um gnero e estilo musical

    no contemplado pelos compositores do passado. Mais uma vez, mostramos que

    pelos atributos da excelncia de seu labor composicional que erige-se o seu prprio

    carter.

    Segundo o prprio Ccero (De Oratore, II, 84, 343-344), a excelncia um

    atributo essencial nos discursos encomisticos ou laudatrios:

    [...] a excelncia, que por si mesma digna de elogio, sem a qual nada pode ser feito ao louvar algum ou alguma coisa, possui, contudo, muitas manifestaes, sendo algumas mais adequadas do que outras; pois, em efeito, h algumas virtudes que parecem assentar-se na psicologia humana em uma certa afabilidade e filantropia genricas; outras, por sua vez, se baseiam em alguma predisposio do talento ou na amplitude de viso e fortaleza de esprito; []. E todas estas virtudes considera-se no apenas um benefcio para quem as possui, mas tambm para toda humanidade. (CCERO, 2002, p.358-9, traduo nossa)

    A excelncia do fatigante empenho laborativo na busca pelo gnero no

    encontrado pelos predecessores de Monteverdi uma chave discursiva. Ela prev

    vituperar a ineficcia pregressa e elevar o compositor categoria dos mais

    excelentes de seu campo, apoiado nas maiores autoridades. Na sequncia

    narrativa, o prefcio de Monteverdi parte, portanto, em direo aos tpicos do

    processo pelo qual o stile concitato foi concebido com a finalidade de ornato do

    textos poticos dos madrigais cujo teor pattico aquele que foi indicado por Plato,

    na Repblica (a guerra, a ira, o furor, as vozes guerreiras). O discurso direciona-se a

  • 33

    partir de agora informar e instruir o leitor sobre a raiz de sua reflexo, procurando

    provar atravs da enumerao dos processos de composio musical a validade da

    descoberta.

    Os argumentos retomam um importante tpos rtmico a relao entre a

    metrificao prrica e a espondaica. A metrificao prrica conhecida como

    pertencente aos cantos guerreiros que outrora entoavam os antigos gregos, nas

    olimpadas ou em cantos militares. O prefcio, por sua vez, trata de colocar como

    antpodas o prrico e o espondaico, lembrando que o primeiro, pela natureza da

    prolao, corresponderia, portanto, a um golpe do metro espondaico fato

    concebido equivocadamente pelos intrpretes do perodo do compositor. A agitao

    ou concitao anmica encontra como dispositivo rtmico justamente o prrico, ou

    pelo menos o que Monteverdi concebeu como sendo a metrificao prrica

    adequada para justificar o stile concitato. O prrico e o espondaico,

    consequentemente, oferecem duas possibilidades contrrias de manipulao dos

    afetos, pois o primeiro est na chave diastltica do thos, j o segundo, opera na

    chave oposta, a sistltica (este tema tratado nas harmnicas antigas e nos

    discursos do XVI e XVII que retomam seus conceitos chave). No plano pattico

    teremos ento a ira e a humildade ou splica na forma em que o prefcio enumera

    referindo-se aos afetos contemplados em msica.

    O procedimento rtmico do stile concitato descrito no prefcio e tambm so

    elencados os atributos do metro prrico e do espondaico, colocados diametralmente

    em oposio:

    Aps refletir que no metro prrico o tempo rpido e, de acordo com os melhores filsofos, usa saltos agitados e marciais, e que no espondaico o tempo lento e oposto quele, comecei, portanto, a considerar a semibreve [figura da semibreve], que soada uma vez propus que correspondesse a um golpe da mensurao espondaica [...] (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI 1973, p.416-17,18, traduo nossa)

    Em seguida, retomada a ligao evidenciada entre ritmo e afeto:

    [] quando esta [a mensurao espondaica] foi dividida entre dezesseis semicrome [figura da semicolcheia], rebatidas uma aps a outra e combinadas com palavras que expressam ira e desdm, reconheci assim, nesta breve amostra, uma semelhana com o afeto que procurei, embora as palavras no sigam na sua prpria mensurao a rapidez do instrumento. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI, 1973, p.417,18, traduo nossa, grifo nosso)

  • 34

    A continuidade narrativa aponta para a ocasio de composio do

    Combattimento di Tancredi i Clorinda, msica de cmara que, segundo Monteverdi,

    constituiu a oportunidade de provar a eficcia do stile concitato no gnero recm

    descoberto.

    O prefcio demonstra a proeminncia do patrono do compositor, Girolamo

    Mocenigo, e respectivamente o seu status na Repblica de Veneza como argumento

    que refora o thos de Monteverdi e o de seu empenho laborativo na composio

    musical e estruturao do stile concitato. Aponta, sem que haja meios de mensurar,

    que tal obra foi recebida favoravelmente e prazerosamente pelo pblico corteso

    veneziano numa rcita em 1624:

    Para obter uma melhor prova, tomei o divino Tasso, como o poeta que expressa com grande propriedade e naturalidade as qualidades que ele deseja descrever, e selecionei sua descrio do combate de Tancredo e Clorinda, que me deu duas paixes contrrias para colocar em msica, guerra ou seja, splica, e morte. No ano de 1624 esta obra foi ouvida pelos melhores cidados da nobre cidade de Veneza em um nobre salo de meu patro e especial protetor, o Senhor Girolamo Mocenigo, um proeminente cavaleiro e um dentre os comandantes da Serenssima Repblica; ela foi recebida com muito aplauso e prazer. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI, 1973, p.417-18, traduo nossa)

    Os destinatrios do discurso so informados sobre a excelncia do intento e

    proeminncia compositiva de Monteverdi atravs da notcia da emulao que

    demais compositores empreenderam do gnero guerreiro e do stile concitato.

    louvado, mais uma vez, o esforo criativo em favor de um gnero musical concebido

    como necessrio msica, posto que, pelo o que observamos no texto prefacial, o

    labor composicional de seus adversrios vituperado (a conjectural ineficcia do

    passado), sobre a qual o compositor considerado como lumiar da descoberta

    essencial de um novo gnero. Uma anlise breve dos procedimentos do stile

    concitato mostra-nos que as figuraes rtmicas e os desenhos meldicos deste

    estilo j vinham sendo manipulados, por exemplo, nas msica para instrumentos de

    sopro, como mostra-nos o tratado de Girolamo Fantini (Modo per imparare a sonare

    di tromba), do mesmo ano da publicao de Monteverdi, 1638, onde o autor

    demonstra as variadas possibilidades do trompete natural. As msicas intituladas

    Battaglia, comuns no sculo XVI e XVII (tanto em mbito vocal como instrumental),

  • 35

    tambm j demonstravam operar atravs destas figuraes especficas, como, por

    exemplo, repetio de notas rpidas (semicolcheias) e arpejos sobre acordes

    maiores, mesmos procedimentos encontrados no stile concitato monteverdiano. No

    entanto, o gnero epidctico, dentro do qual o texto do prefcio opera, sanciona a

    manipulao das chaves laudatrias, colocando o gnero guerreiro e o stile

    concitato no altar das engenhosas criaes da seconda prattica.

    O prprio Ccero, como vimos, revelou o funcionamento das chaves deste

    discurso, onde, segundo ele, obtm-se a benevolncia do destinatrio apontando

    no somente as virtudes do orador que defende a causa (ou seja, dignificando seu

    thos) mas tambm as virtudes intrnsecas causa em si, geradoras de benefcios

    no somente pessoais, mas a toda uma rea, instituio, comunidade, etc.

    Fica evidentemente, portanto, que o discurso prefacial operado justamente

    nesta chave, quando, por exemplo, so indicados os benefcios da descoberta

    monteverdiana como necessrios arte da msica. A sentena resumida

    apontando que a arte musical at ento era imperfeita, pois agora o engenho do

    compositor em seus empreendimentos musicais foi o responsvel por agregar o

    ltimo elemento que deveria figurar entre os gneros molle e o temperato - o

    gnero concitato, objeto primordial de sua reflexo, tornando a arte musical, enfim,

    perfeita. Sobre isto, lembramos a assertiva de Quintiliano (Inst.Orat. I, III, Cap.VII,

    6): [...] tarefa prpria do discurso laudatrio amplificar e adornar os temas

    (QUINTILIANO, 1996, p.389, traduo nossa, grifo nosso). Esta evidncia aponta

    justamente para um processo de adorno e amplificao do tema tratado no prefcio

    como tarefa pertencente ao orador e sancionada pelo gnero de discurso no qual se

    insere. Seguimos, portanto, com o argumento prefacial sobre a questo:

    Depois do aparente sucesso da minha tentativa de descrever a ira, procedi com grande zelo em uma profunda investigao e compus outros trabalhos desta mesma estirpe, tanto eclesisticos como de performance de cmara. Alm disso, este gnero encontrou tal honra entre outros compositores que eles no apenas o elogiaram verbalmente, mas, para meu prazer e honra, eles tambm demonstraram seus elogios escrevendo obras em imitao minha. Por esta razo, cogitei que seria melhor tornar conhecido o fato de que a investigao e o primeiro ensaio neste gnero, to necessrio arte da msica, veio de mim. Isso pode ser dito com razo, pois at o presente a msica tem sido imperfeita, possuindo apenas dois genera - 'mole' e 'temperado'. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI, 1973, p.418, traduo nossa)

  • 36

    No que diz respeito questo performtica ou interpretativa do stile concitato,

    o prefcio do Oitavo Livro apresenta a relao do p prrico com o espondaico,

    informando-nos que os msicos tomavam, a princpio, a mensurao espondaica

    pela prrica, pois consideravam indecoroso martelar dezesseis tempos de

    semicolcheias, procedimento no usual, porm previsto no stile concitato. Porm,

    como afirmado, este dispositivo musical consiste exatamente na reiterao de

    notas rpidas em similitude fala agitada, s ou vozes guerreiras platnicas da

    Repblica:

    Aos msicos, de incio, especialmente entre aqueles que eram chamados a tocar o baixo contnuo, pareceu mais ridculo do que louvvel martelar numa mesma corda dezesseis tempos no mesmo tactus, ento eles reduziram esta multiplicidade de golpes a uma batida apenas por tactus, onde veio a soar o espondaico ao invs do p prrico, destruindo a semelhana com a fala agitada. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI, 1973, p.418, traduo nossa)

    A preponderncia do lgos sobre o mlos (ou seja, do texto e suas sugestes

    afetivas sobre os procedimentos musicais) retomada no prefcio no final do

    pargrafo onde edificaram-se as diretivas performticas. O fundamento desta

    questo encontra respaldo no argumento de Plato sobre a proeminncia do

    contedo textual em relao aos aspectos musicais. A prevalncia do texto e seu

    potencial pattico foi o argumento gerador dos embates entre antigos e modernos

    em msica, no perodo entre finais de sculo XVI e incio de XVII, e autorizou as

    licenas contrapontsticas de Monteverdi e seus contemporneos:

    Tome conhecimento, portanto, que o baixo continuo deve ser tocado, juntamente com as partes de acompanhamento, na forma e na maneira em que este gnero foi escrito. De forma similar, tu encontrars todas outras direes necessrias para a performance das outras composies que encontram-se em gneros distintos [ o caso dos Madrigali Amorosi]. Para as variadas maneiras de performance deves tomar conhecimento, sobretudo, de trs coisas: texto, harmonia e ritmo. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI 1973, p.418, traduo nossa, grifo nosso)

    Os Madrigali Guerrieri, por sua vez, so finalmente referenciados como a

    oportunidade de demonstrar todo o potencial do stile concitato como dispositivo

    musical de um gnero guerreiro necessrio arte musical:

    Minha descoberta desse gnero guerreiro me deu ocasio para escrever alguns madrigais que intitulei guerrieri. Assim, entendendo que a msica

  • 37

    executada diante de grandes prncipes nas suas cortes para agradar seus delicados gostos constitui-se de trs tipos, de acordo com determinado mtodo de performance - msica teatral, msica de cmara e msica de dana assim tambm nomeei as obras do meu presente trabalho com os ttulos guerriera, amorosa e rappresentativa. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI, 1973, p.418, traduo nossa, grifo nosso)

    Reiterando o esquema ternrio antevisto, o compositor cita os estilos

    empregados conforme o decoro de ocasio, sendo msica teatral (provavelmente

    referindo-se ao Combattimento di Tancredi i Clorinda), msica de cmara (referindo-

    se certamente maioria dos madrigais do Oitavo Livro) e msica de dana

    (referindo-se propriamente ao Ballo Movete al mio bel suon, e ao Ballo delle

    Ingrate, que so as obras que finalizam as duas partes do livro, respectivamente, os

    Madrigali Guerrieri e os Amorosi). Ainda empregando uma diviso ternria, o leitor

    informado que sua msica intitula-se guerriera por vincular os elementos do stile

    concitato e do gnero guerreiro; amorosa, por referir-se aos madrigais da segunda

    seo do livro, a maioria de performance de cmara, e, finalmente, rappresentativa,

    lembrando do Combattimento como msica teatral.

    Para as sentenas finais do discurso prefacial, enfim, utilizada a prescrio

    retrica referente peroratio ou epilogus, ou seja, a concluso do discurso. Ccero,

    no De Inventione (I, 54, 107), recomenda nesta parte do discurso suscitar a

    misericrdia dos ouvintes, apelando tambm sua benevolncia. Devemos,

    segundo ele, [...] provocar sua piedade de maneira que se mostrem assim mais

    sensveis a nossas queixas. (CCERO, 1997, p.186). Utiliza-se para tal, lugares-

    comuns que coloquem em relevo o poder da fortuna sobre ns e a debilidade

    humana. O annimo ad Herenium (II, 31, 50) sugere tambm apelar misericrdia

    dos ouvintes, suplicando e encomendando-nos sua compaixo. (ANON. AD

    HERENIUM, 1997, p.162).

    Monteverdi, dentro do preceito do movere (ou seja, mover o afeto do ouvinte

    de modo a torn-lo benevolente recepo da obra) aponta justamente para a

    debilidade como sendo da natureza das novas invenes, referindo-se claramente

    ao stile concitato e ao gnero guerreiro, dizendo - omne principium est debile (todo

    princpio dbil, fraco). Em seguida, o texto apela compaixo do ouvinte para

    com o estado imperfeito em que se encontra a obra, pois ele informado que o

    compositor detm ainda pouca habilidade no gnero recm descoberto.

  • 38

    Logo encontramos a petitio final ao leitor, ou seja, uma petio exortativa para

    que o mesmo aceite com benevolncia suas boas intenes. Por ltimo, informa em

    uma sentena em latim que fcil aderir s invenes Finalmente, desponta

    valedictio, ou seja, um Adeus que faz o fechamento de sua argumentao

    prefacial.

    Sei que esta obra ser imperfeita, pois detenho ainda pouca habilidade particularmente no gnero guerreiro, porque ele novo e omne principium est debile [todo comeo dbil, fraco]. Eu, portanto, rogo ao meu benevolente leitor, o qual ir esperar de minha instruda pena uma grande perfeio no dito gnero, aceitar minha boa inteno, porque invenis facile est adere [ fcil aderir s invenes]. Adeus. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI, 1973, p.416-17,18)

    2.2. THOS, PTHOS E A TRIPARTIO EM GNEROS CONCITATO, MOLLE ET

    TEMPERATO

    Objetiva-se aqui esclarecer a maneira pela qual o argumento prefacial de

    Monteverdi veio a constituir-se apoiado nos vastos estudos filosficos e na

    especulao terica sobre msica que circulava no perodo de sua produo

    musical. Comearemos pela distino entre duas correntes nas quais thos e pthos

    inserem-se: a pitagrica de um lado, e a damoniana de outro, ambas

    complementares no pensamento de variados filsofos e tratadistas. Tambm sero

    expostos os principais argumentos de Plato e Aristteles sobre a questo, seguindo

    posteriormente com os conceitos aristoxnicos de importncia fundamental ao nosso

    estudo. De Ptolomeu Bocio, e deste aos discursos humanistas sobre msica,

    sero evidenciados os principais conceitos que edificam a questo tica e pattica

    revelada no prefcio de Monteverdi ao Oitavo Livro de Madrigais de 1638.

    A corrente pitagrica, conforme Rossi, parte do nmero, e por tal motivo ela

    utiliza-se de relaes numricas e de propores em conexo ao motus da psique

    humana, onde [...] um ordenado sistema psicolgico no qual caracteres e paixes

    ligados astronomia distinguem-se segundo as relaes numricas que lhes so

    atribudas abstratamente. (ROSSI, 1988, p.239, traduo nossa). Este argumento

    pitagrico que aproxima a msica enquanto ordenao numrica, proporo e

  • 39

    movimento mensurvel ao plano tico e pattico est presente em toda tratadstica

    musical. Por outro lado, a segunda vertente indica o contributo do filsofo Damon de

    Oa (sc. Va.C.), citado especialmente por Plato. Panti (2008) refere-se Damon

    como a autoridade no campo tico musical, dizendo que:

    O poder da msica de mover a alma estimulando ou acalmando suas afeces e turbamentos tem um grande significado na cultura grega clssica, e na idade de Pricles, o filsofo e poltico Damon de Oa, de escola pitagrica, deu incio a uma verdadeira e apropriada teoria tica da msica, elaborando a doutrina do thos musical, ou seja, a correspondncia entre especficos gneros musicais, que Plato definir como harmoniai, e determinados caracteres ou estados do nimo. (PANTI, 2008, p.17)

    A estas duas vias recm citadas acrescenta-se uma terceira que povoou os

    tratados de msica desde a antiguidade at tempo de Monteverdi: o campo

    medicinal, de raiz hipocrtica. Segundo Rossi:

    [] h de se reconhecer que a terapia musical foi realmente uma rica academia de experimentao de tipos musicais vrios, tendo em conta a intensa prtica homeoptica (por exemplo, os casos de excitao curados com msica diastltica). (ROSSI, 1988, p.241, traduo nossa)

    Uma quarta via, entretanto, deve ser lembrada: a via poltica. Neste quadro

    terico, Lippman (1964) atenta para os argumentos de Damon referentes aos the,

    ou caracteres morais, como condio essencial na na licitude ou ilicitude de aes

    empreendidas pelos dirigentes na conduo do Estado. A figura do filsofo no

    estudo de Lippman3 apresenta-se como um cidado consciente das funes

    determinantes do Aeropagus ateniense, que era o tribunal que servia para os

    julgamentos e decises mais importantes para o destino da plis. O autor destaca

    que:

    [Damon] era a autoridade principal no campo especfico dos efeitos morais da msica mantendo o argumento de que havia uma indissolvel conexo entre a msica e a sociedade, pois mudanas no carter da msica implicariam igualmente mudanas legais. A tese de seu argumento que o guardio da boa lei e da boa ordem deveria compartilhar a funo expressa no Aeropagus, o mais velho e mais distinto tribunal ateniense, e que estas funes deveriam ser licenciadas pela msica, esta que, por sua vez, afetando a alma humana, poderia igualmente afetar a alma do Estado suas leis e sua constituio poltica. (LIPPMAN, 1964, p.69, traduo nossa).

    3 LIPPMAN, Edward. Musical Thought in Ancient Greece Columbia University Press, 1964.

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    A preceptiva fundamental de Damon para circunscrever a msica questo

    poltica a de que aos dirigentes do Estado no conviria agir de modo vicioso, pois

    haveria desta forma o iminente risco de enfraquecimento das vigas que sustentam a

    sociedade. Aes viciosas e virtuosas, segundo o filsofo, encontram guarida no

    grande poder da msica especialmente pelo seu particular potencial de mimetizar

    com xito distintos caracteres ticos. oportuno lembrar que a noo de msica que

    o filsofo utiliza a da totalidade de disciplinas abrigadas na Mousik,