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Vila dos Marcolino: Resistência pela mandioca Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas Ano 8 • nº1750 Crato A mandioca é uma planta nativa do Brasil, presente em todas as regiões, e bastante cultivada no Semiárido brasileiro. A farinha derivada de seu beneficiamento, constitui importante alimento energético, compondo a mesa dos/as sertanejos/as. Na chapada do Araripe, o cultivo da mandioca se caracteriza pela cultura de subsistência envolvendo em sua produção basicamente mão de obra familiar. Na comunidade Malhada Redonda, zona rural do município de Porteiras, extremo sul do Ceará, localizada no topo da chapada de solo arenoso e vegetação composta de piquizeiros, visgueiros, mangabeiras, muricizeiros, faveiras, entre outros, os pais de João Marcolino, 66 anos, ocuparam uma área de terra em que na época era preciso apenas arame suficiente para demarcar a propriedade e disposição de trabalho. “Eu era criança, e vim no meio de uma carga em cima de um animal. Inicialmente meu pai fez um rancho de madeira e folhas, começou o plantio de mandioca, o aviamento(casa de farinha), para só depois fazer a nossa casa”, lembra seu João. A família foi crescendo, chegando a 9 filhos, todos criados do trabalho com a mandioca. Eram tempos difíceis, para se pegar água era necessário se deslocar aproximadamente 10 quilômetros com o burro e ancoretas todos os dias até as fontes na encosta da chapada, pois não tinha como armazenar água. Seu Mariano, irmão de seu João que mora em Manaus, presente na ocasião, conta que certa vez estava na roça de mandioca com a mãe, e prometeu que não mais viveria aquele sofrimento. Foi embora e passou 12 anos sem dá notícias. Dos irmãos, João Marcolino, foi o único que seguiu os passos do pai. Casou com D. Lourdes, 63 anos, com quem teve nove filhos. Criou toda sua família, tirando o sustento na casa de farinha. O aviamento, como também é conhecida as casas de farinha, mudou do lugar de origem, e recebeu algumas inovações, como o motor para ralar a mandioca, e a balança, no resto, tudo é do tempo do seu pai. Comerciantes da Paraíba vinham com comboios de animais comprar farinha, e a gente usava o litro (caixinha de madeira) e a cuia de oito como medida. Os filhos foram crescendo, casando, formando família, e o terreiro foi aumentando, ficando de um lado a casa de farinha, uma das roças de mandioca, as Setembro/2014

Vila dos Marcolino: Resistência pela mandioca

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Vila familiar que produz farinha de mandioca, com aviamento artesanal, beneficiados com primeira e segunda água, produção de hortas. Prática passada de geração em geração, estando na terceira geração.

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Page 1: Vila dos Marcolino: Resistência pela mandioca

Vila dos Marcolino:

Resistência pela mandioca

Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas

Ano 8 • nº1750

Crato

A mandioca é uma planta nativa do Brasil, presente

em todas as regiões, e bastante cultivada no

Semiárido brasileiro. A farinha derivada de seu

beneficiamento, constitui importante alimento

energético, compondo a mesa dos/as sertanejos/as.

Na chapada do Araripe, o cultivo da mandioca se

caracteriza pela cultura de subsistência envolvendo

em sua produção basicamente mão de obra familiar.

Na comunidade Malhada Redonda, zona rural do

município de Porteiras, extremo sul do Ceará,

localizada no topo da chapada de solo arenoso e

vegetação composta de piquizeiros, visgueiros,

mangabeiras, muricizeiros, faveiras, entre outros, os

pais de João Marcolino, 66 anos, ocuparam uma área

de terra em que na época era preciso apenas arame

suficiente para demarcar a propriedade e disposição de trabalho. “Eu era criança, e vim no meio de uma carga em

cima de um animal. Inicialmente meu pai fez um rancho de madeira e folhas, começou o plantio de mandioca, o

aviamento(casa de farinha), para só depois fazer a nossa casa”, lembra seu João. A família foi crescendo, chegando a

9 filhos, todos criados do trabalho com a mandioca. Eram tempos difíceis, para se pegar água era necessário se

deslocar aproximadamente 10 quilômetros com o burro e ancoretas todos os dias até as fontes na encosta da

chapada, pois não tinha como armazenar água. Seu Mariano, irmão de seu João que mora em Manaus, presente na

ocasião, conta que certa vez estava na roça de mandioca com a mãe, e prometeu que não mais viveria aquele

sofrimento. Foi embora e passou 12 anos sem dá notícias.

Dos irmãos, João Marcolino, foi o único que seguiu os passos do pai. Casou

com D. Lourdes, 63 anos, com quem teve nove filhos. Criou toda sua família,

tirando o sustento na casa de farinha. O aviamento, como também é

conhecida as casas de farinha,

mudou do lugar de origem, e

recebeu algumas inovações,

como o motor para ralar a

mandioca, e a balança, no resto,

tudo é do tempo do seu pai.

Comerciantes da Paraíba vinham

com comboios de animais comprar farinha, e a gente usava o litro

(caixinha de madeira) e a cuia de oito como medida. Os filhos foram

crescendo, casando, formando família, e o terreiro foi aumentando,

ficando de um lado a casa de farinha, uma das roças de mandioca, as

Setembro/2014

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Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas Articulação Semiárido Brasileiro – Ceará

hortas, e do outro, seis casas enfileiradas, com jardins cuidados

caprichosamente, formando o que hoje é conhecido como a Vila dos

Marcolinos. Um destaque, é o jardim da casa de D. Lourdes, a matriarca

da família. A vila continua aumentando, pois está sendo construída mais

outra casa para uma das filhas que morava em São Paulo.

Não troco essa vida por nada, nem esse lugar; o mais difícil já passou,

hoje temos água nas cisternas, transporte fácil, é tudo diferente,

determina D. Lourdes. Ela fala das cisternas de primeira água do P1MC,

que tem em todas as casas. Uma outra tecnologia de convivência com o

Semiárido que chegou recentemente na vila, foi a implantação da

cisternas de enxurrada para a produção de alimentos. Três dos filhos

foram beneficiados, e já estão produzindo e comercializando o

excedente das hortas. Garantindo a segurança alimentar e

diversificando os seus alimentos, com alface, pimentão, coentro,

cebolinha, tomate, couve‐folha, e uma diversidade de fruteiras.

As farinhadas, nome dado ao processo de beneficiamento da

mandioca, acontece na forma de mutirões, envolvendo toda a Vila

Marcolino. Participam homens, mulheres e crianças. A mandioca é

trazida da roça em carroça, é descascada, lavada, ralada, raspada,

espremida na prensa, peneirada, escaldada, peneirada novamente e

por fim, torrada.

Seu João continua na ativa, embora que seu sucessor, o filho Doutor,

que também mora na vila, encabeça a produção e a comercialização.

Eles falam que o preço da farinha no mercado não ajuda muito, e que só

compensa porque toda a família ajuda. É uma festa; trabalhamos,

comemos, rimos, ouvimos e contamos histórias, destaca seu João.

A casa de farinha dos Marcolino conta a história de um povo que

acredita no sertão, e que nele é possível ser tão trabalhador, ser tão feliz,

ser tão zeloso, ser tão acolhedor, que nos faz se orgulhar de ser

sertanejo.

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