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Síntese, Belo Horizonte, v. 36, n. 116, 2009 325 325 325 325 325 Síntese - Rev. de Filosofia V. 36 N. 116 (2009): 325-353 artigos A ALIANÇA ALIANÇA ALIANÇA ALIANÇA ALIANÇA SOCRÁTICO SOCRÁTICO SOCRÁTICO SOCRÁTICO SOCRÁTICO- MOSAICA MOSAICA MOSAICA MOSAICA MOSAICA PÓS PÓS PÓS PÓS PÓS- METAFÍSICA METAFÍSICA METAFÍSICA METAFÍSICA METAFÍSICA, DESELENIZAÇÃO DESELENIZAÇÃO DESELENIZAÇÃO DESELENIZAÇÃO DESELENIZAÇÃO, TERCEIRA TERCEIRA TERCEIRA TERCEIRA TERCEIRA NA NA NA NA NAVEGAÇÃO VEGAÇÃO VEGAÇÃO VEGAÇÃO VEGAÇÃO* Vittorio Possenti** Resumo: O diálogo entre pensamento secular e pensamento religioso O diálogo entre pensamento secular e pensamento religioso O diálogo entre pensamento secular e pensamento religioso O diálogo entre pensamento secular e pensamento religioso O diálogo entre pensamento secular e pensamento religioso permanece uma encruzilhada recorrente na história do Ocidente (cfr. permanece uma encruzilhada recorrente na história do Ocidente (cfr. permanece uma encruzilhada recorrente na história do Ocidente (cfr. permanece uma encruzilhada recorrente na história do Ocidente (cfr. permanece uma encruzilhada recorrente na história do Ocidente (cfr. o debate Habermas-Ratzinger e Bento XVI em Regensburg). No diá- o debate Habermas-Ratzinger e Bento XVI em Regensburg). No diá- o debate Habermas-Ratzinger e Bento XVI em Regensburg). No diá- o debate Habermas-Ratzinger e Bento XVI em Regensburg). No diá- o debate Habermas-Ratzinger e Bento XVI em Regensburg). No diá- logo entram em jogo a crise logo entram em jogo a crise logo entram em jogo a crise logo entram em jogo a crise logo entram em jogo a crise pós-metafísica pós-metafísica pós-metafísica pós-metafísica pós-metafísica da razão e a da razão e a da razão e a da razão e a da razão e a deselenização, deselenização, deselenização, deselenização, deselenização, entendida como ruptura entendida como ruptura entendida como ruptura entendida como ruptura entendida como ruptura da aliança socrático-mosaica da aliança socrático-mosaica da aliança socrático-mosaica da aliança socrático-mosaica da aliança socrático-mosaica , ou seja do acor- , ou seja do acor- , ou seja do acor- , ou seja do acor- , ou seja do acor- do entre fé e razão em torno da idéia de verdade. Tal aliança religa do entre fé e razão em torno da idéia de verdade. Tal aliança religa do entre fé e razão em torno da idéia de verdade. Tal aliança religa do entre fé e razão em torno da idéia de verdade. Tal aliança religa do entre fé e razão em torno da idéia de verdade. Tal aliança religa filosofia grega (Sócrates) e discurso bíblico (Moisés): a diferença filosofia grega (Sócrates) e discurso bíblico (Moisés): a diferença filosofia grega (Sócrates) e discurso bíblico (Moisés): a diferença filosofia grega (Sócrates) e discurso bíblico (Moisés): a diferença filosofia grega (Sócrates) e discurso bíblico (Moisés): a diferença mosaica entre verdadeiro e falso nas religiões se encontra com a mosaica entre verdadeiro e falso nas religiões se encontra com a mosaica entre verdadeiro e falso nas religiões se encontra com a mosaica entre verdadeiro e falso nas religiões se encontra com a mosaica entre verdadeiro e falso nas religiões se encontra com a diferença socrática entre verdadeiro e falso na razão. A diferença socrática entre verdadeiro e falso na razão. A diferença socrática entre verdadeiro e falso na razão. A diferença socrática entre verdadeiro e falso na razão. A diferença socrática entre verdadeiro e falso na razão. A quaestio de quaestio de quaestio de quaestio de quaestio de veritate veritate veritate veritate veritate e o tema da e o tema da e o tema da e o tema da e o tema da religio vera religio vera religio vera religio vera religio vera não são portanto estranhos ao âmbito não são portanto estranhos ao âmbito não são portanto estranhos ao âmbito não são portanto estranhos ao âmbito não são portanto estranhos ao âmbito da Revelação, enquanto a moderna crítica da religião sustenta que a da Revelação, enquanto a moderna crítica da religião sustenta que a da Revelação, enquanto a moderna crítica da religião sustenta que a da Revelação, enquanto a moderna crítica da religião sustenta que a da Revelação, enquanto a moderna crítica da religião sustenta que a religião se refere apenas à piedade e ao culto (Spinoza). No interior religião se refere apenas à piedade e ao culto (Spinoza). No interior religião se refere apenas à piedade e ao culto (Spinoza). No interior religião se refere apenas à piedade e ao culto (Spinoza). No interior religião se refere apenas à piedade e ao culto (Spinoza). No interior daquela aliança situa-se o destino da metafísica. Após a ‘segunda daquela aliança situa-se o destino da metafísica. Após a ‘segunda daquela aliança situa-se o destino da metafísica. Após a ‘segunda daquela aliança situa-se o destino da metafísica. Após a ‘segunda daquela aliança situa-se o destino da metafísica. Após a ‘segunda navegação’ da metafísica hel ê nica, aconteceu com a filosofia do ser/ navegação’ da metafísica hel ê nica, aconteceu com a filosofia do ser/ navegação’ da metafísica hel ê nica, aconteceu com a filosofia do ser/ navegação’ da metafísica hel ê nica, aconteceu com a filosofia do ser/ navegação’ da metafísica hel ê nica, aconteceu com a filosofia do ser/ actus essendi actus essendi actus essendi actus essendi actus essendi de Tomás de Aquino uma de Tomás de Aquino uma de Tomás de Aquino uma de Tomás de Aquino uma de Tomás de Aquino uma terceira navegação terceira navegação terceira navegação terceira navegação terceira navegação ’, atuada ’, atuada ’, atuada ’, atuada ’, atuada por uma metafísica trans-ôntica que leva a termo a centralidade por uma metafísica trans-ôntica que leva a termo a centralidade por uma metafísica trans-ôntica que leva a termo a centralidade por uma metafísica trans-ôntica que leva a termo a centralidade por uma metafísica trans-ôntica que leva a termo a centralidade ontológica do ontológica do ontológica do ontológica do ontológica do energeia energeia energeia energeia energeia / actus actus actus actus actus . Para mobilizar a razão pós-moderna . Para mobilizar a razão pós-moderna . Para mobilizar a razão pós-moderna . Para mobilizar a razão pós-moderna . Para mobilizar a razão pós-moderna contra o contra o contra o contra o contra o derrotismo derrotismo derrotismo derrotismo derrotismo e o e o e o e o e o niilismo niilismo niilismo niilismo niilismo que a assediam, importa uma reto- que a assediam, importa uma reto- que a assediam, importa uma reto- que a assediam, importa uma reto- que a assediam, importa uma reto- mada da aliança socrático-mosaica. O seu novo pacto poderá aconte- mada da aliança socrático-mosaica. O seu novo pacto poderá aconte- mada da aliança socrático-mosaica. O seu novo pacto poderá aconte- mada da aliança socrático-mosaica. O seu novo pacto poderá aconte- mada da aliança socrático-mosaica. O seu novo pacto poderá aconte- cer reconhecendo a capacidade veritativa da razão natural, além do cer reconhecendo a capacidade veritativa da razão natural, além do cer reconhecendo a capacidade veritativa da razão natural, além do cer reconhecendo a capacidade veritativa da razão natural, além do cer reconhecendo a capacidade veritativa da razão natural, além do â mbito das ci ê ncias e da ética, no qual muitos quereriam deter-se. â mbito das ci ê ncias e da ética, no qual muitos quereriam deter-se. â mbito das ci ê ncias e da ética, no qual muitos quereriam deter-se. â mbito das ci ê ncias e da ética, no qual muitos quereriam deter-se. â mbito das ci ê ncias e da ética, no qual muitos quereriam deter-se. * Traduzido do original italiano inédito. ** Universidade de Veneza. Artigo submetido a avaliação no dia 05/02/2009 e apro- vado para publicação no dia 05/05/2009. (The Socratic-Mosaic alliance (The Socratic-Mosaic alliance (The Socratic-Mosaic alliance (The Socratic-Mosaic alliance (The Socratic-Mosaic alliance Post-metaphysics, de-hellenization, third navigation) Post-metaphysics, de-hellenization, third navigation) Post-metaphysics, de-hellenization, third navigation) Post-metaphysics, de-hellenization, third navigation) Post-metaphysics, de-hellenization, third navigation)

Vittorio Possenti, A Alianca Socratico-mosaica Pos-metafisica

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Vittorio

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  • Sntese, Belo Horizonte, v. 36, n. 116, 2009 325325325325325

    Sntese - Rev. de Filosofia

    V. 36 N. 116 (2009): 325-353

    artigos

    AAAAA ALIANAALIANAALIANAALIANAALIANA SOCRTICOSOCRTICOSOCRTICOSOCRTICOSOCRTICO-----MOSAICAMOSAICAMOSAICAMOSAICAMOSAICAPSPSPSPSPS-----METAFSICAMETAFSICAMETAFSICAMETAFSICAMETAFSICA,,,,, DESELENIZAODESELENIZAODESELENIZAODESELENIZAODESELENIZAO,,,,, TERCEIRATERCEIRATERCEIRATERCEIRATERCEIRANANANANANAVEGAOVEGAOVEGAOVEGAOVEGAO*

    Vittorio Possenti**

    Resumo: O dilogo entre pensamento secular e pensamento religiosoO dilogo entre pensamento secular e pensamento religiosoO dilogo entre pensamento secular e pensamento religiosoO dilogo entre pensamento secular e pensamento religiosoO dilogo entre pensamento secular e pensamento religiosopermanece uma encruzilhada recorrente na histria do Ocidente (cfr.permanece uma encruzilhada recorrente na histria do Ocidente (cfr.permanece uma encruzilhada recorrente na histria do Ocidente (cfr.permanece uma encruzilhada recorrente na histria do Ocidente (cfr.permanece uma encruzilhada recorrente na histria do Ocidente (cfr.o debate Habermas-Ratzinger e Bento XVI em Regensburg). No di-o debate Habermas-Ratzinger e Bento XVI em Regensburg). No di-o debate Habermas-Ratzinger e Bento XVI em Regensburg). No di-o debate Habermas-Ratzinger e Bento XVI em Regensburg). No di-o debate Habermas-Ratzinger e Bento XVI em Regensburg). No di-logo entram em jogo a criselogo entram em jogo a criselogo entram em jogo a criselogo entram em jogo a criselogo entram em jogo a crise ps-metafsicaps-metafsicaps-metafsicaps-metafsicaps-metafsica da razo e ada razo e ada razo e ada razo e ada razo e a deselenizao,deselenizao,deselenizao,deselenizao,deselenizao,entendida como rupturaentendida como rupturaentendida como rupturaentendida como rupturaentendida como ruptura da aliana socrtico-mosaicada aliana socrtico-mosaicada aliana socrtico-mosaicada aliana socrtico-mosaicada aliana socrtico-mosaica, ou seja do acor-, ou seja do acor-, ou seja do acor-, ou seja do acor-, ou seja do acor-do entre f e razo em torno da idia de verdade. Tal aliana religado entre f e razo em torno da idia de verdade. Tal aliana religado entre f e razo em torno da idia de verdade. Tal aliana religado entre f e razo em torno da idia de verdade. Tal aliana religado entre f e razo em torno da idia de verdade. Tal aliana religafilosofia grega (Scrates) e discurso bblico (Moiss): a diferenafilosofia grega (Scrates) e discurso bblico (Moiss): a diferenafilosofia grega (Scrates) e discurso bblico (Moiss): a diferenafilosofia grega (Scrates) e discurso bblico (Moiss): a diferenafilosofia grega (Scrates) e discurso bblico (Moiss): a diferenamosaica entre verdadeiro e falso nas religies se encontra com amosaica entre verdadeiro e falso nas religies se encontra com amosaica entre verdadeiro e falso nas religies se encontra com amosaica entre verdadeiro e falso nas religies se encontra com amosaica entre verdadeiro e falso nas religies se encontra com adiferena socrtica entre verdadeiro e falso na razo. Adiferena socrtica entre verdadeiro e falso na razo. Adiferena socrtica entre verdadeiro e falso na razo. Adiferena socrtica entre verdadeiro e falso na razo. Adiferena socrtica entre verdadeiro e falso na razo. A quaestio dequaestio dequaestio dequaestio dequaestio deveritateveritateveritateveritateveritate e o tema dae o tema dae o tema dae o tema dae o tema da religio verareligio verareligio verareligio verareligio vera no so portanto estranhos ao mbitono so portanto estranhos ao mbitono so portanto estranhos ao mbitono so portanto estranhos ao mbitono so portanto estranhos ao mbitoda Revelao, enquanto a moderna crtica da religio sustenta que ada Revelao, enquanto a moderna crtica da religio sustenta que ada Revelao, enquanto a moderna crtica da religio sustenta que ada Revelao, enquanto a moderna crtica da religio sustenta que ada Revelao, enquanto a moderna crtica da religio sustenta que areligio se refere apenas piedade e ao culto (Spinoza). No interiorreligio se refere apenas piedade e ao culto (Spinoza). No interiorreligio se refere apenas piedade e ao culto (Spinoza). No interiorreligio se refere apenas piedade e ao culto (Spinoza). No interiorreligio se refere apenas piedade e ao culto (Spinoza). No interiordaquela aliana situa-se o destino da metafsica. Aps a segundadaquela aliana situa-se o destino da metafsica. Aps a segundadaquela aliana situa-se o destino da metafsica. Aps a segundadaquela aliana situa-se o destino da metafsica. Aps a segundadaquela aliana situa-se o destino da metafsica. Aps a segundanavegao da metafsica helnica, aconteceu com a filosofia do ser/navegao da metafsica helnica, aconteceu com a filosofia do ser/navegao da metafsica helnica, aconteceu com a filosofia do ser/navegao da metafsica helnica, aconteceu com a filosofia do ser/navegao da metafsica helnica, aconteceu com a filosofia do ser/actus essendiactus essendiactus essendiactus essendiactus essendi de Toms de Aquino uma de Toms de Aquino uma de Toms de Aquino uma de Toms de Aquino uma de Toms de Aquino uma terceira navegaoterceira navegaoterceira navegaoterceira navegaoterceira navegao, atuada, atuada, atuada, atuada, atuadapor uma metafsica trans-ntica que leva a termo a centralidadepor uma metafsica trans-ntica que leva a termo a centralidadepor uma metafsica trans-ntica que leva a termo a centralidadepor uma metafsica trans-ntica que leva a termo a centralidadepor uma metafsica trans-ntica que leva a termo a centralidadeontolgica doontolgica doontolgica doontolgica doontolgica do energeiaenergeiaenergeiaenergeiaenergeia/////actusactusactusactusactus. Para mobilizar a razo ps-moderna. Para mobilizar a razo ps-moderna. Para mobilizar a razo ps-moderna. Para mobilizar a razo ps-moderna. Para mobilizar a razo ps-modernacontra ocontra ocontra ocontra ocontra o derrotismoderrotismoderrotismoderrotismoderrotismo e oe oe oe oe o niilismoniilismoniilismoniilismoniilismo que a assediam, importa uma reto-que a assediam, importa uma reto-que a assediam, importa uma reto-que a assediam, importa uma reto-que a assediam, importa uma reto-mada da aliana socrtico-mosaica. O seu novo pacto poder aconte-mada da aliana socrtico-mosaica. O seu novo pacto poder aconte-mada da aliana socrtico-mosaica. O seu novo pacto poder aconte-mada da aliana socrtico-mosaica. O seu novo pacto poder aconte-mada da aliana socrtico-mosaica. O seu novo pacto poder aconte-cer reconhecendo a capacidade veritativa da razo natural, alm docer reconhecendo a capacidade veritativa da razo natural, alm docer reconhecendo a capacidade veritativa da razo natural, alm docer reconhecendo a capacidade veritativa da razo natural, alm docer reconhecendo a capacidade veritativa da razo natural, alm dombito das cincias e da tica, no qual muitos quereriam deter-se.mbito das cincias e da tica, no qual muitos quereriam deter-se.mbito das cincias e da tica, no qual muitos quereriam deter-se.mbito das cincias e da tica, no qual muitos quereriam deter-se.mbito das cincias e da tica, no qual muitos quereriam deter-se.

    * Traduzido do original italiano indito.** Universidade de Veneza. Artigo submetido a avaliao no dia 05/02/2009 e apro-vado para publicao no dia 05/05/2009.

    (The Socratic-Mosaic alliance(The Socratic-Mosaic alliance(The Socratic-Mosaic alliance(The Socratic-Mosaic alliance(The Socratic-Mosaic alliancePost-metaphysics, de-hellenization, third navigation)Post-metaphysics, de-hellenization, third navigation)Post-metaphysics, de-hellenization, third navigation)Post-metaphysics, de-hellenization, third navigation)Post-metaphysics, de-hellenization, third navigation)

  • Sntese, Belo Horizonte, v. 36, n. 116, 2009326

    Uma breve explicao introdutria oportuna para esclarecer o de-senrolar-se do discurso e o significado do tema desenvolvido. Porocasio dos debates especficos que se referem ps-metafsica, deselenizao e ao niilismo, pretende-se elaborar o significado da alianasocrtico-mosaica e testar o seu vigor, introduzindo depois a categoria deterceira navegao desenvolvida pela filosofia do ser. Os trs primeirostermos em itlico so de emprego freqente e, no obstante a pluralidade dasmaneiras como so entendidos, no so enigmticos. Os outros dois alianasocrtico-mosaica e terceira navegao so menos empregados e no dizemtanto por si mesmos, de modo que sero explicados quando ingressarem notexto. Este toca com a sobriedade prpria de uma informao alguns dentre ostemas mais decisivos da filosofia, em particular da especulativa.

    O caminho seguido inicia no hoje para dirigir-se a ncleos do passado eento voltar para a atualidade histrico-especulativa, explorando o coefici-ente de futuro da aliana socrtico-mosaica e da terceira navegao. Come-aremos com uma seo dedicada a uma interveno de Habermas e aohorizonte ps-metafsico, que servir de estmulo para o resto do discurso.

    Palavras-chave: Pensamento secular e religioso, dilogo, derrotismo ps-Pensamento secular e religioso, dilogo, derrotismo ps-Pensamento secular e religioso, dilogo, derrotismo ps-Pensamento secular e religioso, dilogo, derrotismo ps-Pensamento secular e religioso, dilogo, derrotismo ps-moderno, filosofia do ser de S. Toms.moderno, filosofia do ser de S. Toms.moderno, filosofia do ser de S. Toms.moderno, filosofia do ser de S. Toms.moderno, filosofia do ser de S. Toms.

    Abstract: The dialogue between secular and religious thinking is still aThe dialogue between secular and religious thinking is still aThe dialogue between secular and religious thinking is still aThe dialogue between secular and religious thinking is still aThe dialogue between secular and religious thinking is still arecurring theme in Western History (see the Habermas/Ratzingerrecurring theme in Western History (see the Habermas/Ratzingerrecurring theme in Western History (see the Habermas/Ratzingerrecurring theme in Western History (see the Habermas/Ratzingerrecurring theme in Western History (see the Habermas/Ratzingerdebate and the lecture by Benedict XVI in Regensburg). Within thisdebate and the lecture by Benedict XVI in Regensburg). Within thisdebate and the lecture by Benedict XVI in Regensburg). Within thisdebate and the lecture by Benedict XVI in Regensburg). Within thisdebate and the lecture by Benedict XVI in Regensburg). Within thisdialogue, the post-metaphysical crisis of the reason and the de-dialogue, the post-metaphysical crisis of the reason and the de-dialogue, the post-metaphysical crisis of the reason and the de-dialogue, the post-metaphysical crisis of the reason and the de-dialogue, the post-metaphysical crisis of the reason and the de-hellenization process are at play, the latter being understood as thehellenization process are at play, the latter being understood as thehellenization process are at play, the latter being understood as thehellenization process are at play, the latter being understood as thehellenization process are at play, the latter being understood as thebreaking of the Socratic-Mosaic alliance, that is, of the agreementbreaking of the Socratic-Mosaic alliance, that is, of the agreementbreaking of the Socratic-Mosaic alliance, that is, of the agreementbreaking of the Socratic-Mosaic alliance, that is, of the agreementbreaking of the Socratic-Mosaic alliance, that is, of the agreementbetween faith and reason regarding the question of truth. Such anbetween faith and reason regarding the question of truth. Such anbetween faith and reason regarding the question of truth. Such anbetween faith and reason regarding the question of truth. Such anbetween faith and reason regarding the question of truth. Such analliance reconnects Greek philosophy (Socrates) and biblical discoursealliance reconnects Greek philosophy (Socrates) and biblical discoursealliance reconnects Greek philosophy (Socrates) and biblical discoursealliance reconnects Greek philosophy (Socrates) and biblical discoursealliance reconnects Greek philosophy (Socrates) and biblical discourse(Moses): the Mosaic difference between true and false with regard to(Moses): the Mosaic difference between true and false with regard to(Moses): the Mosaic difference between true and false with regard to(Moses): the Mosaic difference between true and false with regard to(Moses): the Mosaic difference between true and false with regard toreligions encounters the Socratic difference between true and falsereligions encounters the Socratic difference between true and falsereligions encounters the Socratic difference between true and falsereligions encounters the Socratic difference between true and falsereligions encounters the Socratic difference between true and falseconcerning reason. Therefore, theconcerning reason. Therefore, theconcerning reason. Therefore, theconcerning reason. Therefore, theconcerning reason. Therefore, the quaestio de veritatequaestio de veritatequaestio de veritatequaestio de veritatequaestio de veritate and the topicand the topicand the topicand the topicand the topicofofofofof religio verareligio verareligio verareligio verareligio vera are not absent from the context of Revelation, althoughare not absent from the context of Revelation, althoughare not absent from the context of Revelation, althoughare not absent from the context of Revelation, althoughare not absent from the context of Revelation, althoughthe modern criticism of religion holds that religion is only a questionthe modern criticism of religion holds that religion is only a questionthe modern criticism of religion holds that religion is only a questionthe modern criticism of religion holds that religion is only a questionthe modern criticism of religion holds that religion is only a questionof piety and cult (Spinoza). The destiny of metaphysics is situatedof piety and cult (Spinoza). The destiny of metaphysics is situatedof piety and cult (Spinoza). The destiny of metaphysics is situatedof piety and cult (Spinoza). The destiny of metaphysics is situatedof piety and cult (Spinoza). The destiny of metaphysics is situatedwithin that alliance. After the second navigation of the Greekwithin that alliance. After the second navigation of the Greekwithin that alliance. After the second navigation of the Greekwithin that alliance. After the second navigation of the Greekwithin that alliance. After the second navigation of the Greekmetaphysics, a third navigation took place with Thomas Aquinasmetaphysics, a third navigation took place with Thomas Aquinasmetaphysics, a third navigation took place with Thomas Aquinasmetaphysics, a third navigation took place with Thomas Aquinasmetaphysics, a third navigation took place with Thomas Aquinasphilosophy of being/philosophy of being/philosophy of being/philosophy of being/philosophy of being/actus essendiactus essendiactus essendiactus essendiactus essendi,,,,, setin motion by a trans-onticsetin motion by a trans-onticsetin motion by a trans-onticsetin motion by a trans-onticsetin motion by a trans-onticmetaphysics leading to the ontological centrality of themetaphysics leading to the ontological centrality of themetaphysics leading to the ontological centrality of themetaphysics leading to the ontological centrality of themetaphysics leading to the ontological centrality of the energeiaenergeiaenergeiaenergeiaenergeia/////actusactusactusactusactus. In order to mobilize the postmodern reason against the. In order to mobilize the postmodern reason against the. In order to mobilize the postmodern reason against the. In order to mobilize the postmodern reason against the. In order to mobilize the postmodern reason against thedefeatism and nihilism by which it is assailed, it is important to returndefeatism and nihilism by which it is assailed, it is important to returndefeatism and nihilism by which it is assailed, it is important to returndefeatism and nihilism by which it is assailed, it is important to returndefeatism and nihilism by which it is assailed, it is important to returnto the Socratic-Mosaic alliance. This new covenant is possible due toto the Socratic-Mosaic alliance. This new covenant is possible due toto the Socratic-Mosaic alliance. This new covenant is possible due toto the Socratic-Mosaic alliance. This new covenant is possible due toto the Socratic-Mosaic alliance. This new covenant is possible due tothe veritative capacity of modern reason which goes beyond the realmsthe veritative capacity of modern reason which goes beyond the realmsthe veritative capacity of modern reason which goes beyond the realmsthe veritative capacity of modern reason which goes beyond the realmsthe veritative capacity of modern reason which goes beyond the realmsof science and ethics, areas where many would like to remain.of science and ethics, areas where many would like to remain.of science and ethics, areas where many would like to remain.of science and ethics, areas where many would like to remain.of science and ethics, areas where many would like to remain.

    Key-words: Secular and religious thinking, dialogue, postmodernSecular and religious thinking, dialogue, postmodernSecular and religious thinking, dialogue, postmodernSecular and religious thinking, dialogue, postmodernSecular and religious thinking, dialogue, postmoderndefeatism, Aquinas philosophy of being.defeatism, Aquinas philosophy of being.defeatism, Aquinas philosophy of being.defeatism, Aquinas philosophy of being.defeatism, Aquinas philosophy of being.

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    1) Ps-metafsica e luta contra o derrotismo da1) Ps-metafsica e luta contra o derrotismo da1) Ps-metafsica e luta contra o derrotismo da1) Ps-metafsica e luta contra o derrotismo da1) Ps-metafsica e luta contra o derrotismo darazo moderna em J. Habermasrazo moderna em J. Habermasrazo moderna em J. Habermasrazo moderna em J. Habermasrazo moderna em J. Habermas

    O dilogo entre pensamento secular e pensamento religioso permanece noOcidente em uma constante encruzilhada, conjugado segundo formas quevo do extremo da total separao e estranheza ao de uma ntima colabo-rao. De alguns lustros para c tm crescido os paradigmas de (certa)concrdia que vem as duas instncias chamadas a colaborar com o fito nos de um entendimento civilizado, mas tambm de freio contra um excessodi autodestituio da razo. Uma expresso significativa de tais opes encon-tra-se em uma recente interveno de J. Habermas, publicada no Neue ZrcherZeitung (10 de fevereiro de 2007) com o ttulo Contra o derrotismo da razomoderna. Por um novo pacto entre f e razo. Um escrito com no poucasafirmaes notveis, dentre as quais a dificuldade de cindir a existncia po-ltica dos cidados em uma parte pblica e uma privada, e o convite que oEstado liberal deveria dirigir a seus membros secularizados a no considerarpreconceituosamente irracionais as expresses religiosas. No escrito voltam aencontrar-se afinidades com o dilogo entre o mesmo Habermas e o cardealRatzinger entabulado em Munique em 2004, bem como sugestes ulteriores.

    Na nova interveno clara a tentativa de opor-se ao derrotismo da razomoderna, bem como ao intento de permanecer atado sem repensamentos auma razo expressamente ps-metafsica, considerada definitiva para opensamento secular. Estas consideraes do ocasio a um duplo convite:que a teologia aprenda a levar seriamente em conta o pensamento ps-metafsico, e que este ltimo leve a srio aquela origem comun de filosofiae religio que remete poca axial, ou seja, quela revoluo da imagem-do-mundo que aconteceu pela metade do primeiro milnio antes de Cristo.Esta atitude ser til prpria razo secular, que entender melhor a simesma, quando compreender a fonte comum das duas figuras complemen-tares da razo e da religio. Destarte o autor se distancia daqueleiluminismo mentalmente limitado e irrefletido que nega qualquer contedorazovel religio, e reconhece a fora motivadora e de estmulo do religi-oso no confronto da sociedade ps-secular com todos os elementos dastradies religiosas da humanidade que ainda no foram satisfeitos.

    Afastando-se de Hegel para o qual a religio uma figura do espiritosubordinada filosofia, Habermas mantm a possibilidade de permannciadas duas figuras da religio e da filosofia, considerando que, aos olhos dosaber, a f conserva sempre algo de no transparente, de opaco, que nopode ser por ns renegado nem simplesmente aceito. Com o propsito demobilizar a razo moderna contra o derrotismo que a corrompe por dentro,cujos traos se manifestam na ps-moderna dialtica do iluminismo e nocientismo positivista, Habermas afirma que a razo ps-metafisica podeconseguir sair por si mesma do derrotismo terico, ao passo que a razoprtica encontra maiores dificuldades.

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    Genealogia materialstica e idealismo normativo. O pensamento ps-metafsico no poucas vezes assim procede tambm Habermas buscauma aproximao com o pensamento religioso, ao reconstruir uma genealogiada razo na qual em um remoto passado filosofia e religio brotavam deuma fonte comum, com base na idia que entre elas, outrora vizinhas, odilogo poderia hoje ser retomado. A perspectiva merece ser valorizada, maso que a torna problemtica precisamente o horizonte ps-metafsico quedeveria presidir ao novo dilogo, enquanto ele adota o mtodo genealgicoe no parece disposto a relativiz-lo e a submet-lo crtica. O resultado dagenealogia com freqncia o materialismo e um evolucionismo geral. Oautor deseja escapar de tais conseqncias, injetando altas doses de idea-lismo normativo na justia e no direito positivo, fundados no idealismomoral kantiano da autonomia e autolegislao da razo prtica. Se j complexa a pergunta sobre a compatibilidade do materialismo terico e doidealismo prtico uma compatibilidade duvidosa se se leva em conside-rao a precariedade do horizonte antropolgico subjacente ainda maisproblemtica a questo levantada pelos mestres da suspeita: Marx,Nietzsche, Freud. Prevalece a autonomia moral de Kant-Habermas ou tmrazo esses ltimos que desmistificam o eu e a sua autonomia, entendendo-a como um postulado ideolgico perigoso para o seu alto idealismo? Diantedas fraturas que habitam o sujeito, no fcil individuar a base da qualpossa surgir uma autonomia moralmente e normativamente constituda. Sej para cada pessoa a autonomia aparece como um resultado rduo, bemmais complexo ser o problema para a multido dos eu na sociedade. Aadoo de uma antropologia sujeita s tenses do materialismo e doevolucionismo torna uma aposta incerta o visar a prevalncia da justia eda liberdade em vez do poder e do dinheiro.

    O derrotismo da razo e a sombra do niilismo. A razo ps-metafsicareconhecendo apressadamente o monoplio cientfico da produo de sabermundano, ou seja, reduzindo a autoridade da razo natural aos resultadosfalveis das cincias institucionais, afasta como ilusrio o conhecimentoracional do ser; manifesta-se assim largamente atingida pelo esquecimentodo ser e por isso com dificuldade de alcanar a ontosofia, o nvel de umconhecimento especulativo-sapiencial da existncia. Em sentido fundamen-tal esquecimento do ser significa que no se considera mais possvel umacincia do ser enquanto ser. Argumentos quanto ao mrito da questo noso apresentados pelo autor, mas apenas o juzo que a cincia modernaconstrangeu uma razo filosfica que se tornou auto-crtica a despedir-separa sempre das construes totalizantes da natureza e da histria, o que uma maneira de manter que s a cincia conhece, ainda que em meio scontingncias do falibilismo.

    Sobre estes aspectos se joga uma partida decisiva, em particular para arazo secular: o dissenso entre partido religioso e partido secular quemuitos hoje interpretam como fratura entre religio e mundo, na realidade

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    com freqncia um dissenso interno prpria razo. Convm certamenteinduzir reflexivamente a conscincia religiosa a confrontar as suas verda-des de f seja com outras` potncias de f concorrentes, seja com o mono-plio cientfico da produo do saber mundano, mas convm igualmenteinduzir a razo mundana a no autodestituir-se, a no capitular com exces-siva facilidade diante do ceticismo, a no autolimitar-se ao mbito daquiloque verificvel no experimento. A discrasia que emerge aqui aparecesobretudo como diferena entre uma razo metafsica e realista e uma razoque no tem acesso ao ser e realidade, a no ser de maneira indireta eessencialmente mediada pelas cincias.

    Ora nesta discrasia o maior derrotismo parece habitar no a razo prtica,mas a teortico-metafsica. O verdadeiro problema que a razo ps-metafsica, habitada pelo ceticismo, no parece estar em condies de darconta dos dois derrotismos evocados pelo autor: o declnio ps-moderno dadialtica do iluminismo e o cientismo positivista. Com freqncia na origemde tal situao encontra-se Kant e o seu modo de conceber o funcionamentoda mente no conhecimento. Um funcionamento no s anti-realista e desa-tento em relao ao potencial de inteligibilidade contido no cosmo do qualse ocupam cincias e filosofia, mas talvez artificial a tal ponto que nemsequer o intelecto de Kant operava como ele o descrevia na Crtica da razopura, ou seja no regulando-se pelos objetos, mas constrangendo-os em voa regular-se pela mente.

    O pensamento ps-metafsico parece desarmado diante do evolucionismoradical que (contraditoriamente) mantm um devir originrio autofundadoe sem finalidade, e com isso a inexistncia de qualquer essncia ou natu-reza. Em outras palavras, na perspectiva da ps-metafsica no parece pos-svel defender-se da objeo do evolucionismo radical. A razo teorticaencontra-se numa situao mais precria do que a prtica, enquanto setorna muito rduo motivar cognitivamente esta ltima, se todo horizonte desentido e de finalidade se extingue, se no subsiste nenhuma resposta pergunta sobre o porqu e sobre o fim. Com intuio excepcional Nietzscheassim definiu niilismo: niilismo: falta o fim, falta a resposta ao porqu`.Nestas frases de efeito circunscreve-se antes de tudo o niilismo teortico: noesto em jogo perguntas referentes moral, mas em primeira instnciaperguntas de sentido, o qual uma vez extinto dificilmente permite que aalavanca moral se mantenha ntegra a longo prazo. A convico que sejapossvel e mesmo desejvel uma tica depurada de toda ontologia e metafsica hoje muito difundida, mas frgil. uma iluso perigosa. Para H. Jonas oponto de vista originrio da filosofia considerava a ontologia como funda-mento da tica, ao passo que o destino da modernidade consiste em t-lasseparado.1

    1 Cfr. Organismo e libert, Einaudi 1999, p. 326.

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    A virada kantiana em direo somente razo prtica, em cujo interior secoloca Habermas, que empreende reformul-la no sentido procedural, pare-ce uma barreira frgil, na medida em que, lanando todo o peso sobre a ticae o direito positivo, abandona no s a ontologia, mas tambm a antropo-logia. A tica sem ontologia na verdade uma tica sem antropologia,circundada de um notvel silncio antropolgico.2

    Ora a origem comum de filosofia e religio da qual fala Habermas, poderiaser valorizada e retomada se a razo secular encontrasse novamente asvrias formas de racionalidade. A tarefa prioritria concerne a razo natu-ral, que deve reencontrar o prprio equilbrio, no fechar-se no emprico, noautolimitar-se e afinal destituir-se com as prprias mos. Ora, para a con-secuo de tal objetivo a posio ps-metafcisa introduz ulteriores dificul-dades.

    2) A deselenizao e a aliana socrtico-mosaica2) A deselenizao e a aliana socrtico-mosaica2) A deselenizao e a aliana socrtico-mosaica2) A deselenizao e a aliana socrtico-mosaica2) A deselenizao e a aliana socrtico-mosaica

    A orientao ps-metafsica se revela de certo modo como uma forma dedeselenizao ou como um prolongamento ps-moderno de uma tendnciadeselenizante notavelmente presente na modernidade. Para abordar esseaspecto, a interveno de Habermas ainda preciosa. Ele se depara breve-mente com o problema da deselenizao em relao ao discurso de BentoXVI em Regensburg, que imprimiu um rumo surpreendentementeantimoderno ao antigo debate acerca da helenizao e deselenizao docristianismo. Com isso ele respondeu negativamente pergunta se os te-logos cristos devam esforar-se por enfrentar os desafios suscitados pelarazo moderna e portanto ps-metafsica. A meu ver, no h motivo paraevitar um confronto entre teologia e razo ps-metafsica, mas tal dilogono deveria excluir o contato com a razo metafsica.

    Uma sua excluso a priori constitui um equvoco historicamente portadorde um crescente desenraizamento da herana grega. Ao termodeselenizao podem ser atribudos dois significados afins. Em um primei-ro sentido h deselenizao quando se pretende remanejar a sntese entreo pensamento grego e o pensamento cristo, diminuindo o intelectualismodeste ltimo, que o intelectualismo do Logos divino , e pendendo porconseguinte para formas de voluntarismo, moralismo, nominalismo na te-ologia crist. Em um segundo significado h deselenizao quando hos-tilidade ao pensamento grego e sua ontologia se acrescenta a tentativa de

    2 Trata-se de aspectos sobre os quais chamei a ateno muitas vezes a respeito deHabermas, especialmente em Nichilismo e metafisica, Armando 2004, e em Esseree libert, Rubbettino 2004.

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    purificar completamente o cristianismo do influxo grego, consideradodesviante e perigoso para a f bblica. A pressuposio que o dogma cristodeva ser deselenizado vai de par com a proposta da demitizao da Escri-tura. Tambm Kant foi de certo modo um deselenizante. Escrevendo: Euassim precisei suprimir o saber para dar lugar f. (Introduo segundaedio da Crtica da razo pura), ele remete no f bblica, como comescasso conhecimento de causa se repete, mas to-somente a uma f moral.A sua especfica deselenizao consistiu em ter considerado acabada atarefa da razo teortica e dissolvido o entendimento entre Scrates e Moiss:o primeiro buscava a verdade, o segundo introduziu a idia de verdadeiro-falso na histria das religies e a idia do nico Deus verdadeiro.

    O significado mais decisivo de deselenizao consiste na ruptura da alianasocrtico-mosaica, ou seja, do acordo entre f e razo em torno idia deverdade. Tal aliana que rene filosofia grega e discurso bblico no s umacontecimento contingente que se estende segundo Habermas de Agos-tinho a Toms e com ele termina. uma necessidade permanente que se foiedificando dos dois lados.

    Primeira elaborao sobre a aliana socrtico-mosaica. Devemos agora com-preender mais determinadamente o sentido e o contedo da aliana socrtico-mosaica. Basicamente ela significa a admisso, prpria tanto do pensamen-to bblico quanto do helnico, que seja possvel responder s perguntassobre o homem, a verdade, o bem, Deus, que esta busca no est destinadaao fracasso j de partida e, do lado do pensamento bblico, que este ltimoe a religio no sejam estranhos ao mbito da verdade. Sobre tais basesexistem as condies para que o logos filosfico grego e o Logos bblico, quese tornou Logos/Verbo encarnado, pudessem conhecer-se e eventualmenteestabelecer uma aliana com contribuies especficas de ambas as partes.Na esteira deste contedo preliminarmente elaborado devemos acenar realizao concreta de tal aliana que representou por ventura uma aquisi-o definitiva e uma virada significativa na histria universal, e esboaralguns de seus elementos que em parte j estavam presentes no mosaismoe que emergem ulteriormente na revelao neotestamentria.

    Se fixarmos esta ltima, perceberemos que o dilogo com o helenismo e afilosofia acompanhou a primeira difuso do cristianismo. Uma verdadeiravirada providencial ocorreu no progeto evangelizador de Paulo quandoestava em Trade e pretendia voltar ao Oriente. Nos Atos dos Apstolos(16,6-10) narra-se seu sonho e o apelo que lhe foi dirigido de passar Macednia, como de fato aconteceu. A inverso do Oriente ao Ocidente nopodia ser mais ntida, e teve enormes conseqncias. Aps a chegada Macednia h o discurso de Paulo no arepago de Atenas, depois Corintoe finalmente Roma. O cristianismo nascente encontrava os lugares estrat-gicos da grecidade e da romanidade e iniciava uma relao, jamais inter-rompida da em diante, com as respectivas culturas e filosofias. A passagem

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    Macednia e os acontecimentos sucessivos podem ser considerados oincio da Europa como complexo cultural e religioso, mas podem tambmser vistos como o comeo concreto, especificamente cristo, da alianasocrtico-mosaica. Isso se verificar pouco depois em Atenas no discurso dePaulo que pela sua importncia mereceria um amplo comentrio. Limito-meaqui a um s ponto. A primeria parte do anncio refere-se a Deus criador,que fez o cu e a terra, que o seu Senhor, que no habita em templosconstrudos pelas mos humanas, e que d a todos vida e respirao, e seconclui com o clebre nele vivemos, nos movemos e existimos, como tam-bm alguns dos vossos poetas disseram, j que somos de sua estirpe. Oapstolo, procedendo crtica do politesmo antigo e da idolatria segundoum mtodo prprio do judasmo helenstico, encontra em alguns pensado-res e poetas gregos o pretexto para alargar o acordo sobre o monotesmocontra o politesmo da religio popular. (Sob este aspecto o discurso paulinofoi um sucesso porque reavivou e consolidou a aliana socrtico-mosaica;outro elemento positivo foi o fato que diversos ouvintes se converteram aoEvangelho. Insucesso foi, ao invs, o anncio da ressurreio, que muitosrejeitaram: e isso assinala o mbito no qual aquela aliana e deve sercompletada e ultrapassada sob a guia da revelao).

    passagem Macednia e depois a Atenas referiu-se Bento XVI no discur-so de Regensburg: O encontro entre a mensagem bblica e o pensamentogrego no era um simples acaso. A viso de so Paulo, diante do qual sehaviam fechado as vias da sia e que, em sonho, v umMacednio e escutaa splica: Vem Macednia e ajuda-nos! (At 16, 6-10) esta viso podeser interpretada como uma condensao` da necessidade intrnseca de umaaproximao entre a f bblica e o interrogar-se grego. Uma aproximaoiniciada h muito tempo como observa Ratzinger relembrando a decisivarevelao a Moiss do nome supremo de Deus (Eu sou, Ex 3,14), odistanciamento do mito, o novo conhecimento de Deus nos Salmos e naliteratura sapiencial, e a traduo grega dos Setenta qual o discurso deRegensburg atribui particular valor: Hoje sabemos que a traduo grega doAntigo Testamento, realizada em Alexandria os Setenta` mais do queuma simples traduo (a ser avaliada talvez at de maneira pouco positiva)do texto hebraico. Trata-se com efeito de um testemunho textual que vale porsi mesmo e de um passo especfico na histria da Revelao, no qual serealizou este encontro de um modo que para o nascimento do cristianismoe sua divulgao teve um significado decisivo.3

    3 significativo que tambm Joo Paulo II se detenha sobre o chamado de Paulo Macednia e sobre o seu discurso no Arepago em Cruzando o limiar da esperana(Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, pp. 143 ss), onde o discurso paulino consi-derado uma obra prima no seu gnero. Tanto o telogo Ratzinger quanto Joo PauloII vem um vrtice da convergncia entre revelao e filosofia em Toms de Aquino.No livro h pouco citado, mas igualmente explcita ser a encclica Fides et ratio(1998), Joo Paulo II entende o Aquinate como aquele que no abandona a via dos

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    Segundo Ratzinger o cristianismo primitivo optou pelo Deus dos filsofoscontra os deuses das religies populares.4 Pode-se talvez acrescentar que,agindo assim, o cristianismo levou plenitude a aliana socrtico-mosaicaencaminhada por sinais, poucos, mas fundamentais, na poca pre-crist,levada adiante pelos primeiros filsofos cristos, como Justino e Clementede Alexandria, e, em seguida, aprofundada por Agostinho e Toms e outrosat o sculo XX, segundo um mtodo que permanece normativo. Justinoe Clemente relacionaram a cultura crist nascente com a greco-romana. Emparticular, Clemente entendeu a filosofia grega como praeparatio evangelica,ou seja, a estrada e o caminho para preparar as pessoas a receberem oEvangelho, levantando um questo que se enontra tambm em Agostinhoem relao filosofia platnica. Para Clemente o Testamento para uso dosGentios foi a filosofia. Ela justificava os gregos, que segundo o autor dealgum modo entreviam as duas verdades fundamentais sobre Deus criadore remunerador. A esta tese se contrapunha ento a dos gnsticos e dosmarcionitas, que entendiam a filosofia como sabedoria diablica dada aoshomens pelos anjos decados: a filosofia ou o conhecimento como fruto daserpente.5

    filsofos e que pondo a pergunta sobre a existncia de Deus, relanou um problemaque est na base de toda a civilizao ocidental (p. 46). Pouco alm, Kant apresen-tado como aquele que abandonando a antiga estrada daqueles livros bblicos [ou seja,o livro da Sabedoria e a carta aos Romanos de acordo com os quais Deus conhecvela partir da experincia do criado] e de santo Toms de Aquino, envereda pela estradada experincia tica (p. 51). Na conferncia de 1959 (Il Dio della fede e il Dio deifilosofi. Un contributo al problema della theologia naturalis, trad. it. MarcianumPress, Venezia 2007) Ratzinger elabora um acurado confronto entre a posio daReforma e a posio tradicional sobre a teologia natural, encontrando ultimamenteno Aquinate a melhor soluo, enquanto no abandona a metafsica e os pensadorespagos`nos quais de pode ler uma rasto da verdade eterna. Segundo Ratzingerpertence sem dvida ao sistema de identidade parcial proposto por Toms um sinceroreconhecimento de direito: o lao entre o Deus da f e o Deus dos filsofos fundamental e enquanto tal legtimo (p. 51). No prefcio, datado de 2004, confe-rncia de 1959 Ratzinger levanta a questo pertinente: A ligao estabelecida entreo pensamento grego e a f bblica foi legtima, a ponto de pertencer essncia docristianismo` ou foi um equvoco desastroso`do qual devemos finalmente libertar-nos? (p. 8). Segundo a clara resposta do autor, trata-se de uma conquista que valepara sempre. Portanto o conceito de Deus deve articular-se filosoficamente para serdito e para fazer-se entender por todos; e uma teologia antimetafsica ou ps-metafsicaest exposta ao grave risco de perder a universalidade. A aliana entre a Bblia e afilosofia necessria para dar substncia assero que o cristianismo a religiovera, de modo que a revelao no externa ao mbito da verdade e a razo podeter acesso a Deus.4 Cf. RATZINGER, J., Introduo ao cristianismo, So Paulo: Loyola, 2005. A posiodo autor expressa em uma seo intitulada: A opo da Igreja primitiva pelafilosofia (pp. 103-107). A importncia do recurso filosofia est presente de maneiraconstante nos escritos de Ratzinger, e corresponde inteno de relanar o seuestudo, segundo a indicao explcita da Fides et ratio.5 Antes da vinda do Senhor, a filosofia era necessria para a justificao dos gregos;agora, til para conduzir as almas a Deus, j que uma propedutica para aqueles

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    3) A aliana socrtico-mosaica e a3) A aliana socrtico-mosaica e a3) A aliana socrtico-mosaica e a3) A aliana socrtico-mosaica e a3) A aliana socrtico-mosaica e a quaestio dequaestio dequaestio dequaestio dequaestio deveritateveritateveritateveritateveritate

    In principio erat Verbum (Gv, 1,1). Traduzindo o grego Logos pelo latinoVerbum (Palavra), so Jernimo reproduz um dos dois significados de logos,ou seja, palavra, deixando como pano de fundo o outro seu grandesignificado ratio/razo, que permitiria dizer no princpio era a Razo.Quer se recorra a uma ou a outra verso, o primeiro versculo do Evangelhode Joo deve ser lido em relao imediata com o versculo 14: E o Verbose fez carne, para entender a infinita novidade do cristianismo.

    Ora, possvel extrair preciosos ensinamentos do primeiro versculo deJoo, dando ao termo logos toda a sua riqueza, que uma s das traduesno esgota. O texto de Joo representa um divisor de guas a respeito doproblema da verdade, porque diz que no incio de todas as coisas est a luze a fora criadora da Razo. Seguem-se da duas implicaes capitais: queagir contra a razo contrrio natureza de Deus, e que na origem h umaracionalidade, um sentido, umamedida, que do conta do eterno milagre e daeterna surpresa do mundo, ou seja, que o seu ser , pelo menos, parcialmentecompreensvel. Que no princpio esteja o Logos no uma afirmao imedi-atamente ou exclusivamente religiosa, mas intuio dotada de sentido, sem aqual no pode nascer a cincia que no projeta a priori a racionalidade sobreas coisas, mas a encontra nelas. Este critrio desempenhou um papel muitoforte na fsica moderna de Galileu e Newton at Einstein e Planck, e, ao menosimplicitamente, permanece vital ainda hoje nas cincias.

    Que no princpio esteja o Logos (Razo e Palavra) esclarecedor tambm emvirtude do nexo da religio com o mbito do verdadeiro. A religio nombito da razo pura tinha sido o conhecido programa do Iluminismo, queculminou na obra de Kant. Ora, este dito produziu uma estreiteza na com-preenso da religio e de seu estaturo cognitivo, de modo que duvidosoque no Iluminismo conseqente se possa falar de religio.

    Diante dela o homem moderno , de fato, bloqueado pela pergunta: o con-ceito de verdade aplicvel religio? Ou em outros termos: no mbito dareligio est em jogo algo diferente que no tem nada a ver com a verdadee o conhecimento? As interrogaes referem-se particularmente s religies

    que chegam f mediante a demonstrao ... Deus, com efetio, a causa de todasas coisas belas, mas de algumas de maneira principal, como do Antigo e do NovoTestamento, de outras secundariamente, como da filosofia. E ao que tudo indica elafoi dada principalmente aos grecos antes que o Senhor chamasse tambm a eles, jque conduzia os gregos para Cristo com faz a Lei para os juedeus. Ora a filosofia restauma preparao que coloca na via justa aquele que o prprio Cristo leva perfeio.(Clemente, Stromata, 1, 5, 28 ). preciso acrescentar que para Clemente os gregosaprenderam muitas doutrinas dos profetas de Israel.

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    monotestas, e perguntam se exista algo como o ser-verdadeiro da religio.Se a resposta devesse soar negativamente, se alteraria o nexo entre filosofia,cincia e religio, no sentido que as duas primeiras pertenceriam ainda quede maneira diferente ao mbito luminoso da verdade e do conhecimento(mesmo que todo positivismo antigo e novo, todo cientismo antigo e novoreivindique toda a verdade s para a cincia), a terceira no. Em suma, ospredicados verdadeiro e falso no se aplicariam s religies, as quais noteriam nada a ver com o mbito da verdade, mas apenas com o da piedadee da obedincia.

    Tal a soluo da crtica moderna da religio, do cristianismo e domonotesmo, que grosso modo se inicia com Spinoza, especialmente com oTractatus theologicus-politicus (1670). No Tractatus se separam sem cerim-nia dois mbitos, o da razo e, em particular, da filosofia, onde resplandecea luz da verdade (a poca de Spinoza a do racionalismo absoluto na suafase de poder e de glria e ele jamais haveria de afirmar que s a cinciaconhece, mas depois bastou aguardar pouco mais de um sculo para quese encontrase um clima totalmente diferente) e o da religio. A cisospinoziana entre razo e f baseia-se no pressuposto que o objetivo dafilosofia seja a verdade e o da religio somente obedincia, piedade, culto.A filosofia se ocupa de conhecer a realidade dentro das categorias supremasdo verdadeirro e do falso, ao passo que a religio e o ensinamento da Bbliase dirigem aos costumes, s regras de comportamento prtico e no tmnada a compartilhar com o mbito da verdade. No me resta agora senomostrar que entre a f, ou seja, a teologia, e a filosofia no h nenhumarelao e nenhuma afinidade. Esta verdade no pode ser ignorada porninguem que conhea os objetivos e os fundamentos destas duas faculdadesou disciplinas completamente diversas entre si. Objetivo da filosoifa, comefeito, no seno a verdade; o da f, no seno a obedincia e a devoo.(Tractatus, cap. 14).

    Como compor estas posies com a pretenso verdade da Revelaobblica? E com a perturbadora auto-afirmao de Jesus de Nazar que diz:Eu sou o caminho, a verdade e a vida? Jamais na histria do homemalgum se identificou com a Verdade. Ora, o entendimento da equaoCristo=Verdade, que podemos chamar a grande equao cristolgica e alticada Bblia, reveste relevo decisivo para a teologia; ajuda-a a evitar a disso-luo relativstica da cristologia em um olimpo politesta onde so mltiplasas encarnaes histricas de um nico Verbo transcendente. Esta ltimaposio assinala a passagem do Ocidente ao Oriente, o impor-se da sia nocampo das religies e finalmente a substituio da ortodoxia pela ortoprxis,da quaestio de veritate em favor da quaestio de actione.

    A aliana socrtico-mosaica se apresenta ento como a base de um dilogofrutuoso entre cincias, filosofia, religio, especialmente em funo do pro-blema universal da verdade.

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    A distino mosaica e J. Assmann. A crtica moderna do cristianismo per-correu um longo caminho no qual a objeo segundo a qual o cristianismoe a Bblia so estranhos ao quadro da verdade encontrou sempre novosfautores. Recentemente o egiptlogo da Universidade de Heidelberg J.Assmann avanou a mesma idia, tomando como eixo o que chama dedistino mosaica. Segundo a sua reconstruo histrico-gentica a ques-to da verdade da religio e especialmente do monotesmo procede deMoiss, que teria realizado uma abertura revolucionria no campo religioso,introduzindo a distino entre verdadeiro e falso, at ento desconhecida:Com a distino mosaica entendo a introduo da distino entre verda-deiro e falso no mbito das religies. A religio at ento baseava-se sobrea distino entre puro e impuro, ou entre sagrado e profano, e no haviaabsolutamente qualquer lugar para a idia de deuses falsos, de deusesproibidos, que no podem ser adorados Introduzir neste mundo tradici-onal uma distino entre o nico Deus verdadeiro e os deuses proibidos ouinexistentes, por outro lado, foi um ato revolucionrio que criou um mundonovo e uma nova realidade. A isso chamo de distino mosaica.6 E ainda:Chamarei a distino entre verdadeiro e falso no mbito religioso de dis-tino mosaica`. Porque a tradio a relaciona com Moiss... O espao quepor fora desta distino separado ou dividido` e assim gerado pelaprimeira vez, o espao do monotesmo hebraico-cristo-islmico. Trata-sede um espao cultural construdo por esta distino e habitado agora desdequase dois milnios por europeus.7

    Assmann, ao reconhecer em Moiss aquele que introduziu uma diferenarevolucionria, quer hoje revog-la, abandonando o monotesmo e voltandoao Egito, a uma religio cosmotesta que ponha de lado a distino mosaicaentre Israel/verdade e Egito/no verdade. A volta ao Egito representa ade-so a uma religio carente de pecado e de redeno. Esta concluso apre-senta uma certa coerncia interna, j que com a recusa da distino entreverdadeiro e falso como aplicvel religio, entra em uma zona de graverisco tambm a distino tica entre bem e mal, a objetividade da idia deculpa. Se o livro do xodo o relato da sada do Egito, ou seja, do mundono qual todos os deuses so equivalentes, Assmann parece propor um

    6 J. Assmann resumiu assim a sua posio em uma entrevista ao programa culturalbvaro Alpha. Sobre estes aspectos cfr. E. Zenger, Il Mos egizio di Assmann,Humanitas, n. 4, 2002, pp. 576-584. Segundo Assmann o monotesmo mosaico umacontra-religio anti-egpcia, que precisamente se separa nitidamente do politesmo eda idolatria construindo uma contra-imagem da religio egpcia para dela afastar-se.7 ASSMANN, J., Moses de gypter. Mnchen / Wien: Carl Hanser Verlag 2000, p. 17s.O contra-xodo ou o desejado retorno ao Egito significa o fim do monotesmo e docortejo de problemas teolgicos e morais que necessariamente o acompanham: Doponto de vista do Egito o pecado parece ter vindo ao mundo com a distino mosaica,e este talvez o motivo mais importante para p-la em discusso. A nossa pesquisaprocurou desvelar a natureza de tal pecado. Os seus nomes so Egito, idolatria,cosmotesmo. Quem descobre Deus no Egito, supera esta distino (p. 282).

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    contra-xodo, o regresso a um olimpo politesta, a uma fase anterior distino realizada por Moiss enquanto memria viva do monotesmo; umremontar s origens em direo a um politesmo considerado talvez maispacfico e menos intolerante que o monotesmo. A linguagem e asexemplificaes de Assmann so diversas das de Spinoza, mas a admissode base semelhante: as religies e mesmo o monotesmo no tm nada aver com o mbito do verdadeiro.

    Para alm do emprego que Assmann fez da idia da distino entre verda-deiro e falso na histria das religies, a questo por ele introduzida mantmseu valor fundamental, com o qual todo discurso sobre a religio e a reve-lao deve ter em conta. A distino mosaica se encontrou com a distinogreco-socrtica e deu lugar aliana respectiva, fundamentalmente possvelporque a base comum era constituda pela busca da verdade. Poder-se-iaobjetar que a justificao do termo aliana socrtico-mosaica, impecvel dolado grego na sua referncia a Scrates (e naturalmente a seus descendentes,especialmente Plato, que se refere a uma revelao divina theios logos com a qual atraversar o mar da vida), poderia resultar subdeterminado emrelao a Moiss. Este pode, porm, estar legitimamente no incio da ditaaliana tanto pela revelao do Nome supremo, quanto pela distinomosaica entre verdadeiro e falso na religio e a aplicao da categoria deverdade religio. Naturalmente a referncia a Moiss um incio que noesgota o contedo nem a histria de tal aliana, cuja possibilidade se plenificacom a revelao neotestamentria, onde o Verbo encarnado luz tanto paraScrates como para Moiss. Seria oportuno aprofundar aqui a relaoentre o filsofo de Atenas e o homem de Nazar. Jesus um Scrates cristo?Scrates um Jesus helnico?8

    A quaestio de veritate no cristianismo culmina no cristocentrismo veritativo.O Verbo encarnado, o novo Moiss enquanto novo libertador, assumiu emsi mesmo e levou plenitude a aliana socrtico-mosaica, conferindo-lheum valor at ento desconhecido e introduzindo um novo sentido da Ver-dade, pelo qual ela possui um carter pessoal, uma Pessoa: a perguntasobre a essncia da verdade (QueQueQueQueQue a verdade? QuidQuidQuidQuidQuid est veritas?) se superae se realiza plenamente em uma pergunta sobre a persona veritatis (QuemQuemQuemQuemQuem a verdade? QuisQuisQuisQuisQuis est veritas?). O tema emerge com toda fora no processode Jesus. A Jesus que declara ter vindo ao mundo para dar testemunho daverdade, Pilatos pergunta distraidamente: quid est veritas? A resposta mudado Processado est no anagrama da pergunta, que soa: est vir qui adest, averdade aquele que est aqui presente. A diferena lexical mnima entre

    8 Duvido que estas imagens restituam adequadamente a situao. Sobre as diferenasentre Jesus e Scrates remeto a Filosofia e Rivelazione. Un contributo al dibattitosu ragione e fede, Citt Nuova, 2 ed., Roma 2000, pp. 98-107, onde se desenvolvetambm uma comparao entre Abrao e Scrates.

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    a pergunda quid e a pergunta quis se subverte na surpreendente superio-ridade da persona veritatis em relao certamente importante perguntasobre a essncia da verdade.

    A plenitude da verdade ou a verdade em Pessoa requer, por conseguinte,pessoas que correpondam.9 Ainda quem no julga possvel chegar a tanto,pode entender a fora da abertura e do estmulo incessante que a alianasocrtico-mosaica abriga em si mesma em ordem mente, filosofia, scincias (Para ulteriores aprofundamentos, veja-se o Anexo Cristo a ver-dade).

    4) A crise da aliana socrtico-mosaico:4) A crise da aliana socrtico-mosaico:4) A crise da aliana socrtico-mosaico:4) A crise da aliana socrtico-mosaico:4) A crise da aliana socrtico-mosaico:deselenizao e niilismodeselenizao e niilismodeselenizao e niilismodeselenizao e niilismodeselenizao e niilismo

    Dissemos que o significado mais decisivo da deselenizao consiste em umcontra-movimento, que leva dissoluo da aliana socrtico-mosaica, comfreqncia atravs da recusa ou de objees contra a metafsica, a razogrega e o Deus dos filsofos. A polmica luterana, reformada, pascalianacontra o Deus dos filsofos nos dois primeiros casos uma polmica anti-grega e anti-metafsica, no terceiro sobretudo anti-cartesiana. De modosdiversos ambas pem em dificuldade a aliana socrtico-mosaica. EmRegensburg o papa apresentou sucintamente trs formas especficas dedeselenizao, identificando-as com a Reforma (e depois Kant), com a teo-logia liberal do sculo XIX e incio do sculo XX, com particular refernciaa Harnack e sua reduo da mensagem de Cristo a um cdigo moralhumanitrio (mas o quadro poderia ser alargado a Schleiermacher, Albrecht,Ritschl que desejaram substituir o culto, o dogma e a teologia pela tica), efinalmente tentativa atual de uma nova inculturao do cristianismo, que procurada, pondo de lado a herana grega.10 Pode-se ampliar de maneirahomognea o dignstico proposto, identificando os fatores espirituais maispoderosos que propiciaram a deselenizao: a Reforma; um sculo depois,o advento da cincia moderna; no sculo XIX a ascenso que pareceu

    9 Retomei aqui algumas passagens da minha introduo ao volume AA. VV., Ragionee verit. Lalleanza socratico-mosaica, a c. di V. Possenti, Armando, Roma 2004, noqual introduzi o termo-conceito de aliana socrtico-mosaica.10 O dilogo-confronto com Harnack se apresenta como um elemento no secundrioem Ratzinger. No prefcio de 2001 a um documento da Pontifcia Comisso Bblicasobre O povo judeu e as suas Escrituras Sagradas na Bblia crist, ele se refere aoeminente telogo liberal Adolf von Harnack e sua obra sobre Marcio, segundo oqual no protestantismo do sculo XIX se tornara suprfluo atribuir ao Antigo Testa-mento o mesmo valor que ao Novo, ou, pelo contrrio, isto seria a conseqncia deuma paralisia religiosa e eclesial. Era mister realizar finalmente aquela despedidado Antigo Testamento empreendida s demasiado cedo por Marcio.

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    incontrolvel da conscincia histrica e do historicismo. No esqueamosque foi da unio do kantismo e do historicismo que Bultmann partiu, che-gando a sustentar que para o homem moderno no era mais possvel pra-ticar o sacrificium intellectus. Isso acontece quando domina mundialmentea convico que a nica expresso vlida da razo so as cincias. Mesmoeste importante fenmeno espiritual configura uma deselenizao ulteriorno sentido que no s pretende dissolver teologia e metafsica, mas comfreqncia leva a impor o materialismo como verdade universal.

    O influxo do solum desempenhou um papel fundamental na dialticahisrica e ideal da deselenizao. Com isso pretendo que o movimentodeselenizante tentou reduzir a ineliminvel polaridade que no sodualismos contrapostos, mas tenses polares a um s elemento com amarginalizao do outro: como que uma recusa da alteridade. A deselenizaoiniciou com o sola Scriptura, sola fides, sola gratia; prosseguiu com o svoluntas (nominalismo e voluntarismo filosficos e teolgicos. Calvino?);atingiu depois de vrios modos o sola ethica em um processo no qual oselementos do intellectus, da metafsica, da liberdade e da cincia foram emum primeiro momento juntamente postos de lado. Em seguida a sua sortemudou: o intellectus e a metafsica permaneceram de certo modo margem,a liberdade e a cincia (e com ela a tcnica) foram elevadas at o cu. Comosempre acontece em uma polaridade real, a dificuldade de manter juntos emuma complexio os elementos em tenso acarreta cises e dualismos que noso mais controlados, enquanto um elemento pretende impor-se a todos osoutros.

    O debate sobre a deselenizao dura j h muito tempo. Gostaria de sugerirque o seu destino tenha a ver, de uma maneira que mister precisar cadavez, mas no enganosa, com o avano do niilismo europeu (ainda que noqueira afirmar a identidade entre deselenizao e niilismo), e que com talaproximao se ganha uma elaborao melhor e mais profunda do proble-ma. Com o advento do niilismo, primeiramente teortico ao qual nos refe-rimos prioritariamente e depois prtico, a aliana socrtico-mosaica, jenfraquecida de vrias maneiras, entra em crise. A sntese se dissolve, cadauma das duas partes defronta-se com contestaes especficas, o ceticismoprevalece, o discurso da metafsica tido como acabado, e a verdade comoinatingvel pela prpria filosofia. Com efeito, o niilismo teortico pe dura-mente em questo Scrates e toda a sua descendncia, ou seja, tudo o queNietzsche definiu como o otimismo teortico socrtico e alexandrino, con-duzindo a investigao filosfica quase bancarrota.

    Este diagnstico exigiria uma anlise elaborada, aprofundada, complexaque impossvel integrar aqui. O tema foi longamente desenvolvido emNichilismo e metafisica. Terza navigazione e em parte em Essere e libert,j citados, onde o niilismo convocado diante do tribunal da filosofiaprimeira. Neste contexto, limito-me a resumir o ncleo especulativo que

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    sustm a pesquisa realizada, que versa em ltima anlise sobre a essnciado niilismo (e subordinadamente sobre a questo se Nietzsche e Heideggerconseguiram dar conta de seu rosto enigmtico).

    O problema a ser elaborado consiste fundamentalmente na resposta per-gunta: que niilismo? E, em segundo lugar, quais os motivos especularivosradicais pelos quais grosso modo a partir do fim do sculo XVIII se recorreu,de incio, raramente, e depois com sempre maior freqncia ao termo niilismoat a exploso quase incontvel do tema desde j mais de um sculo. Dei-xando em suspenso a questo se existiu um niilismo antigo, a pergunta sedirige ao niilismo europeu moderno, um processo que ocupa largamente ahistria e que est longe de ter chegado concluso.

    A premissa bsica que para compreender o niilismo seja necessrio lev-loa julgamento diante do tribunal da filosofia primeira, significa que a suanatureza e o seu longo acontecer possam ser compreendidos a partir dosconceitos que regem a metafisica e a essncia do conhecimento. Niilismono para ns em primeiro lugar o evento pelo qual os valores supremosse desvalorizaram ou o annico Deus morreu, mas o esquecimento do ser,a opo anti-realista, a crise da idia de verdade, o abandono dos imutveis,a paralisia do sentido. Estas so conseqncias provocadas em ltima ins-tncia pela ruptura intencional imediata entre pensamento e ser, e o adventoem seu lugar de formas e representaes do ente, como acontece no cursoda metafsica moderna, dependentes da vontade representante do sujeitotranscendental e da vontade instrumental-objetivante da tcnica: por viasdiversas elas concebem o ser como um objeto coisificado perfeitamente con-traposto ao pensamento, de modo que no h acesso a ele a nos ser naforma do domnio e da manipulao.

    Pode-se acrescentar que o niilismo teortico como evento que interessa ointelecto (intellectus, nous, no meramente a ratio discursiva) pode serentendido como fenmeno procedente de uma gnoseologia que desconhecea intencionalidade e a intuio intelectual (e nesse sentido Kant, negador dequalquer intuio intelectual humana, participa do horizonte do niilismoteortico). Alm disso, parece fazer parte do niilismo o esquecimento doincio, a omisso ou a evitao da pergunta sobre o incio (arch, princpio).Estas decises especulativas so antecedentes da crise dos valores supre-mos, da sua desvalorizao e do anncio da morte de Deus, e por isso aanlise de Nietzsche no alcana o fundo do problema do niilismo. Quandomuito colhe com perspicaz agudeza o caminho para o cancelamento de todosentido, como se mostra na fulminante sentena j citada: Niilismo: faltao fim, falta a resposta ao porqu.11 Onde no h nem qualquer objetivo,nem qualquer razo de ser, o sujeito existe na escurido e no sem-sentidomais profundos.

    11 Opere di F. Nietzsche. Frammenti postumi, Adelphi, Milano, vol. VIII, t. II, p. 12.

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    No niilismo acabado ocorreria portanto um obscuramento do ser na suatotalidade, e conseqentemente da verdade do ser, em relao com umaopo anti-realista que pe em crise o realismo nativo da conscincia hu-mana? Sim. H muitos motivos para considerar fundada tal assero, combase na qual o discurso niilista no poderia mais legitimar-se seno recor-rendo a motivaes histricas em vez de argumentos, ou seja, fazendo apeloao fato que os acontecimentos levam nesta direo. Talvez o niilismo nassuas vrias expresses possa ser recompreendido dentro da recusa do prin-cpio de realidade por ele praticada: no ser no h razo nem logos, o logoseventual seria um produto casual do irracional e do acaso, para o qual adireo suprema e nica pertence ao querer, em particular vontade depoder.

    Ora, elementos de niilismo especulativo se encontram na herana ps-metafsica. Eles derivam em geral dos dois ncleos do esquecimento do sere do anti-realismo, que afligem em grau to elevado o pensamento ps-metafsico e que entram em sinergia negativa naturalmente junto comoutros fatores para dissolver a aliana socrtico-mosaica. Isso aconteceespecificamente em relao s suas duas componentes: a) a f bblica retirada do recinto da verdade e do Logos, e a mensagem de salvao avaliada como algo mtico e, de qualquer modo, pertencente a uma pocaj defunta; b) tambm filosofia se nega com maior ou menor fora poderalar-se ao mbito do simplesmente verdadeiro, cede-se ao falibilismo maisincisivo, o tema do conhecimento real posto de parte, freqentemente seafirma que apenas a cincia conhece.12

    Diferentemente de diagnsticos extremos que avaliam sem retorno a vitriado niilismo, estou persuadido de que ele no domina completamente. Issono significa subvaloriz-lo ou consider-lo como um tigre de papel. Oniilismo conseqente explorou as vias do negativo e, voltando-se ao mbitoda ao como niilismo prtico, continua o seu trabalho de eroso, denotadoradicalmente pela afirmao que a oposio bem-mal relativa e que porisso o mal possa ser justificado. Nada de inumano me extranho parecerpropor o sujeito niilista, que transforma o poder em vontade de prejudicar.A aliana entre a f bblica e a pergunta filosfica antiga vale como umobstculo cnotra a autodestituio da razo tanto quanto contra a relativi-dade do mal.

    12 Um setor consistente do pensamento ps-metafsico se autodefine com a locuopensamento fraco (pensiero defole) que se contrape ao pensamento forte. Trata-se de metforas que colhem somente em parte a questo e que acabam por desori-entar mais do que ajudar a compreender. O termo pensamento ps-metafsico dizcom maior clareza o carter da fraqueza, ao passo que em lugar do fortismoempregarei o termo pensamento aberto e humilde, humilde no sentido que no tema presuno de conhecer tudo, mas se pe escuta da realidade, no excluindo apriori que nela fale uma revelao divina.

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    5) A terceira navegao5) A terceira navegao5) A terceira navegao5) A terceira navegao5) A terceira navegao

    Com a ocorrncia das deslocaes mencionadas a situao da alianasocrtico-mosaica tornou-se delicada. Ela permanece como uma conquistadefinitiva, mas a sua vitalidade e fora precisam ser constantemente recu-peradas de ambos os lados. Se observamos o passado, a sua fecundidadederivou em primeiro lugar de um desenvolvimento endgeno a Scrates,por um lado, e de um desenvolvimento prprio de Moiss, do outro. Quandoa fonte grega e a fonte bblica se encontraram e se reconheceram, a alianase firmou sob a guia interior da segunda, que de vez em quando assumiu,corrigiu e refutou a herana da primeira. Em outros termos, esta aliana, naqual ambas as partes deram a sua contribuio, abriu novos espaos e con-duziu a novas verdades, produzindo um avano fundamental no aconter dafilosofia. Esta, sob o estmulo direto e indireto da mensagem bblica, pdeprogredir na sua trajetria ps-grega, chegando conquista da terceira nave-gao como incremento decisivo da razo metafsica. Nesse processo, queconduziu a filosofia do ser ao seu pleno desenvolvimento, desempenhou umpapel central a doutrina da criao a partir do nada, talvez longinquamentepressentida pelos gregos, mas certamente ausente no seu pensamento.

    Introduzindo h cerca de vinte anos o termo-conceito de terceira navega-o pretendi coligar-me com a conhecida metfora platnica da segundanavegao desenvolida no Fdon, retomando-a, mas estendendo e ultra-passando o seu conceito em direo nova e definitiva terceira navegao.Ela se situa no interior da aliana socrtico-mosaica e estabelece do lado dahistria da metafsica seu non plus ultra. Isso significa que na relao entremetafsica grega e metafsica sucessiva o ponto mais alto no est na pri-meira, mas na filosofia do ser e do actus essendi esboada como ummilagreda razo de certo modo sob a irradiao do logos bblico, capaz de levar plenitude e quando necessrio de corrigir o discurso ontolgico helnico

    Com o termo de terceira navegao sugiro a existncia de uma histria dametafsica no seu acontecer milenrio, a ser entendida em um sentido muitodiverso de como a interpretou Heidegger (cfr. os cap. VIII e IX do Nietzsche):no como o prosseguimento e reforo ininterrupto de um erro inicial, masantes como ummover-se laborioso, mas no em vo, em direo a conquis-tas definitivas, em direo a metas de apogeu. Em Heidegger a modalidadeespecfica de entender a histria da metafsica como histria do ser dependede seu projeto sistemtico orientado a uma compreenso do ser no horizontetranscendental do tempo (a condio ontolgica de possibilidade da com-preenso do ser a prpria temporalidade), com base na qual o tempo a essncia originria do ser, e este ltimo finito, limitado, em devir. Coma concepo da radical temporalidade do ser se consolida a concepohistoricista que entende a verdade do ser como histria e puro evento(Ereignis). J que na interpretao heideggeriana da ontologia ser valesobretudo como ser-presente, e a presena como uma modalidade da

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    temporalidade, a resoluo temporal do ser parece sem resduos de modoque todas as proposies da ontologia so proposies temporais, e otempo o horizonte primrio da cincia transcendental, da ontologia, ou,mais simplesmente, o horizonte transcendental.13 Segue-se da que nopensamento de Heidegger a possibilidade de pensar a diferena ontolgicaentre tempo e eternidade parece bloqueada, enquanto a diferena ontolgicaentre ente e ser aparece limitada ao nvel ntico-intramundano, e, portanto,sem condies de atingir a causalidade ontolgica que produz e sustenta oesse dos entes.14

    Na perspectiva teortica aqui delineada a idia da histria da metafsicano tende ao historicismo, manifesta-se, ao contrrio, em virtude de umpossvel desvelamento progressivo do ser, como marcada pelo anti-historicismo. A histria da metafsica valer para ns como um suceder-sedas mais essenciais concepes do ser, como aprofundamento da verdadeprincipal do sentido de ser, no como histria do ser, ou seja, como resoluodo ser no suceder-se dos seus acontecimentos no crculo insupervel do tempo.Com a idia da histria da metafsica no se busca nem uma repetio dahistria da ontologia, nem um problemtico pensamento ultra-mefafsico,tampouco uma destruio da tradio ontolgica, considerada necessria paraalar-se experincia originria do sentido do ser (cfr. Ser e tempo, 6), massimplesmente um possvel acesso mais pleno ao ser. Se a elaborao do seuproblema deve assumir tambm uma tarefa histrica para encontrar nasontologias do passado um guia, no se segue da que a essncia do ser devaser compreendida s historiograficamente, nem que a tradio necessariamen-te encubramais do que desvele. Um remontar-se positivo ao passado no podeseno proceder pari passu com uma descoberta pessoal do ser.

    A escalada progressiva e ascendente da metafsica aconteceu segundo trsnavegaes, nas quais a busca filosfica avanou para uma penetraoteortica mais adequada da verdade do ser, afastando-se em algumas suasfases decisivas do esquecimento do ser. Tal foi a tarefa de alguns pensado-res essenciais. Neste lento aproximar-se ao mistrio do ser, foi-se elaborandoa cincia mais alta do intelecto humano no seu exerccio natural, alargado,luminoso, ou seja, o saber que ultrapassa e circunscreve as cincias parti-culares das vrias regies do ente. A metafsica no se deteve a pensar adiferena ontolgica como entendida por Heidegger, ou seja, a diversidadeentre ser e ente, mas tematizou a outra diferena ontolgica mas radical edecisiva, constituda pela oposio entre ser e nihil absolutum.

    13 Alle ontologischen Stze sind (...) temporale Stze. (HEIDEGGGER, Martin: DieGrundprobleme der Phnomenologie. GA v. 24, p. 461). (...) die Zeit ist der primreHorizont der transzendentalen Wissenschaft, der Ontlogie, oder kruz der transzdentaleHorizont. (ibid. 460).14 Cfr. a propsito V. POSSENTI, Approssimazioni allessere, Il Poligrafo, Padova 1995,pp. 107-109.

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    Adotando o termo navegao, emprega-se, ampliando o seu alcance, ametfora introduzida por Plato: a primeira navegao foi iniciada pelosfilsofos fsicos com a sua indagao sobre a natureza, pela qual ele quandojovem se apaixonou. A segunda pelo prprio Plato. Seguindo a pista abertapor Plato, mas com integraes decisivas porque naquele o mundo verda-deiro s o inteligvel contraposto ao sensvel, Aristteles projetou a dou-trina hilemrfica, que identifica na forma o elemento inteligvel e supra-sensvel; introduziu na explicao do devir o par decisivo ato-potncia(energeia-dynamis), fazendo girar sobre esse eixo a sua concepo ontolgica;concebeu Deus como Ato puro e Pensamento do pensamento.

    A terceira navegao foi empreendida pela filosofia do ser de Toms deAquino atravs da reestruturao do todo do ente, realizada por umametafsica trans-ntica que leva plenitude a centralidade ontolgica deenergeia/actus. Os ncleos temticos fundamentais no interior dos quais sesitua a terceira navegao e que se apresentam de modo mais imediato reflexo, podem ser resumidos em quatro: 1) a descoberta da dupla compo-sio metafsica no existente finito (composio de matria e forma e deessncia e ato de ser/esse); 2) a doutrina do ser como actus essendi; 3) adoutrina da distino real entre essncia e existncia no ente finito e da suacoincidncia em Deus; 4) a determinao do supremo Nome de Deus comoipsum esse per se subsistens.

    Com a terceira navegao foi alcanada a conquista permanente por parteda aliana socrtico-mosaica, do nexo amigvel entre filosofia e religio.Metafsica e filosofia no excluem revelao e salvao e vice-versa, de modoque uma parte inclui na prpria histria da sua formao tambm a outraparte. Seguem-se trs comentrios sobre as implicaes da terceira navega-o.

    1) A elaborao proposta permite um esclarecimento ulterior sobre o temada deselenizao, em especial sobre um equvoco freqente. No raro quetanto aqueles que pretendem purificar o cristiansimo do legado helnico,como os racionalistas que abandonam a f bblica para volver exclusiva-mente ontologia grega, partilhem uma percepo da metafsica cristconsiderada nada mais do que um recalque da grega. Os primeiros valori-zam tal idia para contrapor grecidade e pensamento cristo e para voltarao puro Evangelho, os outros sustentam que nada de intelectualmente res-peitvel foi formulado pela filosofia crist que j no tivesse sido dito, emelhor, na filosofia grega. Portanto, a Revelao bblica no apresentarianenhuma originalidade filosfica e nenhuma contribuio ao filosofar. Adoutrina sobre a terceira navegao tambm uma resposta a tais ques-tes. A filosofia do ser nasce da aliana entre Bblia e grecidade, na qual preciso reconhecer que por maior e mais decisiva que tenha sido a con-tribuio da filosofia grega, a da ontologia bblica foi menos difundida,mas porventura mais decisiva. O influxo que partiu dos cus da Revelao

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    em direo filosofia (e naturalmente este evento como um suplemento ouuma superabundncia da mensagem bblica, que se dirige salvao e noinclui entre seus objetivos primrios a reforma da filosofia) foi tal queconduziu-a terceira navegao. Compreende-se pois quanto se enganas-se Nietzsche, que definia despectivamente o cristianismo como platonismopara o povo, e com ele aqueles que no entendendo as virtualidadesmetafsicas contidas na mensagem bblica, reduzem-na a algo que s podeser posto em forma e assumir a dignidade de pensamento atravs daontologia grega. Todavia com isso se transcuram dois elementos essenciais,ou seja, que a Bblia desvela mais profundamente o sentido de ser, e que ametafsica crist procedeu a uma reforma das categorias e quadros daontologia grega precisamente luz de sua mais radical concepo do ser.15

    O cristianismo, ou melhor, a teologia e a metafsica crists no podem serdeselenizadas, porque j se decidiram a discernir quanto se deve acolher equanto deixar cair na rede helnica.

    2) Os quatro ncleos especulativos nos quais possvel fazer consistir osganhos da terceira navegao, so essenciais para alcanar a conquistaracional da verdade da criao ou daquilo que s vezes se denomina oteorema da criao. Portanto, a posio da terceira navegao chega a seupice com a da criao,16 onde foi tambm introduzida a diferena abissalentre creatio e mutatio: na creatio a Causa primeira causa total, ou seja,pe todo o ser da criao, ao passo que na mutatio pressupe-se uma causaeficiente apenas do devir. Por isso o Deus aristotlico vale como causa/motor imvel do devir (mutatio), no certamente como causa primeira enica que pe extra nihil o finito. Em particular, excluda a possibilidadede determinar Deus como esse ipsum, parece eliminada a possibilidade depens-lo como criador. Como escrevamos na obra coletiva h pouco citada,no pode dar o ser no sentido de pr-se como causa total do ser finito,aquele que no seja o prprio ser.

    3) No quadro especulativo da terceira navegao assume importncia deci-siva a dupla essncia-existncia (esse), ligada de potncia-ato, um aspectoque necessita de algum comentrio. Non est eiusdem rationis compositio ex

    15 Ibidem, p. 52.16 Sobre estes aspectos, cfr. meu posfcio ao volume AA. VV., La navicella dellametafisica. Dibattito sul nichilismo e la terza navigazione, Armando, Roma 2000,pp. 185ss.17 Summa contra Gentiles, l. II, cap. 54. No mesmo captulo se l: Nas substnciascompostas de matria e forma h duas composies de ato e potncia: a primeira seencontra na sua substncia, que composta de matria e forma; a segunda, porm,se encotra entre sua substncia j composta e a existncia... , portanto, evidente quea composio de ato e potncia mais universal que a composio de forma ematria... Por isso tudo o que conexo com a potncia e o ato como tais comuma todas as substncias criadas, materiais e imateriais. Afirmaes anlogas na

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    materia et forma, et ex substantia et esse: quamvis utraque sit ex potentia etactu.17 Propondo esta nova determinao, na qual seja a composio dematria-forma, seja a de essncia-existncia so entendidas como composi-es de potncia e ato, atinge-se uma compreenso mais profunda e unitriada estrutura do ser, luz precisamente dos conceitos de ato e potncia queso explorados em toda a sua valncia.

    No quadro da terceira navegao a dupla metafsica bsica na estrutura doente no seu todo a polaridade essncia-ato de ser (essentia-esse), nomatria-forma. Nem a ontologia de Plato, que avista a Idia, nem a deAristteles que pra na composio de matria e forma, alcanam o centroda estrutura metafsica do real, porque lhes falta a composio ltima e maisprofunda entre essncia e ato de ser. J que a forma ato no plano daessncia, mas no ato ltimo no nvel do ser, o par hilemrfico no esgotao todo, nem no plano metafsico representa a polaridade ltima ou a m-xima concretizao integral do par ato-potncia: no pode por isso ser postaa equao entre a dupla matria-forma e a dupla potncia-ato. Em outrostermos o par potncia-ato tem uma extenso maior do que o par matria-forma. Segundo o Aquinate so de fato possveis formas puras imateriais,que se subtraem composio hilemrfica, mas no de ato e potncia. Taisformas no so ato puro: so compostas de potncia e ato no plano darelao essentia-esse, estando a primeira, a essentia, do lado da potncia eo esse do lado do ato (por conseguinte materialidade e finitude no coin-cidem, podendo existir formas finitas e imateriais).

    Observe-se que nas composies matria-forma e essncia-esse a relaointerna de especificao oposta. No primeiro caso a matria (potncia) especificada pela forma (ato); no segundo o esse (ato) especificado pelaessncia (potncia). O esse confere o existir essncia que o especifica, nosentido que esta ltima pe sua prpria determinao formal sem o que noh ato finito de existir. A essncia-potncia diferencia ou coarcta o ato deser no momento mesmo em que o recebe e por ele atuada.

    Na extenso da doutrina da potncia e do ato relao entre essncia eexistncia uma tese muito ousada porque a essncia j realizada naprpria linha formal de essncia aperfeioada ou atuada por um ato deoutra ordem, que no acrescenta nada essncia como conjunto de caracteres

    Summa Theologiae, I, q. 50, a. 2, ad 3m, e no opsculo De substantiis separatis (cap.6), no qual se explica que nas substncias compostas de matria e forma se encontrauma dupla ordem: da matria forma, e da coisa j composta ao existir, porque oexistir da coisa no est nem na sua forma, nem na sua matria. A forma ato ltimona sua ordem, permanecendo, porm, em potncia em relao ao esse, que constituio nvel mais radical e pleno da realidade: Esse est perfectissimum omnium: comparaturenim ad omnia ut actus... ipsum esse est actualitas omnium rerum, et etiam ipsarumformarum. Unde non comparatur ad alia sicut recipiens ad receptum, sed magis sicutreceptum ad recipiens (Summa Theologiae, I, q. 4, a. 1, ad 3m).

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    inteligveis, mas que lhe acrescenta tudo no plano do ser, porque a pe extranihil , consiste um dos ncleos da terceira navegao. Enquanto nasfilosofias de marca platnica a inteligibilidade radical reside na idia ouessncia, na filosofia do ser como pensamento maximamente existencial ainteligibilidade mais profunda pertence existncia e ao ato de ser. Aexistncia, que no uma essncia, constitui a fonte primeira deinteligibilidade.

    6) Sobre o derrotismo da razo moderna:6) Sobre o derrotismo da razo moderna:6) Sobre o derrotismo da razo moderna:6) Sobre o derrotismo da razo moderna:6) Sobre o derrotismo da razo moderna:retomadaretomadaretomadaretomadaretomada

    Aproximando-nos da concluso, oportuno volver novamente s posiesps-metafsicas (como incorporadas na breve mas significativa apresenta-o de Habermas). A posio da terceira navegao conduz a admitircontra Kant a possibilidade de uma metafsica racional, que no busque osseus critrios apenas nas cincias e que no entenda o termo saber somen-te dentro do quadro da razo educada pelas cincias. Esta navegao incor-pora uma perspectiva basilar sobre a metafsica, que designamos com otermo de aliana socrtico-mosaica. A esse propsito urgente a necessida-de: A) de reformular os problemas ou as polaridades como so com freqn-cia apresentados pela hermenutica ps-metafsica e neo-iluminista; B) deavaliar se efetivamente a sntese metafsica da tradio que vai de Agostinhoa Toms, mas que prosseguiu depois deles, se rompeu no confronto com oiluminismo e as cincias modernas; C) de no limitar o potencial liberadorda religio ao que pode ser compreendido no interior da virada lingustica.

    A) No primeiro nvel a alternativa no , ao contrrio do que se repete comalarmante freqncia, entre perspectiva antropocntica moderna e perspec-tiva geocntrica e cosmocntrica antiga. Se tal fosse a polaridade, ela pres-suporia sem motivos a irrelevncia da teologia natural dos antigos comonula e no dada. O enjeu se joga e se jogar entre antropocentrismo fechadoe teocentrismo. O derrotismo da razo moderna mentalmente irreflexivaser ultrapassado quando o imanentismo for abandonado e com isso o seupostulado, hoje retomado pelo cientismo, segundo o qual a realidade ou omundo no seno um sistema fechado de causas finitas e totalmentefsicas, o que parece constituir um novo spinozismo. A ps-metafsica, en-cerrada no esquecimento do ser e da existncia real, fechou com demasiadarapidez as contas com a causalidade ontolgica e transcendental e, portan-to, com a categoria mesmo de causalidade, como realssima posio de algono ser, e voltou-se para a mera causalidade das cincias que reduzem acausalidade ontolgica a mera correlao entre fenmenos. O esquecimentoda causalidade ontolgica um resultado notvel do esquecimento do ser;e contra o imanentismo e o seu sistema fechado de causas mister fazer

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    valer a intrnseca abertura realidade do ato cognoscitivo humano, que seautotranscende em direo ao outro.18

    A cincia moderna pretende ter constrangido a razo filosfica que se tor-nou autocrtica a despedir-se para sempre das concepes totalizantes danatureza e da histria, mas no pode constranger a razo filosfica a des-pedir-se do ser. Enquanto esta despedida no acontecer, enquanto o esque-cimento do ser no vencer (e ainda no venceu, e o niilismo no completo)podemos nutrir motivos de esperana e confiar que a razo natural possalevar a melhor sobre os fantasmas que a assediam, entre os quais a maisdura provocao consiste no convite razo e filosofia a reconhecer omonoplio cientfico da produo do saber mundano, uma maneira expl-cita de dizer que o saber provm unicamente da cincia. Neste ponto impor-ta pronunciar um no claro e ntido, dito no prpiro interesse da razohumana, aviltada e debiltada pela ps-metafsica.

    Se este preconceito superado, abre-se um caminho atrente para a filosofiae a religio, entendidas por Habermas como duas figuras complementaresdo esprito, das quais a razo moderna solicitada a acolher uma possvelorigem comum, atitude que testemunharia do carter aberto do confrontoainda no encerrado entre razo autocrtica e convices religiosas. Esteconfronto se iniciou com o iluminismo grego e a correspondente metafsica,quando esta ltima se posicionou ao lado das imagens do mundo quesurgiram naquele perodo, inclusive o monotesmo mosaico. O aceno aomosasmo deve ser notado e valorizado, j que pode abrir o caminho aotema da aliana socrtico-mosaica. Neste processo importa escolher bem osprprios aliados, aqueles certamente que podem propiciar a prossecuo doentendimento entre socratismo e mosasmo, entre os quais no pode ser admi-tido o idealismo ou o hegelianismo por sua dialtica, que presume avanar noconhecimento atravs do pressupostomeramente lgico que o automovimentodo conceito seja identicamente o desenvolvimento do ente. Isto significa que oadieu a Kant e ao seumodelo de razo, que j Hegel considerava insustentvelquanto ao ponto crucial do nexo pensar-ser (cfr. Cincia da Lgica, Introdu-o), no se volta para Hegel e a sua ilusria concepo da dialtica segundoa qual o automovimento do conceito lgico identicamente o desenvolvimentodo ente, preteno que est base do que se pode chamar o embuste dialtico`.19

    Aquela aliana se funda sobre o realismo e sobre o ser, ser que ultimamente individualidade, personalidade, liberdade e amor.

    18 A esse respeito exprime-se eficazmente P. ROUSSELOT: Conhecer principal eprimeiramente captar e estreitar em si um outro, capaz tambm de nos captar eestreitar; viver a vida de outro vivente; o papel da inteligncia captar seres,no fabricar conceitos ou ajeitar enunciados, A teoria da inteligncia segundoToms de Aquino, trad. de Paulo Meneses. Coleo Filosofia v. 48. So Paulo:Loyola, 1999, p. 24.19 Cfr. o estudo Dottrina della conoscenza, logica, metafisica. Gentile, Bontadini e noi,Per la filosofia, n. 69, 2007, pp. 77-98.

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    B) Ser a tradio da filosofia do ser um ciclo hoje j concludo que depoisde Agostinho e Toms j no tem condies de enfrentar vitoriosamente osnovos desafios da modernidade? Quais so esses desafios? De modo geral,o elenco dos desafios malogrados breve e aproximativo, enquanto sriasperplexidades emergem no nvel historiogrfico, j que a tradio viva dafilosofia do ser continuou o seu caminho e o continua at agora no dilogo,na autocrtica, no crescimento e no debate: de certo modo especialmente nosculo XX. fora de dvida que a sua presena na filosofia contemporneareconhecida reduzida e mediaticamente secundria. Mas no seria difcilidentificar os motivos filosficos e extrafilosficos desta situao. Na verda-de, uma filosofia demasiado na moda envelhece logo. Na realidade a filo-sofia do ser continuou na modernidade, de certo modo submersa. Mas afinalconseguiu emergir com vigor no sculo XXmuito alm do campo da ontologiafundamental, penetrando na tica, na filosofia da arte e da educao, na dahistria, da poltica, na doutrina sobre o homem, com vigorosas retomadas,snteses, atualizaes, entre as quais especialmente sobressai o empreen-dimento filosfico de J. Maritain. Entre os seus frutos destaca-se o princpio-pessoa, lanado j desde um milnio e meio como um desafio perene, de-fronte e contra o sempre renascente ataque ao homem.

    A tradio da qual falo est em condies de integrar os resultados adqui-ridos pela tradio moderna, enquanto permanece sujeito a dvida que ocontrrio seja verdadeiro. No deveremos ento preferir os pensamentos eas posies que so capazes de um abrao mais amplo, e deixar de lado ossistemas de excluso, atuando para excluir as excluses? Os varios nadade metafsica, mas s cincianada de conhecimento racional de Deus, autfides aut ratio, aut Deus aut homo formam um sistema de excluso, queacaba por diminuir ou excluir o polo no qual se apostou, depois de terexcludo preconceituosamente o outro como negativo e inaceitvel. A dialticanegativa do iluminismo est pondo em perigo a si mesma, ou seja, a razoseparada e educada quase s pelas cincias nas quais se tinha apostadotudo. Esta dialtica esta favorecendo a crise da razo prtica, depois que avirada kantiana infensa razo especulativa se tinha voltado s para ela.Nietzsche foi bom profeta, ao sustentar que a runa da moral, um grande eextraordinrio espetculo em cem atos, seria o acontecimento dos dois pr-ximos sculos. O diagnstico parece impecvel, no sendo possvel manterntegra a razo prtica por muito tempo, depois que o dossi da razoespeculativa e do sentido foi liquidado. Fica de p a pergunta sobre o limitea partir do qual se contam os dois sculos: se das Crticas kantianas ou dapoca de Nietzsche. A esta questo pode-se acrescentar outra sobre ohumanismo como doutrina sobre tudo o que elevado e especfico nohomem. Tambm aqui a a situao no tranquila: est em curso um ataqueao humano que conduz no ao alm-homem ou super-homem, mas ao ps-humano (no ber mas post). Se a razo ps-metafsica, assediada pelacontingncia, no consegue manter firmes alguns absolutos morais, ela se

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    encontra em condio igualmente precria de manter o justum do jus, e aevitar que o direito seja completamente captado dentro da rea do querer.

    Para reatar um discurso sobre a origem comum de filosofia e religioimporta tomar o caminho justo, e remontar a programas que no reforcema fratura sucedida na modernidade, ou que no se tenham mostrado emcondies de impedi-la, por mais que em outros planos tenham promovi-dos ganhos como a virada para as cincias propiciada pelo nominalismo,a descoberta da autonomia, o historicismo e a universalidade parcial tin-gida de contextualismo dos cdigos morais e culturais. Ainda que o diag-nstico fosse fundado e no s sintomtico vrios outros foram de fatoos elementos que contribuiram para esses sucessos e a histria dos efei-tos deveria ser mais rica aquelas vantagens foram adquiridas a umpreo demasiado caro para que seja pensvel que a estrada percorrida fossea nica possvel.

    C) Convm finalmente que a atitude da cultura secular no limite o poten-cial de libertao que brota da religio ao que pode ser interpretado dentrodos quadros do kantismo e da virada lingstica. Em certo sentido a teoriacrtica da Escola de Frankfurt dos fundadores, que mostrava interesse pelareligio e o messianismo, mudou de direo na segunda gerao, e comHabermas se voltou para uma abordagem mediada pelo kantismo e pelavirada lingstica. Da primeira gerao fica a idia que a religio permanececomo uma reserva de humanidade capaz de chamar a ateno para asinjustias mais profundas e de permanecer atenta reconciliao entre oshomens. Todavia, no claro se a nova abordagem esteja em condies deultrapassar o funcionalismo tanto do lado das cincias sociais quando emuma compreenso da religio que no se limite sua funo social, masvalorize o potencial de salvao, de libertao do mal e de abertura aototalmente outro. aqui crucial o processo de linguistificao do sagradooperado no interior da virada lingstica, no qual a tradicional autorida-de do sagrado destinada a ser substituda pela tica do discurso. Igual-mente significativo o silncio ou a omisso do santo, que no tematizadocomo tal, e que talvez seja confundido com o sagrado, o qual , se nonecessariamente (como aparentemente pretende R. Girard), ao menos demaneira contingente mas frequente, conectado com o poder e a violncia. ODeus