70

Vygotsky - Uma Perspectiva Histórico-cultural Da Educação (Rego)

Embed Size (px)

Citation preview

  • ; ' .. ~.

    COLEO: EDUCAO E CONHECIMENTO

    CoOrdenador: Antnio Joaquim Severino

    John Dewey: Uma filosofia para educadores em sala de aula

    Marcus Vinicius da Cunha

    Vygotsky: A aprendizagem no processo scio-histrico

    Teresa Cristina Rego

    Dados Intemacfonals de Catalogao na Publicao (CIP) {Cmara Brasileira do Livro. SP. Brasil)

    Rego, Teresa Cristina Vygotsky : uma perspectiva histrico-cultural da educa-

    o I Teresa Cristina Rego.- Petrpolis, RJ : Vozes, 1995. -(Educao e conhecimento)

    Biblioqrafia. ISBN 85.326.1345-4

    1. Administrao de servios 2. Clientes- Contatos 3. Consumidores- Satisfao 4. Servio ao cliente 5 Sucesso I. Ttulo. U Srie.

    94-4445 CDD-658-8!2

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Servios aos clientes : Administrao de empresas

    658 812

    Teresa Cristina Rego

    VYGOTSKY Uma perspectiva histrico-cultural

    da educao

    Petrpolis 1995

  • 1994, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Lus, I 00

    25689-900 Petrpolis, RJ Brasil

    FICHA TCN!CA COQRDENI\O EDITORIAL

    Avelino Grassi

    EDITOR: Antonio De Paulo

    COORDENAO INDUSTRIAL Jos Luiz Castro

    EDITOR DE ARTE: Omm Santos

    EDITORAO: Editorao"! organizao literria: Jos ldair F. Augusto

    Reviso grf1ca A. Tavares IJJagramao: Rosangela Loureno

    Superviso grfica: Valderes Rodr1gues

    ISBN 85 3/.6.1345-4

    Este livro foi composto e impresso nas oficinas grficils da Erhtora Vozes Ltcla. - Ru Frei Lus, 100 Petrpolis, RJ - CEP 25689-900 -Te!.: (0242)43-5112 -Fax: (0242)42-0692 - Caixa Postal 90023

    - End. Te!egr

  • Sumrio

    APRESENTAO DA COLEO. 11

    INTRODUO. 15

    CAPTULO I - A VIDA BREVE g INTENSA DE VYGOTSKY, 19

    L Percurso intelectual,. 20 2. Uma dcada de muito trabalho, . 23 3. A psicologia e a sociedade sovitica

    ps-revolucionria, 26 4. A proposio de uma nova psicologia, . 28 5. Principais influncias. 32 6. A proibio e redescoberta de sua obra, . 34

    CAPTULO 11- A CULTURA TORNA-SE PARTE DA NATUREZA HUMANA, 37

    L O programa de pesquisa, . . 38 2. Principais idias de Vygotsky, 41

    '

    '

  • 3. Diferenas entre o psiquismo dos animais e do homem,. . . . . . . 43

    4, As razes histrico-sociais do desenvol-vimento humano e a questo da mediao simblica, . . . . . . . . . . 50

    5. O desenvolvimento infantil na perspectiva scio-histrica. . . . . . . . 56

    6. Relaes entre pensamento e linguagem. . G3 7. A aquisiiio da linguagem escrita, . . 68 8. Interao P.ntre aprendizado e desenvol-

    vimento: a zona de desenvolvimento proximal. 70

    9. O processo de formao de conceitos e o papel desempenhado pelo ensino escolar. . . . . . . . 75

    10. A funo da brincadeira no desenvol-vimento infantil, . . 80

    CAPTULO IIl - PRESSUPOSTOS FILOSFICOS E IMPLICAOES EDUCACIONAIS DO PENSAMENTO VYGOTSKIANO, 85

    1. As concepes inatista e ambientalista do desenvolvimento humano e as impli-caes educacionais. . . 85

    2. A abordagem scio- interacionista de Vygotsky, . . . . . . . . . . . 92

    3. A influncia do materialismo dialtico, . 95 4. A construo da psicologia histrico-

    cultural, . . . . . . . . . 99 5. Algumas implicaes da abordagem

    vygotskiona para a educao, 102

    CAPTULO IV - VYGOTSKY ... 119

    1\BHI\NGJ~:NCIA, CONTHIBUIO E ESTILO ............... .

    ......... 119

    1. A questo da afetividodc na obra do Vygotsky, . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    2. A penetrao das idias de Vygotsky no mundo acadmico e nas redes de ensino . .

    Texto original de Vygotsky B!BLIOGHI\FIA

    120

    123 126 131

  • APRESENTAO DA COLEO

    A histria da cultura ocidental revela-nos que a educao sempre esteve intimamente ligada teoria, produzida tanto no mbito da filosofia como no mbito das cincias humanas em geral. Expressando-se funda-mentalmente como uma prxis social. a educao nunca deixou de referir-se a fundamentos tericos, mesmo quando fazia deles uma utilizao puramente ideolgica.

    Este testemunho da histria j seria suficiente para demonstrar o quanto necessrio, ainda hoje, manter vivo e atuante esse vnculo entre a viso filosfica e a inteno pedaggica. Vale dizer que extremamente relevante e imprescindvel a formao filosfica do edu-cador. seja no campo da produo do conhecimento, seja no campo da avaliao dos fundamentos do agir. seja ainda no campo da construo da imagem da prpria existncia humana. Mas, por outro lado, alm das defi-cincias_ pedaggicas e curriculares intrnsecas ao pro-cesso de formao dos profissionais da educao.

    11

  • tambm a falta de mediaes e de recursos culturais dificulta muito a apropriao, por parte deles, desses elementos que dem conta da ntima vinculao da educao com seus fundamentos tericos.

    Assim, o objetivo principal desta Coleo o de ser mais uma mediao, gil e eficaz, para colocar ao alcance dos professores. dos estudantes bem como dos demais profissionais da educao, e mesmo do pblico em geral, as linhas bsicas do pensamento dos grandes tericos, destacando sua contribuio para a melhor compreenso do sentido da educao. A abordagem de um texto desta natureza, intencionalmente introdutrio, despertando para a relevncia das construes tericas, enquanto contribuies para a elaborao de vises do homem, do mundo, da sociedade, da cultura, do saber e do valor, para a educao, certamente incentivar o interesse do estu-dioso em aprofundar a anlise e reflexo, nos diversos campos em que se envolve a prtica educacional.

    Os textos propostos visam apresentar as linhas bsi-cas do pensamento dos autores, destacando-se as impli-caes proprinmente filosfico-educacionais desse pensamento. Quer tratando de questes diferentes ao conbecimento, quer tratando de questes referentes s condies de existncia do homem, quer tratando de questes referentes ao agir, todo pensamento sistemati-zado traz em seu bojo elementos profundamente relacio-nados educao, uma vez que esta , na realidade, um esforo que yisa. com certo grau de sistematicidade, intencionalizar o social no desdobramento do histrico. E, enquanto tal, a educao se vincula, direta e intrinse-camente, com as abordagens epistemolgicas, antropo-lgicas e axiolgicas, presentes, explicita ou implicitamente. nas produes tericas da filosofia e das cincias humanas.

    12

    O Projnto rlesta Coleo est aproveitando os resul-tados de um esforo cada vez mais consistente que vem sendo desenvolvido, sobretudo no flmbito dos cursos de ps-gradunc;ilo, com vistas realizao de pesquisas e de estudos que buscam refazer a construo coletiva do conhecimento na tradio cultural do Ocidente. E a proposta de se colocar ao alcance de todos que se envolvem com a educao, essa produo terica que, por sun prpria natureza, possa contribuir pam o esclare-cimento e compreenso do processo educacionrll, inde-pcndcnterru;ntc da rea em que essa produ5o se deu. A Colc5.o cnf:-ttiza seu objetivo de ampliar o universo das inspimes tericas para os educadores, viabilizando-lhes o acesso a um espectro mais amplo de pensadores.

    Inicialmente o Projeto privilegia pensadores moder-nos e contemporneos, que esto marcando mais nitida-mente a reflexo nos tempos atuais. Mas em se tratando de um Projeto que se desdobrar a longo prazo, contem-plara tambm os pensadores clssicos, da antiguidade e da modernidade. A proposta inclui tambm pensadores brasileiros que j deram sua contribuio ao debate terico, subsidiando a compreenso de nossa problem-tica educacional.

    Estamos certos de estar colocando disposio de todos os cstudnntes e profissionais da rea mais um valioso instrumento de trabalho didtico e um fecundo roteiro inicinl ele pesquisa e de reflexo.

    13

    Antnio Joaquim Severino Coordenador

    ; ;. ; : i,'

    \

  • INTRODUO

    O que mais impressiona, dentre vrios aspectos, na leitura da obra de Vygotsky a sua contemporaneidade. Seus escritos, elaborados h aproximadamente sessenta anos, ainda hoje tm o efeito do impacto, da ousadia, da fidelidade investigao acerca de pontos obscuros e polmicos no campo cientfico.

    Vygotsky viveu apenas 37 anos. Morreu de tubercu-lose em 1934. Apesar de breve, sua produo intelectual foi extremamente intensa e relevante: chegou a elaborar cerca de 200 estudos cientficos sobre diferentes temas e sobre as controvrsias e discusses da psicologia con-tempornea e das cincias humanas de um modo geral. praticamente impossvel definir o alcance da contribui-o de sua obra. Para a psicologia, sem dvida, significa um avano, para a pedagogia uma orientao mas tam-bm sugere um rico material para a anlise no campo da

    15

  • antropologia, da lingstica, da histria, da filosofia e da sociologia.

    , O estilo de sua obra tem caractersticas que lhe so bastante peculiares. Apesar de seu interesse central ser o estudo da gnese dos processos psicolgicos tipicamen-te humanos. em seu contexto histrico-cultura/, se deteve ao longo de sua vida acadmica e profissional, em ques-tes de vrias reas do conhecimento: arte, literatura, lingstica, filosofia, neurologia, no estudo das deficin-cias e temas relacionados aos problemas da educao. Como analisa WERTSCH, essa postura interdisciplinar era coerente com seu projeto de pesquisa: "Vygotsky foi capaz de agregar diferentes ramos de conhecimento em um enfoque comum que nao separa os indivduos da snuaao cUltural em que se desenvolvem. Est- enfoq_~e_ integrador dos fenmenos sociais, semiticos c psic()l: gicos tem uma capital importncia hoje emct: irariscor-rido meio sculo desde sua morte" (WERTSCH, 1988, p. 34)

    Alm de abundantes e marcadamente interdiscipli-nares. as produes escritas de Vygotsky so extrema-mente complexas e densas em informaes preliminares. Isto se deve no somente caracterstica pouco ortodoxa de seus trabalhos (os relatos escritos no trazem, por exemplo, detalhes sobre os procedimentos metodolgi-cos adotados em suas pesquisas) mas tambm a diversos outros fatores. A maior parte de sua obra foi editada tardiamente e, em alguns casos, de forma inadequada e incompleta. Alm disso, nos perodos que sua doena se agravava, ele ditava suas idias que eram transcritas por outra pessoa; outras idias foram conhecidas a partir de anotaes feitas nas suas aulas e palestras. o que muitas vezes resultava em redaes pouco claras. Apesar de alguns de seus textos serem hermticos, de dificil com-

    16

    preenso, expressam o enorme entusiasmo e fecundidade intelectual de um jovem pesquisador.

    Ler Vygotsky , com certeza, um exerccio de reunir e se aprop1im da fertilidade das descobertos de um estudioso inquieto e obstinsdo, que dedicou sua vidn ao esforo de romper, transformar e ultrapassar o estado de conhecimento e reflexo sobre o desenvolvimento huma-no ele seu tr~mpo.

    Mesmo nil.o tendo esgotado todo o seu pretensioso projeto inici;i\ (muitas das questes levantadas por Vy-gotsky continu~m at hoje no respondidas), ele conse-guiu no s nntever o futuro mas apresentar uma srie de perspectivas e diretrizes potencialmente frteis e polmi-cas que viriam a ser aprofundadas por seus colaboradores. muitas, inclusive, somente depois de sua morte. Como afirmam Cole & Scribner: "As implicaes de sua teoria eram tantas e to variadas, e o tempo to curto, que toda sua energia concentrou-se em abrir novas linhas de investigao ao invs de perseguir uma linha em particu-lar at esgot-In. Essa tarefa coube aos colaboradores e sucessores dn Vygotsky, que adotaram suas concepes dss mais vlri~das maneiras, incorporando-as em novas linhas de pesquisa" (1984, p. 12).

    justamente devido a estes traos bastante particu-lmes, que os trabalhos deste psiclogo russo costumam ser considcmdos uma "teoria incompleta", uma "obra aberta", j quo no se apresentam como um sistema terico acabado, organizado e aprofundado e sim como urnn produo interrompida precocemente, capaz de ins-pirar e lanar novas bases que viriam a ser mais bem investigadas no futuro e que ainda so bastante atuais.

    Este livro pretende oferecer urna interpretao sobre alguns aspectos da vida e obra de Vygotsky assim como

    17

    -- ------- - _______ .__

  • uma reflexo de possveis implicaes de seu pensamen-to educao. Esperamos que ele possa ser til para tomar as suas idias mais acessveis e estimular estudos mais aprofunrlados de sua obra.

    18

    Captulo I

    A VIDA BREVE E INTENSA DE VYGOTSKY

    Para compreender o contexto e as razes do direcio-namento da obra de Vygotsky, suas idias centrais e contribuies. ser til ao leitor saber um pouco da sua biografia, do percurso intelectual e das condies da sociedade e da psicologia na Rssia ps-revolucionria que lhe forneceram o cenrio inicial e as questes princi-pais para suas teorias. Assim, analisaremos, a seg_uir, o curso de sua vida, a maneira peln qual deu forma s inmeras influncias recebidas da sua famlia e dos ami-gos. do clima intelectual e social da poca em que viveu. de suas leituras e de suas lutas1.

    L Maiores referncias sobre a biografia do autor podem ser encontradas em COLE & SCRIBNER (1978), LEVITIN (1987.), BHONC-KART {1985). LURJA {1988). WERTSCH {1988) e OLIVEIRA (1993)

    19

  • '" '.:

    i ~ '

    I 'i.

    ::-";!

    ~

    I.,,-, ' .~.[,

    ''j" ,,

    ~.,

    1. PERCURSO INTELECTUAL

    Lev S.emenovich Vygotsky nasceu a 17 de novembro de 1896 em Orsha, uma pequena cidade provinciana, na Bielo-Rssia. Sua famlia, de origem judaica, propiciava um ambiente bnstante desafiador em termos inwlectunis e estvel no que diz respeito ao aspecto econmico. Seu pai. pessoa culta, trabalhava num banco c numa compa-nhia de seguros. Sua me, apesar de ter dedicado grande parte de sua vida criao dos filhos. era professora formada. Vygotsky cresceu e viveu por um longo perodo em Gomei. tambm na Bielo-Rssia, na companhia de seus pais e de seus sete irmos. Casou-se aos .28 anos, com Roza Smekhova, com quem teve duas filhas. Faleceu em Moscou, em 11 de junho de 1934, vtima de tubercu-lose, doena com que conviveu durante quatorze anos.

    Sua educao, at os 15 anos, processou se total-mente em casa, atravs de tutores particulares Desde cedo mostrou ser um estudante dedicado e vido por informaes. Gostava de literatura e assuntos relaciona-dos s artes em geral. Freqentava a biblioteca que tinha em sua casa e a biblioteca pblica, estudava sozinho e com seus amiqos.

    bem provvel que sua precoce curiosidade por temas de difeJentes campos do conhecimento tenha sido provocada, no incio, pelo acesso que tinha, no seu contexto familiar, a diversos tipos de informaes. Outro trao marcante na formao de Vygotsky, e que alimentou seu gosto pela leitura, foi o aprendizado de diferentes lnguas2 o que permitiu que entrasse em contato com

    2. Vygotsky chegou a estudar alemo, latim, hebraico, francs e ingls.

    20

    materiais de diversas procedncias. Assim, mesmo tendo viajado apenas uma vez para o exterior, tinlw. acesso a informaes elo restante do mundo, pois lia, df!sde muito cedo, rnnis do que as tradues russus lho permitimn.

    Aos 17 unos completou o curso secundrio num colgio privado em Gome!. Nesta ocasio recebeu ~edalha de ouro pelo seu desempenho3. De 1914 a 1917 estudou Direito e Literatura, na Universidade de Moscou, poca em que comeou sua pesquisa literria mais siste-mtica. O trabalho que apresentou no trmino desse curso foi um estudo do Hamlet, de Shakespeare: "A tragdia de Hamlet, prncipe da Dinamarca", que mais tarde, em 1925, deu origem ao livro Psyclwlogy of Art (Psicologia da Arte), que foi publicado na Rssia somente em 1965. Segundo Luria, j nesse trabalho e em outros ensaios literrios posteriores. possvel identificar sua grande com etncia para realizar anlises psicolgicas, fruto elas infiuncias que rece eu os estudiosos soviti-cos interessados no efeito da linQuS!Q!)l sol.Jre_os pro.cesc sos de pensamen_to~Luria, 1988, p. 22).

    f: curioso observar que no mesmo perodo em que cursava a Universidade de Moscou, tambm participava, na Universidade Popular de Shanyavskii, de cursos de Histria e Filosofia (no recebeu, no entanto, nenhum ttulo acadmico por essas atividades). Anos mais tarde,

    3. Apesar tl

  • o crescente interesse em compreender o desenvolvimento psicolgico do ser humano, e, particularmente, as anor-malidades fsicas e mentais, levou Vygotsky a fazer cursos n FaculdadP. de Medicina, primeiramente em Moscou e depois em Kharkov.

    Assim, seu percurso acadmico foi marcado pela interdisciplinaridade j que transitou por diversos assun-tos, desde artes, literatura, lingstica, antropologia, cul-tura, cincias sociais, psicologia, filosofia e, posterior-mente, at medicina. O mesmo ocorreu com sua atuao profissional, que foi ecltica e intensa e esteve sempre associada ao trabalho intelectual.

    Vygotsky comeou sua carreira aos 21 an.os, aps a Revoluo Russa de 1917. Em Gomei, no perodo de 1917 a 1923 alm de escrever crticas literrias, lecionou e proferi~ palestras sobre temas ligados a literatura', cin-cia e psicologia em vrias instituies. J nesta poca preocupava-se tambm com questes ligadas pedago-gia. Em 1922. por exemplo, publicou um estudo sobre os mtodos de ensino da literatura nas escolas secundrias. Nessa fase, dirigia a seo de teatro do Departamento de Educao de Gomei. Na mesma cidade fundou ainda uma editora, uma revista literria e um laboratrio de psicolo-gia no Instituto de Treinamento de Professores, local onde ministrava cursos de psicologia.

    O interesse de Vygotsky pela psicologia acadmica comeou a se delinear a partir de seu contato, no trabalho de formao de professores, com os problemas de crian-

    4. VygoL

  • Naquele mesmo ano escreveu o trabalho: Problemas da Educao de Crianas cegas, surdo-mudas e retardadas, que apresentavil algumas de suas reflexes sobre o as-sunto. Ministrou ainda cursos de Psicologia e Pedagogia em diversas instituies de Moscou e Leningrado e, anos depois, na Ucrnia.

    De 1924 at o ano de sua morte, apesar da doena e das freqentes hospitalizaes, Vygotsky demonstrou um ritmo de produo intelectual excepcional. Ao longo desses anos, alm de amadurecer seu programa de pes-quisa, continuou lecionando,lendo5, escrevendo e desen-volvendo impmtantes investigaes. Liderou tambm um grupo de jovens cientistas, pesquisadores da psicologia e das anormalidades fsicas e mentais.

    /. jv1l ;o-projeto principal de seu tmbalho consistia na I ).>W'.u--'i tentativa de estudar os processos de transformao do JJP ,.

    -~;..~- ~desenvolvimento humano na sua dimenso filogentica...--..,;o-..e."'""Jl!I? histrico-social e ontogentica6. Deteve-se no estudo dos "-'" ..p

    1 meanismos psicolgico~ais sofisticados (as chamadas f o . f: ~{,;;)~lu 'es psicolgicas sup riores), tpicos da espcie h~- ',\,,v __ :)':.Jfo .. -,~~k] ana: o controle consciB te do comportamento, atenao -'~,_,JL'' tv ::..,f' ~lbtlf~1t-J.G: tU)

  • Scribner, 1984, p. 7). Um dos pontos centrais de sua teoria que as funes psicolgicas superiores so de origem sio-cultural e emergem de processos psicolgicos ele-mentares, de origem biolgica (estruturas orgnicas). Ou seja, segundo ele, a complexidade da estrutura h\lmana deriva do processae desenvolvimento profundamente enraizado nas relaes entre histria individual e soclr

    3. A PSICOLOGIA E A SOCIEDADE SOVITICA PS-REVOLUCIONRIA

    Podemos afirmar que tanto o "clima de renovao" da sociedade sovitica ps-revolucionria quanto os dile-mas presentes na psicologia da poca em que .Vygotsky viveu foram definidores de seu programa de trabalho.

    Ao analisarmos seu percurso acadmico e profissio-!@ notamos as marcas do contexto scio-poltico-e c"l-luri em que esteve inserido. O fato de ter sido um intelectul russo. que iniciou sua carreira no auge do perodo ps-revolucionrio, contribuiu para que se envol-vesse ativamente na construo de uma abordagem transformadora da psicologia e da cincia sovitica vigen-tes at aquele perodo.

    Nessa sociedade, a cincia era extremamente valo-rizada devido l expectativa de que os avanos cientficos trouxessem a soluo dos prementes problemas sociais e econmicos do povo sovitico. A necessidade de afirma-o ideolgica e as demandas prticas exigidas pelo governo influenciavam a Plaborao de teorias nos diver-sos campos do ccnhecimento. A produo acadmica desse periodo. alm de intensa, tinha um ponto em ccmurn: a preocupao pelo desenvolvimento de aborda-

    gens histricas para a pesquisa de diferentes objetos de estudo.

    Desse modo, a atmosfera de sua poca era de grande inquietao e estmulo para a busca de respostas s exigncias de uma sociedade em franco processo de transformao. Um bom exemplo destas aspiraes era o enorme poder atribudo educao. que se traduzia no esforo de elaborao de programas educacionais eficien-tes, que erradicassem o analfabetismo e oferecessem melhores opmtunidades aos cidados.

    O ideal revolucionrio contagiava a todos, pois trazia o desejo de concretizao de rpidos e significativos progressos para todo o povo. num brevssimo espao de tempo. Como avalia Luria, j com aproximadamente 70 anos, num trecho de sua autobiografia: "A Revoluo nos libertou - especialmente a gerao mais jovem - para a discusso de novas idias, novas filosofias e sistemas sociais. (. .. ) Fomos arrebatados por um grandioso movi-mento histrico. Nossos interesses pessoais foram con-sumidos em favor das metas mais amplas de uma nova sociedade coletiva. A atmosfera que se seguiu imediata-mente Revoluo proporcionou a energia para muitos empreendimentos ambiciosos" (Luria. 1992, p. 24 e 25). Assim a proposta de reestruturar a teoria e a pesquisa psicolgica expressa por Vygotsky estava em fina sintonia com os projetos sociais e polticos de seu pas.

    Nas primeiras dcadas do sculo XX, a psicologia sovitica (assim como a europia e americana) estava dividida em duas tendncias radicalmente antagnicas: "um ramo com caractersticas de cincia natural, que poderia explicar os processos elementares--SnsOii"iSe reTieXos, e urrl-outro com caractersticas de -CillCTamen:. tal. que descrevena as proprtlltllltles=elllllrgen!illl"{!Q!i

    27

  • . '

    - 'S' "' \ ('''' . _processos psicolgicos supefiores" (Cole & Scribner, 'i~ '' 1984, p. 6). _,

    .IJ . Desse modo, existia de um lado um grupo que, yl' ;J baseado em pressupostos da filosofia emprista, via a

    ; I" _.r psicologia como cincia natural que devia se eter na . : ... -1\ ~~V:! descrio das formas exteriores de comportamento, en~

    ,_;. r~v:' ,tendidas como_ h. a_ bilidades_ mecanicamente constitudas. j :. Esse grupo limitava~se _anlise__cios ... processos mais :)1' 1 iel~mentares e ignorava os fenmenos COTI:Rlex_~s da a ti~

    . -~~ vidade conscu?ht8, especificamente humana. J aeOUtro . Tao, o ouuo grupo, inspirado nos principias da filosofia

    ? idealista, entendia a psicologia como cincia mental, -

  • mundo. Nosso propsito, superambicioso como tudo na poca, era criar um novo modo. mais abrangente, de estudar os processos psicolgicos humanos" (Luria, 1988, p. 22).

    Vygotsky e seus colaboradores se encontravam com bastante freqncia (aproximadamente seis horas por dia, duas vezes por semana), inicialmente no apartamento de Vygotsky. Embora centrada na psicologia, a curiosidade do grupo pela investigao do ser humano era ilimitada.

    Nestes encontros estudavam com avidez os traba-lhos produzidos nos cinqenta anos precedentes nos campos da psicologia, da sociologia, da biologia e da lingstica, por pensadores russos e tambm de autores estrangeiros. Pelo fato de eles lerem em latim, espanhol, alemo, ingls e francs, tinham acesso a uma srie de pUblicaes estrangeiras. No final da dcada de 20 e incio da dcada de 30 eles promoveram a traduo de livros, pUblicaram importantes artigos sobre esses estudos e escreveram prefcios onde interpretavam as idias de autores da Europa Ocidental e dos Estados Unidos.

    Entre 1927 e 1928, a "troika" associou-se e transfe-riu-se para o laboratrio de psicologia do Instituto de Educao Comunista, ao qual se associou. Foi nesse mesmo perodo que Vygotsky comeou a criar o Instituto de Estudos da Deficincia, com o objetivo de estudar o desenvolvimento de crianas anormais. Nessa fase, alm de estudarem e criticarem de modo mais sistemtico as escolas existentes de psicologia, coordenavam um grupo de jovens estudantes que era orientado no sentido de realizar experimentos coerentes com o estilo de pesquisa e pensamento que desenvolviam (muitos desses estudan-tes vieram, no ps-guerra. a assumir papel de destaque na psicologia sovitica).

    30

    Partindo do pressuposto da necessidade de estudar o coin-Portamento humano enquanto fenmeno histrico e socialmente determinado, Vygotsky e seus seguidores se dedicavam principalmente construo de estudos-pilotos que pudessem atestar a idia de que o pensamen-to adulto culturalmente mediado, sendo que a linguagem o meio principal desta mediao.

    Neste periodo Vygotsky escreveu alguns importantes trabalhos, dentre eles: Os princpios da educao social de crianas surdas-mudas (1925), O consciente corno problema da psicologia do comportamento (1925), O sig-nificado histrico da crise da psicolqgia (1926), A pedolo-gia de crianas em idade escolar (1928), Estudos sobre a histria do comportamento (escrito juntamente com Lu-ria) (1930), O instrumento e o smbolo no desenvolvimento das crianas (1930), A histria do desenvolvimento das funes psicolgicas superiores (1931), Lies de psicolo-gia (1932), Fundamentos da Pedologia (1934). Pensamento e Linguagem (1934), Desenvolvimento mental da criana durante a educao (1935) e A criana retardada (1935).

    Dedicou-se tambm escrita de alguns trabalhos durante vrios anos de sua vida, tais como: Pedologia da Juventude: caracteristicas do comportamento do adoles-cente. O problema do desenvolvimento cultural da criana e A criana cega.

    Como possvel observar, significativa a variedade das questes tratadas por Vygotsky nos ltimos dez anos de sua vida profissional. Seus trabalhos expressam o objetivo de compreender os diferentes aspectos da con-duta humana atravs do esforo de reunir informaes de campos distintos.

    COncordamos com Bronckmt quando afirma que a vmiedade dos temas abordados por Vygotsky no resul-

    31

    \

  • taram em trabalhos superficiais, nem tampouco dispersos. pelo contrrio, "sob a diversidade dos temas, se desenvolve um pensamento profundamente unitrio" (1985, p. 11).

    5. PRINCIPAIS INFLUNCIAS Foram inmeras as influncias recebidas por Vygots-

    ky ao longo de sua vida intelectual. Como j menciona-mos, ele teve uma significativa influncia de pesqui-sadores da rea da lingstica, que, a partir de uma abordagem histrica. se dedicavam ao estudo da origem da linguagem e sua relao com o desenvolvimento do pensamento, tais como os russos A. A. Potebnya e Ale-xander von Humboldt. Vygotsky tambm se interessou pelo estudo comparativo entre o comportamento animal e humano. particularmente pelas pesquisas do especia-lista sovitico V.A. Wagner.

    '. O pensamento marxista tambm foi p'ara ele uma fonte cientfica valiosa. Podemos identificar os pressupos-tos filosficos, epistemolgicos e metodolgicos de sua obra na teoria dialtico-materialista. As concepes de Marx e Engels sobre a sociedade, o trabalho humano, o uso ... dS instrumentos, e a interao dialtica entre o homem e n natureza serviram como fundamento principal s suas teses sobre o desenvolvimento humano profun-daffiente enraizado na sociedade e na cultura

    Na Unio Sovitica, nos anos 20, vrios tericos se utilizavam das abordagens histricas e do desenvolvi-mento no estudo da natureza humana. dentre eles. os que exerceram maior influncia sobre as idias de Vygotsky foram K.N Kornilov e P.P. Blonsky. As pesquisas desses psiclogos soviticos contriburam para que Vygotsky percebesse a necessidade do estudo do comportamento

    32

    humano enqurmto fenmeno histrico e socialmente de-terminado.

    Finalmente. podemos entender que parte do enorme interesse de Vygntsky pelo estudo do desenvolvimento dos P_rocessos mentais ao longo da histria da espcie e em diferentes culturas esteja relacionado s influncias

    elo~ trabalhos de socilogos e antroplogos europeus ocidentais, tais como R Thurnwald e L. Levy-Bruhl.

    Na .cincia foram seus contemporneos os adeptos das teonas comportamentais, privilegiadores da associa-o estimulo-resposta, entre eles. Ivan Pavlov. Wladimir Betktercv e John B. Watson e os fundadores do movimen-to da Gestalt na psicologia, tais como: Wertheimer, Wolf-gang Kohler, Koffka e Kurt Lewin. Os trabalhos produzidos por estes estudiosos serviram como contra-ponto importante ao pensamento elaborado por Vygotski'

    Ele foi tambm contemporneo do epistemlogo su-o Jean Piaget. No entanto, s teve contato com os tmbalhos de Piaget produzidos no inicio dos anos 20. Leu essas produes com muito interesse; chegou inclusive a escrever o prefcio para a edio russa de dois livros de Piaget: A linguagem e pensamento na cnana e O meio-Cimo da cnana. Na poca fez importantes crticas s teses defendidas por Piaget (que soube desses coment-rios bem mais tmde, depois que Vygotsky j havia mor-ndo). Apesar de apontar suas divergncias (como, por exemplo, quanto interpretao da relao entre pensa-mento e linguagem), reconheceu a riqueza do mtodo clnico adotado por Piaget, no estudo do processo cogni-tivo mdiVIdual, e a semelhana de interesse no estudo da gnese dos processos psicolgicos.

    33

  • i.

    6. A PROmiO E REDESCOBERTA DE SUA OBRA

    A obra de Vygotsky comeou a receber severas crticas. na Rssia. a partir de 1932. Durante o governo de Stahn, suas teorias foram consideradas "idealistas" pelas autoridades soviticas. Nessa poca. os trabalhos de Pavlov eram muito valorizados justamente porque ele defendia a enorme plasticidade e as potencialidades dos seres humanos diante das presses do meio ambiente. Vygotsky, apesar de concordar com a idia da plasticida-de do homem. frente s influncias da cultura. era bas-tante crtico abordagem de PAVLOV. Argumentava que os seres humanos no deveriam ser considerados, pelos marxistas. apenas em funo de suas reaes ao ambien-te exterior. mas tambm a maneira pela qual eles criam seu ambiente, o que por sua vez d origem a novas formas de conscincia. As crticas dirigidas a ele parecem ter sido provocadas pelo fato de ele ter sido "exigente demais e profundamente marxista para se submeter aos dogmas impostos cincia pelo stalinismo" (Bronckart, 1985. p. 15).

    Aps sua morte, Vygotsky teve a publicao de suas obras proibida na Unio Sovitica, no perodo de 1936 a 1956, devido censura do totalitrio regime stalinista e foi, por um longo perodo, ignorado no Ocidente. Come-ou a ser redescoberto somente a partir de 1956. data da reedio sovitica do livro: Pensamento e linguagem. As idias de Vygotsky puderam ser conhecidas no Ocidente a partir de 1962. data da primeira edio americana do livro Pensamento e linguagem. No Brasil o contato com seu pensamento foi ainda mais tardio: somente a partir de 1984. data da publicao do livro A formao social da mente.

    34

    ~--------\ -~L

    At~~lmcnte, algu~s dos numerosos escritos de Vy-gotsky Ja foram :raduzidos para diversas lnguas, dentre

    e~as, para o mgles. espanhol. italiano, portugus e fran-c~s. E :om relativa rapidez que suas idias vm sendo d~ssemmadns, discutidas e valorizadas. Esses debates v~m dando orig?m a relevantes estudos que visam no soa um conl~ec1mento mais aprofundado de seus postu-lado~ como a realizao

    9de pesquisas que avancem no se_nt1c~o por ele apontado . No entanto, os pases ociden-tms nao tivcmrn, at o atual momento, \ cesso fl totalidade de sua produo intelectual, j que grande pmte de seus textos somente agora comea a ser traduzida no russo sendo que alguns, inclusive, no foram editados ne~ mesmo na Unio Sovitica.

    Apesar do conhecimento tardio e incompleto de sua obra, Vygotsky hoje considerado um dos mais impor. tan_tes ps1cologos do nosso sculo. significativa a in-fluencia e repercusso que a obra vygotskiana vem provocando na psicologia e educao, no s no Brasil como em outros pases ocidentais.

    8. Sendo assim, o estudo mais aprofundado do pensamento de Vygotsky por pmtc dos pesquiSadores brasileiros tem se viahilizado

    gr~~_s ~o acesso a publicaes estrangeiras de seus textos, de seus pnnClp;ls colaboradores e de seus '"intrpretes contemporneos" tais como .V. Wertsch. M. Cole, J. Valsmer R V Vecr S Scribn~r E Formem, A. Cazden. J~~l. A. Riv;rc e V.D. av1dov.

    ,.

    '

    35

    '"'

  • !'.

    Captulo 11

    A CULTURA TORNA-SE PARTE DA NATUREZA HUMANA

    Uma rlas principais caractersticas da obra de Vy-gotsky a riqueza e diversidade dos assuntos que abor-dou. Dedicou-se anlise de diversos temas relacionados a seu problema central, dentre eles, a crise da psicologia, as diferenas entre o psiquismo animal e humano, a gnese social das funes psicolgicas superiores, as relaes entre pensamento e linguagem, a questo da mediao simblica, as relaes entre desenvolvimento e aprendizagem e os processos de aprendizagem que ocor-rem no contexto escolar e extra-escolar, o problema das deficincias fsica e mental, o papel das diferentes cultu-ras no desenvolvimento das funes psquicas, a questo do brinquedo, a evoluo da escrita na criana e a psicologia da arte. Er-sa variedade era coerente com seu

    37

  • '' . ,,

    projeto que visava articular informaes dos diferentes componentes que integram os processos mentais: neuro-lgico, psicolgico, lingstico e cultural.

    Dentro dos limites do presente trabalho no poss-vel abordar todos os aspectos de sua obra. Vamos. no entanto, fazer uma sntese das principais idias fundadas nos seus postulados e desenvolvidas em seus escntos, particularmente aquelas que propiciam reflexes no cam-po da educao. As propostas de Vygotsky foram apro-fundadas por seus colaboradores. Assim. sempre que necessrio recorreremos aos escritos de Luria e Leon~1ev com o objetivo de conhecer melhor suas concepoes. Nossa inteno possibilitar ao leitor uma anlise geral e necessariamente introdutria. que estimule a consulta. 0 estudo e o aprofundamento da obra deste importante autor.

    . ~ ,.-,,~ O texto est organizado da seguinte maneira: primei-"~ ,;'fii ramente procuraremos esclarecer os ob)etlvos prmctpms

    d"" ~}~ que orientaram as pesqwsas expenmentms e as formula-~- es tericas de Vygotsky; em seguida, nos deteremos

    na anlise de alguns temas centrais de seu pensamento.

    1. O PROGRAMA DE PESQUISA

    I' .,

    A teoria histrico-cultural (ou scio-histrica) do psi-quisffiO: tambm conhecida como abordagem scio~in:eracionista elaborada por Vygotsky, tem como obJetiVO central"caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipteses de como essas ca-ractensticas se formaram ao longo da histria bum~na ~ de COIDO se desenvolvem durante a Vida de um !OdlV!dUO (Vygotsky. 1984. p. 21).

    ': ~- .\'-. \'

    ' . ,,,.

    'c

    38

    !

    I I

    Este projeto objetivava dar respostas a trs questes fundamentais que. segundo ele, vinham sendo tratadas de forma inadequada pelos estudiosos interessados na psicologia humana e animal. A primeira se referia tentativa de compreender a re!E:~Cfentre os seres huma~ nos e o seu ambiente fsico e social. A segunda, inteno de iclcntificm as formas novas de atividade que fizeram com que o trabalho fosse o meio fundamental de relacio~ namento entm homem e natureza, assim como examinar as conseqncias psicolgicas dessas formas de ativida-de. A terceira e ltima questo se relacionava an

  • .. :

    as e de investigaes das formas de organizao dos processs mentais em indivduos de diferentes culturas . . o estudo dos processos psicolgicos luz da abordagem scio-histrica permitiu a definio de diversos linhas de pesquisa, tais como: estudo do desenvolvimento de umo criana, de um grupo cultural e "da dissoluao de proces-sos psicolgicos, uma vez que as doenas e;raumatrsmos desfazem aquilo que a evoluo e a expenencta cultural ajudaram a construir" (Cole, 1992, p. 212).

    Desse modo, podemos considerar que seus trabalhos pertencem ao campo da psicologia gentica', j que se preocupou com o estudo da gnese, formao e evoluo dos processos psquicos supenores do ser humano. P~r~ a psicologia gentica, o psiquismo humano se con~trtur ao longo da vida do sujeito; no , portanto, uma pro-priedade" ou "faculdade" primitivamente e~rstente no indivduo. A psicologia gentica estuda a mfancra JUSta-mente para tentar compreender a formao dos comple-xos processos psquicos e das etapas pelos quars eles passam em sua evoluo.

    O seu programa de pesquisa traduzia .a tentativa de buscar uma abordagem alternativa, que superasse as tendncias antagnicas presentes na psicologia de sua poca. Baseado nos princpios do materialismo dialtico, procurou construir uma "nova psicologia", com o obJetlvo de integrar, "numa mesma perspectiva, o homem ~nQuanto corpo e mente, enquanto ser biolgico e socml,

    9. importante esclarecer que, neste caso. o ~er:no "g~nt~~ .. se refere ao estudo da origem. da formao das caractenstJcas psJcologJcRs. No est. portanto. associado a genes. transmi~so dos caracteres hereditrios nos indivduos.

    40

    ! I f

    I

    enquanto membro da espcie humana e participante de um processo histrico" (Oliveira, 1993, p. 23).

    2. PRINCIPAIS IDIAS DE VYGOTSKY

    A compreenso dessa abordagem diferente depende do estabelecimento das teses bsicas presentes em toda a sua obra o que sero explorados ao longo deste livro. Quais so estns teses?

    A primeira se refere relao indivduo/sociedade. Vygotsky afirma que as caractersticas tipicamente hu-

    manas no esto presentes desde o nascimento do indi+ viduo, nem so mero resultado das presses do meio externo. Elas resultam da interao dialtica do homem e j seu meio scio-cultural. Ao mesmo tempo em que o ser: humano transforma o seu meiO para atender suas neces-sidades bsicas, transforma-se a si mesmo.

    Em outras palavras, quando o homem modifica o ambiente atravs de seu prprio comportamento, essa mesma modificao vai influenciar seu comportamento futuro. Notamos, neste principio, a integrao dos aspec-tos biolgicos e sociais do indivduo: "as funes psico-lgicas superiores do ser humano surgem da interao dos fatores biolgicos, que so pmte da constituio fsica do Homo sapiens, com os fatores culturais, que evoluram atravs das dnzenas de milhares de anos de histria humana" (Luria. 1992, p. 60).

    _A segunda decorrncia da idia anterior, e se refere origem cultural das funes psquicas. As funes psicolgicas especificamente humanas se originam nas relaes do individuo e seu contexto cultural e social. Isto , o desenvolvimento mental humano no dado a priori,

    41

  • !.' ... ,,

    i\ ..

    . ! ; \ :, rv...c ,

    h,~. ' '. 11) \'

    '.:

    no imutvel e universal. no passivo, nem tampouco mdeperidente do desenvolvimento histrico e das formas sociais da vida humana. A cultura , portanto, parte Constitutiv

  • Portanto ser til ao leitor compreender as suas concep-, 10 9e_s sobre o assunto

    Ele e seus seguidores identificam basicamente trs traoTcractersticos no comportamento do animal que diferencia do psiquismo do ser humano, a saber:

    1. Diferentemente do comportamento /wmano. todo com-portamento do animal conseJVa sua ligao com os moti-vos biolgicos.

    A atividade dos animais instintiva e marcada pela satisfao de suas necessidades biolgicas (de alimento, autoconservao ou necessidade sexual). Ou seja, ela permanece sempre dentro dos limites das suas relaes biolgicas, instintivas, com a natureza. O modo de per-ceber o mundo pelo animal, a forma de se relacionar com seus semelhantes e at as possibilidades de aquisio de novas atividades, so determinadas por suas caracters-ticas inatas. Vejamos alguns exemplos: 11

    Num experimento propuseram a vrios chimpanzs o seguinte problema: colocaram uma banana num lugar alto porm visvel aos animais e deixaram disposi(:o vrios caixotes para que eles pudessem empilhar, para sobre eles trepar e alcanar o alimento. Embora cada macaco individualmente fosse capaz de resolver o proble-ina, em grupo no conseguiram, pois cada um agia como

    10. Este interesse tambm bastante evidente na obra de seus colaboradores. principalmente nos trabalhos de Luria (1991) e Leontiev (1978). Assim. sempre que necessrio recorreremos aos seus escritos com o objetivo de tomar mais claro os postulados de Vygotsky.

    11. Estes exemplos foram extrados do livro O desenvolvimento do psiquismo. (Leontiev, 1978, p. 64 e 65).

    44

    ::;e estivesse sozinho, o que acabava promovendo situa-es de luta e acirrada disputa pela posse dos caixotes t a desistncia de alcanar o alimento. Este experimen-to clcrnonstru. que o animal no consegue organizar uma a5o comum (onde cada um teria uma tarefa), pois cada um busca, instintivamente, sacim sua necessidade (no caso alcanar o alimento) e, como conseqncia, no estebelece rclC~es com seus semelhantes.

    Um out1o Pxemplo interessante o caso cl

  • ' 'lii!

    2. Diferente gesto do comportamento animal, o compor-tamento humano no forosamente detimninado por

    . estmulos imediatamente perceptveis ou pela experincia passada.

    As reaes dos animais se baseiam nas impresses evidentes recebidas do meio exterior ou pela experincia anterior. Ele , portanto, incapaz de abstrair, fazer relaes ou planejar aes. Alguns exemplos podero ilustrar esta

    ~ caracterstica: se num churrasco, deixarmos por esqueci-mento uma carne prxima a um cachorro com fome ele /

    provavelmente a comer, ou seja, no conseguir perce-ber que aquela carne se destina s pessoas, nem prever as conseqncias de seus atos, muito menos controlar seu comportamento (aguardar o momento em que lhe oferecero comida).

    Luria cita uma pesquisa (feita pelo psiclogo holan-ds Buytendijk) que esclarece a dependncia do animal de suas experincias anteriores: "Ele colocou diante de um animal vrias caixas nas quais poder-se-ia encontmr alimento. No primeiro teste, o alimento foi posto aos olhos do animal na primeira caixa. permitindo-se ao animal apanb-Jo. No segundo teste, o alimento (tambm aos olhos do animal) foi transferido para uma segunda caixa, em seguida para uma terceira. Depois, nos .experimentos seguintes, comeou-se (j sem que o animal percebesse) a transferir sucessivamente o alimento para cada caixa seguinte. permitindo sempre ao animal correr livremente para a caixa onde ele supunha encontrar o alimento. A pesquisa demonstrou que o animal corre sempre para a caixa onde vira que havia sido posto o alimento" (Luria, 1991, p. 69). O animal no conseguia considerar o princ-pio abstrato da seqncia, do deslocamento sucessivo do alimento entre as caixas.

    46

    Diferente do animal, o ser humano no se orienta somente pela impresso imediata e pela experincia anterior, pois pode abstrair, fazer relaes. reconhecer as causas e f;]zer previses sobre os acontecimentos, e depois de renetir e interpretar, tomar decises. Nesse sentido, ele livre e independente das condies do momento e do espao presentes.

    Por exnmplo, mesmo doente e precisando tomar determinado medicamento, o homem poder deixar de

    tomar o remdio caso o prazo de validade j tenha vencido. Mesmo com sede, provavelmente evitar tomar

    uma gua que esteja contaminada. Mesmo com fome, poder recusar um suculento prato de comida, caso saiba que este alimento foi preparado sem as mnimas condi-es de higiene. "Assim, ao sair a passeio num claro dia de outono, o homem pode levar guarda-chuva, pois sabe que o tempo instvel no outono. Aqui ele obedece a um profundo conhecimento das leis da natureza e no impresso imediata de um tempo de sol e cu claro'' (Luria. 1991, p 72).

    Em sntese, o homem no ~~\:'8 somente no mundo das impresses irriediatas (como os animais), mas tam-bm no universo dos conceitos abstratos, j que "dispe, no s de um conhecimento sensorial, mas tambm de um conhecimento racional, possui a capacidade de pe-netrar mais profundamente na essncia das coisas do que lhe permitem os rgos dos sentidos; quer dizer que. com a passagem do mundo animal histria humana, d-se um enorme salto no processo de conhecimento desde o sensorial ate o racionar (Luria, 1986, p. 12).

    47

  • 3. As diferenas das fontes de comportamento do homem e do animal.

    As fontes de comportamento do animal so limita-das: uma a experincia da espcie, que transmitida hereditariamente (comportamentg i!lstintivo, inato); a ou-tra .. -Sua experincia imediata e individual (mecanismos -de-adaptao individual ao meio), responsvel pela vmia o no comportamento dos animais. A _imitao ocupa um lugar muito insignificante na formaao do comporta menta animal. Ou seja, diferentemente do homem, o animal no traiismite a sua experincia, no assimila a exiirtncia alheia, nem tampouco capaz de transmitir (ou aprender) a experincia das geraes anteriores.

    Uma das principais caracteristicas que distingue radiclmente o homem dos animais justamente o fato

    dque, alm das definies hereditrias e da experincia individual, a atividade consciente do homem tem uma terceira fonte, responsvel pela grande maioria dos co-nhecimentos, habilidades e procedimentos comporta-mentais- a assimilao da experincia de toda a

    . humanidade, acumulada no processo da histria social e tiilsmitida no processo de aprendizagem. Podemos en tender que, nesta perspectiva, o deserwolvimento do psiquismo animal determinado pelas leis da evoluo biolgica e o do ser humano est submetido s leis do desenvolvimento scio-histrico.

    As caractersticas do funcionamento psicolgico ti-'. picamente humano no so transmitidas por hereditarie-j dade (portanto, no esto presentes desde o nasciment? I do individuo), nem so adquiridas passivamente graas a ) presso do ambiente externo. Elas so construdas ao

    longo da vida do indivduo atravs de um processo de ("interao do homem e seu meio fsico e social, que

    48

    possibilita a apropriao do cultura elaborada pelas gera-es precedentes, ao longo de milnios. Como afirmou Leontiev: "Cada indivduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe d_ quando nasce no lhe basta para viver em sociedade. E-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcanado no decurso do desenvolvimento histrico da sociedade humana" (Leontiev, 1978, p. 267).

    Assim, Vyyotsky, profundamente influenciado pelos postulados marxistas, afirma que as origens das ativida-des psicolgicas mais sofisticadas devem ser procuradas nas rel8.es sociais do indivduo com o meio externo. Y. Entende que o ser humano no s um produto de seu contexto social, mas tambm um agente ativo na criao deste contexto. Acredita que para compreender as formas especificamente humanas necessrio (e possivel) des-cobrir a relao entre a dimenso biolgica (os processos naturais, como: a maturao fsica e os mecanismos sensoriais) e a cultural (mecanismos gerais atravs do qual a sociedade e a histria moldam a estrutura humana).

    Coerente com este ponto de vista, procurou examinar a origem do complexo psiquismo humano nas condies sociais de vida historicamente formadas, que, segundo ele, esto relacionadas ao trabalho social, ao emprego de instrumentos e ao surgimento da linguagem. Estas so as \ "ferramentas" que foram construdas e aperfeioadas pela humanidade ao longo de sua histria e fazem a mediao entre o homem e o mundo: atravs delas, o homem no s domina o meio ambiente como o seu prprio compor-tanvmto.

    I~ por essa razo que Vygotsky procura compreender a evoluo da cultura humana (aspecto sociogentico), o processo de desenvolvimento individual (aspecto ontoge-ntico) e se detm especialmente, no estudo do desen-

    49

  • volvimento infantil, perodo em que estas "ferramentas" so aprendidas. ou seja, nesse perodo que acontece o

    s~rgjmento do uso de instrumentos e da fala humana. No tpico seguinte. abordaremos mais detidamente

    a questo das razes histrico-sociais e o conceito de ffiectia-do desenvolvimento humano, j que estes so um dos temes centrais das teses formuladas por Vygotsky.

    4. AS RAZES HISTRICO-SOCIAIS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO E A QUESTAO DA MEDIAAO SIMBLICA

    Compreender a questo da mediao. que caracteri-za a relao do homem com o ffilmdo e com os outros

    "fiomen3," de fundamental importncia justamente por-~ atravs deste processo que as funes psicolgicas supenres, especificamente humanas, se desenvolvem. Vygotsky distingue dois elementos bsicos responsveis

    por essa mediao: o instrumento, que tem a funo de rjlgular as aes sobre os objetos e o si?"o que regula as

    aes sobre o psiquismo das pessoas 1 . A inveno desses elementos mediadores significou

    o salto evolutivo da espcie humana. Vygotsky esclarece que o uso de instrumentos e dos signos. embora diferen-

    12. De modo geral, o signo pode ser considerado aquilo (objeto, forma, fenmeno. gesto. figmOu som) que representa algo diferente de si mesmo. Ou seja, substitui e expressa eventos, idias, situaes e objtOs. Servindo como auxilio da memria e da ateno humana_ Como PQr 8Xemplo. no cdigo de trnsito, a cor vermelha o signo que indica a necessidade de parar, assim como a palavra copo um signo que representa o utenslio usado para beber gua.

    50

    tes. _e~to mutuamente ligados ao longo da evoluo da especm humnna c do desenvolvimento de cada indivduo. Na (:mtognese esta ligao pode ser verificada atravs de experimentos por isso que ele e seus colnboradores realizaram umn sde de pesquisas com o objetivo de investigar o popcl medindo! dos instrumentos e signos na ntividacte psicolgica e as transformaes que ocorrem ao longo do desenvolvimento do indivduo.

    De ocordo com Marx. o desenvolvimento de habili-_dodes e funes espedfcas do homem. assim como a origem da socindad~ humana, so resultados do surgi-menta do trabolho. E atravs do trabalho que o homem, ao mesmo tempo que transforma a natureza (objetivando satisfazer suas necessidades), se transforma. Para realizar sua atividade, o homem se relaciona com seus semelhan-tes e fa.brica os meios, os instrumentos: "o uso e a criao de mews de trabalho. embora existam em germe erri algumas espcies animais, caracterizam de forma emi-nente o trabalho humano" (Marx, 1972). Isto quer dizer que as relaes dos homens entre si e com a natureza so mediadas pelo trabalho.

    Partindo destes princpios. Vygotsky procura analisar a funo mediadora presente nos instrumentos elobora-dos para a realizao da atividade humana. O instrumento provocador de mudanas externos pois amplia a possi-bilidade de interveno na natureza (na caa, por exem-plo. o uso da flecha permite o alcance de um animal distante ou, para cortar uma rvore. a utilizao de um ObJeto cortante mais eficiente do que as mos). Diferen-te de outras espcies animais, os homens no s produ-zem seus instrumentos para a realizao de tarefas especificas. como tambm so capazes de conserv-los para uso posterior, de preservar e transmitir sua funo

    51

  • aos membros de seu grupo, de aperfeioar antigos instru. - . 13

    mentes e de cnar novos .----

    Vygotsky faz uma interessante compm~o ~mtre a criao e a utilizao de instrumentos como a~~~m nas

    C!~~ concretas e os signos, "que ele c~ama de ~~~tru-. 1 os'"-q-ux tem a funao de amnhar o roento_s pSICO OQlC , t: .

    homem na~ suas atividades psquicas, portant?: mternas . - 'ndivduo: a "inveno e o uso de signos auxihmes para ~~l~cionar um dado problema psicolgico (lembrar. cor:> parar coisns, relatar, escolher, etc.) anloga in_ven?a~ e uso de instrumentos, s que agora no campo pst_c~log -o.' O signo age como um instrumento da at!Vldade psicolgica de maneira anloga ao papel de um mstru-mento no trabalho" (Vygotsky, 1984, p. 59-60).

    Com o amdlio dos signos, o homem pode controlar voluntariamente sua atividade psicol~ica e am~har sua capacidade de ateno. memria e acumulo de mforma-es, como. por exemplo, pode se utilizar de um sorteio para tomar uma deciso, amarrar um barbante no dedo para no esquecer um encontro, anotar um_ comporto-menta na agenda. escrever um dirio para nno esquec~r detalhes viv.idos. consultar um atlas para localizar um paiS etc.

    13. Vygotsky admite que alguns animais tam~m se utili~am_ ~e instrumento~ (cita, por exemplo, os experi~entos fmtos cor:n chtpan~:s que se utilizaram de varas para alcanar a~menlos em locat~ a que ao tinham acesso); no entanto, afirma que ex1ste uma gr~nde diferena no uso de instrumentos entre os animais e o homem. Diferentemente do

    I homem os ;mimais so incapazes de construir intencional~ente os instrum~ntos para realizar determinadas tarefas, de conserva-los e de ~ transmitir sna funo aos seus semelhantes

    52

    Vygotsky dedica particular ateno a questo da linguagem, entendida como um sistema simblico funda-inentalem todos os grupos humanos. elaborado no curso

    -da histria social, que organiza os signos em estruturas complexas e desempenha um pllpel imprescindvel na formao das caractersticas psicolgicas humanas. Atra-vs dn lingunrrm possvel designar os objetos do mundo exterior (c:omo, por exemplo, a palavra faca que desiga um utem;lio usado na alimentao), aes (como cortar, andar, fmver). qualidades dos objetos (como nexi-vel. spero) e as que se referem s relaes entre os objetos (tais como: abaixo, acima, prximo).

    O surgimento da linguagem imprime trs mudanas essenciais nos processos psquicos do homem. A primeira se relaciona ao fato de que a linguagem permite lidar com os objetos do mundo exterior mesmo quando eles esto ausentes. Por exemplo, a frase "O vaso caiu" permite a cornpi"eeftS.30 do evento mesmo sem t-lo presenciado, pois operamos com esta informao internamente.

    . . . A segundn se refere ao processo de abstrao e / generalizao que a linguagem possibilita, isto , atravs

    da linguagem possvel analisar, abstrair e generalizar as caracteristicas dos objetos, eventos, situaes presentes na realidade. Corno, por exemplo, a palavra "rvore" designa qualquer rvore (independentemente de seu ta-manho, se frutifera ou no etc.). Nesse caso, a palavra generaliza o objeto e o inclui numa determinada catego-ria. _Desse modo a linguagem no somente designa os elementos presentes na realidade mas tambm fornece

    conceitos e modos de ordenar o real em categorias conceituais.

    _A terceira est associada funo de comunicao entre os homens que garante, como conseqncia, a

    53

  • preservao, transmisso e assimilao de informaes e experincias acumuladas pela humanidade ao longo da 'hiStria. A linguagem um sistema de signos que posSl bilita o intercmbio social entre indivduos que com par tilhem desse sistema de representao da realidade. Cada palavra indica significados especficos, como por exemplo a palavra "pssaro" traduz o conceito deste elemento presente na natureza, nesse sentido que representa (ou substitui) a realidade. justamente por fornecer signifi cactos precisos que a linguagem permite a comunicao

    entre os- homens. Essa linguagem no existe entre os animais, que

    apenas emitem sons que expressam seus estados e contagiam seus semelhantes, como por exemplo: o "guia de um bando de cegonhas, ao sentir o perigo, solta gritos alarmantes aos quais o bando reage vivamente. Numa manada de macacos podemos observar todo um conjunto de sons, que expressa satisfao, agresso, medo ao perigo etc. ( ... ) Mas a linguagem dos animais nunca designa coisas. no distingue aes nem qualidades, portanto, no linguagem na verdadeira acepo da palavra" (Luria, 1991, p. 78).

    Estas idias deram origem a um programa de pes-quisa (iniciado por Vygotsky mas aprofundado por seus colaboradores) que visava anlise de como a relao entre o uso de instrumentos e a fala (e a fun.o mediadora que os caracteriza) afeta vrias funes psicolgicas. em particular a percepo, as operaes sensrio- motoras, e a ateno. Considerando uma das funes de cada vez, procurou investigar como a fala introduz mudanas qua-litativas na sua forma e na sua relao com as outras funes.

    54

    Buscou tambm observar de forma esquemtica as leis bsicas que caracterizam a estrutun e o desenvolvi-mento das operaes com signos da crianyd, relacionan-do-os com a memria. O interesse por esse tipo ele anlise se deve no fato clr. nle acreditar que "a verdadeira essncia da memria humnna (que a distingue dos animais) est no fato de os scrRs humanos serem capazes de lembrar ~tiva:nente, com G ajuda de signos" (Vygotsky, 1984, p: o8). Esse programa de pesqutsa era coerente com a idia de que a intemalizao dos sistemas de signos (a lingua-gem, a escrita, o sistema de nmeros) produzidos cultu-ralmente provoca mudanas cruciais no comportamento humano.

    Desse modo, os sistemas simblicos (entendidos como sistemas de representao da realidade), especial-~ente a linguagem, funcionam como elementos media-dores que permitem a comunicao entre os indivduos o estabelecimento de significados compartilhados po; determmado grupo cultural, a percepo e interpretao dos objetos, eventos e situaes do mundo circundante. E por essa razo que Vygotsky afirma que os processos de funcionamento mental do homem so fornecidos pela . cultura, atravs da mediao simblica.

    A partir de sw1 insero num dado contexto cultural de sua interailo com membros de seu grupo e de su~ participao em prticas sociais historicamente constru-das. a criana incorpora ativamente as formas de com-portamento j consolidadas na experincia humana. importante sublinhm que a :_cultura, entretanto, no pensada por Vygotsky como algo pronto, um sistema esttico ao qual o indivduo-se submete, mas como uma espcie de "palco de negociaes", em que seus mem-bros esto num constante movimento de recriao e

    55

  • reinterpretao de informaes, conceitos e significados" \livelia. 1993, p. 38).

    Na perspectiva vygotskiana, a internalizao das prticas culturais, que constituem o desenvolvimento humano. assume papel de destaque. Conforme veremos

    ---Seguir, uma de suas principais preocupQ.es era a de analisar a dinmica do movimento de passagem de aes realizadas no plano social (isto , entre as pessoas, inter-psicolgico) para aes internalizadas ou intramentais (no interior do indivduo, portanto, intrapsicolgico).

    5. O DESENVOLVIMENTO INFANTIL NA PERSPECTIVA SCIO-HISTRICA

    Vygotsky atribui enorme importncia ao papel da interao-social no desenvolvimento do ser humano. Uma das mals''significativas contribuies das teses que for. mulou est na tentativa de explicitar (e no apenas pressupor) como o ~rocesso de desenvolvimento social-mente constitudo 4 Essa a principal razo de seu interesse no estudo da infncia.

    curioso conhecer suas crticas aos paradigmas "botnicos" e "zoolgicos" adotados, na pesquisa psico-

    14. Embora as formulaes de Vygotsky sobre a gnese do desenvolvimento humano no se apresentem como um sistema terico organizado e articulado como o do epistemlogo suo Jean Piaget e do psiclogo francs Henri Wallon. que chegaram a delinear os traos fundamentais do processo de estruturao psicolgica do beb at a fase adulta. encontramos em seu pensamento reflexes abrangentes e relevantes acerca dos processos de desenvolvimento e aprendizagem do ser humano.

    56

    lgica, para explicar o desenvolvimento infantil. Segundo ele, a primeira tendncia compara o estudo da criana botnica, ou seja, entende que o desenvolvimento da criana depende de um processo de maturao do orga-

    . 15 -msmo como um todo . Esta concepao se apia na idia de que "a mente da criana contm todos os estgios do futuro desenvolvimento intelectual eles existem j na sua forma completa. esperando o momento adequado pma emergir" (Vygotsky, 1984, p. 26). Pam ele, no entanto, a maturao biolJica um fator secundrio no desenvol-vimento das formas complexas do comportamento huma-no pois essas dependem da interao da criana e sua cultura.

    Afirma que a segunda abordagem, apesar de mais avanada que a anterior, tambm equivocada na medi-da em que busca respostas s questes sobre a criana, a partir de experincias no reino animal. Admite que esses experimentos contriburam para o estudo das bases bio-lgicas do comportamento humano (identificaram, por exemplo, algumas semelhanas nos processos psicolgi-cos elementares entre os macacos antropides e a criana pequena). Sua critica reside no fato de que a convergncia da psicologia animal e da criana tem limites srios para a explicao dos processos intelectuais mais sofisticados que so especificamente humanos. '

    Seu ponto de vista bastante diferente dos anterio-res. Segundo ela, a estrutura fisiolgica humana, aquilo que inato, no suficiente para produzir o indivduo

    15_ Vygotsky ch;una a ateno para a relao do termo "jardim de infncia. ~sado para designar os primeiros anos de educa.

  • humano, na ausncia do ambiente sociaL As caracters-ticas individuais (modo de agir, de pensar, de sentir, Valores, conhecimentos, viso de mundo etc.) depende da interao do ser humano com o meio fsico e social. Vygotsky chama ateno para a ao recproca existente entre o organismo e o meio e atribui especial importncia ao fator humano presente no ambiente.

    O caso verdico de duas crianas (as chamadas "meninas-lobas") que foram encontradas, na lndia, viven-dorio meio de uma manada de lobos, demonstra que para se humanizar o individuo precisa crescer num ambiente social e interagir com outras pessoas. Quando encontra-das, praticamente no apresentavam um comportamento humano: no conseguiam permanecer em p, andavam com o apoio das mos, no falavam, se alimentavam de carne crua ou podre, no sabiam usar utenslios (tais como, copo, garfo etc.) nem pensar de modo lgico (Davis & Oliveira, 1990, p. 16). Quando isolado, privado do contato com outros seres, enuegue apenas a suas pr-priS-ondies e a favor dos recursos da natureza, o homem fraco e insuficiente.

    Devido a essas caractersticas especificamente hu-mars torna-se impossvel considerar o desenvolvimento

    ( dOsujeito como um processo previsvel, universal, linear \ ou graduaL O desenvolvimento est intimamente relacio-. ii"ado-ao contexto scio-cultural em que a pessoa se insere i e-se processa de forma dinmica (e dialtica) atravs de ) rupturas e desequilbrios provocadores de continuas reor-l ganizaes por parte do indivduo.

    Se comparado com as demais espcis animais, o beb humano o mais indefeso e despreparado para lidar com os desafios de seu meio. A sua sobrevivncia depen-de dos sujeitos mais experientes de seu grupo, que se

    58

    rnsponsabiliz

  • com o mundo dos objetos mediada pelos adultos; por exemplo. eles aproximam os objetos que a criana quer apanhar. agitam o brinquedo que faz barulho, alimentam-

    .. na com a mamadeira etc. Com a ajuda do adulto, as crianas assimilam ativa-

    mente aquelas habilidades que foram construdas pela illsi

  • dialtica da atividade simblica (a fala} e a atividade prtica: "o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que d origem s formas puramente humanas de inteligncia prtica e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prtica. ento duas linhas completamente independentes de desenvolvimen-to, convergem" (Vygotsky, 1984, p. 27}.

    Em sntese, na perspectiva vygotskiana o desenvol-vimento das funes intelectuais especificamente huma-nas mediado socialmente pelos signos e pelo outro. Ao internalizar as experincias fornecidas pela cultura, a criana reconstri individualmente os modos de ao realizados externamente e aprende a organizar os pr-prios processos mentais. O indivduo deixa, portanto, de se basear em signos externos e comea a se apoiar em recursos intemalizados (imagens, representaes men-tais, conceitos etc.}.

    Concordamos com Smolka e Ges quando afirmam que "o que parece fundamental nessa interpretao da formao do sujeito que o movimento de individuao se d a partir das experillciaS propiciadas pela cultura. O desenvolvimento envolve processos, que se constituem mutuamente, de imerso na cultura e emergncia da individualidade. Num processo de desenvolvimento que tem carter mais de revoluo que de evoluo, o sujeito sefz-Cmo ser diferenciado do outro mas formado na relao com o outro: singular, mas constitudo socialmen-te~e; pr isso mesmo, numa composio individual mas nao 'hiiognea" (1993, p. 10}.

    62

    6. RELAES ENTRE PENSAMENTO E LINGUAGEM

    O estudo dr1s relaes entre pensamento e linguagem considerado um dos temns mais complexos da psicolo-gia. Vygotsky se dedicou a este assunto durante muitos anos de sua vida 16. Ele e seus colaboradores trouxeram importantes contribuies sobre o tema, principalmente no que se refere questo da compreenso das razes genticas da wlao entre o pensamento e a linguagem.

    Afirma que a relao entre o pensamento e a fala passa por vrios mudanas ao longo da vida do indivduo. Apesar de terem origens diferentes e de se desenvolverem de modo independente, numa certa altura, graas insero da criana num grupo cultural, o pensamento e ? linguagem se encontram e do origem ao modo de funcionamento psicolgico mais sofisticado, tipicamente humano ..

    Segundo Vygotsky, a conquista da linguagem repre-senta um marco no desenvolvimento do homem: a capacitao especificamente humana para a linguagem habilita as crianas a providenciarem instrumentos auxi-liares na soluo de tarefas difceis, a superarem a ao impulsiva, a planejarem a soluo para um problema antes de sua execuo e a controlarem seu prprio comportamento. Signos e palavras constituem para as crianas, primeiro e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funes cognitivas e co-

    16. Para um estudo mais aprofundado das idias de VyJotsky sobre a questo da lingu

  • municativas da linguagem tornam-se, ento, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianas, distinguindo-as dos animais" (Vygotsky, 1984, p. 31). Sendo assim. a linguagem tanto expressa o pensamento d~ criana como age como organizadora desse pensa-mento.

    Vejamos como isto se processa. J?Z:to nas crianas como nos adultos, a funo

    primordiiil da fala o contato sociiil, a comunicao; isto quer dizer que o desenvolvimento da linguagem impul-sionado pela necessidade de comunicao. Assim, mes-ino a fala mais primitiva da criana social. Nos primeiros

    ~~de vida, o balbucio, o riso, o choro, as expresses faciais ou as primeiras palavras da criana cumprem no 'loment.e a funo de alivio emocional (como por exemplo manifestao de conforto ou incmodo) como tambm so meios de contato com os membros de seu grupo. No _entant_o, esses sons, gestos ou expresses so manifes-taes bastante difusas, pois no indicam significados

    !tll_ecificos (por exemplo, o choro do beb pode significar . dor de barriga, fome etc.). Vygotsky chamou esta fase de

    1) _estgio pr-intelectual do desenvolvimento da fala. Antes de aprender a falar a criana demonstra uma

    inteligncia prtica que consiste na sua capacidade de grr _J!cffubiente e resolver problemas prticos, inclusive com o auxilio de instrumentos intermedirios (por exem-pl;-capaz de se utilizar de um baldinho para encher de areiaou de subir num banco para alcanar um objeto). mas sem a mediao da linguagem. Segundo Vygotsky,

    z} esse o estgio pr-lingstico do desenvolvimento do Pe.!lsarnento.

    64

    Atravs de inmeras oportunidades de dilogo, os adultos, que j dominam a linguagem. no s interpretam e atribuem significados aos gestos, posturas, expresses e sons dn criana como tambm a inserem no mDndo simblico de sun cultura. Na medida em que a criana interage e dialoga com os membros mais maduros de sua cultura, aprende a usar a linguagem como instrumento do pensamento e como meio de comunicao. Nesse momento o pensamento e a linguagem se associam, conseqentemente o pensamento torna-se verbal e a fala racional17 .

    interessante analisar com mais detalhes as expli-caes de Vygotsky sobre o processo de conquista da utilizao da linguagem como instrumento de pensamen-to, que evidencia o modo pelo qual a criana interioriza os padres de comportamento fornecidos por seu grupo cultural. Atravs de seus experimentos, pde observar que este processo, apesar de dinmico e no linear, passa por estgios que obedecem seguinte trajetria: a [ala evolui de uma fala exterior para uma fala egocntrica e, desta. para umil fala interior. A fala egocntrica enten-dida como um estgio de transio entre a fala exterior (fruto das atividades interpsiquicas, que ocorrem no plano social) e a fala interior (atividade intrapsquica, individual).

    17 Vygotsky afirma que a partir desse momento o pensamento verbal passa a ser predominante na atividade psicolgica humana. No entanto. o pensamento no verbal (por exemplo, nas atividades que exigem apenas o uso da inteligncia prtica) e a linguagem no intelectual {por exemplo. quando um indivduo recita um poema deco-rado ou n

  • _ .. _: __ ~_-_. -~' l --------~- :-~~

    ;_:,

  • com os indivduos e de organizao de seu modo de agir e pensar.

    y"; / ,\1-7. A AQUISIO DA LINGUAGEM ESCRITA

    '{ygotsky afirma que no somente atravs da aqui-sio da linguagem falada que o indivduo adquire formas mais complexas de se relacionar com o mundo que o

    11 cerca. O aprendizado da linguagem escrita representa um I novo e considervel salto no desenvolvimento da pessoa.

    "Algumas pesquisas demonstraram que 'este proces-so ativa uma fase de desenvolvimento dos processos psicointelcctuais inteiramente nova e muito complexa, e que o aparecimento destes processos origina urna mu-dana radical das caractersticas gerais, psicointelectuais

    . < da criana"( ... ) (Vygotsky, 1988, p. 116). O domnio desse sistema complexo de signos fornece novo instrumento de pensamento (na medida em que aumenta a capacidade de memria. registro de informaes etc.). propicia dife-rentes formas de organizar a ao e permite um outro tipo de acesso ao patrimnio da cultura humana (que se encontra registrado nos livros e outros portadores de textos). Enfim, promove modos diferentes e ainda mais abstratos de pensar, de se relacionar com as pessoas e l com o conhecimento.

    (

    !'O aprendizado da escrita, esse produto cultural cons-truido ao lonqo da histria da humanidade, entendido

    , por Vygotsky corno um processo bastante complexo. que iniciado pmn a criana "muito antes da primeira vez que o professor coloca um lpis em sua mo e mostra como formm letras" (Vygotsky, L.S .. et ai. 1988, p. 143).

    A complexidade desse processo est associada ao fato de a escrita ser um sistema de representao da realidade extremamente sofisticado, que se constitui num conjunto de "smbolos de segunda ordem, os smbolos escritos funcionam como designaes dos smbolos ver-bais. A compreenso da linguagem escrita efetuada, primeiramente. atravs da linguagem falada: no entanto, gradualmente essa via reduzida, abreviada, e a lingua-gem falada desaparece como elo intermedirio" (Vygots-ky, 1984, p. 131).

    Sendo assim, _o aprendizado da linguagem escrita envolve a elaborao de todo um sistema de repre-sentao simblica da realidade. por isso que ele identifica urna espcie de continuidade entre as diversas atividades simblicas: os gestos, o desenho e o brinque do. Em outras palavras, estas atividades contribuem para o desenvolvimento da representao simblica (onde sig-nos representilm significados). e. conseqentemente, para o processo de aquisio da linguagem escrita.

    Consiclcmndo a importncia do domnio da lingua-gem escrita pma o indivduo, Vygotsky enfatiza a neces-sidade de investigaes que procurem desvendar a gnese da escrita, o caminho que a criana percorre para aprender a ler e escrever, particularmente antes que se

    69

  • submeta ao ensino sistemtico desta linguagem na esco~ la: "A primeira tarefa de investigao cientifica revelar essa pr-histria da linguagem escrita; mostrar o que leva as crianfls a escrever; mostrar os pontos importantes pelos quais passa esse desenvolvimento pr-histrico e qual a sua relao com o aprendizado escolar" (Vygotsky, 1984, p. 121). Esse programa de pesquisa foi realizado por Luria, que, atravs de experimentos, procurou identificar o percurso da pr-histria da escrita, a gnese da lingua-gem escrita na criana 19

    8. INTERAO ENTRE APRENDIZADO E DESENVOLVIMENTO: A ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL

    Como vimos at agora. Vygotsky no ignora as definies biolgicas da espcie humana; no entanto atribui urna enorme importncia dimenso social qu~ fornece instrumentos e smbolos (assim como tod~s os elementos presentes no ambiente humano impregnados de significado cultural) que medeiam a relao do indiv-duo com o mundo, e que acabam por fornecer tambm seus mecanismos psicolgicos e formas de agir nesse

    . 19. Os resultados desse trabalho podem ser conhecidos atravs do a~tJgo escrito por Luria: dO desenvolvimento da escrita na criana" In: Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (Vygotsky, L.S. et. ai,

    198~ p. ~43-189). ~ inte~ess~nte observar que as idias de Vygotsky, que mspuaram as mvest1gaoes efetivadas por Luria nos anos 20 e 30

    gu~dam muitas ~emelhanas com os postulados elaborados pela pes~ . quJSadora argentma Emlia Ferreiro e seus colaboradores. a partir dos , 'anOS 70. Para uma anlise das proximidades e divergncias entre esses

    1: trabalhos consultar M.T.F. Rocco (1990) eM. da G.A.B. Santos (1991).

    70 j j

    ~-----l

    mundo. O aprendizado considerado, assim, um aspecto necessrio e fundamental no processo de desenvolvimen-to das funes psicolgicas superiores20 .

    Portanto, o desenvolvimento pleno do ser humnno depende do aprendizado que renliza num determinado grupo cultuml, a partir da interao com outros indivduos da sua espcie. Isto quer dizer que. por exemplo, um indivduo criado numa tribo indgena, que desconhece o sistema de escrita e no tem nenhum tipo de contato com um ambiente letrado. no se alfabetizar. O mesmo ocorre com a aquisio da fala. A criana s aprender a falar se pertencer a uma comunidade de falantes, ou seja, as condies orgnicas (possuir o aparelho fonador), embora necessrias. n5o so suficientes para que o indivduo adquira a linguagem.

    Nessa perspectiva, o aprendizado que possibilita e movimenta o processo de desenvolvimento: "o aprendi-zado pressupe uma natureza social especfica e um processo atravs do qual as crianas penetram na vida intelectual daqueles que as cercam" (Vygotsky, 1984, p. 99). Desse ponto de vista. o aprendizado o aspecto necessrio e universal, uma espcie de garantia do de-senvolvimento das caractersticas psicolgicas especifi-camente humanas e culturalmente organizadas.

    justmnente por isso que as relaes entre desen~ volvimento e aprendizagem ocupam lugar de destaque na

    20. Sobre este assunto. ver especialmente o artigo: "Interao entre aprendizado e desenvolvimento" In: A formao social da mente (Vygotsky, 1981, p. 89-103).

    71

  • obra de Vygotsky21 Ele analisa essa complexa questo sob dois ngulos: um o que se relere compreenso da relao geral entre o aprendizado e o desenvolvimento; o outro, s peculiaridades dessa relao no perodo escolar. Faz esta distino porque acredita que, embora o apren-dizado da criana se inicie muito antes dela freqentar a escola, o aprendizado escolar introduz elementos novos no seu desenvolvimento.

    Vygotsky identifica dois nveis de desenvolvimento: um se refere s conquistas j efetivadas, que ele chama de nvel de desenvolvimento real ou eletivo, e o outro, o nvel" de desenvolvimento potencial, que se relaciona s capacidades em vias de serem construdas, conforme explicaremos a seguir.

    O nvel de desenvolvimento real pode ser entendido como referente quelas conquistas que j esto consoli-dadas na criana, aquelas funes ou capacidades que ela j aprendeu e domina, pois j consegue utilizar sozi-nha, sem assistncia de algum mais experiente da cultura (pai. me, professor, criana mais velha etc.). Este nvel indica, assim, os processos mentais da criana que j se estabeleceram, ciclos de desenvolvimento que j se completaram.

    Desse modo, quando nos referimos quelas ativida-des e tarefas que a criana j sabe fazer de forma inde-

    21. O t

  • em processo de maturao, funes que amadurecero. mas que esto presentes em estado embrionrio. Essas funes poderiam ser chamadas de "brotos" ou "flores" 'do desenvolvimento, ao invs de "frutos" do desenvolvi. menta" (Vygotsky, 1984, p. 97). Deste modo, pode-se afirmar que o conhecimento adequa"do do desenvolvi-mento individual envolve a considerao tanto do nvel de desenvolvimento real quanto do potencial.

    O aprendizado o responsvel por criar a zona de desenvolvimento proximal, na medida em que, em inte-rao com outras pessoas. a criana capaz de colocar em movimento vrios processos de desenvolvimento que, sem a ajuda externa, seriam impossveis de ocorrer. Esses 12!:0ce~sos se internalizam e passam a fazer parte das aquisies do se_u desenvolvimento individuaL por isso

    (que Vygotsky afirma que ,"aquilo que a zona de desen-volvimento proxim~ hoje ser o nvel de desenvolvimento real amanha -ou seJa, aquilo que uma criana pode fazer j com assistncia hoje, ela ser capaz de fazer sozinha l amanh" (Vygotsky, 1984, p. 98).

    O conceito de zona de desenvolvimento proxirnal 9_e ~_xtrema importncia para as pesquisas do dcser. ol-virnento infantil e para o plano educacional. justamente porque permite a compreenso da dinmica in te' na do _?esenvolvimento individual. Atravs da 0onsiderao da zona de desenvolvimento proxim' l, 'Jossv?l verificar no somente os ciclos j completauos, C0',JO tambm os que esto em via de formao, o que permite o delinea-mento da competncia da criana e de suas futuras conquistas. assim como a elaborao de estratgias pe-daggicas que a auxiliem nesse processo.

    Esse conceito possibilita analisar ainda os limites desta competncia, ou seja, aquilo que est "alm" da

    74

    zona de desenvolvimento proximal da criana, aquelas tarefas que mesmo com a interferncia de outras pessoas, ela no copaz de fazer. Por exemplo: uma criana de 6

    anos pode conseguir completar um esquema de Palavras Cruzadas com a ajuda de um adulto ou em colaborao com algum parceiro. No entanto, umn criana de 2 anos no ser c8pnz de realizar esta tarefa, mesmo com a 8ssistncin de algum.

    Segundo Vygotsky, o aprendizado de modo geral e o aprendizado escolar em particular, no s possibilitam como orientam e estimulam processos de desenvolvimen-to. Nesse sentido argumenta: "( ... ) todas as pesquisas experimentais sobre a natureza psicolgica dos processos de aprendizagem da aritmtica, da escrita, das cincias naturais e de outras matrias na escola elementar de-monstram que o seu fundamento, o eixo em torno do qual se montam. uma nova formao que se produz em idade escolar. Estes processos esto todos ligados ao desenvol-vimento do sistema nervoso central. (. .. )

    Cada mntria escolar tem uma relao prpria com o curso do desenvolvimento da criana, relno que muda com a passaqem dn criana de uma etapa pam outra. Isto obriga a reexaminar todo o problema das disciplinas formais, ou seja, do papel e da importncia de cada matria no posterior desenvolvimento psicointelectual geral da criana" (Vygotsky, 1988, p. 116-117).

    9. O PROCESSO DE FORMAO DE CONCEITOS E O PAPEL DESEMPENHADO PELO ENSINO ESCOLAR

    Este um tema de extrema importncia nas propo-sies de Vygotsky, pois integra e sintetiza suas princi-

    75

  • pais teses acerca do desenvolvimento humano: as rela-es entre pensamento e linguagem, o papel mediador da cultura na constituio do modo de funcionamento psicolgico do individuo e o processo de internalizao de conhecimentos e significados elaborados socialmente.

    Na perspectiva vygotskiana, os conceitos so enten . , .. ! didos como um sistema de relaes e generalizao .!-"\''' ~ contidos nas palavras e determinado por um processo . j

  • tua! de abstraes graduais, com diferentes graus de generalizao: gato. mamfero, vertebrado. animal. ser vivo constituem uma seqncia de palavras que, partindo rlo Objeto concreto "gato" adquirem cada vez mais abran-gncia e complexidade.

    Apesar de diferentes, os dois tipos de conceito esto intimamente relacionados e se influenciam mutuamente. pois fazem parte, na verdade, de um nico processo: o desenvolvimento da formao de conceitos. "Frente a um conceito sistematizado desconhecido, a criana busca signific-lo atravs de sua aproximao com outros j conhecidos. j elaborados e internalizados. Ela busca enraiz-lo na experincia concreta. Do mesmo modo, um conceito espontneo nebuloso, aproximado a um concei-to sistematizado, coloca-se num quadro de generoliza-o" (Fontana, 1993, p. 125).

    Q_processo de formao de conceitos, fundamental no desenvolvimento dos processos psicolgicos supe-riores, longo e complexo, pois envolve operaes inte-lectuais dirigidas pelo uso das palavras (tais como: ateno deliberada, memria lgica, abstrao, capacida-de para comparar e diferenciar). Para aprender um con-ceito necessrio, alm das informaes recebidas do exterior, uma intensa atividade mental por parte da crian-

    [ a. Portanto. um conceito no aprendido por meio de um treiiiamento mecnico. nem tampouco pode ser me-ramente transmitido pelo professor ao aluno: "o ensino direto de conceitos impossvel e infrutfero. Um proles-

    ( sor que tenta fazer isso geralmente no obtm qualquer ' resultado, exceto o verbalismo vazio, uma repetio de palavras pela criana, semelhante a de um papagaio, que i simula um conhecimento dos conceitos correspondentes, {. mas que na realidade oculta um vcuo" (Vygotsky, 1987,

    p. 72).

    78

    As formas de atividade intelectual tpicas do adulto (pensamento conceitual) esto embrionar~amente presen-tes no pensamento infantil: "o dcsenvolvnn::nto dos pr~ccssos, qu~ finalmente resultam na for~a_ao ?e concei-tos. comea na fase mais precoce da mfa_ncia, mas as funes intelectuais que, numa combmaao espe~Iflca, formam a b

  • volvimento das funes psicolgicas superiores, justa-mente na fase em que elas esto em amadurecimento.

    10. A FUNO DA BRINCADEIRA NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL

    interessante observar que. para Vygotsky, o ensino sistemtico no o nico fator responsvel por alargar os hfiZnts da zona de desenvolvimento proximal. Ele Considera o brinquedo uma importante fonte de promoo e desenvolvimento. Afirma que. apesar do brinquedo no ser o aspecto predominante da infncia, ele exerce uma enorme influncia no desenvolvimento infanti123 .

    O termo "brinquedo", empregado por Vygotsky num sentido- amplo, se refere principalmente atividade, ao

    ~to de brincar. fnecessro ressaltar tambm que embora ele analise o desenvolvimento do brinquedo e mencione outras modalidades (como, por exemplo, os jogos espor-tivos), dedica-se mais especialmente ao jogo de papis ou brincadeira de "faz-de-conta" (como. por exemplo. brincar de polcia e ladro, de mdico, de vendnha etc.). Este tipo de brincadeira caracterstico nas crianas que aprendem a falar. e que, portanto. j so capazes de representar simbolicamente e de se envolver numa situa-o imaginria.

    23. Maiores informaes sobre o estudo desse tema podero ser obtidas nos artigos "O papel do brinquedo no desenvolvimento". Tn: A formao social da mente (Vygotsky, 1984, p. 105-118). Ver tambm o artigo de Leontiev ~as princpios psicolgicos da brincadeira pr-esco-lar". In: Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem (Vygotsky et a\., 1988, 119-142).

    80

    A imsqinno um modo de funcionmnento psico-lgico espr!cificamente humano que no est presente nos animais nem na criana muito pequena. , portanto, impossvel a participao da criana muito pequena numa situao imaginria. Ela tende a querer satisfazer seus desejos imediatamente: "ningum jamais encontrou uma criana muito pequena, com menos de trs anos de idade, que quisesse fazer alguma coisa dali a alguns dias, no futuro" (Vyuotsky, 1984, p_ 106).

    At os~;a bse seu comportamento dependente das restries impostas pelo ambiente. Vygotsky exemplifica o quanto sua ao determinada pelo campo visual externo: "a grande dificuldade que uma criana pequena tem em perceber que, para sentar numa pedra, preciso primeiro virar-se de costas para ela" (Vygotsky, 1984, p. !09). Nesse perodo ela ainda no consegue agir de forma independente daquilo que v: "h uma fuso muito ntima entre o significado e o que visto. Quando se pede a uma criana de dois anos que repita a sentena "Tnia est de p", quando Tnia est sentada na sua frente. ela mudar a frase para "T;inia est sentada" (Vygotsky, 1984, p. 110).

    De acordo com Vygotsky, atravs do brinquedo, a criana aprende a atuar numa esfera cognitiva que de-pende de motivaes internas. Nessa fase (idade pr-es-colar) ocorre uma diferenciao entre os campos de significado e da viso. O pensamento que antes era determinado pelos objetos do exterior passa a ser regido pelns idias. A criana poder utilizar materiais que serviro para representar uma realidade ausente, por exemplo, uma vareta de madeira como uma espada, um boneco como filho no jogo de casinha, papis cortados corno dinheiro para ser usado na brincadeira de lojinha etc. Nesses casos ela ser capaz de imaginar, abstrair as

    81

  • caractersticas dos objetos reais (o boneco, a vareta e os pedaos de papel) e se deter no significado definido pela brincadeira.

    A criana passa a criar uma situao ilusria e imaginria, como forma de satisfazer seus desejos no realizveis. Esta . alis, a caracterstica que define o brinquedo de um modo geral. A criana brinca pela necessidGde de agir em relao ao mundo mais amplo dos adultos e no apenas ao universo dos objetos a que ela tem acesso.

    A brincadeira representa a possibilidade de soluo do impasse causado, de um lado, pela necessidade de ao da criana e. de outro, por sua impossibilidade de executar as operaes exigidas por essas aes. "A criana quer, ela mesma, guiar o carro; ela quer remar o barco sozinha, mas no pode agir assim, e no pode principalmente porque ainda no dominou e no pode dominar as operaes exigidas pelas condies objetivas reais da ao dada" (Leontiev, 1988, p. 121). Assim, atravs do brinquedo. a criana projeta-se nas atividades dos adultos procurando ser coerente com os papis assu-midos.

    Toda situao imaginria contm regras de compor-tarnento condizentes com aquilo que est sendo repre sentado. Por exemplo, ao brincar de "lojinha" e desempenhar o papel de vendedora ou de cliente. a criana buscar agir de modo bastante prximo quele que ela observou nos vendedores e clientes no contexto real. O esforo em desempenhar com fidelidade aquilo que observa em sua realidade faz com que ela atue num nvel bastante superior ao que na verdade se encontra, no "brinquedo a criana sempre se comporta alm do com portarnento habitual de sua idade. alm de seu compor-

    82 l I

    _l

    tamento dirio: no brinquedo como se ela fosse maior elo que na realidade" (Vygotsky, 1984. p. 117).

    Mesmo havendo uma significativa dist5ncia entre o comportamento na vida real e o comportamento no brin-quedo, a ntuno no mundo imaginrio e o estabeleci-mento de regras a serem seguidas crinm uma zona de dr:scnvolvimcnto proximal. na medida em que impulsio-nnm conceitos e processos em desenvolvimento.

    83

  • Captulo 111

    I,RESSUPOSTOS FILOSFICOS E IMPLICAES EDUCACIONAIS DO

    PENSAMENTO VYGOTSKIANO

    1. AS CONCEPES INATISTA E AMBIENTALISTA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO E AS IMPLICAES EDUCACIONAIS

    Para que possamos compreender a originalidade das contribuies de Vygotsky rea da educao nec.es-srio que examinemos, ainda que brevemente, as teorias psicolgicas j formuladas sobre a constituio do psi-quismo humano: o inatismo e o ambientalismo. Essas abordagens revelam diferentes concepes e modos de explicar as dimenses biolgicas e culturais do homem e a forma pela qual o sujeito aprende e se desenvolve. e.

    85

  • mais particularmente, as possibilidades da ao educati-fVa. Cada uma delas marcada pelas caractersticas do /_momento e rl.o contexto scio-histrico em que foi for mu-i lada e pelos diversos paradigmas e pressupostos filosfi-

    \~cos, metodolgicos e epistemolgicos que as inspiraram. A abordagem inatista (tambm conhecida como

    apriorista ou nativista), insp,irada nas premissas da filoso-fia racionnlista e idenlista 4 , se baseia na crena de que as Capacidr1des bsicas de cada ser humano (personali-

    dade, potencial, valores. comportamentos, formas de pen-pensar e de conhecer so inatas, ou seja, j se encontram praticamente prontas no momento do nascimento ou -potencialmente determinadas e na dependncia do ama-durecimento para se manifestar. Enfatiza assim os fatores maturacionas e hereditrios como definidores da consti-tuio do ser humano e do processo de conhecimento. Exclui, conseqentemente, as interaes scio-culturais lia formao das estruturas comporta mentais e cognitivas da criana. Nessa viso