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Existe estética na primeira infância?1
Eixo 2 – Tempo, espaço, relações e infâncias: bases epistemológicas
Autoras: Katia Cristina Norões2,
Marcia de Castro3 e Shirley de Oliveira4
Resumo
O presente artigo problematiza a invisibilidade da criança pequena (1 a 4 anos) nos espaços de
difusão cultural, tais como exposições, museus, entre outros, baseada nas concepções
tradicionais de infância. Em contrapartida, ao propor ações dentro e fora das instituições
educativas, que reconheçam o direito, as possibilidades e as competências da criança pequena
torna-se o foco desta análise. Para isso, faremos relatos de práticas realizadas em 2011,
pensados a partir das pedagogias da Infância, que culminaram em ensaios sobre a experiência
com artes vivenciada por crianças de 3 a 4 anos e pensar a estética na e da infância.
Introdução
A cidade de São Paulo oferece um leque de exposições de arte e demais eventos
culturais cujo público esperado costuma não abarcar os primeiros anos de vida. As poucas ou
a ausência de oportunidades para a criança pequena envolver-se, reconhecer-se e participar da
produção artística nos espaços de difusão (museus, centros, teatros, etc) revela a invisibilidade
da criança até os 4 ou 5 anos para os órgãos organizadores e curadorias.
No imaginário coletivo tornou-se comum a não-participação da primeira infância
nesses espaços e/ou a ideia de que a criança deve frequentar atividades com temáticas apenas
infantis e/ou direcionadas a esse grupo social. Mas será que as diversas opções direcionadas
aos adultos são tão ‘desinteressantes’ aos pequenos? Nesse sentido, a reflexão sobre
1 Relato apresentado no Grupo de estudos Formação de Professores e Prática de Supervisão em Contexto, em 20122 Professora do Centro de Educação Infantil Suzana Campos Tauil, mestre em Ciências Sociais na Educação pela FE-UNICAMP.3 Diretora há 22 anos do CEI Suzana Campos Tauil, Psicóloga, Psciopedagoga, autora de diversos artigos e pesquisas nas áreas da Educação, Família e Infância.4 Coordenadora Pedagógica do CEI Suzana Campos, Pedagoga, Psicopedagoga, autora de trabalhos na área de brincadeiras, cantigas e contação de histórias, com contribuições para as Pedagogias da Infância em Instituições de Educação Infantil, distribuídos em 30 anos de trabalho na PMSP.
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experiências que contrariam a tendência de criação de outros espaços sociais para a criança
pequena pode levar-nos a questionar para além da frequência ou não em exposições de arte ou
outros, mas as concepções tradicionais de infância ainda presentes em nossa sociedade e que
nega o direito da criança em participar do conhecimento socialmente produzido e da história
da humanidade, como se crianças e adultos vivessem em mundos diferentes ou até opostos.
Sobre a relevância das relações e da tomada de consciência (ou conscientização) dos
processos sociais, Freire (1983), na obra Pedagogia do Oprimido, refletiu que o homem se faz
na relação com os outros, com o mundo. O autor desvelou a incompletude da práxis do
indivíduo e suas possibilidades de construção enquanto ação coletiva e educativa. Nesse
sentido, ao constituir práxis educativas a fim de romper com mecanismos de manutenção e
reprodução de modos pedagógicos transmissivos (FORMOSINHO, 2007) encontramos a
possibilidade de passar da proteção da infância para a ação política e propiciar meios de
integrar os denominados pequenos nas possibilidades dessa sociedade, que também os
pertence.
Uma entre várias experiências: estética
Em 2011, a equipe gestora do Centro de Educação Infantil (CEI) Suzana Campos
Tauil organizou uma visita à exposição Marcas do Expressionismo, no Museu de Arte
Brasileira (FAAP), como parte do processo de formação continuada para os professores.
Frente à relevância da exposição, a diretora do CEI solicitou aos organizadores uma visita
monitorada para crianças de 3 a 4 anos, uma ação inédita para os organizadores e toda a
equipe. O desafio foi aceito e um grupo de monitores foi capacitado para acompanhar a visita
de vinte e cinco crianças pequenas.
Há de se considerar que possibilitar uma simples visita a exposições de arte não
significa produzir conhecimentos ou possibilitar experiências estéticas para crianças
pequenas. Nesse sentido, partiremos da reflexão sobre a ação dos adultos diante do universo
infantil, ao considerarmos que naquele ‘novo’ espaço, a ação dos monitores em conjunto com
os professores seria fundamental para iniciar o acolhimento daquele grupo e propiciar
experiências significativas junto as crianças. Nesse conjunto de expectativas, a ação de uma
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das monitoras teve essa particularidade, o que abriu precedentes para privilegiar os interesses
e os olhares das crianças manifestados na linguagem corporal, nos sentidos, na fala.
Frente a ação do adulto, passamos a observar os aos interesses do grupo, que
escolheram obras, fizeram comentários e, assim, envolveram-se com aquele espaço. Entre tais
escolhas, a mais comentada foi a obra Sem Título de Marina Caram, identificada, pelas
crianças, como a do Homem ruim ou a do Homem Careca de cabeça para baixo. Frente aos
diálogos estabelecidos na observação, chamou-nos a atenção a do Wagner Matheus, que
disse:
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– O homem ruim matou eles. E apontou para os dois quadrados abaixo da figura em primeiro plano.
– Ele é ruim. Ele matou todo mundo! Repetiu frente a obra.
Naquele momento, as outras crianças concordaram e enfatizaram a postura daquele
homem, que estava de cabeça para baixo. A leitura simbólica e/ou a estética da obra,
observadas pelo grupo, a princípio, surpreenderam-nos. Segundo a monitora, identifica-se
com descrição ou fala da artista sobre a obra. Para Marina Caram (1925 – 2008), sua obra
aborda o discurso expressionista5 ao retratar a miséria, a violência e as mazelas da sociedade
brasileira. Sendo assim, os olhares dessas crianças e da pintora podem nos revelar a
consonância entre os mundos adulto e infantil e ampliar a reflexão para além do fato ou se foi
ou não coincidência a interpretação do Wagner Matheus.
Na segunda parte da visita, houve uma oficina, na qual, as crianças exploraram giz de
cera, giz pastel seco e carvão. O carvão coloriu as mãos e quando o grupo saiu do museu e
avistaram as pilastras e paredes brancas da FAAP, parece que enxergaram um grande papel
branco e deixaram suas marcas diante dos risos das monitoras e das tentativas de contenção
das professoras.
O legado do filósofo John Dewey para a pedagogia da infância, Pinazza (2007)
recuperou que a ação dos professores não deve “se satisfazer com o trabalho no nível de
possibilidades, das interações e dos interesses das crianças, como se fossem traços fixos de
uma determinada idade, mas acreditar e investir no fluxo do processo de desenvolvimento
(1958a IN: OLIVEIRA-FORMOSINHO; KISHIMOTO; PINAZZA, 2007: 75).” Nesse
sentido, frente as diversas possibilidades manifestadas na visita a exposição – posteriormente
foram fonte para organizar o trabalho durante o ano – começamos a observar e propor
vivências para que as crianças explorem suas percepções, os sentidos ou as manifestações
estéticas. Para isso, elencamos a hipótese de que há, mas ainda pouco explorada nas
instituições educativas e nas áreas de conhecimento que se debruçam sob esse tema, uma
estética na e da infância6.
A arte pela arte X escolarização da arte
5 Ver. : LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário crítico da pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Artlivre, 1988.
6 Estética vem do grego aisthesis, que refere-se a faculdade do sentir, compreensão pelos sentidos, percepções totalizantes. Quanto a origem e os conhecimentos sobre os primeiros anos de vida, a estética torna-se intrínseca a primeira infância, pois através dos sentidos a criança busca compreender as relações sociais e o mundo que a envolve. Na abordagem de Reggio Emilia, em As cem linguagens da criança (1999), encontramos a experiência italiana, no entanto, ainda não encontramos experiências no Brasil, baseadas na filosofia, na arte, na antropologia ou em outras que explorem com profundidade essa temática.
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A visita e as reflexões decorrentes permearam a vivencia com a arte e a construção de
um trabalho, cujo objetivo central foi o brincar. Por isso, elencamos elementos tais como
tinta, terra, areia, paus, argila, giz e outros materiais, que se tornaram instrumentos para as
vivências, distribuídas nos diversos espaços do CEI, mas que privilegiassem o processo e não
um produto final. Ressaltamos que, para o professor e durante o processo, a linha entre as
experiências com arte e a escolarização da arte pode ser tênue se o sentido da ação educativa
não for a criança e suas singularidades, mas outros eventos possíveis, como uma mostra, uma
exposição ou até mesmo a hipótese do adulto. Assim, se o processo for a finalidade das
experiências torna-se possível elencar a hipótese sobre a estética, mas não desconsiderar que
outras questões podem surgir ao longo do trabalho, como por exemplo: o que pode nos revelar
a passagem do brincar de pintura para o de roda coloridos (as)?
Kamilly, Sofia e Luiz Diego – 06/2011
Um das pistas recolhidas frente ao desafio de pensar a Estética na Infância é o sentido
do colorir-se durante a exploração artística, que se repete na primeira infância. Haja vista a
exploração do material, que, na maioria das vezes, abrange o corpo como extensão do
material, uma parte a ser colorida, como se a criança pequena experimentasse a auto pintura
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como uma parte do processo, que não se esgotou, que não cansou e repetiu-se nas diversas
vivências, independente da oferta de instrumentos para pintura.
No viés da discussão da vivência com arte pela arte, como próprio do homem, o
registro ou a forma como nos relacionamos e marcas, expressões, desenhos e pinturas se
tornariam secundários a ação da criança. Por esse viés seria privilegiar a estética infantil? Tais
perguntas revelam campos de estudo a serem explorados, para que os espaços educacionais
para crianças pequenas tornem-se cada vez mais infantis e mais compromissados com a
experiência. Nesse sentido, ressaltamos o valor da experiência para Dewey (1959b; 1967 IN:
PINAZZA, 2007:76), que se baseia nos princípios da continuidade e da interação. O da
continuidade entende-se pelo conceito de hábito, de permanência de experiências vividas, que
influenciarão as experiências subsequentes. Quanto a continuidade, a possibilidade de ampliar
as experiências e propiciar futuros desdobramentos, no sentido de “aprofundar experiências
corresponde à produção de crescimento e á reconstrução das experiências, não como coisas
isoladas nos conteúdos dos estudos (idem, ibidem)”.
A complexidade das experiências, segundo a conceituação do autor citado, levou-nos a
pensar que os processos vivenciados individualmente revelam-nos meios de pensar a estética
como uma elaboração e re-elaboração dessas experiências: da cor, da auto-pintura para outro
sentido da ação.
Julia, Wagner Matheus e Geovana 10/2011
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Indagações compartilhadas
A antropóloga Lilian Moritz Schwarcz ao introduzir a obra Chapeuzinho Vermelho e
Outros Contos por Imagem do ilustrador e docente Rui de Oliveira convida-nos a “olhar as
imagem” e/ou “ler os desenhos” dos contos, contrariando nossa sociedade das imagens
seguidas de legendas e textos, que simultaneamente nos chama de “analfabetos de olho”. E
acrescentou: “A nossa cultura faz com que tenhamos dificuldade de enxergar além de seus
filtros e acabamos acomodados nos textos que explicam tudo, em vez de incomodar.
(SCHWARCZ, 2002, p. 10)”. Entre as provocações expressas por Schwarcz está a
estimulação exacerbada e unilateral dos conhecimentos e/ou experiências educacionais para a
formação de leitores vorazes apenas por textos. No entanto, a linguagem escrita é uma das
linguagens do ser humano, por isso, elegemos a instituição de atendimento a primeira infância
como lócus de trabalho e experimentação de outras possibilidades que não hierarquize as
linguagens e, principalmente, priorize os interesses e possibilidades a nós oferecidos pelas
próprias crianças, se ouvidas.
Nos contos ilustrados por Rui de Oliveira ousou abordar versões diferentes das
conhecidas e terminadas com o vulgo Final Feliz. A começar pela apresentação das
sequencias em preto e branco, aliadas as breves e intensas reflexões de Schwarcz (idem,
ibidem) questionam o olhar e o sentimentos obscurecidos por adultos que não desejam “olhar
e ver” a beleza do que incomoda. Essa referência junto a experiência das crianças permitem
refletirmos sobre o costumeiro universo de cores vibrantes, as miniaturas ou bebês de figuras
adultas e a felicidade constante dispostas nas imagens oferecidas à primeira infância. A
exposição às ofereceu o contrário, pois promoveu o contato com gravuras em branco e preto
ou cores escuras, crianças com feições tristes, famintas, símbolos de dor, medo e morte, com
as quais as crianças conviveram com tamanha desenvoltura que leva-nos a questionar se
estaríamos nós oferecendo às crianças pequenas apenas o que nós adultos querem ver? Se
assim, em quais espaços as crianças que frequentam essas instituições de educação tem para
vivenciar o lado humano e/ou elaborar sentimentos que muitos adultos tentam extirpar de suas
ou nossas vidas?
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Repensar a concepção de infância presente, as práxis educativas, ou o que venha ser as
experiências e as com arte, podem revolver as instituições educativas, e, então, poderemos
considerar a arte como uma característica natural das crianças, de homens e mulheres e por
isso um direito de todos. Nesse âmbito, as marcas dos expressionismos fazem parte do
cotidiano de adultos e crianças, por isso, do interesse de todos que compõem a mesma
sociedade. Pensar a infância e as relações adulto – criança, nessa sociedade, encontram-se no
âmbito das tentativas de elaborar sentidos para as atividades humanas ou mesmo os sentidos
da vida. Ao considerar a experiência como estágio inicial do ato de pensar, Dewey (1959b IN:
PIANAZZA, 2007: 77) nos amparou quanto a impossibilidade de finalizar as discussões
propostas ao longo do texto, mas alimentá-las.
Referências bibliograficas:
BAYER, Ramond. História da Estética. Portugal: Editora Estampa, 1979.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
____________. Pedagogia do oprimido. 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George. As Cem linguagens da
Criança. Porto Alegre: ArtMed, 1999.
PINAZZA, Mônica A. John Dewey: inspirações para uma pedagogia da infância IN:
OLIVEIRA-FORMOSINHO, Julia; KISHIMOTO, Tizuko M.; PINAZZA, Mônica A.
Pedagogia(s) da Infância: Dialogando com o Passado Construindo o Futuro. Porto Alegre:
ArtMed, 2007.
OLIVEIRA, Rui. Chapeuzinho Vermelho e outros contos. São Paulo: Companhia das
letrinhas, 2002.
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