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Olho d´água, São José do Rio Preto, 2(2): 1-200, 2010 10 ININTELIGIBILIDADE E HERMENÊUTICA N’AS AFINIDADES ELETIVAS, DE GOETHE Wilma Patricia M. D. Maas Resumo Neste texto, analisamos o romance As afinidades eletivas, de Goethe, sob o prisma das relações entre ininteligibilidade e hermenêutica, conflito explorado pelo autor para firmar uma posição crítica em relação à atividade hermenêutica. Abstract In this paper, we analyze Goethe's Elective Affinities novel under the perspective of relations between intelligibility and hermeneutics, a kind of conflict explored by the author to establish a critical position in relation to the hermeneutic activity. Palavras-chave Escrita; Crítica; Goethe; Hermenêutica; Ininteligibilidade; Linguagem. Keywords Criticism; Goethe; Hermeneutics; Language; Unintelligibility; Writing. Departamento de Letras Modernas – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Araraquara - 14800-901 - Araraquara – SP – Brasil. E-mail: [email protected]

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    ININTELIGIBILIDADE E HERMENUTICA NAS AFINIDADES ELETIVAS, DE GOETHE

    Wilma Patricia M. D. Maas

    Resumo Neste texto, analisamos o romance As afinidades eletivas, de Goethe, sob o prisma das relaes entre ininteligibilidade e hermenutica, conflito explorado pelo autor para firmar uma posio crtica em relao atividade hermenutica.

    Abstract In this paper, we analyze Goethe's Elective Affinities novel under the perspective of relations between intelligibility and hermeneutics, a kind of conflict explored by the author to establish a critical position in relation to the hermeneutic activity.

    Palavras-chave Escrita; Crtica; Goethe; Hermenutica; Ininteligibilidade; Linguagem.

    Keywords Criticism; Goethe; Hermeneutics; Language; Unintelligibility; Writing.

    Departamento de Letras Modernas Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho UNESP/Araraquara - 14800-901 - Araraquara SP Brasil. E-mail: [email protected]

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    H pouco mais de vinte anos, a coletnea denominada A atualidade do Primeiro-Romantismo Alemo (BEHLER; HRISCH, 1987)1 fixou algumas das posies crticas do legado dos romnticos de Jena e Berlim, ao mesmo tempo em que descortinou algumas perspectivas de abordagem at ento impensveis na fortuna crtica da Goethezeit. Dentre os ensaios ali publicados, consta o de Jochen Hrisch (1987), que tem como ttulo Hermenutica primeiro-romntica versus anti-hermenutica primeiro-romntica, acrescido do subttulo O conciliador e o furor da compreenso (Der Mittler und die Wut des Verstehens). Ali, Hrisch trata das relaes entre Schleiermacher, o profeta e patrono (HRISCH, 1987, p. 19) da hermenutica moderna, e uma forma de pensamento comum entre os primeiros romnticos e contemporneos de Schleiermacher, Friedrich Schlegel e Novalis, em que se verifica antes a disjuno entre a letra e o esprito, entre a letra e os sujeitos da linguagem, do que propriamente a validao dos pressupostos que permitem o processo de interpretao filolgica. No caso dos primeiros romnticos, j razoavelmente conhecido entre ns o pensamento aparentemente delirante de Schlegel, em textos como o ensaio sobre a ininteligibilidade, no qual a disjuno entre a letra e o esprito, entre significante e significado, tensionada at o limite do insuportvel, em que resta ao leitor e ou interlocutor mover-se por sobre o solo inseguro da ironia e da ininteligibilidade. Schlegel deixa claro que as palavras entendem-se melhor umas as outras do que as entendem os que fazem uso delas (SCHLEGEL, 1967, p. 364 traduo nossa).

    Tambm Novalis no louva exatamente os mtodos filolgicos de compreenso do discurso dos outros, quando, no Monolog, afirma que acontece uma coisa doida com o falar e o escrever: a reta conversa um mero jogo de palavras (NOVALIS apud GAGNEBIN, s/d, p. 75) e que com a lngua acontece o mesmo que com as frmulas matemticas - elas constituem um mundo para si, se entretm apenas consigo mesmas, expressam nada mais que a sua maravilhosa natureza e, exatamente por isso, elas so to expressivas, exatamente por isso se reflete nelas o jogo enigmtico das relaes que os objetos entretm (NOVALIS apud GAGNEBIN, s/d, p. 75).

    Entretanto, o subttulo do texto do Hrisch, em um gesto hermenutico sagaz, no aponta diretamente para os primeiros romnticos a quem o ttulo alude, mas, sim, para nada menos do que o romance de Goethe As afinidades eletivas, no qual Mittler o nome dado a um personagem cuja funo na narrativa , como o prprio nome indica, a de mediador ou conciliador.

    Em sua primeira apario em cena, Mittler apresentado, na traduo citada, como esse homem engraado (der drollige), aquele homem estranho (der wunderliche Mann), o hspede bizarro (der nrrischer Gast) adjetivos muito pouco adequados a um homem cuja funo deveria ser a de apaziguar conflitos domsticos. Mittler vive

    com o firme propsito - ou talvez mais por velhos hbitos e inclinaes de no se demorar em nenhuma casa onde no houvesse nada para apaziguar ou dar assistncia. Aqueles que so supersticiosos a respeito do significado dos nomes, afirmam que o nome Mittler forou-o a seguir a mais estranha de todas as determinaes. (GOETHE, 1992, p. 34).

    Em sua primeira apario, Mittler anunciado com alarde e bom humor

    pela criadagem da casa a Eduard e Charlotte, recolhidos na paz da recm-reformada igreja, junto ao cemitrio. Fazendo-se anunciar com alarde, manda 1 Cf. Behler, Ernst & Hrisch, Jochen. Die Aktualitt der Frhromantik. Mnchen: Paderborn, 1987.

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    perguntar aos donos da casa se h necessidade. Instado por Charlotte e Eduard a atuar na deciso sobre a vinda do Capito, incidente que deflagrar a tragdia, o mediador reage, entretanto, da maneira mais inesperada:

    Os dois esposos lhe confessam tudo pormenorizadamente; mas, mal percebera o sentido da coisa, ele ficou aborrecido, levantou de sobressalto alcanou a janela e mandou selar seu cavalo. [...] Est havendo algum desentendimento aqui? Algum est precisando de ajuda? [...] Cada um que se aconselhe a si prprio e faa o que for necessrio.Se der certo,que se alegre com sua sabedoria e com sua sorte; caso contrrio, estarei aqui sempre disposio. [...] Faam que quiserem, tanto faz! Recebam os amigos em casa, ou os mantenham longe: tanto faz! J vi as atitudes mais sensatas malograrem e as mais banais triunfarem. No quebrem a cabea e, se de um modo ou de outro, no tiverem xito, no quebrem a cabea! Mandem me chamar, e eu ajudarei (GOETHE, 1992, p. 3435).

    Essa primeira interveno de Mittler deixa muito a desejar em relao

    funo que a personagem requer para si, e ao nome que a caracteriza. Frente primeira e fundamental deciso que desencadear toda a catstrofe, Mittler recua, deixando Charlotte e Eduard ainda mais confusos e incertos do que antes (GOETHE, 1992, p. 35), segundo afirma Charlotte imediatamente depois da partida do outrora eclesistico (GOETHE, 1992, p. 33).

    Em sua segunda apario, Mittler encontra Eduard j recolhido a si mesmo e irremediavelmente entregue paixo por Ottilie. Este o recebe, esperanoso, na expectativa de que o conciliador tenha vindo da parte dela: Como desejava saber algo de Ottilie, a vinda de Mittler era-lhe to cara como a de um mensageiro celestial (GOETHE, 1992, p. 129). Mensageiro celestial, Hermes ou Mercrio, Mittler no vem, entretanto, da parte de Ottilie. Vem por impulso prprio: [Eduard] Ficou, porm, aborrecido e mal-humorado ao perceber que Mittler no viera a pedido dela (GOETHE, 1992, p. 129 colchetes nossos). O mensageiro no transmite as novas, no permite o processo de comunicao e interpretao do discurso do outro. Vem por vontade prpria, embaralhando o processo de comunicao, trazendo experincia um elemento estranho, capaz de alterar o comportamento original dos actantes. Seguindo, aqui, uma indicao de Heinz Schlaffer, a presena de Mittler , literalmente, mortal:

    Ele desencadeia a morte do pastor quando do batizado da criana; dispara o mecanismo que leva morte de Ottilie por meio de seu discurso inconveniente sobre o sexto mandamento, e ele, por fim, o primeiro a deparar-se com Eduard morto (SCHLAFFER, 1981, p. 219 - traduo nossa).

    Voltemos agora proposio inicial de Hrisch, segundo qual no resta

    duvida de que o romance de Goethe publicado em 1809 tambm um manifesto anti-hermenutico (HRISCH, 1987, p. 23). Hrisch apoia-se principalmente em dois argumentos: o primeiro trata de identificar, na obra caudalosa de Goethe, passagens em que este professaria, ainda que indiretamente, uma posio avessa ao negcio da interpretao e da compreenso: duas breves passagens das Zahmen Xenien II apontam para tal direo:

    Na interpretao preciso frescor e audcia; Se no interpretas, deixa de tretas2. (GOETHE, WA, 3, 1890, p. 258).

    2 No original: Im Auslegen seid frisch und munter, / legt ihrs nicht aus, so legt es unter.

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    Ainda:

    Do que no se compreende muita coisa h, Segue ento adiante, logo se arranjar3.(GOETHE, WA, 3, 1890, p. 249).

    Talvez a expresso mais conhecida seja aquela em que Goethe incita ao

    linchamento daqueles que ganham a vida com a publicao de interpretaes e modos de entender uma obra, os crticos: Matem o co a pancadas, trata-se de um crtico!4" (GOETHE, s/d, p. 62 traduo nossa).

    O segundo argumento de Hrisch apoia-se no fato comprovado de que Goethe no teria permanecido alheio obra de Schleiermacher, melhor dizendo, do primeiro Schleiermacher. Em duas entradas em seu dirio, respectivamente em 23 e 26 de setembro de 1799, Goethe acusa a leitura dos Discursos sobre religio5, de Schleiermacher, publicados no mesmo ano. Nesse texto do primeiro Schleiermacher, possvel identificar as linhas de pensamento que culminaro no deslocamento da hermenutica da letra para uma hermenutica do esprito. De maneira surpreendente para o assim chamado fundador da hermenutica moderna, Schleiermacher expressa, ali, a dissociao entre o processo de compreenso da letra e a constituio do sentido filosfico ou religioso:

    com pesar que vejo diariamente o furor da compreenso impedir completamente o surgimento do sentido e como tudo conjura para que o homem permanea atado ao que finito e apenas a uma parte muito pequena dele, de modo que o infinito lhe seja levado o mais longe possvel dos olhos. Quem que impede o florescimento da religio? No os descrentes e os blasfemos, pois, ainda que se comprazam em afirmar que no possuem religio alguma, no impedem o caminho da natureza [...]. Tambm no aqueles destitudos de moral [...]; quem impede o florescimento da religio so os entendidos (die Verstndigen). (SCHLEIERMACHER, 1799, p. 80 traduo e grifos nossos).

    Schleiermacher vai ainda mais longe na sua crtica queles possudos pelo

    furor da compreenso: O principal que eles (os entendidos) suponham-se capazes de entender tudo, e com esse entender eles se deixam enganar completamente em relao ao sentido. (SCHLEIERMACHER apud HRISCH, 1987, p. 25).

    preciso ressaltar, aqui, que as objees de Schleiermacher nos Discursos sobre a religio esto voltadas especificamente questo da mediao da palavra divina, uma vez que a prpria necessidade de existncia de um Vermittler (mediador) torna evidente a aporia que permeia o processo da interpretao religiosa: Caso essa intermediao entre o reino de Deus e o mundo dos homens cessasse, ento compreenderamos mesmo a mais inaudvel das palavras, ao passo que agora, mesmo as mais claras manifestaes no escapam ao mal-entendido (SCHLEIERMACHER, apud HRISCH, 1987, p. 25). Assim, da mesma forma que o conceito de compreenso, um outro conceito central da hermenutica sofre um ataque radical nesse texto da juventude de Schleiermacher: assim como o Mittler do romance de Goethe, tambm o Vermittler que tem por funo intermediar as relaes entre o reino de Deus e o mundo dos homens um mal necessrio. A partir do reconhecimento dessa aporia, Schleiermacher teria chegado quele que ser o conceito fundamental de

    3 No original: Manches knnen wir nicht verstehen / Lebt nur fort, es wird schon gehn. 4 No original: Schlag ihn tot, den Hund! Er ist ein Rezensent. 5 H traduo disponvel em portugus: SCHLEIERMARCHER, F. Sobre a religio. So Paulo: Fonte Editorial, 2000.

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    sua hermenutica futura: o conceito de esprito, elevado a princpio do processo de interpretao, que d vida ao que est morto na letra. J o primeiro Schleiermacher interpunha o conceito de esprito letra morta, manifestando-se contra as escolas, nascedouros da letra morta e contra os partidrios da letra morta.

    As entradas de setembro de 1799 nos Tage-und Jahreshefte permitem, portanto, que se estabelea a hiptese de que Goethe teria conhecido os discursos sobre religio de 1799, nos quais Schleiermacher faz a crtica do furor da compreenso e da necessidade de um intermedirio (Mittler, Vermittler) no processo de compreenso da palavra divina. Entretanto, ao passo que Schleiermacher seguir na direo da integrao e redeno da letra morta pela hermenutica do esprito, que compensa e equilibra os mal-entendidos resultantes da diferena entre a letra e o sentido, reduzindo as letras dspares no sentido de um livro, os muito sentidos de muitos livros ao esprito de um autor e o muitos espritos de muito s autores a um determinado Zeitgeist (SHCLEIERMARCHER apud HRISCH, 1987, p. 32), o romance de Goethe de 1809 emerge como o lugar ideal do divrcio entre a letra e os sujeitos da linguagem.

    Ainda que a crtica do primeiro romantismo no se tenha ocupado diretamente de As afinidades eletivas, e, sim, de outro romance de Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, no totalmente descabida a hiptese de que Goethe tenha escrito definitivamente o Kunstroman que os primeiros romnticos desejaram como programa esttico. Tambm o romance de Goethe, assim como muitos dos textos publicados na revista Athenum, foi objeto de censura quanto sua lassido moral e, mesmo, quanto sua ininteligibilidade. Assim como a produo dos primeiros romnticos, tambm o romance de Goethe parece oferecer-se a uma abordagem que o identifique como lugar da disjuno entre a letra e o sentido, entre a letra e a inteno daqueles a ela sujeitados.

    Essa disjuno pode ser reconhecida tanto no sucesso das interpretaes de carter alegrico como aquela sugerida pelo ensaio de Walter Benjamin (1924-1925)6 que, contrapondo-se e s interpretaes escoradas em um sentido moral, pleiteia para a narrativa uma dimenso, um intertexto ou um subtexto mtico , quanto na ineficcia dos atos de linguagem que permeiam todo o romance.

    So muitas as instncias em que a linguagem da comunicao, seja ela oral ou escrita, divorcia-se da inteno individual, consciente ou inconscientemente. J nos dois primeiros captulos de As afinidades eletivas, Charlotte e Eduard, casal que vive em tranquila intimidade no isolamento domstico, surpreendem o leitor, que percebe o quanto o dilogo entre eles permeado por subterfgios e segundas intenes. A iminente chegada de Ottilie e do Capito que parece, ento, precipitar, entre as outras reaes desencadeadas, tambm a afluncia do sentido at ento represado. Eduard quem primeiro revela a Charlotte sua inteno de chamar o amigo para o convvio de ambos, instado pela premncia de responder a uma carta daquele:

    J que estamos aqui sozinhos, sossegados - disse Eduard com o esprito bem tranquilo e sereno -, tenho de confessar-lhe algo que, j h algum tempo, me pesa no corao e que devo e quero confiar-lhe, mas ainda no tive a oportunidade. J havia notado alguma coisa em voc replicou Charlotte.

    6 H traduo disponvel em portugus: BENJAMIN, W. As afinidades eletivas de Goethe. In: ______. Ensaios reunidos, So Paulo: Editora 34, 2009.

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    E quero confessar ainda que continuou Eduard se o carteiro amanh no me apressasse e no tivssemos de decidir hoje, eu talvez continuasse calado por mais algum tempo. (GOETHE, 1992, p. 32).

    Ao fim da entrevista entre ambos, a deciso ainda no foi tomada. Eduard

    pergunta o que deve escrever ao Capito, pois deve faz-lo imediatamente. Charlotte responde: uma carta tranquila, sensata e consoladora (GOETHE, 1992, p. 27). Para Eduard, isso vale tanto quanto escrever nenhuma carta. Ao que Charlotte replica: Contudo, em muitos casos, prefervel e mais cordial escrever, mas sem dizer nada, do que no escrever (GOETHE, 1999, p. 27).

    J logo o narrador atribuir a Charlotte mais uma dissimulao. Eduard, instado por Charlotte, reconhecer que a ainda ausente Ottilie bela, mas que no lhe atraiu especialmente a ateno, quando a viu, por ocasio do reencontro com Charlotte, ento na companhia da afilhada e protegida.

    Isso louvvel de sua parte disse Charlotte, pois eu estava presente;e, embora ela fosse bem mais jovem do que eu, a presena da amiga mais velha o encantou tanto, que voc no teve olhos para a beleza prspera e promissora da jovem. Isso faz parte tambm de sua maneira de ser, razo pela qual gosto de compartilhar a vida com voc. (GOETHE, 1999, p. 32).

    O narrador interrompe, entretanto, o dilogo entre os esposos, delatando a

    inteno inicial de Charlotte, que no havia sido outra seno apresentar intencionalmente Ottilie a Eduard, a fim de arranjar um bom partido para a querida filha adotiva, uma vez que no pensava mais nele para si (GOETHE, 1992, p. 32).

    Escrever sem nada dizer, provocar o mal-entendido, falar sem declarar a verdadeira inteno, silenciar. Esse um romance em que a linguagem como meio alcana um alto grau de ineficcia. Diferentemente do que acontece no Werther ou na Nova Helosa, romances epistolares nos quais a troca de cartas constitui o fio vermelho da narrativa, as cartas aqui so, em geral, testemunhas da ineficcia da comunicao, e, em particular, documentos que comprovam o divrcio entre a letra e o esprito, entre linguagem e inteno.

    As cartas enviadas pelos preceptores de Ottilie no internato so, tambm, testemunhos de quo pouco a linguagem capaz de comunicar. A descrio detalhada das habilidades e deficincias de Ottilie na vida escolar pelo assistente da diretora um raro documento de como se pode dizer pouco escrevendo muito. provvel que o julgamento mais conclusivo seja expresso pelas palavras da diretora, a qual, em um momento de impacincia, pergunta jovem, sempre no relato do assistente: Mas diga-me, pelo amor de Deus, como pode algum parecer to tolo quando no ? (GOETHE, 1992, p. 57). Ottilie nega-se a fornecer a chave interpretativa para a sua personalidade. O gesto mais decisivo nesse sentido o silncio no qual se recolhe aps a morte do filho de Charlotte, silncio do qual no mais retornar at sua prpria morte. Em meio ao caos e comunicao falhada, Ottilie renuncia tambm linguagem, como forma de penitncia, esquecimento e perdo para de si mesma.

    Ainda assim, a escrita, mais do que a fala, ltimo recurso buscado pelas personagens para a manuteno da presena e da subjetividade. por meio de um ato de escrita que Eduard se assegura de que amado por Ottilie:

    Finalmente apareceu Ottilie, resplandecente de amabilidade. A sensao de ter feito alguma coisa par ao seu amigo enlevou todo o seu ser. Colocou sobre a mesa, diante de Eduard, o original e a cpia [...]

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    Eduardo no sabia ao que responder. Olhou para ela e depois para a cpia. As primeiras folhas estavam escritas com o maio zelo, por uma delicada mo feminina; depois os traos iam se modificando, tornando-se mais leves e soltos. Mas que surpresa a sua ao passar os olhos pelas ltimas pginas! Por Deus! Exclamou que isso? a minha letra! olhou para ela e novamente para as folhas; sobretudo o final era como se ele mesmo tivesse escrito. [...] Voc me ama! exclamou Ottilie, voc me ama! e se abraaram (GOETHE, 1992, p. 101).

    Entretanto, o ato de linguagem que provoca o reconhecimento entre os

    amantes um ato puramente mimtico, narcsico mesmo, ato em que o significado literal, o significado da letra, importa muito pouco ou nada, eclipsado pelo encantamento do significante.

    Mesmo o dirio de Ottilie, seis entradas ao todo que interrompem a estrutura linear da narrativa, no tem, aparentemente, relao direta com a vida interior da personagem. Ainda que, na primeira entrada do dirio, Ottilie afirme como deve ser agradvel poder descansar um dia ao lado de quem se ama, antecipando assim seu lugar junto a Eduard depois da morte de ambos, o discurso alheio sua prpria situao pessoal naquele momento, adquirindo o tom de afirmaes gerais, que se mantm tambm nas entradas subsequentes. Na terceira entrada, o dirio de Ottilie trata, dentre outras coisas, do fenmeno da comunicao entre as pessoas de uma sociedade. Ali se encontram mximas como:

    Comunicar-se um ato natural; captar a comunicao, tal como ocorre, educao. Ningum falaria demais em sociedade se estivesse consciente de quantas vezes entendeu mal os outros. Alteramos tantas vezes as palavras estrangeiras ao repeti-las apenas porque no as entendemos. Toda palavra dita suscita seu sentido oposto. (GOETHE, 1992, p. 162).

    A entrada que antecede a morte do filho de Charlotte, to alheia e

    inofensiva quanto as outras cinco. No pice da paixo amorosa, Ottilie dedica-se, no dirio, a escrever sobre o prprio ato memorialstico e a recomendar que se copiem as cartas dos amigos, antes de as destruirmos. Ottilie refere-se ainda s estaes do ano, acrescentando que o ano s vezes nos parece to curto e outras to longo,e que no h lugar em que isso seja mais evidente do que no jardim, onde o efmero e o duradouro se interpenetram (GOETHE, 1992, p. 202), como se sabe, uma preocupao frequente do autor Goethe.Mais prxima da vida interior das personagens certamente a novela, narrada pelo hspede ingls, tambm localizada no intervalo que antecede imediatamente o encontro amoroso entre Ottilie e Eduard e a morte da criana por afogamento. A novela, intitulada Os vizinhos singulares, narra a histria de uma casal de crianas que crescem juntas e esto destinadas a casar. Seus caminhos separam-se, entretanto. Quando do reencontro dos jovens, a moa, j comprometida com outro, descobre a paixo pelo antigo amigo de folguedos e sofre com a sua indiferena. De temperamento impetuoso, durante um passeio de barco atira-se gua, buscando a morte intencionalmente para castigar o amigo indiferente. Este, ento, joga-se gua para salv-la, o que consegue. Ambos, recolhidos por um casal de camponeses, voltam presena da famlia, que, aliviada por

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    encontr-los vivos, abenoa a unio ainda que a jovem estivesse prometida a outro, ao noivo apaixonado que quase perdera os sentidos (GOETHE, 1992, p. 217).

    A breve narrativa tem, aqui, a funo de conter e adiar o momento do clmax, ao mesmo tempo em que j alude aos motivos da morte por afogamento e da paixo que desafia as convenes sociais. por meio dessa breve histria que o narrador far uma observao antecipatria a respeito da gua como elemento: A gua um elemento amigvel para aquele que a conhece e sabe como trat-la. Ela o susteve, e o hbil nadador a dominou (GOETHE, 1992, p. 216). Diferentemente de Ottilie, o protagonista da narrativa dentro da narrativa pula na gua para salvar um bem precioso, mas tem as mos livres; Ottilie, ao contrrio, na tragdia que se avizinha, com a criana no brao esquerdo, o livro na mo esquerda, o remo na direita, cambaleia e cai dentro do barco. O remo escapa de sua mo e cai para um lado e, ao tentar apanh-lo, a criana e o livro caem para o outro lado, dentro do lago. [...] Isolada de todos, flutua sobre o elemento traioeiro e inacessvel (GOETHE, 1992, p. 233).

    H quem aponte, aqui, a mesma severidade com que Goethe tratou das leituras romanescas de outra jovem, a Lotte de Werther, para quem hoje no interessam mais as venturas e desventuras de uma tal senhorita Jenny (GOETHE, WA, 19, 1899, p. 29), mas, sim, apenas as leituras que a fazem amar ainda mais os afazeres e obrigaes do seu cotidiano. De todo modo, dentre as muitas referncias aos atos de leitura e escrita no romance de Goethe, essa mais uma que tem as mais lastimveis consequncias.

    O ltimo documento que provm das mos de Ottilie a carta que ela escreve aos amigos, pouco depois de ter sido, ainda mais uma vez, assediada por Eduard na hospedaria a caminho do internato. A carta um documento singular na ao do romance, pois se trata do nico momento em que se d a conjuno ente a vida interior de Ottilie e sua expresso pela linguagem. Ottilie justifica seu voto de silncio como forma de expiao, e pede aos amigos que a deixem

    perseverar nele at quando o corao me ordenar.No chamem nenhum intermedirio! No me forcem a falar, a comer e a beber mais do que o estritamente necessrio. Ajudem-me com tolerncia e pacincia a passar por este momento.Sou jovem, e a juventude prontamente se recompe. Suportem a minha presena; alegrem-me como seu amor; orientem-me com suas palavras, mas deixem o meu ntimo por minha prpria conta. (GOETHE, 1992, p. 252).

    O pedido de Ottilie aos amigos No chamem nenhum intermedirio!

    (GOETHE, 1992, p. 252) remete imediatamente personagem de Mittler, que, mais do que um intermedirio, pode ser compreendida, aqui, tambm como uma espcie de catalisador, um meio de acelerao da reao qumica que resultar, por fim, no aniquilamento dos amantes e na canonizao de Ottilie. As cenas que se seguem carta de Ottilie, ao final do penltimo captulo do livro, preparam o leitor para um intervalo ameno, que parece querer prolongar-se. Trata-se de uma singular estabilidade, na qual Ottilie e Eduard moravam sob o mesmo teto; mas, sem pensar diretamente um no outro, ocupados com outros assuntos e convivendo a todo instante com outras pessoas, acabavam se aproximando. [...] S quando estavam bem prximos que conseguiam se acalmar, e bastava essa proximidade para se acalmarem completamente; no precisavam de nenhum olhar,nenhuma palavra,gesto ou contato; bastava simplesmente estarem juntos.

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    A vida para eles era um enigma, cuja soluo s poderiam encontrar juntos (GOETHE, 1992, p. 253).

    Ottilie, tranquila e serena, de modo que j no precisavam mais se preocupar com ela, diz o narrador. A tranquilidade, semelhante dos primeiros tempos, interrompida apenas pelas visitas de Mittler, que aparecia com frequncia (GOETHE, 1992, p. 254). Estamos no fim do captulo 17, o penltimo do romance. J na pgina seguinte, comeo do ltimo captulo, tem incio a sucesso de acontecimentos que culminar com a morte de Ottilie, seguida da morte de Eduard e a posterior canonizao da jovem. A presena frequente de Mittler, ainda que no a provoque, certamente acelera a cadeia de acontecimentos com seu discurso sobre a inadequao do sexto mandamento. Ottilie entra repentinamente na sala, ainda a tempo de ouvir o conciliador:

    No cometers adultrio, prosseguiu Mittler. Que coisa grosseira, indecorosa! No soaria melhor se dissessem: Respeitars os laos conjugais e, onde vires esposos que se amam, alegra-te e compartilha disso, como da felicidade de um dia sereno.Se algo turvar o seu relacionamento, devers tentar esclarec-los,acalm-los, apazigu-los faz-los entender suas vantagens recprocas, e com muita abnegao fomentars o bem estar dos outros, tornando-os sensveis felicidade que brota de todo dever cumprido, sobretudo daquele que liga indissoluvelmente o homem mulher? (GOETHE, 1992, p. 258).

    essa a frmula verbal que desencadear a morte de Ottilie, que se d

    poucos minutos depois. O narrador narra no presente do indicativo, o que intensifica, para o leitor, a possibilidade de acompanhar o experimento em tempo real. Os acontecimentos que se seguem at a morte de Eduard e sua descida ao tmulo comum so narrados com economia, para no dizer com pressa. No ser inadequado entender as trs ou quatro ltimas pginas do ltimo captulo como a finalizao e o trmino da reao qumica, cujo produto a consumao ou consumio de dois dos elementos iniciais. A hiptese inicial de Jochen Hrisch, segundo a qual o romance de Goethe pode ser lido como um manifesto anti-hermenutico, associa-se, deste modo, quela ideia fundamental (durchgreifende Idee) que Goethe aponta como sendo a diretriz capaz de dar unidade a seu romance. Sob a gide da incomunicabilidade ou da ininteligibilidade, esse romance estranho e notvel parece corresponder, de fato, ao comentrio do prprio autor, que afirma ter colocado ali muita coisa, mas, tambm, escondido outras tantas. MAAS, W. P. D. M. Unintelligibility and Hermeneutics in Goethe's Elective Affinities. Olho dgua, So Jos do Rio Preto, v. 2, n. 2, p. 10-19, 2010. Referncias BENJAMIN, W. As afinidades eletivas de Goethe. In: ______. Ensaios reunidos, So Paulo: Editora 34, 2009. GOETHE, J.W. von. As afinidades eletivas. Trad. Erlon Jos Paschoal. So Paulo: Nova Alexandria, 1992. ______. Kenner und Knstler, Hamburger Ausgabe, Bd. 1. p. 62.

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  • Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 2(2): 1-200, 2010 19

    ______. Goethes Werke. Herausgegebenen im Auftrage der Groherzogin Sophie von Sachsen (WA). Weimar: Hermann Bhlau, 1887-1919, 143 v., Bhlaus Verlag, s/d. HRISCH, J. Der Mittler und die Wut des Verstehens. Schleiermachers frhromantische Anti-Hermeneutik. In: BEHLER, E.; HRISCH J. (Hrsg.). Die Aktualitt der Frhromantik. Mnchen: Paderborn, 1987. p. 1932. NOVALIS. Monlogo. Trad. Jeanne Marie Gagnebin. In: GAGNEBIN, J. M. Sobre um monlogo de Novalis. Cadernos PUC, So Paulo: PUC-SP, v. 13, p. 75, s/d. SCHLAFFER, H. Namen und Buchstaben in Goethes Wahlverwandt-schaften. In: BOLZ, N. W. (Hrsg.). Goethes Wahlverwandtschaften: Kritische Modelle und Diskursanalysen zum Mythos Literatur. Hildesheim: Gersten-berg, 1981, S. 211229. SCHLEIERMACHER, F. D. E. ber die Religion. Reden an die Gebildeten unter ihren Verchtern (1799), Philosophische Bibliothek Bd. 255 Meiner Hamburg (Nachdruck), 1970.