View
218
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Narrativa sobre uma índia puri no século XIX.
Citation preview
Canção da sapucaia
Zeferina era a esposa do rico fazendeiro, mas não mandava nada. Índia puri comprada
para o casamento, mal completara os 13 anos. Foi barganha de cachaça, e uns quilos de
carne-seca. Isso, lá pelo tempo da zagaia de gancho, mas na época dessa história,
Zeferina já contava com duas filhas, pequeninas, que ela nem podia cuidar. Ordem do
fazendeiro, seu marido. Contratou a esposa do capataz para ensinar as filhas a serem
gente. Zeferina era diferente de gente, com as ideias frouxas de quem vive no mato, sem
saber direito das espertezas do mundo, assim uma criança que ainda gostava de subir em
galhos, de correr atrás de tatu, se rindo de entreter juriti. Quase só empregada em
labores. Ajudar na pilagem do arroz, varrer o terreirão, coisas do braçal. Amamentava
as filhas. Cantava, baixinho, músicas de seus ancestrais para embalar o sono das
meninas, versos soprados, para que ninguém ouvisse. Fora proibida de trazer palavras
da selva para dentro de casa. Depois, entregava as filhas para a tutora, e mais nada. Para
que não se tornassem bugres.
Conversava com bichos. Lagartixas gordas nos baldrames. Os juncos secavam e
renasciam no açude. Acordava cedo, depois de uma noite em que o dono da fazenda se
fartara de seu corpo. Abria a porta da cozinha, no rumo de onde o dia branquejava
iniciante (que é depois da ponte, por detrás de uma floresta renitente). Molhava o rosto
na bica, água com lodo, fria. Adiante, o moinho remoendo o nada. Uma ausência e uma
mudez. E aquele barulho do cadelo sobre a mó, no ritmo das horas esquecidas: ensejos
escoados.
O moinho. A parte de baixo se chama inferno. Todo moinho tem o seu inferno. E era
isso mesmo que Zeferina pressentia quando subia a rampa de entrada. Sob a casinha
quase em ruínas existia um tártaro, o báratro profundo, o abismo. Quem ali se jogasse,
ou caísse, seria esmagado pelas pás da grande roda.
Ao lado, bem ao lado das voragens, erguia uma súbita flor, amarela, na eterna sombra,
solitária e débil. O averno: sua única referência. O silêncio, a flor e a mó, remoendo, era
algo seu, sua vida. O que vivera ia se triturando e o presente se assemelhava ao vórtice
da queda. Contudo, a flor, ela não sabia direito o que era, mas a aprumava frente ao
mundo.
Mais abaixo, a pocilga, onde uma porca parira uns leitõezinhos. Não podendo cuidar das
filhas, abraçá-las quando quisesse, Zeferina encontrava alívio e achego com os porcos.
Dentre eles, um malhado, que tomou para si como filho. Cuidava dele, dava-lhe banho,
repetia para ele as palavras do mato, aquelas de que ainda se lembrava. E, repetindo,
sabia quem ela era, o nome das coisas, como se amava entre os seus parentes, como se
caçava, com o que se alegrava e como o mundo surgira do alto de uma copa de árvores.
Ela dizia: - “Chambé (filho), não se assuste, vamos aprender as palavras do mato. Eles
não querem ouvir as palavras dos parentes, dizem que são de gente bêbada e vagabunda;
mentira, escute, são nomes nascentes dos galhos, dos ventos nas águas, quando nossa
gente desceu de onde o céu termina e começa. Tenho tantas palavras como o tanto de
cabelo de minha cabeça, o tanto de borboletas, outro tanto de estrelas. Vou te ensinar
algumas, não esqueça, chambé, são vozes dos avós. Isto é a uhtl´na (taquara),isto é o
náma (rio). Aqui, o cuaté (pedra pequena). Veja o chipu (passarinho)”.
O leitão aninhado ao colo, sonolento. Depois, a índia voltava à grande casa, e preparava
um café, como lhe ensinaram fazer. E assim, sucediam os dias. O porco engordara, o
mais viçoso da pocilga.
O português decidira sobre o aniversário de sua filha, data que já se aproximava. Um
banquete com os novos leitões, à pururuca. A índia soubera, e se afligira, calado
sofrimento. Esperou que o português, tropeiro, organizasse uma descida da tropa para
buscar sal e vender produtos da fazenda. Dias de afastamento. Não deixaria matar seu
porquinho para alimentar o bucho de ninguém. Intolerável sofrimento. Tão pouco amor
recebia, e ainda queriam roubar-lhe as migalhas amealhadas...
Com raiva, um moinho dentro de si, os infernos, as ideias quentes: “- Minhas garras não
estão apenas em minhas unhas. De vez podem estar na minha fala, de outra parte podem
estar no meu olhar, e até nas minhas remelas. A gente arranha é com o que sente”. E
decidiu fazer sua trincheira, ela, nunca insurgente contra nada, submissa, obediente aos
mandos de todos... Mas há um limite para as chicotadas, mesmo um cavalo acuado se
rebela e dá coices. Desde que se conhecia, sua vida cheia de nãos. Não. Não. Agora
outra vez não. Bastava. Descendente de ancestrais guerreiros. Havia de fazer alguma
coisa.
Acordou cedo, quando tudo envidraçava silêncio, e as horas nem maduravam ao sol.
Sombras com certo sabor de invectivas. Pegou corda de embira, faca, cuité e sementes
de urucum. Dirigiu-se para a pocilga. Enlaçou a embira no pescoço do animal e o
arrastou consigo, rumo das matas. Lembrou-se do pai, um benzedor na sua antiga terra,
onde nascera. Conhecia as ervas que precisava, colhidas por onde pisava, conhecia os
rituais. Varar os ermos, aqueles caminhos custosos. O grito do carrapateiro e as
bromélias do lajedo a acalmavam: ajustavam o pensamento. Palmeiras ao vento, cheiro
de musgos, samambaiaçus: o oco da floresta. Despiu-se para adentrar outras realidades.
Tingiu-se de vermelho, tingiu o animal. Fez-lhe uma guirlanda com folhas de poaia e
flores de sapucaia. -“An Jo ha, ha, ha”. Viemos colher flores, cantou. Do coité,
maceradas ervas, tomou a beberagem. E rodeou o porco, invocando palavras
imemoriais. Libertou sua alma, que voasse livre. Da Terra, através do precipício, à taba
de Tupán. Acima da mata, longe, altos montes. Abandonasse a matéria. Fluísse
misturado com a aurora, chegante rósea como a flor “ha” da sapucaia, antes da queda.
Fosse embora do mundo, consagrada.
Quando retornou à margem da brenha o que viu: um sol. Os trabalhadores se dirigindo
para o cafezal. Um deles, que a conhecia, vestiu-lhe um capote. –“Venha, Sinhá Índia,
vamos para casa”.