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memorialJohn Cowart Dawsey
2 MEMORIAL 3
2 MEMORIAL 3
memorialJohn Cowart Dawsey
Textos apresentados como exigncia para o concurso de Professor Titular,na rea de Antropologia Social. FFLCH - USP
Departamento de Antropologia Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias HumanasUniversidade de So Paulo
So Paulo, 2006
4 MEMORIAL 5
ndice
4 MEMORIAL 5
O vazio
Uma janela
Uma janela para o mundo: Ginsio Estadual Vocacional Joo XXIII
Brasileiro para americano ver: Florida Southern College
Viagem pela Europa
Piracicaba, sertes e bias-frias
Emory University: teologia
Buraco dos capetas
Emory University: The Graduate Institute of the Liberal Arts
Retorno ao buraco dos capetas
Da pedagogia do oprimido cultura proletria: tese de doutorado
Universidade Metodista de Piracicaba
Novo aprendizado: incios na USP
Espelho americano
Magia, mmese e riso
De que riem os bias-frias?: tese de livre-docncia
Desdobramentos
Macunama e o selvagem cerebral
Americans
Antropologia da performance: desafios de Benjamin e Brecht
Escritos de 2006
Envolvimento institucional: rgos colegiados e comisses da USP
Napedra e paradigmas do teatro na antropologia
Projeto temtico e produtividade em pesquisa
Orient
Bancas e comisses julgadoras
Atividades didticas
De volta ao vazio: o segredo do bricoleur
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memorial
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I. DADOS PESSOAIS
II. FORMAO ACADMICA/TITULAO
III. ATUAO PROFISSIONAL
A. Universidade de So Paulo
B. Universidade Metodista de Piracicaba
IV. PARTICIPAO EM RGOS COLEGIADOS E COMISSES DA USP
V. PUBLICAES E PRODUO BIBLIOGRFICA
A. Artigos Enviados para Revistas (Aguardando Avaliao)
B. Artigos Aceitos para Publicao (No Prelo)
C. Artigos Publicados
D. Livros
E. Captulos de Livros
F. Comunicaes e Resumos Publicados
G. Tradues e Revises de Tradues
H. Outras Produes Bibliogrficas
VI. PESQUISA
VII. LINHAS DE PESQUISA
VIII. CONGRESSOS, CONFERNCIAS, CURSOS E DEBATES
A. Internacionais
B. Nacionais
IX. PRODUO TCNICA
X. CONSELHOS EDITORIAIS
XI. IDIOMAS
XII. ATIVIDADES DIDTICAS
A. Disciplinas Ministradas na Graduao: Universidade de So Paulo
B. Disciplinas Ministradas na Ps-Graduao: Universidade de So Paulo
C. Disciplinas Ministradas na Ps-Graduao: Universidade Metodista
D. Cursos Extra-Curriculares
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curriculum vitae
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XIII. ORIENTAES E SUPERVISES CONCLUDAS
A. Mestrado
B. Doutorado
C. Iniciao Cientfica
XIV. ORIENTAES E SUPERVISES EM ANDAMENTO
A. Mestrado
B. Doutorado
C. Iniciao Cientfica
D. Ps-Doutorado
XV. PARTICIPAO EM BANCAS DE TRABALHOS DE CONCLUSO
A. Defesas de Mestrado
B. Defesas de Doutorado
C. Defesa de Monografia de Graduao
D. Exame de Qualificao de Doutorado
E. Exame de Qualificao de Mestrado
XVI. PARTICIPAO EM BANCAS DE COMISSES JULGADORAS
A. Concurso Pblico
B. Livre-Docncia
C. Bancas de Seleo para o Programa de Doutorado (PPGAS/USP)
D. Bancas de Seleo para o Programa de Mestrado (PPGAS/USP)
XVII. JURIS DO CONCURSO BRASILEIRO CNPq/ANPOCS
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8 MEMORIAL 9
Departamento de Antropologia da USP (2006)
Turner, Benjamin e antropologia da performance: o lugar olhado (e ouvido) das coisas (2006)
Joana Dark e a mulher lobisomem: o rito de passagem de Nossa Senhora (2006)
Histria noturna de Nossa Senhora do Risca-Faca (2006)
A casa de Joana Dark (2006)
Piscadelas de caveiras: escatologia do Jardim das Flores (2006)
F(r)ico do Brasil: repensando a fbula das trs raas no Jardim das Flores (2006)
A grota dos novos anjos mineiros: imagens do campo na cidade (2006)
Novos anjos: iluminaes profanas e teatro em caminhes (2006)
Bias-frias e suas mquinas sonhadoras: Baudelaire e o barroco em canaviais (2006)
Arqueologia da festa (2006)
O teatro em Aparecida: a santa e a lobisomem (2006)
O teatro dos bias-frias: repensando a antropologia da performance (2005)
Victor Turner e antropologia da experincia (2005)
O espelho americano: americanos para brasileiro ver e brazilians for americans to see (2005)
Americans: brasileiros para brasileiro ver (2005)
Clifford Geertz e o selvagem cerebral: do mandala ao crculo hermenutico (2004)
Despertando a bela adormecida: leituras benjaminianas da cidade (2003)
Coisa de Macunama: cultura e a dialtica da qualidade de vida (2001)
Nossa Senhora Aparecida e a mulher lobisomem:
Benjamin, Brecht e teatro dramtico na antropologia (2000)
De que riem os bias-frias? Walter Benjamin e o teatro pico de Brecht em carrocerias em
caminhes (tese de livre-docncia) (1999)
Caindo na cana com Marilyn Monroe: tempo, espao e bias-frias (1997)
Constructing identity: Defining the american descendants in brazil
A pedagogia do Xam: Risos nas entrelinhas de rituais na escola
Brincando de bonecos: Magia e mmese na rua do porto
Prefcio Cultura proletria: um estudo scio-antropolgico (Favela vila vitria, piracicaba, sp)
Organizao do espao em favelas: Disciplina e reciprocidade
Vila vitria: the emergence of proletarian culture
Pedagogia do oprimido E resistncia de intelectuais orgnicos da classe trabalhadora.
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anexo I
8 MEMORIAL 9
projeto temtico
ANTROPOLOGIA DA PERFORMANCE: DRAMA, ESTTICA E RITUAL
(INTRODUO E INTEGRANTES DA EQUIPE)
projeto produtividade em pesquisa PQ Paradigmas do teatro na antropologia
(CNPq protocolo 5387818717103034) (2006)
projeto produtividade em pesquisa PQ Paradigmas do teatro na antropologia: resumo
(CNPq protocolo 5387818717103034) (2006)
projeto temtico
ANTROPOLOGIA DA PERFORMANCE: DRAMA, ESTTICA E RITUAL1
projeto acadmico
QINQNIO 2004-20081 (PARTE I)
plano de desenvolvimento acadmico
DECNIO 2004-2013
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532
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anexo II
bibliografia
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10 MEMORIAL 11
TJoo Guimares Rosa
udo e no
10 MEMORIAL 11
ara Cludia, Sean e Ian.P
12 MEMORIAL 13
12 MEMORIAL 13
memorial
14 MEMORIAL 15
o vazio Observo o calendrio com um leve sorriso. O prazo para entrega desse memorial coincide com o Dia de Finados ou, em terras de lngua inglesa, Memorial Day. A imagem no deixa de ser sugestiva. Busco, quem
sabe, uma entrada ao reino dos mortos. A quem pedir
passagem? Anos atrs, quando perguntei a uma mulher
mineira a mesma que me acolheu no buraco dos
capetas como seria o cu, ela pincelou a imagem
de uma estrada ladeada por caveiras. As pessoas que
entravam ao cu viam-se sendo vistas por caveiras. Em
nada a cena se assemelhava a uma entrada triunfal.
Como sabem Dona Flor e seus dois maridos, e a viva
Diolinda mais uma figura do buraco dos capetas
que reclamava de um falecido que ficava lhe
beirando, existem mortos mais vivos do que os prprios
vivos.1 Essa histria das caveiras vem do serto do Norte
de Minas Gerais, em cujos subsolos foram enterrados os
corpos de alguns dos ancestrais da narradora: pai, me,
avs.... Em meio aos sonhos, uma caveira tambm pode
fazer despertar entre vivos os seus desejos amortecidos.
preciso, apenas, saber interpretar as suas piscadelas. Eis
um desafio espcie de antropologia que se interessa
por diferenciar um piscar de olhos de uma piscadela
marota.2 O que dizer de piscadelas de caveiras? bom
que se diga algo caso no se queira ficar como a prpria
caveira s olhando. Bem que um olhar desses.... Um
detalhe: a piscadela de uma caveira no deixa de espelhar
o vazio. Um memorial poderia ser um espelho desse tipo?
Ou seria um arranjo de estilhaos de espelhos com efeitos
caleidoscpicos? Imagens do passado lampejam. Uma
surpresa: elas sugerem a aparncia de um jovem.
A antropologia tem os seus heris. Lvi-Strauss,
talvez at pelo modo em que o mesmo dissolve a sua
identidade, um deles. (Nonada, o imagino na voz de
Riobaldo dizendo.) O serto brasileiro que j produziu
monges, santos, bandidos e heris tambm, como
vemos em Tristes Tropiques, produziu Lvi-Strauss.3
Num (des)encontro fecundo com os Tupi-Kawahib o
14 MEMORIAL 15O VAZIO
etngrafo depara-se com o vazio. Serto profundo.
Seria um memorial tambm o encontro com uma
espcie de Tupi-Kawahib embora, nesse caso, leve
o nome de um eu? Nas primeiras pginas de Mito
e Significado, Lvi-Strauss escreveu: Nunca tive, e
ainda no tenho, a percepo do sentimento da minha
identidade pessoal. Apareo perante mim mesmo como
o lugar onde h coisas que acontecem, mas no h o
Eu, no h o mim.4 Talvez seja essa a disposio
metodolgica mais apropriada para um memorial.
Seria um memorial um momento de chegada, um
barranco, quem sabe, de onde se observa o percurso
de um rio? Ou seria um remoinho em plena travessia?
Viver muito perigoso.5 Coisas se juntam inclusive
de forma espantosa. Seriam efeitos de superfcie?
Sinalizam remoinhos. Interrupes. O encontro de
guas vindo em diferentes direes. Coisas se afundam,
e outras afloram. Atenes se voltam aos refluxos e
contracorrentes, ou simplesmente para histrias que
submergiram, ou no vieram a ser. Montagem de vida.
Molecagem de bricoleur.
Talvez se deva reter a imagem de algo que se afunda.
Mais do que uma ascenso, um memorial evoca um
retorno. Um movimento em direo ao baixo corporal de
um rio. Ao limbo. Leito. Regies inferiores. Aos lugares
onde a prpria histria se decompe. O desvio pode
surpreender. No deslocamento do lugar olhado das
coisas pode se deparar com piscadelas de caveiras.
A seguir, uma imagem do passado. Um remoinho no
tempo. Trata-se de uma viso do vazio, que se espelha
no vidro de uma janela.
1 Dona Flor e seus dois maridos, o mais conhecido livro de Jorge Amado (2001), conta o caso da viva que se casa de novo e se v dividida entre o amor tranqilo do marido vivo e o amor fogoso do marido morto. Cf. AMADO, Jorge. (2001) Dona Flor e seus dois maridos. Rio de Janeiro, Editora Record.
2 Refiro-me antropologia interpretativa de Clifford Geertz. Cf. GEERTZ, Clifford. (1978) Uma descrio densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro, Zahar Editores, p. 13-41.
3 Cf. LVI-STRAUSS, Claude. (1986). Tristes trpicos. Lisboa: Edies 70.
4 Cf. LVI-STRAUSS, Claude. (1989). Mito e significado. Lisboa: Edies 70, p. 14.
5 Cf. ROSA, Joo Guimares. (1988) Grande Serto: Veredas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 26.
16 MEMORIAL 17
uma janela
16 MEMORIAL 17
Em 1978, certo dia ao cair da tarde, ao passear
de nibus num bairro de periferia de Piracicaba fui
surpreendido por uma imagem inslita um detalhe,
na verdade, que surgiu repentinamente no canto
inferior do vidro do nibus. Desci imediatamente para
ver de perto. Ao lado da rua, abria-se uma cratera,
um pequeno abismo, uma imensa fenda na terra, em
cujas encostas se encontrava um grande nmero de
barracos. Andei mais alguns passos, ocupando uma
posio mais prxima ao chafariz no alto dessa cratera.
Inmeras mangueiras, ou borrachas, serpenteando
pelas encostas onde se alojavam os barracos, deitavam-
se boquiabertas ao p do chafariz. Foi nesse dia, em
meio a uma multido de mulheres, que encontrei Anaoj
pela primeira vez.1 Era uma mulher mineira, oriunda
de Porteirinha, da cor de carvo, ou do caf que,
depois, numa xcara, me ofereceu. Puxei conversa. Ela
pincelou uma geografia humana do buraco: havia
aglomerados de mineiros, paranaenses e paulistas. A
maioria era de Minas, ela disse. Norte de Minas. Vinham
de Porteirinha, Novo Cruzeiro, Montes Claros.... Havia
tambm cearenses, baianos, paraibanos, piauienses, e
pernambucanos. E piracicabanos, alguns com origens
nos estratos do antigo Risca-Faca sobre qual a favela
se ergueu. Foi esse o meu primeiro contato com o
Jardim das Flores ou buraco dos capetas.
Hoje, ao relembrar essa imagem, tenho em mente o
quadro de Angelus Novus de Paul Klee, interpretado
por Walter Benjamin. Muitos haviam sido levados
cidade por uma tempestade chamada progresso.
Um monto de gente, a maior parte, vinha de Minas
Gerais. Como novos anjos mineiros olhavam com
espanto para os destroos que acumulavam aos
seus ps. Nessa poca, creio que a imagem de um
lugar como esse tinha algo de inslito. O milagre
econmico no estava to distante. Os sonhos de um
Brasil gigante que finalmente acordaria de um bero
esplndido para assumir o seu destino ao lado de outras
potncias mundiais, mesmo em meio aos temores da
poca, pairavam no ar. O Jardim das Flores, assim como
outras favelas de Piracicaba, havia surgido na poca da
construo do segundo distrito industrial da cidade, em
torno de 1974. Os mineiros, dizia-se, construram a
Caterpillar, depois caram no buraco.
Uma imagem na janela. O que fez com que eu
descesse do nibus? Teria sido a sugesto de que ali havia
um buraco imenso, uma fenda, um pequeno abismo s
margens de uma cidade? Uma premonio do vazio?
De forma surpreendente, ou mesmo espantosa, coisas
separadas e distantes nesse lugar se juntaram.
O observador tambm virou remoinho. Coisas
nele se reuniram. Franz Boas bem disse que o olho
que v o rgo da tradio. Se evoco o buraco
dos capetas no incio desse memorial porque ali se
educou um olhar. A experincia vivida nessa fenda na
terra no deixou de suscitar um efeito sismolgico o
deslocamento do lugar olhado (ou sentido) das coisas
de algum (eu mesmo!) que um dia viria a se fazer
aprendiz do ofcio de Malinowski.
Outros educadores precederam os que o aprendiz
encontraria no buraco dos capetas. Sem eles talvez a
viso na janela passasse despercebida.
1 Alguns dos nomes prprios que constam do memorial podem ser considerados como fices literrias do pesquisador, geralmente registradas em cadernos de campo moda do antigo hebraico, sem as vogais. Essa observao tambm vlida para o nome Jardim das Flores. Os termos buraco ou buraco dos capetas, assim como o nome Joo Branco, no deixam de ser fices reais, nascidas da poesia popular dos moradores.
UMA JANELA
18 MEMORIAL 19
uma janelapara o mundo:
O GINSIO ESTADUAL VOCACIONAL JOO XXIII DE AMERICANA
18 MEMORIAL 19UMA JANELA PARA O MUNDO: O GINSIO ESTADUAL VOCACIONAL JOO XXIII DE AMERICANA
Na janela de um nibus, nas bordas de uma cidade do interior paulista, lampejou uma imagem de serto. Futuro de um passado. Embora estranha, ela evocava experincias vividas. Prefigurara-se. Irrompia com a fora de outras imagens e janelas. Era estranhamente familiar. Hoje ela evoca uma janela para o mundo: o Ginsio Estadual Vocacional Joo XXIII de Americana. Nesse lugar imagens de serto tambm irromperam. Ali, com uma mistura de espanto e fascnio, ouvi falar de Canudos pela primeira vez. Lemos trechos de Os Sertes. E de Grande Serto: Veredas. Ou teria sido o grande serto que nos lia? Tambm lemos Vidas Secas. Macunama. E, pausadamente, uma linha de cada vez, Morte e Vida Severina.1 Recitamos. Formou-se nesse lugar num pas acostumado a olhar para fora, numa cidade cujo nome Americana, e num filho e neto de americanos nascido no Brasil uma vontade visceral de ser brasileiro. Um deslocamento inslito: a virada dos olhos para as entranhas de um corpo. A reaprendizagem do olhar.
Foram apenas dois anos e meio, de meados ou fins de 1966 a dezembro de 1968. Cheguei ao Vocacional na metade do segundo ano ginasial. A classe debatia uma experincia: a visita que fizera Usina Hidroeltrica de Urubupung. Lembranas de visitas feitas no ano anterior s fbricas de tecidos articulavam-se experincia recente. Em 1967, viajamos a Minas Gerais. Tiradentes ganhou vida. E virou alegoria. Aleijadinho tambm. Assim como Chico Rei e as personagens annimas das minas de Morro Velho e de outras minas por l. Crculos hermenuticos se configuravam.2 Surgiam como crculos concntricos: as fbricas e uma cidade, a cidade e um estado, o estado e um pas. No ltimo ano, o pas e um mundo. O movimento hermenutico tensionava o corpo. O corpo que descobria um Brasil levava as marcas de quem nasceu John, mas que, tambm, de alguma forma se descobria Joo.
Ser ou no ser? Tupi or not tupi. Em algum momento talvez at mesmo no ano de 1968 surgiu uma imagem de americano como uma forma de ser brasileiro, como uma das facetas de um mosaico feito de fragmentos deslocados, justapostos, a partir de uma viso hbrida e cambiante das formaes simblicas. Talvez seja a imagem de um americano para brasileiro ver. Mas, tambm virei imagem de um brasileiro para americano ver. No fundo, talvez um anseio: o de virar brasileiro para brasileiro ver.
Em 1968, ano do AI-5, no sei bem como acabei virando presidente do governo estudantil conforme o termo que se usava no Vocacional de Americana. No final do ano, em profundo estado de perplexidade, fui chamado pela polcia federal que investigava os ginsios vocacionais.3
1 Cf. CUNHA, Euclides da. (1999) Os sertes. Rio de Janeiro: Francisco Alves; ROSA, Joo Guimares. (1988) Grande Serto: Veredas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira; RAMOS, Graciliano. (1998) Vidas Secas. Rio de Janeiro, Record; ANDRADE, Mario de. (1978) Macunama: heri sem nenhum carter. Rio de Janeiro: Livros Tcnicos e Cientficos; MELO NETO, Joo Cabral de. (1969) Morte e vida Severina. Rio de Janeiro: Editora Sabi.
2 A respeito do crculo hermenutico, Clifford Geertz escreve: Saltando-se em duas direes, para trs e para frente, entre um todo percebido atravs das partes que o atualizam e as partes concebidas atravs do todo que as motiva, procuramos transform-las, atravs de um tipo de movimento intelectual perptuo, em explicaes uma da outra. Cf. GEERTZ, Clifford. (1983) From the Natives Point of View: On the Nature of Anthropological Understanding. In: Local Knowledge, New York, Basic Books, p. 69 (minha traduo).
3 As investigaes da polcia federal me causaram na poca perplexidade e espanto. No consegui entender porque minha escola poderia ser alvo de investigao dessa natureza. No me considerava nem considerava os meus professores como militantes polticos. Sentia, isso sim, nas leituras e discusses que fazamos no Vocacional, que descobramos o Brasil e algo sobre ns mesmos.
20 MEMORIAL 21
brasileiro para americano ver:
FLORIDA SOUTHERN COLLEGE
A coleo Frank Lloyd Wright Architecture de Florida
Southern College se chama Child Of The Sun (Filho do
Sol). Trata-se do maior conjunto arquitetnico de Frank
Lloyd Wright no mundo.
Em 1969, um corte. Melancolia. Excitao. Entrei numa
faculdade americana. Eu acabara de completar dezesseis
anos de idade. Eram tempos de Woodstock. Kent State.
Bob Dylan. Guerra do Vietn. Mi Lay Massacre. Robert
Kennedy havia sido assassinado. Martin Luther King Jr.,
tambm. Virei brasileiro numa faculdade americana.
Ensaiei um sotaque. Joguei futebol. Em meio a uma cultura
hippie adquiri uma certa aura de figura liminar. Virei, de
novo, presidente de governo estudantil. Um prmio por
desempenho acadmico: a indicao para representar a
universidade como candidato Rhodes Scholarship.
Por mais estimulante tenha sido a experincia
na Florida Southern College, ela no se comparava,
acreditei, que eu havia tido no Ginsio Vocacional.
Em profunda melancolia, recebi notcias de que a minha
turma no Vocacional havia sido a ltima. E de que a
diretora, urea Sigrist, havia sido torturada.
Florida Southern College tambm produziu figuras
marcantes. Entre elas, Weldon S. Crowley. Professor
de histria. Sem querer, provocou fascnio. Srio.
Compenetrado. Rigoroso. De onde vinha o fascnio? Teria
sido o reflexo de algo que ele mesmo sentia em relao
Idade Mdia? O seu olhar era diferenciado. Criava um
desvio. At mesmo um rudo. Em meio ao abalo sismolgico
provocado pela Guerra do Vietn, num pas que se via
como vanguarda do progresso, Weldon S. Crowley olhava
para a Idade Mdia. De alguma forma provocava um efeito
de despertar em relao ao clima narcotizante de uma
poca. Nem ideologia do progresso, nem contra-cultura
hippie. Em suas aulas, a Idade das Trevas se transformava
em experincia luminosa. Virava esclarecimento.
Mas, o furor entre a maioria dos alunos vinha das
aulas de um jovem professor de psicologia. Como fui
esquecer o seu nome? Eram aulas de behaviorismo,
20 MEMORIAL 21BRASILEIRO PARA AMERICANO VER:FLORIDA SOUTHERN COLLEGE
inspiradas pela utopia de Walden Two (1948), de B. F.
Skinner.1 O livro apresenta o retrato de uma comunidade
onde mulheres e homens vivem em estado de igualdade.
E onde as motivaes competitivas dos pais para
favorecerem seus filhos se convertem em um sentimento
de carinho e responsabilidade por todos os filhos da
comunidade. Uma premissa: a plasticidade maravilhosa
do ser humano. E uma utopia: as possibilidades de
engenharia social. Walden Two no deixou de suscitar
um leve estremecimento. E um sentimento de horror.
Preferi a leitura de Walden (1845), de Henry David
Thoreau.2 E seus experimentos de vida beira de um lago,
s margens da civilizao mais bricoleur que engenheiro.
Cem anos antes de Walden Two. Simplify, simplify.... O
ensaio de Thoreau sobre desobedincia civil e o direito
e a obrigao de se agir conforme a conscincia teve
impacto. Uma citao ainda ressoa: A maior parte
daquilo que meus vizinhos chamam de bem, acredito no
fundo de minha alma ser o mal. E, se me arrependesse de
algo, seria do meu bom comportamento. Que demnio
fez com que me comportasse to bem?.3 Outras leituras
despertaram o imaginrio. Duas delas, em ingls: The
Wretched of the Earth (1963) e Black Skin, White Masks
(1967), de Frantz Fanon.4 E uma paixo: os volumes de
Don Quijote de la Mancha, em espanhol.5 1 Cf. SKINNER, Burrhus Frederic. (1948) Walden Two. Macmillan Publishing Co., Inc.
2 Cf. THOREAU, Henry David. (1854) Walden. Boston: Ticknor & Fields.
3 The greater part of what my neighbors call good I believe in my soul to be bad, and if I repent of anything, it is very likely to be of my good behavior. What demon possessed me that I behaved so well? Cf. THOREAU, Henry David. (1854) Walden. Boston: Ticknor & Fields, p. 23.
4 Cf. FANON, Frantz. (1967) Black skin, white masks. New York: Grove Press; FANON, Frantz. (1963) The wretched of the earth. New York: Grove Press.
5 Cf. CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. (1615) El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha. Madrid: Juan de la Cuesta Ed.
22 MEMORIAL 23
Em junho de 1972, fiz parte de um programa
de estudos de Florida Southern College, em viagem
Amsterdam e Munique. Diante dos moinhos de
vento vira-se Don Quijote. Ou um sonho de Sancho
Pana? Em Munique, um assombro. Dachau. O leve
estremecimento provocado pela engenharia social
de Walden Two se avoluma poderosamente. Vira
catstrofe. Inverso. Em Amsterdam lemos Walden
Two. Em Munique visitamos Dachau. Que espcie de
bricoleur mefistoflico era capaz de produzir montagem
to inslita? noite, aps uma viagem dantesca a
Dachau, bebemos cerveja em taas gigantescas na
Hofbrauhaus Munchen. Uma cena digna de Kafka.
No h nada surpreendente no espantoso.
Com o trmino do programa de estudos em
Munique, uma escolha. Um amigo me convidara a
passar as frias em Crsega. Mas, a escolha se desfaz.
Configura-se um imperativo: uma viagem pela Europa.
Eu dormia nos trens. Quando acordava, descia.
Andava. Vi moinhos de vento, castelos, catedrais e a
Torre Eifel. Mas, as imagens mais poderosas vinham de
baixo: runas de Atenas, catacumbas romanas, Veneza
submersa, cinzas de Dachau. Em Madri, o Museo del
Prado: Los desastres de la guerra. Goya. Guernica no
exlio. Indcios de uma estrutura de sentimentos. A
viagem pela Europa era o prembulo de outra.
uma viagem pela europa
UMA VIAGEM PELA EUROPA
22 MEMORIAL 23
piracicaba, sertes e bias-frias
PIRACICABA, SERTES E BIAS-FRIAS
O ttulo de Bachelor of Arts em histria viria em maio
de 1973. Em dezembro de 1972, havendo terminado
os crditos com um semestre de antecedncia, voltei
ao Brasil. Piracicaba. Li Grande Serto: Veredas. Reli Os
Sertes.1 Alma em revelia. Aps vrios meses no limbo,
dando aulas de ingls, fui de nibus e de trem, com a
roupa do corpo, conhecer o Nordeste. Sonho antigo de
serto, dos tempos do Vocacional. Fui de cala branca
larga. E chapu. Tefilo Otoni, Vitria da Conquista, Feira
de Santana, Salvador, Paulo Afonso, Aracaju, Macei,
Recife, Joo Pessoa, Natal, Fortaleza, Mossor. Bancos
de praas, praias e estaes. Bares e ruas. Pessoas de
muitas cores e odores. Uma viagem de Maria Fumaa
esbravejando em meio aos canaviais. Nos nibus, porcos
e galinhas. Histrias do Mata-Sete. Lampio e Maria
Bonita. E de gente amarrada em saco e jogada no fundo
do rio. Crianas estudando as reaes de um rapaz que
chamaram de Ringo. Mulheres de preto em coro
chorando. Uma me de santo danando de charuto na
boca. Um dono de bar de trabuco. Multides em feiras de
rua e mercados. Versos de cordel. Sanfona e zabumba.
Risos. Bocas desdentadas. Uma criana lanada do
trem. Imagens de misria. Descobri nessa viagem os
aspectos fisiognmicos do olhar. Os sentidos do corpo se
mobilizam. Ainda mais do que na Europa, tive, no Brasil,
lugar onde nasci, a experincia de um abalo. Nessa poca
as coisas e pessoas se apresentavam como se estivessem
em estado de transe. Na volta escrevi durante uma
semana. Depois incendiei o que havia escrito.
Experincia mais inslita tive em Piracicaba. O familiar
virou estranho. Nesses anos de 1973 e 1974, vi pela
primeira vez, em ruas e avenidas, os bias-frias em
carrocerias de caminhes. No era preciso ir para lugares
distantes para se deparar com os fundos do Brasil. O
serto irrompeu na cidade.
O bia-fria comeou a ter presena marcante em
Piracicaba em incios da dcada de 70, quando ainda
vivia-se o clima do milagre brasileiro e das utopias do
24 MEMORIAL 25
progresso. Os grandes projetos do Prolcool e Planalcar
reativaram sonhos antigos e recentes, parcialmente
interrompidos pela crise do petrleo de 1973, de um
Brasil colosso, pas do futuro. O sonho de um Brasil
gigante, que, aparentemente deitado eternamente em
bero esplndido, finalmente acordaria para a realizao
de sua potncia, ganhava em meio a esse clima de
embriaguez, os contornos de uma viso: a de um pas
movido a lcool, graas a uma fonte de energia renovvel
capaz de garantir a autonomia da nao mediante a
transformao de stios, roados e fazendas em canaviais.
Foi nesse cenrio que irrompeu a figura do bia-
fria. Tratava-se de uma apario, semelhante, na
verdade, quilo que surrealistas chamaram de imagem
potica. A esse respeito, em incios do sculo vinte, Pierre
Reverdy referiu-se imagem como uma criao pura do
esprito, que, ao invs de nascer de uma comparao,
lampeja atravs da aproximao de duas realidades mais
ou menos distantes. Quanto mais as relaes das duas
realidades forem longnquas e corretas, mais a imagem
ser forte mais poder emotivo e realidade potica ela
ter.2 Aquilo que Reverdy chamou de criao pura do
esprito tinha substncia nos caminhes de turma.
O longnquo se fez prximo. O estranho tornou-se
cotidiano, e o cotidiano provocou estranheza. A apario
dos bias-frias suscitava, em quem os via como outros,
uma sensao semelhante ao que se sentia vendo, em
pocas de safra da cana, o chuvisco cotidiano de cinzas
de cana queimada caindo sobre as cidades. Talvez, num
primeiro encontro com esse chuvisco, fosse at possvel
(para um mau poeta?) respirar a aura de que
fala Walter Benjamin: a apario nica de uma coisa
distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em
repouso, numa tarde de vero, uma cadeia de montanhas
no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra
sobre ns, significa respirar a aura dessas montanhas,
desse galho.3 Canaviais literalmente projetavam sua
sombra sobre a cidade na forma de cinzas de cana
queimada. No caso dos bias-frias, eram, na verdade,
multides que chegavam de lugares distantes, em ritmos
de industrializao da agricultura, interrompendo o
repouso e os sonhos de quem, na cidade, possivelmente
sonhando com o progresso, no deixava de projetar
olhares idlicos sobre a vida no campo. No se tratava
apenas do fato de que pessoas do campo, avolumando-
se em ondas de xodo rural, chegavam cidade. Trata-se
do fato de que, na figura do bia-fria, essas realidades
contrastivas tomavam corpo em uma nica imagem.
Atravs do bia-fria que vinha de um campo em
que a cidade, de forma cada vez mais ostensiva, se fazia
presente o campo realmente projetou uma sombra
sobre a cidade. Na verdade, a cidade assustava-se com a
sua prpria sombra.4
Quando caminhes de bias-frias passavam por
ruas e avenidas, em meio gente da cidade, olhares
se encontravam. Nesses momentos, a sensao de ver-se
sendo visto por outros podia criar tenses: o objeto olhado
devolvia o olhar. Marshall Berman chamou esses encontros
de cenas primordiais da modernidade5. Num poema de
Baudelaire, evoca-se o brilho de um novo bulevar: uma
famlia em farrapos sai de trs dos detritos, pra e se coloca
no centro da cena.6
Nos anos 70 e 80, sonhos de modernizao do
campo e da cidade tomaram conta da sociedade brasileira.
Por detrs dos destroos, surgiram os bias-frias. s
vezes, as carrocerias de caminhes carregadas de famlias
pegavam de surpresa os moradores do centro da cidade,
descendo por avenidas principais ou irrompendo ao lado
de clubes de campo, geralmente quando, por alguma
razo, retornavam mais cedo dos canaviais. Num vai-e-
vem dirio, iam e voltavam, mas sempre voltavam. Muitos
sentiram-se incomodados, provocados e, talvez, at
seduzidos pelos olhares dos bias-frias.
Como se fossem atores num teatro pico de Brecht,
os bias-frias provocavam no palco da sociedade
um momento de tenso: a dialtica em estado de
24 MEMORIAL 25
paralisia, quem sabe. Reunindo realidades distantes em
uma nica imagem, produziram em quem tentava v-los
como outros, uma sensao de assombro.
Em 1973, me fazendo de bia-fria, fui cortar
cana pela primeira vez. Fui o ltimo a terminar. At
mesmo as crianas terminaram os seus eitos na minha
frente. O podo no estava afiado. Martelei a cana
durante o dia inteiro.
Nessa poca, Nietzsche virou uma obsesso. The
Twilight of the Idols, or How One Philosophizes with a
Hammer (1888), The Birth of Tragedy (1872), Human,
All Too Human (1878), Thus Spoke Zarathustra (1885),
Beyond Good and Evil (1886), On the Genealogy of
Morals (1887), Ecce Homo (1888), The Antichrist (1888).7
1 Cf. ROSA, Joo Guimares, op. cit.; e CUNHA, Euclides, op. cit.
2 Apud BRETON, Andre. (1969) Manifestos do Surrealismo. Lisboa: Moraes Editores, p. 42.
3 Cf. BENJAMIN, Walter. (1985) A Doutrina das Semelhanas. In: Obras Escolhidas: Magia e Tcnica, Arte e Poltica. So Paulo: Brasiliense, p. 170.
4 Seria interessante, me parece, escrever uma histria dos sustos provocados pela apario de gente do campo, tal como ocorreu, h mais de um sculo, quando, em Canudos, sertanejos irromperam no imaginrio brasileiro.
5 BERMAN, Marshall. (1990) Tudo que slido desmancha no ar: a aventura da modernidade. So Paulo: Compan-hia das Letras.
6 BAUDELAIRE, Charles. (1991) Os olhos dos pobres. In: O Spleen de Paris. Lisboa: Relgio dgua.
7 Cf. NIETZSCHE, Friedric. (1971). The portable Nietzsche. Trans. Walter Kaufmann. New York and London: Penguin Books; NIETZSCHE, Friedric. (1986) Human, all too human. Cambridge: Cambridge University Press; NIETZSCHE, Friedric. (2005) Thus spoke Zarathustra. Oxford: Oxford University Press. NIETZSCHE, Friedric. (1966). Beyond good and evil. New York: Random House. NIETZSCHE, Friedric. (1999) The antichrist. Tucson, Arizona: Sharp Press.
PIRACICABA, SERTES E BIAS-FRIAS
26 MEMORIAL 27
emory university: TEOLOGIA
26 MEMORIAL 27
Em 1974, fui estudar teologia na Emory University,
em Atlanta. Anos depois, ao ler O feiticeiro e sua
magia, de Claude Lvi-Strauss, eu reconheceria na
histria de Quesalid algo do meu prprio percurso e
estado de esprito.1 Numa mala levei The Viking Portable
Library World Bible uma coletnea de textos de livros
sagrados de diferentes religies , Mythology, de Edith
Hamilton, Ilada, Odissia, A Bblia Sagrada, e os livros
de Nietzsche. Tambm nessa mala se encontravam Os
Sertes e Grande Serto: Veredas.
Emory University surgiu em 1836 do mpeto de
metodistas da Georgia interessados em criar uma
escola de trabalho manual. O modelo se inspirava
em experincias pedaggicas da Alemanha. Estudantes
dividiriam seu tempo entre os estudos e o trabalho na
terra. Ao mesmo tempo em que desenvolviam atividades
intelectuais aprenderiam o valor do trabalho. Nessa
arqueologia da Emory ou histria de esquecimento
me surpreendo ao encontrar nas dobras do tempo
afinidades eletivas com o Ginsio Vocacional. A Escola
de Teologia surgiria em 1914.
Um detalhe poderia ter despertado as atenes de
uma figura como Quesalid. Embora fundada a partir da
iniciativa de uma igreja crist, a universidade ganhou
notoriedade, virando, em 1965, capa da revista Time,
quando um de seus professores, Thomas Altizer, escreveu
um artigo: Deus est morto. Evocava-se uma das frases
de Nietzsche. Por um tempo, a teologia de Altizer virou
moda. Nos anos de 1970, porm, a moda havia passado.
Altizer no se encontrava na Emory. E a prpria idia do
Deus-est-morto virou mais um fssil acadmico.
Ao fazer teologia me deparei com Karl Marx. Os
Manuscritos Econmicos e Filosficos de 1844 viraram
leitura de cabeceira. Assim como o Manifesto..., as
Teses sobre Feuerbach, o Dezoito Brumrio.... E trechos
de Capital.2 Com Marx era possvel discutir formas
surpreendentes de feitiaria.3
Deus e o diabo. A teologia se revitaliza em sua
relao com Marx. Ali estavam, nos anos de 1970,
para americano ler, os livros de telogos brasileiros e
latino-americanos. Rubem Alves, Leonardo e Clodovis
Boff, Hugo Assmann, Jose Miguez Bonino, Gustavo
Gutirrez, ....4 Eram eles, de alguma forma, filhos de
Joo XXIII, cujo nome se inscrevera na entrada do
meu ginsio em Americana. Mas, no seria o inverso
tambm verdadeiro? Em sua relao com a teologia,
o Marxismo ganhava alento. A alegoria benjaminiana,
da primeira de suas teses sobre o conceito de histria,
sugestiva. Um autmato ganha as partidas de xadrez
sem que as pessoas vejam o ano corcunda, um mestre
do jogo, que dirige os cordis da mo do fantoche.5
Em meio s leituras, um destaque: Paulo Freire.
Na interrupo de papis, a pedagogia se renova.
Ensino e aprendizagem viram experincia vivida. Li e
reli Pedagogia do Oprimido e Educao como Prtica
da Liberdade. E, tambm, Cartas a Guin-Bissau.6
Novamente lampeja a imagem do Ginsio Vocacional.
Mas, o que fazia Paulo Freire na teologia?
Seria a teologia um experimento com a alteridade?
Um desvio metodolgico? A estranheza do olhar:
um grande outro visto como fundante, vital e
desconhecido? Em meio aos riscos da alienao, a
formulao de um princpio: a primazia do outro. E um
dilema: como distinguir o outro das imagens que sobre
ele ou ela se projetam?
Uma histria intrigante. O verbo se fez carne. Se o
estudo das religies privilegia uma anlise dos rituais de
devotos, com destaque aos ritos de passagem, a teologia
crist parece sugerir um rito de passagem inverso e
simtrico. Ao invs de focar o movimento dos devotos
num percurso que vai, inicialmente, do profano ao
sagrado as atenes se voltam ao deslocamento do
prprio deus. Tempos e lugares profanos se transformam
em experincia liminar. Tal como um espelho mgico, a
teologia no deixa de suscitar um deslocamento do
lugar olhado das coisas.
EMORY UNIVERSITY: TEOLOGIA
28 MEMORIAL 29
forma de fazer acontecer. Ressalta-se, enfim, a oralidade
da Bblia. Sua linguagem potica comporta um aspecto
performativo. Os primeiros estudos de Walter Ong
sobre relaes entre oralidade e escrita provocavam
um certo furor em meados dos anos de 1970.8 Assim
como as anlises de Malinowski sobre a funo ftica
da linguagem.9 Um detalhe despertou a imaginao
teolgica: a segunda pessoa da santa trindade, que
filho, tambm palavra.
Nas aulas de Manfred Hoffman, a santa trindade se
transformou em esquema semntico para classificar uma
variedade de opes teolgicas e experincias religiosas.
Sob o signo do pai, que ele anotava no lado direito da
lousa, se encontra Toms de Aquino e a Igreja Catlica.
O tema da criao. A continuidade entre o profano e
sagrado. A iluminao religiosa conferindo sentido aos
afazeres mundanos. A tradio da igreja como fonte de
autoridade. Sob o signo do esprito santo, anotado
esquerda, as igrejas pentecostais e carismticas, os
messianismos e milenarismos. Gnosticismos. O nascer
de novo. A ressurreio. Glossolalia. Escatologia. O
Evangelho de Joo. A abertura da histria. A revolta
contra o mundo. A separao. A experincia do sagrado
em oposio ao profano. E uma fonte irrequieta de
autoridade: a ao do Divino Esprito Santo. Sob o
signo do filho, no meio da lousa, os escritos de Paulo,
Santo Agostinho, Martinho Lutero, e Karl Barth. Ali se
configura, de acordo com o esquema de Hoffman, a
experincia da Reforma Protestante. Lugar tenso. Terra
de ningum. Teologia dialtica. A segunda pessoa da
trindade tambm se pensava sob o signo da crucificao.
A cruz como encruzilhada: lugar onde coisas acontecem.
Linguagem como evento irrupo. A Bblia como fonte
de autoridade. Palavra. Os limites da hermenutica. O
efeito de despertar. As formulaes paradoxais: saint
and sinner at the same time (santo e pecador ao mesmo
tempo), I believe help my unbelief! (tenho f ajude
a minha falta de f). A desconfiana em relao s
A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire poderia
sugerir a mmese dessa passagem? Delineia-se
um gesto. Um ato de renncia, ou esvaziamento:
vanguardas comungam com oprimidos para
com eles ressurgir. A renncia prenuncia um ato
fecundante. O ventre das massas oprimidas gera
como o de uma virgem Maria.
Experincias de estgio adquirem, sob esse signo,
a qualidade de ritos de passagem. Na Georgia Mental
Health Hospital o cotidiano se revela como o lmen.
Dilogos com pacientes s vezes suscitam uma forma
especfica de conhecimento: a loucura da loucura.
Um estgio na igreja de um gueto se transforma em
etnografia de esquina de rua, sob inspirao de Street
Corner Society (1943), de William Foote Whyte.7 O
convvio com Coretta Scott King, Andrew Young e de
outras pessoas ligadas figura de Martin Luther King,
Jr., refora a percepo de um tempo extraordinrio.
Freqentei a igreja de Daddy King.
Questes de mtodo se colocam. Um mundo vira
texto e se apresenta na forma de um livro: Bblia. Leitura
se transforma em arqueologia da linguagem. Na frico
das fontes, um texto sagrado se decompe. Apresenta-
se, conforme a frase conhecida de Clifford Geertz,
como manuscrito estranho, desbotado, cheio de
elipses, incoerncias, emendas suspeitas, e comentrios
tendenciosos. O empreendimento hermenutico se
coloca como imperativo. O crculo hermenutico: a
apreenso simultnea das partes que esto includas
no todo e do todo que motiva as partes. O movimento
do texto ao contexto e de volta. O esforo para se
descrever, com densidade, a sitz im leben de um texto
ou gnero literrio.
Leitura vira um exerccio de audio. Em substratos de
textos mltiplas vozes ressoam. Nas elipses, incoerncias
e emendas do texto se encontram os ecos de vozes
esquecidas, e, possivelmente, suprimidas. Trata-se de
captar linguagem como evento. Dizer tambm uma
28 MEMORIAL 29EMORY UNIVERSITY: TEOLOGIA
experincias religiosas. O efeito de estranhamento em
relao ao extraordinrio. E, quem sabe numa espcie
de des-leitura benjaminiana , uma iluminao profana.
O esquema suscitou polmicas, que Hoffman adorava.
Embora minha formao tambm era protestante, achei
falta de Maria s margens da trindade.
1 Cf. LVI-STRAUSS, Claude. (1975) O feiticeiro e sua magia. In: Antropologia Estrutural. Vol. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 193-214.
2 Cf. BALLOU, Robert (ed.). (1969). The portable World Bible. 23rd printing. New York: The Viking Press; HAMILTON, Edith. (1969). Mythology: timeless tales of gods and heroes. New York: Mentor Books; HOMERO. (1962) Ilada. So Paulo: Edies Melhoramentos; HOMERO. (1962) Odissia. So Paulo: Edies Melhoramentos; A Bblia sagrada (1963). Trad. Por Joo Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade Bblica do Brasil; e NIETZSCHE, Friedric. Op. cit.
3 Cf. MARX, Karl, e David McLellan. (1977) Karl Marx: selected writings. Oxford University Press; MARX, Karl, e ENGELS, Friedrich. (1982) Marx/Engels: obras escolhidas. Lisboa: Edies Avante!.
4 Refiro-me, especialmente, s discusses de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, do primeiro volume de Capital.
5 Cf. ALVES, Rubem. (1971) A theology of human hope; BOFF, Leonardo, e BOFF, Clodovis. (1987) Introducing liberation theology. Maryknoll, New York: Orbis Books; ASSMAN, Hugo. (1975) Theology for a nomad church; MIGUEZ BONINO, Jose. (1975). Doing theology in a revolutionary situation; e GUTIERREZ, Gustavo. (1973) A theology of liberation. Maryknoll, New York: Orbis Books.
6 BENJAMIN, Walter. (1985) Sobre o Conceito da Histria. In: Obras Escolhidas: Magia e Tcnica, Arte e Poltica. So Paulo: Brasiliense.
7 Cf. FREIRE, Paulo. (1967) Educao como prtica da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; FREIRE, Paulo. (1970) Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; FREIRE, Paulo. (1977) Cartas a Guin-Bissau: registros de uma experincia em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
8 FOOTE WHYTE, William. (2005) Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; FOOTE WHYTE, William. (1993) Street corner society: the social structure of an Italian slum. 4th edition. Chicago: University of Chicago Press.
9 Cf. ONG, Walter. (1967) The presence of the Word. New Haven and London: Yale University Press; ONG, Walter. (1971) Rhetoric, romance, and technology. Ithaca and London: Cornell University Press; ONG, Walter. (1982) Orality and literacy. London and New York: Routledge; ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Papirus.
10 Cf. MALINOWSKI, Bronislaw. (1923) The problem of meaning in primitive languages. In: OGDEN, C. K., e RICHARDS, I. A. (eds). The meaning of meaning: a study of the influence of language upon thought and of the science of symbolism. New York: Harcourt, Brace.
30 MEMORIAL 31
buraco dos capetas
Em fins de 1977, com um mestrado em teologia,
voltei ao Brasil. No ano seguinte, fui surpreendido pela
imagem do buraco dos capetas o detalhe na janela
de um nibus, conforme narrei no incio do memorial. Na
poca, eu era o coordenador do programa de apoio
comunidade da Universidade Metodista de Piracicaba.
Tratava-se de um cargo mais ou menos fictcio (pois eu
era coordenador de mim mesmo) e procurava de algum
jeito dar realidade ao cargo. Minha salvao durante
aquele ano acabou se configurando nas andanas que
fazia com um grupo de engraxates, os meninos de
rua, que, saindo dos arredores da cidade tais como o
buraco dos capetas irrompiam no centro. Continuei a
visitar ocasionalmente o barraco de Anaoj. Nessa poca
eu tambm visitava o barraco de outro mineiro, Sr Pnhr,
um dos guardas da Unimep, residente do Monte Cristo,
um bairro prximo ao Jardim das Flores.1 A Universidade
Metodista de Piracicaba acabava de passar por uma
crise institucional. O novo reitor, Elias Boaventura, que
tomara o lugar de um missionrio metodista americano,
fazia histria colocando a instituio na contra-mo do
regime militar.2
Quem fizesse uma arqueologia do Jardim das Flores
descobriria que os barracos foram construdos sobre
as cinzas de um antigo bairro de periferia: o Risca-
Faca. Com foices providas pela prefeitura para fazer
a limpeza do lugar, as primeiras famlias mineiras
que ali chegaram derrubaram o mato e construram
seus barracos de madeirite. Mas, no local j havia
barracos ainda mais precrios, escondidos no mato,
pertencentes a famlias de estratos piracicabanos. Ao
falarem de suas origens, algumas das pessoas que
conheciam histrias antigas do lugar compunham o que
parecia ser o mito de um paraso s avessas. Falava-se de
um casal primordial. Mas, em lugar de uma histria da
criao, surgia o seu inverso: a mulher, com um podo
de cortar cana, fizera picadinho do homem.
Na Emory, provocado pelo esquema semntico
30 MEMORIAL 31BURACO DOS CAPETAS
do Professor Manfred Hoffman, achei falta de Maria.
A imagem de mulher que irrompe na histria de
origens do Risca-Faca no se parecia, achava eu, com
uma Nossa Senhora. Ela vinha do serto. Seu gesto
no deixava de evocar personagens que figuram em
narrativas sobre o povoamento do Brasil. Em busca de
Maria, encontrei uma ndia laada no mato.
Um detalhe: o bairro do Risca-Faca surge no
imaginrio de Piracicaba num momento em que o
governo municipal se prope a urbanizar a periferia
da cidade. Se nos substratos desse processo lampeja
a imagem de uma ndia laada no mato, em sua
superfcie, com a fora de mquinas e tratores que
asfaltam uma avenida, emerge a figura de um dos
grandes bandeirantes: o caador de ndios,
Raposo Tavares. Tal como uma lana comprida e
retilnea, a Avenida Raposo Tavares corta o antigo
bairro do Risca-Faca, repartindo-o em pedaos, e
quadriculando os seus espaos. Quase na ponta dessa
lana, aparece uma outra avenida do imaginrio
bandeirante: a Avenida das Mones. Enquanto a
Raposo Tavares atravessa o Risca-Faca, a Avenida das
Mones cerca as suas franjas.
Haveria no Risca-Faca uma histria noturna de
Nossa Senhora? E o qu dizer do homem que virou
picadinho? Nas histrias que se contam na Secretaria
de Turismo e nos diversos marcos histricos da Rua
do Porto, ao longo do Rio Piracicaba, avulta a imagem
de um homem: o povoador. Este, uma espcie
de inverso simtrico do infeliz sujeito do Risca-Faca,
escapa ao anonimato. O seu nome portugus:
Antnio Correa Barbosa. No virou picadinho. Ao
contrrio, abriu picadas, desbravou serto. Embora
sombra de outros Antnios, como o Antnio Raposo
Tavares, o Correa Barbosa tambm virou smbolo do
bandeirantismo paulista, e penetrao do interior. Em
sua histria se ilumina um processo civilizador. E uma
imagem de serto. Um detalhe: nessa poca, inspirado
pelo recm-lanado volume de Malinowski, da coleo
Os Pensadores, eu fazia meus primeiros registros
em cadernos de campo no buraco dos capetas.
No final de 1979, em um estado de virao, voltei para a Emory University para fazer o doutorado.
Dessa vez, na mala iam Argonautas do Pacfico
Ocidental, de Bronislaw Malinowski (com uma
apresentao de Eunice Ribeiro Durham), e vrios
livros de Antonio Gramsci.3 Cadernos de campo e
Quaderni Del Crcere.
1 Como foi dito em nota anterior, alguns dos nomes prprios que constam do memorial podem ser considerados como fices literrias do pesquisador, geralmente registradas em cadernos de campo moda do antigo hebraico, sem as vogais.
2 Eu, que era filho e neto de missionrios metodistas mas querendo ser brasileiro tentava sem muito sucesso me colocar ao mesmo tempo na contramo, na contramo da contramo, na contramo da contramo da contramo, ....
3 Cf. MALINOWSKI, Bronislaw. (1978). Argonautas do Pacfico Ocidental. Consultoria de Eunice Ribeiro Durham. 2 ed. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural; GRAMSCI, Antonio. (1971) Selections from the prison notebooks of Antonio Gramsci. Edited and translated by Q. Hoare and G. Nowell-Smith. London and New York: Lawrence & Wishart, International Publishers; GRAMSCI, Antonio. (1992) Prison notebooks. New York: Columbia University Press; GRAMSCI, Antonio. (1966) Cartas do crcere. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira; GRAMSCI, Antonio (1968) Os intelectuais e a organizao da cultura. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira; GRAMSCI, Antonio. (1968) Maquiavel, a poltica e o estado moderno. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira; GRAMSCI, Antonio. (1972) A formao dos intelectuais. Rio de Janeiro: Venda Nova Amadora; GRAMSCI, Antonio. (1978) Obras escolhidas. So Paulo: Martins Fontes.
32 MEMORIAL 33
emory university: the graduate
institute of the liberal arts
32 MEMORIAL 33
discutidas com Peggy Barlett, foram feitas da obra de
Oscar Lewis: Five Families: Mexican Case Studies In The
Culture Of Poverty (1959), Tepoztln: Village In Mexico
(1960), The Children Of Sanchez: Autobiography Of A
Mexican Family (1961), La Vida: A Puerto Rican Family In
The Culture Of Poverty San Juan And New York (1966).5
Nesses estudos dialogados, configura-se uma constelao
bibliogrfica: The Broken Fountain (1979), de Thomas
Belmonte; Soulside: Inquiries into Ghetto Culture and
Community (1969), de Ulf Hannerz; Sociologia do Brasil
Urbano (1978), de Anthony e Elizabeth Leeds; Tallys
Corner (1967), de Elliot Liebow; Networks and Marginality:
Life in a Mexican Shantytown (1977), de Larissa Adler
Lomnitz; Latin American squatter settlements: a problem
and a solution (1974), de William Mangin; The Myth of
Marginality: Urban Poverty and Politics in Rio de Janeiro
(1976), de Janice Perlman; The Urban Poor of Puerto
Rico: A Study in Development and Inequality (1974), de
Helen Icken Safa; The Hidden Injuries of Class (1972), de
Richard Sennett e Jonathan Cobb; All Our Kin: Strategies
for Survival in a Black Community (1974), de Carol Stack;
Hustling and Other Hard Work: Life Styles in the Ghetto
(1978), de Bettylou Valentine; e The Forgotten Ones:
Colombian Countrymen in an Urban Setting (1976), de
Michael Whiteford.6
Em estudos dirigidos com Peggy Barlett e Walter
Adamson, tambm abriram-se possibilidades de explorar
uma bibliografia referente economia poltica mundial:
The Modern World-System (1974), de Immanuel
Wallerstein; Capitalism and Underdevelopment in Latin
America (1967), de Andre Gunder Frank, Dependencia y
Desarrollo en Amrica Latina (1969) de Fernando Henrique
Cardoso e Enzo Falleto; Dependent Development: The
Alliance of Multinational, State, and Local Capital in Brazil
(1979), de Peter Evans; The Structure of Dependence
(1971), de Theotnio dos Santos.7 A proposta era
instigante: buscava-se uma forma de articular estudos
etnogrficos s questes de economia poltica mundial.
Em 1979, Robert Woodruff e seu irmo George,
da Coca-Cola Company, faziam uma doao Emory
University no valor de US $105 milhes a maior
doao individual at ento feita a uma universidade
na histria dos Estados Unidos. Emory comea a se
projetar como uma espcie de Harvard of the South.
sua imagem se associa no apenas o CDC (Center for
Disease Control), mas, tambm, duas outras instituies
de renome internacional: os centros de Jimmy Carter e
Martin Luther King, Jr.
Gramsci e Malinowski. Dois professores foram
especialmente marcantes nessa experincia de doutorado.
Walter L. Adamson, um especialista em Gramsci da
Graduate Institute of the Liberal Arts (ILA), e Peggy F. Barlett,
especialista em antropologia rural, do Departamento de
Antropologia. Walter Adamson foi meu orientador. E
guia nas leituras dos Cadernos do Crcere. Formado pela
University of California e Brandeis University, seus interesses
se voltam histria cultural e intelectual da Europa na
modernidade, com destaque histria da Itlia.1
Peggy F. Barlett, PhD em antropologia pela Columbia
University, realizou pesquisas de campo em Costa Rica,
Equador, e reas rurais da Georgia (USA).2 Com ela pude
discutir questes de pesquisa de campo na antropologia.
Ela prpria havia trabalhado de perto com Allen Johnson,
seu orientador, que publicara, em 1971, Sharecroppers
of the Serto: Economics and Dependence on a Brazilian
Plantation.3 Na Columbia University, Peggy tambm
estudou com Marvin Harris. Atravs dela as abordagens
do materialismo cultural e ecologia cultural se esclareciam.
Tal como Malinowski, Peggy queria saber, em relao s
coisas boas para pensar, o que elas tinham a ver com
coisas boas para comer.
Em estudos dirigidos na antropologia oportunidades
tambm se abriram para a leitura de etnografias urbanas,
com destaque s pesquisas em guetos, favelas e bairros
operrios. Assim foi possvel reler Street Corner Society
(1943) de William Foote Whyte.4 Anotaes detalhadas,
EMORY UNIVERSITY: THE GRADUATE INSTITUTE OF THE LIBERAL ARTS
34 MEMORIAL 35
Em 1982, escrevi Donald Duck, Che Guevara, Los
Peloteros and Tulcan: Rethinking Dependency from the
Perspective of the Urban Periphery texto que Peggy
Barlett circulou entre colegas da antropologia na Emory,
e enviou para Helen Icken Safa, uma especialista na rea.8
Naquele ano eu ainda desconhecia o livro de Eric Wolf,
Europe and the People Without History, que acabara de
ser publicado.9
Merece destaque a presena do crtico literrio Kenneth
Burke no Gradutate Institute of the Liberal Arts, da Emory,
na passagem dos anos de 1970 a 1980. dele o conceito
de ao simblica. Seus escritos inspiraram Clifford
Geertz na elaborao da antropologia interpretativa e
reconfigurao do campo a partir da metfora do drama.
Burke desenvolveu a idia de dramatismo, comparando
a interao humana ao teatro. Como o efeito retardado
da luz de uma estrela atravessando o espao, as idias de
Kenneth Burke so boas para fazer pensar.10 Ressalta-se o
lugar do negativo no seu pensamento. Cito o incio do seu
Creation Myth:
In the beginning, there was universal Nothing.
Then Nothing said No to itself and thereby begat
Something,
which called itself Yes.
Then No and Yes, cohabiting, begat Maybe ().
(No princpio havia o Nada universal.
Ento Nada disse no a si mesmo gerando Alguma
Coisa,
que se chamou Sim.
Ao coabitarem, ento, Nada e Sim geraram Talvez
(...).)
34 MEMORIAL 35
1 Em 1980, ele publicou Hegemony and Revolution: Antonio Gramscis Political and Cultural Theory, que recebeu o Howard Marraro Prize, da Society for Italian Historical Studies. Em 1985, publicou Marx and the Disillusionment of Marxism, e, em 1993, Avant-garde Florence: From Modernism to Fascism, premiado com o Howard Marraro Prize pela American Historical Association.
2 Suas publicaes incluem Agricultural Decision Making: Anthropological Contributions to Rural Development (1980), Agricultural Choice and Change: Decision Making in a Costa Rican Community (1982), e American Dreams, Rural Realities: Family Farms in Crisis (1993).
3 Cf. JOHNSON, Allen. (1971) Sharecroppers of the serto: economics and dependence on a Brazilian plantation. Stanford: Stanford University Press.
4 FOOTE WHYTE, William. (2005) Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; FOOTE WHYTE, William. (1993) Street corner society: the social structure of an Italian slum. 4th edition. Chicago: University of Chicago Press.
5 Cf. LEWIS, Oscar. (1959) Five Families: Mexican Case Studies In The Culture Of Poverty. New York: Mentor Book; LEWIS, Oscar. (1960) Tepoztln: Village In Mexico; LEWIS, Oscar. (1961) The Children Of Sanchez: Autobiography Of A Mexican Family. New York: Vintage; LEWIS, Oscar. (1966) La Vida: A Puerto Rican Family In The Culture Of Poverty San Juan And New York. New York: Random House.
6 Cf. BELMONTE, Thomas. (1979) The broken fountain. New York: Columbia University Press; HANNERZ, Ulf. (1969) Soulside: inquiries into ghetto culture and community. New York: Columbia University Press; LEEDS, Anthony, and LEEDS, Elizabeth. (1978) Sociologia do Brasil Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editoes; LIEBOW, Elliot. (1967) Tallys Corner: a study of Negro streetcorner men. Boston: Little, Brown and Company; LOMNITZ, Larissa. (1977) Networks and marginality: life in a Mexican shantytown. New York: Academic Press; MANGIN, William. (1974) Latin American squatter settlements: a problem and a solution. In: Contemporary cultures and societies of Latin America: a reader in the social anthropology of Middle and South America. New York: Random House; PERLMAN, Janice. (1976). The myth of marginality: urban poverty and politics in Rio de Janeiro. Berkeley: The University of Berkeley Press; SAFA, Helen Icken. (1974) The urban poor of Puerto Rico: a study in development and inequality. New York: Holt, Rinehart and Winston; SENNETT, Richard, and COBB, Jonathan. (1972) The hidden injuries of class. New York: Knopf; STACK, Carol. (1974) All our kin: strategies for survival in a Black community. New York: Harper & Row; VALENTINE, Bettylou. (1978) Hustling and other hard work: life styles in the ghetto. New York: The Free Press, a Division
of Macmillan; e WHITEFORD, Michael. (1976) The forgotten ones: Colombian countrymen in an urban setting. Gainesville, Florida: The University Presses of Florida.
7 Cf. WALLERSTEIN, Immanuel. (1974) The modern world-system. New York: Academic Press; FRANK, Andre Gunder. (1967) Capitalism and underdevelopment in Latin America. New York: Monthly Review Press; CARDOSO, Fernando Henrique, e FALLETO, Enzo. (1969) Dependencia y desarrollo en Amrica Latina. Mexico, D.F.: Siglo XXI; EVANS, Peter. (1979) Dependent development: the alliance of multinational, state, and local capital in Brazil. Princeton, New Jersey: The Princeton University Press; e SANTOS, Theotnio dos. (1971) The Structure of Dependence. In: FANN, K. T., e HODGENS, D. C. (eds). Readings in U.S. Imperialism. Boston: Porter Sarges Publications.
8 Numa recomendao (28 de janeiro de 1985) Peggy Barlett escreveria: John Dawsey is an outstanding student with great potential as a professional researcher, academic, or public servant. He has unusual analytic skills, and profound dedication to the Brazilian problematic, which make him a dedicated and hard-working student. I found his ability to master the anthropological approach in the courses he took with me to be superior to all the other graduate students I have worked with. He is voracious in his reading, and committed to mastery not only of one narrow field of study but to a broad interdisciplinary synthesis of the theories and data of development, the transformation of urban cultures, and the impact of international relations on the lives of the people he has studied. Johns writing is extremely cogent and well-organized, and I am impressed with his critical abilities as well. I am sure he would be an outstanding graduate student in the best departments in this country. Essa recomendao no deixa de produzir um efeito espectral.
9 Cf. WOLF, Eric. (1982) Europe and the people without history. Berkeley and Los Angeles: University of California Press.
10 Assim leio os seus livros: BURKE, Kenneth. (1966) Language as symbolic action. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press; BURKE, Kenneth. (1950) A rhetoric of motives. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press; e BURKE, Kenneth. (1945) A grammar of motives. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press.
EMORY UNIVERSITY: THE GRADUATE INSTITUTE OF THE LIBERAL ARTS
36 MEMORIAL 37
retorno ao buraco dos capetas
36 MEMORIAL 37
Em 1982 voltei ao Brasil e Universidade Metodista
de Piracicaba.1 Eu estava decidido a fazer uma pesquisa
etnogrfica no buraco dos capetas. Naquele ano,
porm, como integrante da Pastoral Universitria,
apenas acompanhei as reunies de favelados que
estavam se organizando numa associao. Em 1983,
aps ter pedido uma licena da universidade, fui morar
no buraco o Jardim das Flores num cmodo caiado
encostado no barraco de Anaoj e Mr Z. Morei naquele
cmodo de abril a dezembro de 1983.2 Agonizante, o
regime militar chegava ao fim. Era poca das Diretas
J. Tancredo Neves seria eleito presidente em fins de
1984, falecendo no incio do ano seguinte. Com seu
martrio, inaugurava-se a Nova Repblica. Um Brasil
se recriava. Plus a change.... Em 1984, irromperiam as
greves de bias-frias de Guariba e Bebedouro. Nesse
ano, tambm ocorreriam as reunies organizadoras do
Movimento dos Sem-Terra.3
Em 1984 e 1985, continuei a fazer visitas regulares
famlia de Anaoj e outros conhecidos da favela, passando
a noite ocasionalmente no meu cmodo. Virei assessor
do Ncleo de Documentao Regional da Universidade
Metodista de Piracicaba. Em junho de 1985, voltei aos
Estados Unidos. Retornaria ao Brasil apenas em 1989.
A idia de que essas pessoas construam as casas
e os edifcios da cidade, morando em barracos feitos
dos restos dessas obras de construo, no deixava de
ser provocativa. Da mesma forma, o fato de que as
mulheres faziam a limpeza da cidade ao mesmo tempo
em que habitavam os locais mais ftidos do permetro
urbano tambm suscitava expresses de ironia, na
vizinhana do Jardim das Flores e nas reunies da
Associao de Favelados. Creio, porm, que a imagem
mais inslita criada a partir das tenses sociais do
momento era a do bia-fria. Talvez uma pesquisa
emprica mostrando que muitos, seno a maioria (ou
quase todos?), dos moradores do Jardim das Flores e
de outros bairros e favelas da periferia de Piracicaba
haviam em algum momento de suas trajetrias passado
pela experincia de cair na cana, tornando-se bias-
frias, fosse significativa. Porm, a experincia de cair
na cana no tem a ver apenas com aqueles que de
fato chegaram a trabalhar nos canaviais. Trata-se de
um drama social que em determinada poca povoou
se que no continua a rondar o imaginrio das
pessoas da regio, tanto as de periferia quanto as
do centro. Em 1984, como foi mencionado acima,
surgiu o MST Movimento dos Sem-Terra. Atenes
se deslocam. Acompanhei os bias-frias num
momento em que eles estavam prestes a virar fsseis
recentes da produo acadmica.
Piscadelas de caveiras.... O que dizer da seduo da
Jardim das Flores o buraco dos capetas? Afinal, a
imagem que, em 1978, apareceu como um detalhe
no canto de uma janela, como algo surpreendente,
seduziu um futuro pesquisador fazendo com que ele
descesse imediatamente do nibus para ver de perto.
O pesquisador quis fazer pesquisa nesse local. Havia
dimenses inconscientes nessa atrao? Reagia a
impulsos antropolgicos inconscientes numa busca
das origens? Em 1983, sob a proteo de uma me
preta, ele descobriria uma espcie de frica no
buraco. Foi chamado de Joo de Anaoj. Virou
Joo Branco. E gostou mais ainda quando, ao estilo
de um Macunama invertido, comeou a mudar de cor.
Cinzas e melao de cana cobriram a sua roupa, Virou
assombrao, provocando gargalhadas. Eu sabia
que voc era loiro, mas que era preto eu no sabia.
Teria sido o pesquisador (eu mesmo!) seduzido pela
possibilidade de ser outro?
Outros tambm foram seduzidos. Em 1978, o
novo reitor da Unimep, Elias Boaventura, anunciava ser o
Projeto Periferia a prioridade de sua gesto. Em 1982,
num encontro da Associao de Favelados com entidades
de apoio, o Prof. Jos Machado, lder do PT, afirmou: Eu
considero que a Associao de Favelados a melhor coisa
RETORNO AO BURACO DOS CAPETAS
38 MEMORIAL 39
que aconteceu em Piracicaba nos ltimos vinte anos!
Na abertura do I Congresso Piracicabano de Favelados,
em 1983, Padre Otto Dana declarou: Este Congresso
o fato mais importante da histria de Piracicaba! O
buraco dos capetas se revestia de aura.
Mas, em registros de cadernos de campo a
aurola dos pobres cheira a enxofre. (Poucos se
candidatam ao papel de vaca sagrada da ndia.)
Detectavam um engodo? Reagiam aos efeitos de
poder da representao sobre o representado? Na
encenao da opo preferencial pelos pobres
esperava-se que o pobre desempenhasse seu papel
de pobre sem vez e sem voz. Mas, no contra-
teatro dos pobres, tomava-se distncia de papis
sociais. Interrompia-se a identificao do pobre com
o pobre, e o discurso sobre o pobre, que se faz
em seu nome. Pobres impediam a naturalizao da
pobreza. Assim, a enfrentavam. De alguma forma, era
preciso encarar a realidade da favela sem se identificar
com o papel de favelado. E era preciso fazer acordar
o pesquisador: Ns est no c dos infernos!
Muitos seno todos os que se identificaram com
os pobres do Jardim das Flores, at meados dos
anos oitenta, acabaram se retirando. O investigador
que fez as anotaes nos cadernos de campo foi
um dos primeiros a sair, logo em 1985. Mais tarde
acabou defendendo uma tese nos Estados Unidos. A
Unimep tambm retiraria seu programa de apoio
favela. Havia rumores a esse respeito: a universidade
pretendia investir na vinda de um jogador de basquete
dos Estados Unidos atravs de contatos com uma
multinacional com filial em Piracicaba. Alunos da
Esalq viraram engenheiros agrnomos. O PT ganhou
as eleies para a Prefeitura em 1989. Alguns de
seus quadros se destacaram a nvel nacional. A
Nova Repblica de Tancredo Neves eventualmente
tambm parece ter se fortalecido. Alguns de seus
sonhos e esperanas podem ser encontrados na
histria originria do Jardim das Flores.
Por outro lado, podendo sair daquela misria, quem
entre os mortais l ficaria? Mr Z, Anaoj, e vizinhos
viviam pensando em um jeito de sair do buraco
claro, sem cair num outro maior.
Nesse paronama de xodo generalizado, h uma
exceo que pode confirmar a regra. O frei franciscano
que foi morar num barraco no buraco dos capetas
ali permaneceu. At o dia em que morreu. No centro
do Jardim das Flores ele construiu uma catedral. O
povo do Sarav acabou procurando outros bairros
onde morar.
De acordo com Victor Turner um antroplogo que
despertaria meu interesse a partir dos anos de 1990
a liminaridade temporria freqentemente acaba
fortalecendo o ser liminar e revitalizando as estruturas
da sociedade. Inclusive, assim parece funcionar
no Brasil a lgica da Igreja, a poltica partidria e a
pesquisa de campo na antropologia. Como Roberto da
Matta demonstra, antroplogos tambm sonham em
ser santos, heris ou xams.4 Por sua vez, se os
favelados antes estavam num estado de liminaridade,
ali continuam a estar. No Jardim das Flores aprende-se
que o estado de exceo a regra.5 um bom lugar
para aprender essa lio.
Quem era esse frei franciscano? Era um dos irmos de
urea Sigrist, a minha diretora do Ginsio Vocacional.
38 MEMORIAL 39 RETORNO AO BURACO DOS CAPETAS
1 Naquele ano, antes de sair dos Estados Unidos, pagando uma taxa de cinco dlares, eu havia trocado o meu nome de John para Joo. Durante os prximos sete anos, dada a falta de vontade das autoridades brasileiras para homologar aquilo que cinco dlares haviam conseguido fazer, seria Joo no meu passaporte americano e John no meu passaporte brasileiro.
2 Em novembro daquele ano, um renascimento: meu namoro com a Cludia.
3 A Universidade Metodista de Piracicaba parecia entrar em relao mimtica com eventos que ocorriam a nvel nacional e at mesmo internacional. Falava-se muito em Nicaragua. No Salo Nobre da universidade ocorreriam vrios eventos: A Semana Pela Paz e Vida na Amrica Latina, com a presena de lderes nicaraguenses; o Seminrio Internacional de Educao Popular, o Forum Nacional de Educao Popular, a homenagem de doutor honoris causa a Dom Helder Cmara; as palestras de Paulo Freire; o Primeiro Congresso Nacional de Favelados em Piracicaba. Houve uma tentativa por parte de algumas lideranas da Igreja Metodista de remover o reitor, fato que provocou uma reao de professores e alunos da universidade, metodistas e no metodistas, que passaram a ocupar o campus, impedindo o golpe. Nessa poca, lideranas ligadas Associao de Favelados se fizeram presentes no ptio do campus centro da universidade, demonstrando apoio ao reitor ameaado.
4 Cf. DA MATTA, Roberto. (1978) O ofcio do etnlogo, ou como ter anthropological blues. Boletim do Museu Nacional. Antropologia, no. 27, maio, p. 4.
5 BENJAMIN, Walter. (1985) Sobre o conceito de histria. In W. Benjamin. Obras escolhidas: magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, p. 226.
40 MEMORIAL 41
da pedagogiado oprimido cultura proletria:
A TESE DE DOUTORADO
40 MEMORIAL 41
Em 1984, publiquei um artigo em revista sobre
educao popular, com prefcio de Paulo Freire.
Entusiasmando-se com o artigo, o presidente do
diretrio local do Partido dos Trabalhadores organizou
um encontro para debater o que eu havia escrito.
RESUMO Pedagogia do oprimido e resistncia de intelectuais orgnicos da classe trabalhadora.1 A resistncia de grupos oprimidos pedagogia do oprimido, ou melhor, a vanguardas instrumentalizadas com conceitos dessa pedagogia, merece ateno. O problema refere-se s reaes de massas trabalhadoras a iniciativas de vanguardas oriundas de outros estratos sociais, vistas por trabalhadores como elementos estranhos, talvez ameaadores. Nem sempre as vanguardas percebem a resistncia que provocam. Se, em alguns casos, ela assume a forma de um confronto direto e verbal, em outros se verifica um boicote discreto e silencioso. Aqui e ali se encontram indcios de uma participao passiva. O que dizer dessa operao tartaruga? Resistiriam os oprimidos do mundo do trabalho em razo de uma atividade prtica e intelectual autnoma que aflora, de forma mais ntida, num processo de surgimento de suas prprias lideranas?
Uma observao: as vanguardas idealizadas pela pedagogia do oprimido levam as marcas de um paternalismo franciscano. Sua trajetria consiste numa caminhada simultaneamente dolorosa e alegre at o povo, partindo de uma renncia dos privilgios da classe opressora para comungar com os oprimidos e com eles ressurgir. O incio do processo de libertao dos oprimidos passa a depender de uma doao autntica e integral das vanguardas no-orgnicas que se fazem orgnicas. O pressuposto de que as massas passivas precisam ser inseminadas por um agente externo. Sem terem nascido do ventre das massas, as vanguardas o fecundam. Melhor, procurando conformar-se s propores desse ventre, as vanguardas nele penetram para dele renascerem. Ou seja, o ventre das massas trabalhadoras gera da mesma forma que uma virgem Maria. Mas, talvez intelectuais orgnicos de uma classe trabalhadora em gestao se recusem a fazer o papel de uma virgem Maria.
O interesse por Gramsci e processos de organizao
cultural tambm se evidenciaria na tese de doutorado,
defendida em 1989.
RESUMO Vila Vitria: The Emergence of Proletarian Culture.2 Na antropologia da pobreza urbana de Oscar Lewis gerao crtica que o seguiu se detectam trs categorias subjacentes: 1) traos da cultura dominante ou hegemnica (dominant or mainstream culture traits); 2) traos de adaptao positiva pobreza (poverty-adaptive traits); e 3) traos negativos da marginalidade (negative traits of marginality). A crtica da nova gerao aos estudos de Oscar Lewis teve um desenlace irnico.3 Suprimindo os traos negativos, os novos estudos deixam de perceber significativos processos de organizao cultural. No mpeto de desmascarar o mito da marginalidade corre-se o risco de encobrir, conforme uma expresso de Antonio Gramsci, os indcios de iniciativa autnoma. E os lampejos onde se poderia detectar o primeiro brilho de uma conscincia de classe a atitude bsica, negativa, polmica se obscurecem. Da mesma maneira como manifestaes de rebeldia freqentemente so alijadas do mundo do trabalho, elas se associam, no universo terico dos estudos da pobreza, com a reao negativa da marginalidade. Qualidades que se associam a trabalho, reciprocidade e rebeldia se recortam em categorias distintas. Processos de unificao so teoricamente fendidos.
Em Vila Vitria, uma favela da periferia de uma cidade do interior paulista, procurei estar atento ao modo como diferentes traos culturais se articulam. Da, o interesse em detectar a maneira como surgem lideranas em redes de parentesco, relaes de trabalho e movimentos sociais. Em meio s ambivalncias, ambigidades, e contradies observam-se processos de organizao cultural.
A literatura sobre pobreza urbana, eu descobria,
pressupunha trs categorias para anlise de traos culturais
do proletariado intermitente de favelas, cortios, e
guetos. As categorias eram assim delineadas:
DA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO CULTURA PROLETRIA: A TESE DE DOUTORADO
42 MEMORIAL 43
1. Traos da cultura dominante ou hegemnica
(dominant or mainstream culture traits): Elementos
freqentemente associados tica do trabalho,
honestidade, obedincia, respeito propriedade
privada, disciplina, pontualidade, estabilidade da
famlia, e ascenso social do indivduo. Tais traos
promovem formas de participao e cidadania
compatveis com processos de acumulao de capital.
2. Traos de adaptao positiva pobreza
(poverty-adaptive traits): Como sobreviver em meio
s crises contnuas que caracterizam situaes de
marginalidade e pobreza? Atenes se voltam
a um conjunto de elementos. Em destaque, as
redes de parentesco e vizinhana. Amizade.
Ajuda mtua. O princpio da reciprocidade. Ritos
igualitrios e mecanismos niveladores dificultam
a ascenso social do indivduo. E desestimulam a
adoo de comportamentos associados cultura
dominante. Trata-se da adaptao sem alterao
das circunstncias. Enfim, um desdobramento: a
perpetuao da pobreza.
3. Traos negativos da marginalidade
(negative traits of marginality). Configuram-se os
elementos de uma reao negativa. Alienao,
revolta, frustrao e violncia. Fuga da realidade.
Alcoolismo. Consumo elevado de drogas. Roubo.
Depredaes. Raiva que vem da fome. Incapacidade
para planejar o futuro. Capacidade para o caos.
Trata-se de um conjunto de traos caractersticos de
populaes instveis. Indisciplina. Instabilidade familiar.
Suscetibilidade influncia de lderes carismticos e
grupos radicais. Desemprego intermitente. Subemprego.
Averso ao trabalho. Desorganizao cultural.
As trs categorias acima delineadas no deixam
de ser interessantes para anlise de contradies e
conflitos na populao trabalhadora. Podem revelar
prticas e valores entre trabalhadores que no se
unificaram perante problemas e adversrios comuns.
Podem captar processos culturais entre os pobres
que esto sob o feitio da cultura dominante.
Trabalhadores se expressam em termos de uma sub-
cultura, ou seja, da subordinao cultural. Mas, eu
procurava detectar sinais de autonomia cultural.
Hoje olho para essa tese com estranhamento. Mesmo
assim, ali encontro elementos de uma reflexo original.
Originria. No clculo do lugar olhado das coisas, as
atenes se voltam s margens, s manifestaes que
levam o estigma de um valor negativo. Ao interagirem com
outros elementos, considerados sob o signo de valores
positivos, tais manifestaes podem suscitar processos
culturais criativos. Da, a necessidade de rever a crtica que
se fazia aos estudos de Oscar Lewis. Na tentativa de focar
os elementos positivos da cultura da pobreza, corria-se
o risco de suprimir indcios de autonomia cultural.
Talvez o mrito maior dessa tese de doutorado tenha
a ver com o modo como se problematiza o recorte
terico dos estudos sobre pobreza urbana. O esforo
que se detecta nesses estudos para identificar diferentes
categorias de traos culturais desvia as atenes de
processos que ocorrem em espaos intermedirios, entre
categorias. A tese sugere uma complexidade maior na
construo de personagens. Procura-se focar contradies
e reas de ambigidade. Embora a inspirao, nesse
momento, venha do pensamento de Antonio Gramsci,
possvel encontrar nesse experimento acadmico
afinidades com a dramaturgia de Bertolt Brecht, que
despertaria meu interesse a partir dos anos de 1990.
Nossas esperanas esto nas contradies.4
Um processo de organizao cultural surge como
lugar tenso terra de ningum. Estaria a teologia, tal
como a mulher serpente que encontrei num parque de
diverses em Aparecida, mostrando o seu rabo? Hoje
me espanto ao ver como, nessa tese, cultura proletria
adquiria as qualidades que o esquema semntico de
42 MEMORIAL 43
Manfred Hoffman, meu professor de teologia dos anos
de 1970, atribua segunda pessoa da santa trindade
uma espcie de coincidentia oppositorum. Eu procurava,
talvez, um evento da linguagem.
Infelizmente, acredito, a tese no deixou de se
apresentar como um evento de reificao. Categorias
se transformam em coisas. Viram megaconceitos. E
fetiches. Pairam sobre o texto. Fantasmagricas, ganham
vida prpria. Afinidades com Oscar Lewis: em lugar de
cultura da pobreza, temos a cultura proletria.
Inclusive, no singular. O buraco dos capetas que na
tese ganha o nome de Vila Vitria vira caso ilustrativo.
O nome sinaliza os traos de uma metanarrativa.
Uma etnografia se mobiliza para ilustrar ou recriar a
organizao cultural de trabalhadores. Cultura
proletria se reveste de aura. Manifestam-se aspectos
no resolvidos da vida social? Talvez. Acima de tudo,
porm, nesta tese um pesquisador (eu mesmo) mostra
a sua impacincia. Busca-se e, at mesmo, acredita-se
encontrar a coerncia da contradio.
Mesmo assim, as discusses da tese ainda podem
suscitar interesse. Trs campos de investigao se
delineiam: 1) bias-frias, 2) movimentos sociais,
e 3) redes de parentesco e vizinhana. Em relao
ao primeiro, busca-se discutir relaes de trabalho
em canaviais. Emergem contradies. Por um lado,
o estigma do bia-fria. Cair na cana sinaliza
processos de alienao. Ritos de deboche em
carrocerias de caminhes manifestam a revolta contra
o trabalho. Raiva e melancolia. E a chamada reao
negativa da marginalidade.
Por outro, tambm se ilumina em registros de
cadernos de campo o prestgio, entre bias-frias,
da figura do trabalhador. Disposio para o trabalho
apresenta-se como valor. Em ritos de medio de cana
cortada, ressalta-se a admirao nas turmas pelos colegas
mais produtivos. E, ao mesmo tempo, o desprezo ou
nojo virando dio por um turmeiro gatuno.
DA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO CULTURA PROLETRIA: A TESE DE DOUTORADO
Em greves espontneas de turmas em caminhes
se encontram indcios de organizao cultural. Surgem
lideranas. Uma surpresa: a figura do malandro, e do
ladro que mais rouba, coincide com a do melhor
trabalhador. Coincidem rebeldia e disposio para o
trabalho. Greves so tecidas em redes de reciprocidade
sob o signo do gnero feminino.
Os levantes de bias-frias de Guariba e
Bebedouro, em 1984, evocam processos semelhantes.
Nos pressupostos das anlises que privilegiam
comportamentos positivos de bias-frias, e sua
busca de cidadania tais como vemos em escritos
de Maria Conceio DIncao se encontram afinidades
com os dos crticos de Oscar Lewis.5
Um segundo campo de investigao refere-se
Associao de Favelados de Piracicaba, que surgia,
no incio dos anos de 1980, em oposio poltica de
remoo de favelas. Resistiam moradores aos projetos de
urbanizao da Prefeitura? Ao mesmo tempo, lutaram
pela urbanizao de favelas. Insurgiram contra o mito da
marginalidade. Apresentaram-se como trabalhadores
honestos. Fizeram a crtica aos interesses de construtoras
e imobilirias que se camuflavam em discursos sobre o
bem pblico. Mostravam como as favelas supriam a
mo-de-obra da indstria da construo. A mesma
que removia favelados de suas habitaes, lanando-
os para periferias cada vez mais distantes dos centros
da vida urbana. A priso do presidente da Associao,
quando, com vizinhos, se abria uma rua numa favela,
seria possivelmente o momento mais expressivo de sua
liderana. Urbanizava-se uma favela? Ao mesmo tempo,
a priso evocava uma figura de marginal. O discurso
de lideranas sobre o carter pacfico do movimento
que despertava simpatia entre aliados de igrejas se
transforma. Irrompem imagens de violncia. Ao mesmo
tempo, no embate com a Prefeitura, relaes com
setores da Igreja Catlica e Universidade Metodista se
estreitam. Em meio aos rumores de que o presidente
44 MEMORIAL 45
da Associao estaria seguindo orientaes de aliados
mais do que dando direo prpria ao movimento, sua
liderana comea a decair. Deixava-se de ocupar o lugar
tenso que se configura no centro das contradies. No
era mais coincidentia oppositorum.
Creio que as questes mais interessantes, porm, se
configuram num terceiro campo, referente s relaes
de gnero e redes de parentesco e vizinhana. Em torno
de figuras do gnero feminino se tecem redes sociais e
se organizam estratgias de sobrevivncia. Ali fulguram
imagens de mes. Diante das ameaas recorrentes
de fome e esgotamento de recursos vitais mulheres
pressionam companheiros e filhos desempregados
a venderem sua fora de trabalho no mercado. Eis
a questo: virar bia-fria. Em meio relutncia
de quem no queria cair na cana, criticava-se.
Insultava-se. Problematizava-se o homem refratrio.
A violncia s vezes irrompe em tais situaes. A figura
da mulher sofredora, construda e m confronto com a
brutalidade do homem, podia provocar o surgimento
de uma onda de sentimento comunitrio, aumentando as
presses contra homens rebeldes, e, conseqentemente,
reforando processos de arregimentao.
Eis uma imagem recorrente: mulheres pressionam
homens a trabalhar. Ao mesmo tempo revelia da idia
de uma espcie de arregimentadora dependente do
trabalho masculino formam-se, em torno de imagens
de mes e mulheres, redes de proteo. Baseadas em
princpios da ddiva, tais redes ajudam trabalhadores a
sobreviver durante as crises recorrentes de fome, doena,
e desemprego. Tomando as dores de trabalhadores
alijados do processo produtivo, mes e mulheres
sofredoras legitimam seus papis sociais.
Redes matrifocais s vezes se tornavam particularmente
eletrizantes. Chama ateno, nesses momentos, a
metamorfose de mulheres. Doidas de raiva insurgiam
contra foras vistas como sendo responsveis pela
explorao da mo-de-obra da famlia.
Enfim, a mulher sofredora desempenha um papel
ambguo diante das foras de arregimentao. Se, por
um lado, ela capaz de pressionar homens refratrios,
reforando processos de arregimentao, por outro,
ao perceber que membros de sua rede incluindo os
refratrios esto sendo castigados pela violncia do
processo de trabalho, a mulher sofredora pode voltar-
se com fria contra as prprias foras de arregimentao.
A representao de mulheres de Vila Vitria como
sofredoras vitimadas por homens refratrios da classe
trabalhadora ocasionalmente reforada por agentes de
instituies externas. Trata-se possivelmente de uma
construo ideolgica. Embora atenda parcialmente a
anseios que se manifestam em redes matrifocais, tais
processos de vitimizao no deixam de contribuir
ao acirramento de conflitos de gnero, reforando um
alinhamento de mulheres com foras de arregimentao.
Como visto, as mulheres de carne e osso de Vila Vitria
exibem uma postura mais complexa. Embora pressionem
homens a trabalhar, tambm se voltam s vezes com raiva
contra os que castigam trabalhadores. Essa postura
dialtica, mas unificada, rompida e ideologicamente
reconstituda nas figuras da mulher sofredora
(quando mulheres enfrentam homens rebeldes da classe
trabalhadora) e da mulher doida (quando mulheres
enfrentam os poderes da sociedade).
Existem duas perspectivas na literatura sobre
matrifocalidade que tentam explicar as origens da
liderana d