A PALAVRA E SUAS REPRESENTAÇÕES NA TEORIA DA RELEVÂNCIA
Nilsa Teresinha Reichert Barin*
As pessoas dirigem a palavra umas às outras sempre movidas por alguma
intenção. Por meio desse comportamento verbal, geralmente bem articulado, o processo
inferencial pode ser alcançado, e mais, com o êxito esperado pelo comunicador. A
comunicação, em todas as suas formas, exige a participação ativa de quem a produz e de
quem a recebe, com o propósito essencial e intencional de alcançar o interocutor. Com
esse intuito, a Teoria da Relevância, nos anos oitenta, abriu uma nova possibilidade para
a análise da comunicação em que processos inferenciais são realizados naturalmente
pelas pessoas e que, enquanto processos interpretativos, devem ser julgados como
eficientes ou não.
Nesse processo, a palavra é fundamental para o desenvolvimento da língua, pois,
em diferentes contextos, pode desempenhar papéis essenciais ou não, mas sempre, em
qualquer caso, transforma experiências subjetivas do mundo em significados
compartilhados. Embora seja considerada recente, a Teoria da Relevância, de amplo
potencial descritivo e explanatório, certamente auxilia na representação da palavra em
diferentes contextos e, assim, procura desvendar os múltiplos aspectos da significação
no processo comunicacional.
O modelo ostensivo inferencial: a Teoria da Relevância
Desde os anos 60, quando a Lingüística Textual surgiu para avaliar o que faz de
um texto um texto, muitas discussões teóricas orientaram-se por esse complexo
fenômeno de proposições semânticas como uma das formas específicas de manifestação
da linguagem.
* Professora do Curso de Letras do Centro Universitário Franciscano - UNIFRA, RS
Inicialmente, o texto era visto como uma unidade superior à frase ou apenas uma
combinação de frases. Para as teorias pragmáticas, o texto é um fenômeno psíquico,
ocasionado por processos mentais, concebido como resultado parcial de nossa atividade
comunicativa que compreende operações e estratégias que têm lugar na mente humana e
que são postas em ação em situações concretas de interação social. Dessa perspectiva,
textos são resultados da atividade verbal de indivíduos socialmente atuantes que
coordenam suas ações no intuito de alcançar um fim social em conformidade com as
condições sob as quais essa atividade verbal se realiza. Entretanto, possibilidades de
processamento de informação inerentes à compreensão humana têm sido
insuficientemente discutidas nas abordagens conhecidas da Lingüística Textual.
Na década de 80, A pragmática cognitiva, como a Teoria da Relevância, de Dan
Sperber e Deirdre Wilson, abriu novas possibilidades de análise do processo
comunicacional, privilegiando o caráter inferencial não-demonstrativo da compreensão,
isto é, um processo inferencial que é espontaneamente realizado pelo ser humano em
forma de hipóteses e que pode ser julgado como bem-sucedido, malsucedido ou como
mais ou menos eficiente. Os autores da Relevância desenvolvem uma teoria da
comunicação voltada para a compreensão de enunciados, com ênfase na ostensão, que
focaliza as evidências dos pensamentos do comunicador, e na inferência, que modifica e
aumenta o conhecimento dos interlocutores envolvidos em atos de comunicação
naturalmente intencionais. Um dos aspectos fundamentais dessa teoria cognitiva é
defender duas propriedades inseparáveis da comunicação humana: da parte do
comunicador, ela deve ser ostensiva; da parte do ouvinte-leitor, deve ser inferencial,
pois este processará as informações a partir do comportamento ostensivo do emissor.
É da natureza de todo ser humano prestar atenção ou se preocupar com estímulos
que vêm ao encontro de seus interesses: a Teoria da Relevância caracteriza uma
abordagem pragmático-cognitiva que toma por base um aspecto inerente à cognição
humana – os indivíduos prestam atenção apenas a fenômenos que lhes parecem
relevantes.
Como qualquer outro efeito perceptual, um enunciado pode ou não atrair nossa
atenção. Para Sperber e Wilson (1995), o emissor, ao produzir um enunciado, torna
mutuamente manifesto, ou mais manifesto, um conjunto de suposições – uma intenção
de informar e de alcançar efeitos cognitivos. Assim, o enunciado é um efeito ostensivo,
uma evidência direta da intenção informativa do falante. Na verdade, o modelo explica
como o emissor atrai a atenção do ouvinte-leitor por estímulos ostensivos e o modo
como este processa inferências em sua atividade interpretativa. O esforço de
processamento mental requer algum esforço de atenção, memória e raciocínio, enquanto
que o efeito cognitivo é alcançado quando houver alteração do modo como o sujeito vê
o mundo, isto é, suas crenças e suposições.
Conforme postulam Sperber e Wilson(1995), toda informação que chega até nós
de forma involuntária, forte em efeitos contextuais e econômica no esforço de
processamento, caracteriza um ato de ostensão. No texto em geral, a mensagem deve ser
“um estímulo ostensivo e relevante” para atrair a atenção do leitor-ouvinte a fim de que
possa ser processado inferencialmente. Nesse quadro teórico, se os enunciados não
constituírem estímulos ostensivos, serão apenas signos vazios. Para demonstrar como se
dá a interpretação, os autores apresentam um sistema inferencial em que os sujeitos
podem construir hipóteses através da percepção, da decodificação lingüística, das
deduções e do conhecimento enciclopédico armazenado na memória.
Para a teoria, uma informação é considerada relevante se for ao encontro de
suposições que o ouvinte já tem armazenadas sobre o mundo, tendo como resultado uma
nova suposição. Pode, no entanto, uma informação confirmar uma suposição que já se
tem ou pode contradizê-la. A essa mudança de opinião a que o indivíduo está sujeito,
com base no processo comunicativo, Sperber e Wilson(1995) deram o nome de efeitos
contextuais(cognitivos).
Nesses termos, estendendo o processo inferencial à questão da leitura,
podemos dizer, via paráfrase de Francis Bacon, que lemos não para refutar ou
contradizer, nem para crer ou pressupor, nem para achar assunto ou conversa, mas
para pensar e considerar. Se conseguirmos fazer o nosso interlocutor –o aluno-
pensar, teremos atingido o nosso objetivo na docência.
A leitura é um trabalho extremamente sofisticado, porque há várias atividades
que devem ser realizadas para processarmos a comunicação. Como afirma
Kleiman(2001), “ignoramos muitas vezes, na prática, o fato de a leitura ser a
atividade cognitiva por excelência”. O complexo ato de ler e compreender começa a
ser desvendado se aceitarmos o caráter multifacetado desse processo que envolve
percepção, memória, processamento, inferência, dedução e contexto.
A leitura é um processo de seleção como um jogo, onde há avanços e recuos
para a correção, não é linear, progride em pequenos blocos e não produz compreensões
definitivas.
Nessa perspectiva de compreensão de textos ou enunciados, a Teoria da
Relevância é essencialmente preocupada com a compreensão de enunciados numa
abordagem de textualidade diferente das teorias lingüísticas de texto até então
conhecidas, defendendo, em perspectiva pragmática, que coesão e coerência não são
fatores de textualidade tão absolutamente necessários para a construção de sentido do
texto e que, muitas vezes, são meros recursos de linguagem dos quais o sentido não
depende.
Toda atividade cognitiva - ou interpretativa - humana depende, de certa forma,
da interação entre os conhecimentos internalizados ao longo da vida e da aquisição de
novas crenças. Esse conhecimento de mundo, também chamado de enciclopédico, é o
que está armazenado em nossa memória, ajudando a suprir as lacunas ou vazios
encontrados no texto oral, escrito ou mesmo na comunicação não-verbal na busca de
inferências para a compreensão.
Sem dúvida, os conhecimentos de mundo ajudam a preencher lacunas
encontradas nos textos, porque são informações armazenadas na memória e ativadas
sempre que houver necessidade, resultando normalmente em inferências acionadas por
informações cognitivas e sensório-perceptuais do indivíduo, do seu contexto mental,
bem como do seu contexto sociocultural. Como a noção de inferência está ligada a
conceitos pragmáticos, o autor de textos ( e aí se incluem as propagandas ) se vê diante
de alguns conflitos, pois, embora não possa ter certeza do que o seu público vai inferir,
busca tornar acessível e reveladora a sua intenção de comunicar e informar.
Para S-W (1995), o contexto deve ser entendido num nível de representações
mentais, como um conjunto de suposições trazidas à mente durante o processamento do
enunciado ou texto. Enquanto seleciona o contexto para processar as suposições, o
ouvinte/ leitor é guiado pela busca da relevância, porque tenderá a construir as
representações mais relevantes possíveis dos fenômenos disponíveis e a processá-las
com o menor custo possível, visando à eficiência da compreensão.
Percebe-se, assim, que os autores da Teoria da Relevância vinculam a linguagem
fortemente à cognição humana, defendendo a possibilidade de que aquilo que é
comunicado é algo que pode ser representado na mente, isto é, um pensamento, um
desejo, atitudes ou crenças. Nesse sentido, configuram pensamentos como
representações conceituais, enquanto contrárias a representações sensórias ou a estados
emocionais, e acreditam que suposições são os pensamentos do indivíduo como se
fossem representações do mundo real. Nesses termos, S-W(1995, p.68) definem a noção
de inferência como:
É o processo cognitivo conceitual pelo qual uma suposição é aceita como verdadeira ou provavelmente verdadeira, baseada na força da verdade ou provável verdade de outras suposições.
Considerando esse quadro teórico, as representações semânticas codificadas
lingüisticamente na comunicação humana são estruturas mentais abstratas que devem
ser inferencialmente completadas e enriquecidas com base nas intenções do
comunicador, ou seja, a estrutura lingüística da sentença apenas subdetermina o que é
inferencialmente comunicado, implicando que a semântica lingüística, ao mapear
expressões da linguagem natural em conceitos, é apenas um input para um processo
inferencial de compreensão, conforme Silveira (1997 a).
O modelo de código tradicional que sustentava os processos de produção e
compreensão de textos e entendia a comunicação como apenas a transmissão de uma
mensagem, sem considerar o contexto que é fundamental para a Teoria da Relevância,
era uma estrutura que se aplicava a situações em que os interlocutores compartilhavam
o domínio da mesma variedade lingüística e com o mesmo desempenho, o mesmo
conhecimento prévio. E isso não existe. O que se entende no modelo de código é o
princípio de codificar e decodificar idéias, empacotar e desempacotar apenas. No
exemplo “Você não vai se mexer?”, a Teoria de Código responde sim ou não à
pergunta, porque não considera a influência do universo cultural cognitivo e, por isso,
não entende a pergunta como uma ordem, um pedido de ação, uma ameaça ou uma
repreensão. No modelo inferencial , a resposta não será sim ou não. Imaginemos o
seguinte contexto: a mãe preocupada vendo o filho deitado e despreocupado no sofá e
diz: - você não vai se mexer? O enunciado será compreendido como um pedido de ação,
uma ameaça, um alerta, etc..
No exemplo a seguir, citado por Silveira e Feltes(1997), o modelo inferencial
explicita a questão:
Paulo: - Você quer café?
Ana: - Café me manteria acordada.
Existem duas possibilidades interpretativas: ou é um aceite porque Ana precisa ficar
acordada por qualquer motivo ou é uma recusa porque precisa dormir.Esses fenômenos
de difícil tratamento pelo modelo de código foram abordados por Grice através da
noção de implicatura e foi ele quem deu o impulso para uma nova abordagem do
modelo comunicacional. Em sua teoria, diz que há um hiato entre a construção
linguística(enunciado) e a compreensão do ouvinte e isso precisava ser preenchido não
mais por uma mera decodificação e sim por inferências. Segundo Grice, o processo
inferencial poderia explicar o que tradicionalmente se tem chamado de explícito e
implícito das mensagens, afirmando que há um acordo razoável entre falante e ouvinte.
Esse foi o ponto de divergência entre pragmaticistas de orientação cognitiva, como
Sperber e Wilson. Para os autores da Relevância, a hipótese do conhecimento mútuo
não pode ser garantida, logo a hipótese não se sustenta. No exemplo: duas pessoas estão
olhando para a mesma coisa, podem identificá-la de modos diferentes e não reconhecer
ou compreender os mesmos fatos.
No exemplo que segue, também retirado de Silveira e Feltes(1997), A e B
caminham por uma rua histórica e A diz: “- Como é linda esta igreja!” B, que até então
não havia reconhecido a construção como sendo a de uma igreja, diz: “-Realmente, é
uma igreja muito bonita.”
Esse exemplo mostra particularidades na comunicação: A e B não tinham como
conhecimento mútuo a suposição(conjunto de conceitos) de que a construção é uma
igreja.Assim, de fato, é no curso da comunicação que essa suposição se torna manifesta,
isto é, é aceita e inserida num contexto de suposições partilhadas. A isso Sperber e
Wilson(1995) chamam de ambiente cognitivo mútuo e a comunicação visa justamente à
alteração dos ambientes cognitivos dos interlocutores. Vejamos o exemplo de um
conjunto de suposições candidatas a constituir o contexto para a interpretação do
enunciado. O exemplo, com pequenas alterações, é recuperado de SILVEIRA e
FELTES, 1997, p.48:
A - Uma cerveja?
B – Sou mórmon.
A partir da resposta de B, A naturalmente poderá entender, com o apoio da
memória cógnita ou enciclopédica, as seguintes suposições possíveis:
-Cerveja é uma bebida alcoólica.
-Mórmons não bebem álcool.
-B não bebe álcool.
-B não quer cerveja.
-B não quer qualquer tipo de bebida alcoólica.
O contexto, definido como um conjunto de suposições, inclui informação
proveniente do meio físico, informação recentemente processada, armazenada na
memória de curto prazo, e informação da memória de longo prazo. Diferentes graus de
relevância são possíveis no modelo: quanto mais efeitos cognitivos e menos esforço de
processamento, maior a Relevância; quanto menos efeitos cognitivos e maior o esforço
de processamento, menor a Relevância; um maior esforço de processamento
compensado por mais efeitos cognitivos, aumenta a Relevância.
O processo de interpretação-compreensão vai-se constituindo aos poucos e não é
dado, como muitos acreditam, a priori; o indivíduo direciona sua atenção a um conjunto
de estímulos e suposições. Existem quatro diferentes formas de se obter suposições com
diferentes graus de força:
a)por input perceptual ( estímulos sensório-perceptuais);
b)por input linguístico ( as frases, a palavra, o texto);
c)pelo conhecimento enciclopédico estocado na memória;
d)por deduções.
Ainda, no exemplo anterior, se A visse B aceitando um copo de vinho em outra
ocasião, em nível de input visual, A eliminaria, definitivamente, a suposição de que B é
mórmon.
Assim, entendemos que ostensão significa chamar a atenção ( com enunciados
ou simplesmente por palavras) e provocar no leitor muitos efeitos cognitivos com baixo
custo de processamento mental, revelando as intenções do comunicador. A
comunicação ostensiva requer uma participação ativa do comunicador quanto do leitor-
ouvinte, pois este deve prestar atenção ao estímulo ostensivo. Desse modo, o Princípio
da Relevância se aplica a todas as formas de comunicação e os indivíduos cujo ambiente
cognitivo(as idéias) o comunicador está tentando modificar são os destinatários do ato
de comunicação, considerando que a comunicação nem sempre é bem-sucedida, como
defendem as teorias conhecidas de texto.
A palavra: conceitos e ‘relevância’ pragmática
O estudo da aquisição da língua, conforme preveem os pesquisadores, revela que
a criança conhece infinitamente mais do que a experiência revela. As crianças pequenas,
de forma impressionante, adquirem palavras a todo momento, compreendidas de modo
sutil, mas que, seguramente, vão muito além de qualquer dicionário. Se observarmos
como as palavras se comportam nos diferentes discursos, imediatamente observamos
que são elas as portadoras principais da idéia e do sentimento, traduzem a realidade das
coisas e despertam imagens mais fortes, conforme postula Lapa( 1998). As palavras,
certamente, encontram-se subordinadas a uma escala de valores, há as que carregam, de
fato, o sentido da frase, outras estabelecem a ligação entre as idéias. Conforme o autor,
na vida prática, o caráter vertiginoso da informação e da civilização exige, muitas vezes,
economia vocabular, pois a multiplicação desnecessária de palavras não é bem-vinda e,
no bom estilo, o equilíbrio é a ordem; o ideal é dizer ou escrever na medida exata, com
clareza e segurança. Como elas podem revestir-se de vários significados, cada um
apreende o que particularmente interessa no momento da interação. Ouvimos inúmeras
vezes que uma simples palavra pode resumir o universo, isto é, uma única palavra pode
suscitar diferentes possibilidades significativas, abrangendo os domínios do pensamento
e da vida.
Segundo Lapa(1998, p.12),
o seu poder evocador não conhece limites. Vemos, pois que, em volta de cada
palavra ou, para melhor dizer, de certas palavras, se estabelece uma atmosfera
fantasiosa e sentimental que constitui seu valor expressivo. Há, evidentemente
palavras mais evocadoras que outras. O bom escritor saberá aproveitá-las, para
suscitar mais vivas e variadas imagens. Mas uma coisa é necessária a quem deseja
conhecer a fundo a sua língua e utilizá-la para fins artísticos: pensar e sentir as
palavras como se elas fossem feitas de novo, e evocar o objeto a que se referem com
a amior frescura e vivacidade possível.
Para Faulstich (1992, p.37), “palavra é uma sequência de um ou mais fonemas
suscetível de uma transcrição, compreendida entre dois espaços em branco; representa,
então, toda unidade emitida na linguagem falada ou escrita”. Para a linguista, a palavra
é unidade essencial do texto, pois, conforme suas considerações, o processo de escrita,
mediado pelas palavras, pode ser todo metaforizado, como na poesia, por exemplo, e
assim as palavras precisam ser mais cuidadosamente escolhidas, para que o leitor atinja
a intenção do comunicador. Para a autora, há diferenças entre ‘palavra’ e ‘vocábulo’,
pois este, segundo sua justificativa, “é unidade de língua efetivamente empregada em
um ato de comunicação; representa uma unidade particular, com significado, usada na
linguagem falada ou escrita”(p37).
Para Sperber e Wilson (1995), os conceitos funcionam, por hipótese, como um
endereço possível para a compreensão de enunciados. Para cada tipo de informação
haveria uma entrada específica: entrada lógica(as interpretações, ou informações de
caráter computacional), entrada enciclopédica (conhecimentos prévios que variam de ao
longo do tempo e de indivíduo para indivíduo) e entrada lexical(informações
linguísticas). Nessa entrada lexical que, segundo a Teoria da Relevância, comporta a
informação sintática e fonológica, podemos situar a palavra, considerada pela teoria
como um input lexical. Para os autores, a construção do conteúdo de um enunciado
envolve, portanto, habilidade para:
1º identificar as palavras que o constituem;
2º recuperar os conceitos a elas associados;
3º aplicar as regras dedutivas ( entrada lógica).
A partir dessa concepção teórica, podemos entender a palavra, entre outras
possibilidades, como um componente lexical em forma de estímulo linguístico, um
input que provoca expectativas no ouvinte. Vejamos uma possibilidade de análise em
um anúncio publicitário da Coca-cola em que a palavra, como entrada lexical ou como
input linguístico, é um estímulo altamente relevante para o processamento da
informação. Em geral, os anúncios se valem das palavras como fortes elementos de
persuasão. Nos anúncios, as palavras não são apenas informativas, mas escolhidas com
alto grau de intenção. São ostensivas e argumentativas e, muitas vezes, são ‘alma’ e
‘coração’ de um anúncio para mudar opiniões e crenças. Como postula Carvalho (2007),
a linguagem publicitária reveste-se de palavras que consideram o receptor ideal para o
produto anunciado. Para isso, os vocábulos são selecionados cuidadosa e
ostensivamente para atrair a atenção da plateia, sensibilizando-a, e atingir seu propósito
maior: a venda do produto. Embora exista alto grau de complexidade no planejamento
de um anúncio, Carvalho (2007) esclarece que o vocabulário utilizado nesse tipo de
gênero é, normalmente, desprovido de recursos que dificultem sua leitura e
compreensão.
Coca-Cola : sempre um sucesso
Pode-se observar, nessa peça publicitária, que o comunicador, especialmente a
partir da palavra ‘Coca-cola’, do enunciado ‘sempre um sucesso’ e do input visual da
propaganda, que resgata o passado através da fita cinematográfica do início do século e
do disco de vinil long play (LP), caracterizando o tempo presente através do CD
moderno (e do próprio advento da telecomunicação que presenciou a conquista das
grandes transformações tecnológicas e científicas), provoca no leitor uma suposição
contextual fortemente implicada:
S1- A Coca-Cola, do passado ao presente, sempre foi um sucesso.
Dessa suposição inicial, podem-se derivar outras suposições como S2, S3 e
uma conclusão (C) implicada:
S2 – A qualidade da Coca-Cola ‘sempre’- do passado ao presente – foi um
sucesso.
S3 – A Coca-Cola acompanhou o sucesso do avanço tecnológico.
C – Se, até hoje, a Coca-Cola é um sucesso que se manteve, ela, mais do que
qualquer outra marca de refrigerantes, além de ter presenciado o passado e de
pertencer ao momento atual, simboliza o próprio futuro.
Essa conclusão implicada mostra que o anunciante exigiu mais esforço de
processamento do receptor do que seria necessário caso tivesse explicitado mais
diretamente a sua intenção nesse sentido, como num exemplo do tipo “Beba sempre
Coca-Cola”. Os apelos ostensivos e intencionais do comunicador através da palavra
‘Coca-cola’ podem ainda provocar outras inferências, como em S4, S5 e S6, a partir das
representações contextuais acessadas cognitivamente pelas palavras always,
toujours ,zawsze, siempre e ‘sempre’, sobre as quais há expectativa de Relevância:
S4 – a palavra ‘sempre’, nos vários idiomas, representa o sucesso da Coca-cola
nos países correspondentes.
S5 – O sucesso da Coca-cola pode ser estendido aos demais países,
considerando a universalidade dessa marca de refrigerante no tempo e no
espaço.
S6 – Da América à Europa, a Coca-cola é o refrigerante de maior sucesso.
S7 – Se você quiser fazer parte desse sucesso, você deve beber Coca-cola.
Assim, as suposições S4, S5, S6 e S7 são implicações contextuais que o
anunciante, com o intuito de que seu enunciado seja altamente relevante, parece desejar,
com fortes indícios linguísticos e perceptuais, tornar manifestas ao receptor.
É possível notar, mais uma vez, que, neste anúncio, o esforço extra de
processamento foi exigido do receptor. Entretanto, esse esforço extra é compensado
pela obtenção de vários efeitos cognitivos que desafiam a mente do potencial
consumidor. Em vez de usar palavras que evidenciem a temporalidade para situar o
passado/ presente / futuro, os autores da peça preferiram levar o leitor à associação com
imagens que representam esses períodos de tempo, respectivamente, a fita
cinematográfica e o long play de vinil (passado), CD (presente) e o símbolo da Coca-
cola como projeção no futuro. Nesse sentido, o texto publicitário alcança Relevância
ótima, porque, além de evidenciar a qualidade do produto e persuadir o leitor a beber
somente esta marca de refrigerante, cuja marca é universal, constitui um modo mais
econômico de garantir uma grande variedade desses efeitos. Possivelmente,
características tão ostensivas contribuíram para a construção e compreensão desse texto.
Percebe-se que a ligação entre o enunciado ‘Sempre um sucesso’, o input
visual da marca ‘Coca-cola’, a própria palavra ‘Coca-cola’ e os termos em diferentes
idiomas do advérbio ‘sempre’ se dá num nível pragmático-cognitivo, de natureza
contextual e inferencial, como a própria Teoria da Relevância propõe.
Nessa expectativa, certamente, outras possíveis compreensões poderão ser
consideradas, o que evidencia o enorme universo em que essa teoria se encontra e
certifica, com clareza, que uma abordagem pragmática pode simplificar análises
semânticas e, quem sabe, resolver ‘problemas’ com que muitos pesquisadores têm se
confrontado.
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