MPA Administrao Pblica
Especializao na Administrao da Justia Mestrando: Joo Carlos Carvalho dos Santos
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa
Contempornea Orientador: Professor Doutor Jaime Ral Seixas Fonseca
Coorientadora: Professora Doutora Elisabete Carvalho
Dissertao para a obteno do grau de Mestre em Administrao Pblica
Lisboa
2011
Ficha Tcnica da Imagem:
Autor: Bartolomeu dos Santos
Ttulo: Para que no voltem preciso no esquecer
Tcnica: Gravura sobre Cobre
Data: 1976
Dimenso: 36,5 x 25 (57 x 38) cm
Nota: A dissertao que se segue rege-se pelas regras do novo acordo ortogrfico.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
i
Quem to firme que no possa ser seduzido? Shakespeare (1623)1
1 Cfr. Giannetti, Eduardo. 2008. Livro das Citaes. Lisboa: Livros DHoje, pp. 237.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
ii
Agradecimentos
Uma dissertao de mestrado fruto de um conjunto de vrios saberes que se
conjugaram de forma a poder levar esta tarefa a bom porto. Nesse sentido agradeo a
todos os professores do MPA - Administrao Pbica o seu esforo na transmisso dos
seus saberes que se revelaram indispensveis realizao deste trabalho.
Aos professores doutores Jaime Fonseca e Elisabete Carvalho um especial obrigado
pela confiana no meu trabalho, pela ajuda preciosa que me concederam em momentos
decisivos deste trabalho e, sobretudo, pela fora que me transmitiram em momentos
difceis desta pequena empresa.
Aos meus queridos amigos Superintendente Paulo Lucas, Subcomissrio Francisco
Fonseca e Chefe Hermnio Matos um enorme obrigado pela ajuda preciosa que me
deram na retificao do trabalho e pela fora e motivao que me transmitiram durante
toda a dissertao.
Dra. Ana Paula Gomes dos Santos Silva, professora da Universidade Lusfona, um
muito obrigado pela ajuda e orientao que me prestou durante a fase preparatria desta
dissertao.
Direo Geral dos Servios Prisionais e em especial Dra. Maria Jos de Matos e ao
Dr. Semedo Moreira um muito obrigado pela assistncia e colaborao prestada junto
daquela direo.
No Estabelecimento Prisional da Carregueira um grande obrigado Dra. Isabel Flores,
Dra. Filomena Lopes, ao chefe Augusto Pereira, Rosa Domingues, Elsa Loureno e
Aurlia Serra pela indispensvel ajuda e auxlio na consulta dos processos realizada
naquela EP.
No Estabelecimento Prisional do Linh um enorme obrigado Dra. Otlia Costa, Dra.
Paula Verdial, Dra. Manuela Raimundo, Dra. Maria Teresa, ao Dr. Carlos Moreira,
ao Chefe Antnio Feio, ao Subchefe Jos Sampaio, Manuela Gil, Conceio
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
iii
Agostinho, Anabela Graa, Ldia Lopes e Cristina Martins pela ajuda e
imprescindvel colaborao durante a consulta dos processos efectuada naquele EP.
Um especial obrigado ao Subchefe Jos Malveiro, ao Guarda Jaime Nunes, ao Guarda
Benigno Pinto e ao Guarda Francisco Silva da Seco Cinotcnico do GISP, junto da
EP Linh, pela orientao e colaborao prestada fruto de uma experincia impar no
seio do sistema prisional.
No Estabelecimento Prisional de Sintra um muito obrigado Dra. Ftima Corte, Dra.
Elsa Tom, Dra. Albertina Correia, ao Dr. Andr Farinha, ao Chefe Jos Gordo, ao
Lus Almeida, Ftima Pinto, Filomena Almeida, Paula Pestana, Isabel Costa,
Paula Pires, Josefina Silveira, Ascenso Tavares e ao Joo Passos pela ajuda e apoio
impares prestado durante a consulta dos processos realizada naquela EP.
minha me Silvria Silva e ao meu irmo Rui Santos um muito, muito obrigado por
toda a ajuda sem a qual seria muito mais difcil terminar esta dissertao. Ao meu
saudoso pai um muito obrigado pelos valores e princpios que me transmitiu e que
nortearam a minha vida conduzindo-me concluso desta dissertao.
Por fim mas no menos importante foi o apoio e motivao dados pela minha mulher
Adriana Silva e do meu filho Salvador Santos que me transmitiram muita fora para
ultrapassar este obstculo e todos os outros que surgirem na minha vida.
A todos um eterno obrigado!
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
iv
ndice
Captulo I Introduo e Metodologia ........................................................................ 1
1.1 Introduo .............................................................................................................. 1
1.2 Definio do Problema ........................................................................................... 2
1.3 Questo de Partida .................................................................................................. 3
1.4 Objeto e Objetivos .................................................................................................. 3
1.4.1 Objetivo Principal ......................................................................................... 3
1.4.2 Objetivo Secundrio ..................................................................................... 3
1.5 Hipteses ................................................................................................................ 4
1.6 Metodologia ............................................................................................................ 4
1.6.1 Recolha de Dados ......................................................................................... 4
1.6.2 Anlise de Dados .......................................................................................... 5
1.7 Estatsticas Criminais ............................................................................................ 5
1.8 Conceitos Fundamentais ......................................................................................... 7
1.9 Interdisciplinaridade da Dissertao ..................................................................... 10
1.9 Estrutura da Dissertao ....................................................................................... 11
Captulo II A Reforma da Administrao Pblica e a Poltica Prisional .............. 13
2.1 A Nova Gesto Pblica (NGP) ............................................................................. 15
2.2 A Avaliao das Polticas Pblicas como Instrumento NGP ............................... 17
Captulo III A Escola Clssica e a Dissuaso da Criminalidade ............................ 20
3.1 Cesare Beccaria .................................................................................................... 20
3.2 Jeremy Bentham .................................................................................................. 22
3.3 Escola Portuguesa ................................................................................................. 25
3.3.1 Pascoal Jos de Melo Freire ...................................................................... 25
3.3.2 Francisco Freire de Melo ............................................................................ 27
3.4 Implicaes para a Poltica Prisional em Portugal .............................................. 28
Captulo IV - Teorias e Modelos Modernas da Dissuaso da Criminalidade .......... 36
4.1 Teoria do Controlo Social ................................................................................... 37
4.2 Teoria da Escolha Racional (Rational Choice Theory) ........................................ 39
4.3 Teoria das Atividades Rotineiras (Routine Activity Approach) .......................... 41
4.4 Teoria do Vidros Partidos (Broken Windows Theory) ....................................... 43
4.5 Modelo Econmico do Crime .............................................................................. 44
4.6 Modelo da Preveno Situacional ........................................................................ 47
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
v
4.7 Implicaes para a Poltica Prisional em Portugal .............................................. 50
Captulo V O Controlo Social e a Sociedade Moderna ........................................... 61
5.1 Controlo Social Informal ...................................................................................... 62
5.2 Controlo Social Formal: Controlo Penal ............................................................. 63
5.3 O Sistema Prisional em Portugal .......................................................................... 66
5.4 A Direo Geral dos Servios Prisionais .............................................................. 68
5.5 A Evoluo da Criminalidade Participada e da Populao Prisional ................... 71
5.6 A Violncia nas Prises ....................................................................................... 75
5.7 O Efeito da Prisionalizao .............................................................................. 76
5.8 A Reincidncia Prisional ...................................................................................... 77
5.9 A Reinsero Social ............................................................................................. 79
5.10 As Prises e a Resposta Criminalidade ........................................................... 80
Captulo VI Estudo de Caso ...................................................................................... 81
6.1 EP Carregueira ....................................................................................................... 81
6.2 EP Linh ................................................................................................................ 82
6.3 EP Sintra ................................................................................................................ 83
6.4 Anlise dos Resultados ........................................................................................... 83
6.5 Discusso dos Resultados ....................................................................................... 91
Captulo VII Concluses ........................................................................................... 95
Referncias .................................................................................................................... 100
Anexos ........................................................................................................................... 105
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
vi
ndice Figuras
Figura 1: Modelo de Envolvimento Inicial no Roubo da Escolha Racional .................. 40
Figura 2: Teoria das Atividades Rotineiras .................................................................... 42
Figura 3: Organograma da Direo Geral dos Servios Prisionais (DGSP) .................. 70
ndice de Grficos
Grfico 1: Evoluo em Portugal das Taxas de Criminalidade Participada e Populao
Reclusa (1998-2009) ....................................................................................................... 72
Grfico 2: Taxa de Populao Carcerria Comparada por 100.000 habitantes .............. 73
Grfico 3: Taxas de Criminalidade Participada por 100.000 habitantes ........................ 74
ndice de Quadros
Quadro 1: Tcnicas de Preveno Situacional da Criminalidade .................................. 48
Quadro 2: Sistema de Controlo Social Penal ................................................................. 65
ndice de Tabelas
Tabela 1: Estimao dos Parmetros do Modelo com 2 Classes latentes Relativamente
s Varveis do Agrupamento ........................................................................................... 85
Tabela 2: Estimao dos Parmetros do Modelo com 2 Classes latentes Relativamente
s Covariveis .................................................................................................................. 86
Tabela 3: Estimao dos Parmetros do Modelo com 2 Classes latentes Relativamente
s Covariveis (Cont.) ..................................................................................................... 87
Tabela 4: Perfil dos Reclusos ......................................................................................... 88
Tabela 5: Atividade Vs Prises ...................................................................................... 96
Tabela 6: Habilitaes Vs Prises .................................................................................. 97
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
vii
Lista de Siglas e Abreviaturas
AP Administrao Pblica
AIC Critrios de Informao de Akaike
APAV Associao Portuguesa de Apoio Vtima
CP Cdigo Penal
CPP Cdigo de Processo Penal
CGP Corpo da Guarda Prisional
CRP Constituio da Repblica Portuguesa
DGPJ Direo Geral de Polticas da Justia
DGSP Direo Geral dos Servios Prisionais
EP Estabelecimento Prisional
EU Unio Europeia
GISP Grupo de Interveno de Segurana Prisional
GNR Guarda Nacional Republicana
GSGSSI Gabinete do Secretrio Geral do Sistema de Segurana Interna
INE Instituto Nacional de Estatstica
MEO Servio agregado de televiso, internet e telefone
MJ Ministrio da Justia
NGP Nova Gesto Pblica
PJ Polcia Judiciria
PSP Polcia de Segurana Pblica
RASI Relatrio Anual de Segurana Interna
RGEP Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais
RSI Rendimento Social de Insero
SIP Sistema de Informaes Prisionais
TEP Tribunal de Execuo de Penas
TIC Tecnologias da Informao e Comunicao
UN Naes Unidas
USA Estados Unidos da Amrica
VE Vigilncia Eletrnica
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
viii
Nome: Joo Carlos Carvalho dos Santos
Mestrado: MPA - Administrao Pblica
Orientador: Professor Doutor Jaime Ral Seixas Fonseca
Data: 18-11-2009
Ttulo da Tese: A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
Resumo
A Escola Clssica nascida do iderio iluminista alicerou a sua ideologia no homem
delinquente, dotado de racionalidade pelo que haveria que dotar o sistema prisional dos
meios adequados sua corrigibilidade. Porm, esta poltica prisional falhou porque no
existiam os meios necessrios e suficientes e porque a racionalidade dos delinquentes
era bastante limitada.
Sucedeu-lhe a Escola Humanista de Lombroso associada ao Estado Providncia com a
ideia de que o delinquente era um doente que haveria que tratar, leia-se ressocializao,
e que se manteve at h bem pouco tempo. Ainda que os resultados no tivessem o
resultado desejado: reduzir a criminalidade.
A partir dos anos sessenta surgiu a Nova Criminologia que procurou conciliar algumas
das ideias da Escola Clssica s ideias da Escola Humanista de Lombroso na tentativa
de inverter a tendncia ascendente da criminalidade. A dissuaso, comum Escola
Clssica e Nova Criminologia, surge no contexto prisional como um meio que
provmos ser necessrio prever na nossa poltica prisional como forma de tentar
resolver o problema social da criminalidade.
Palavras-chave: Poltica prisional, criminalidade, recluso, reinsero, reincidncia,
dissuaso.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
ix
The Prisional Policy and the Contemporary Portuguese Criminality
Abstract
The Classical School born from the enlightenment ideas supported their ideology on the
criminal, endowed with rationality so that we would provide the system with the
adequate means to their corrigibility. However, this prisional policy flailed because
neither there was the necessary and sufficient meanings or because the rationality of the
criminals was quite limited.
Succeeded it the Lombroso Humanistic School associated to the Welfare State with the
main idea that the criminal was a patient that should be treated, read it rehabilitation,
and that would last until very recently. Although the results did not have the desired
outcome: reduce crime.
From the sixties on came out the New Criminology that sought to reconcile the ideas of
the Classical School with some ideas of the Lombroso Humanistic School in an attempt
to reverse the upward trend in crime. Deterrence, common to both the Classic School
and to the New Criminology, happen in the prisional context as a way that we prove is
necessary to take in to account in our prisional policy, in an attempt of trying to solve
the social problem of criminality.
Key-words: Prisional policy, crime, incarceration, rehabilitation, recidivism,
deterrence.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
1
Captulo I Introduo e Metodologia
1.1 Introduo
A reforma da Administrao Pblica, que aconteceu nas ltimas dcadas em Portugal,
sobretudo aps a Revoluo dos Cravos, trouxe importantes mudanas que resultaram
numa aproximao da Administrao Pblica gesto managerial (Arajo 2004), o que,
forosamente, veio conferir uma maior importncia avaliao das polticas pblicas.
O discurso managerial, segundo Rocha (2009), legitimou uma poltica de racionalizao
do funcionamento da Justia, atravs da introduo de um conjunto de instrumentos de
gesto que permitiram, quer um aumento da eficcia e eficincia, quer uma maior
qualidade dos servios prestados aos cidados.
A poltica prisional, nascida do iderio iluminista, trouxe grandes alteraes forma
como se comeou a percecionar o crime e o modo como este deveria ser penalizado.
Portugal no foi exceo e ao longo da segunda metade do sculo XIX a Escola
Clssica, com uma forte tendncia dissuasora, viria a ter uma grande influncia na
forma de fazer esta poltica.
A Escola Neoclssica, nascida na dcada de sessenta do sculo XX, recupera algumas
das ideias da sua antecessora (Escola Clssica), aps uma longa prevalncia das ideias
da Escola Humanista, que mostraram no ser a resposta mais adequada criminalidade.
Escola que se revelou atravs de um conjunto de teorias e modelos que, de uma forma
ou de outra, demonstraram a necessidade de dissuadir a criminalidade atravs do
controlo social, em geral, e do sistema prisional, em particular (Garrido, Strageland e
Redondo 1999).
A reforma do sistema prisional tem vindo a ser marcada, no nosso pas, pela questo da
reinsero social e pelo respeito pelos direitos humanos do recluso como panaceia para
o problema da criminalidade, esquecendo-se, frequentemente, da vtima a maior
prejudicada perante o crime (Dias e Andrade 1997). O entendimento dado ao modo de
punir, plasmado na poltica prisional, pelos vrios subsectores do sistema prisional2,
deveria incluir a dissuaso como ltima razo para prevenir a reincidncia e diminuir a
criminalidade.
2 Como, por exemplo, a sade, o ensino, a formao - profissional, etc.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
2
Entendemos, porm, que esta uma matria complexa dependente, quer das polticas
prprias da poltica prisional, bem como da poltica criminal como um todo
(considerando globalmente todo o sistema judicial), quer ainda tendo em conta a
especificidade de organizao prisional. Matrias que so necessrias conciliar para que
seja possvel alcanar a necessria segurana indispensvel ao bem-estar dos cidados.
Nesta dissertao, aps uma breve resenha histrica e anlise das implicaes da
poltica prisional no nosso pas, procedemos avaliao daquela poltica, atravs da
interpretao dos dados recolhidos no Sistema de Informaes Prisionais (SIP) dos trs
estabelecimentos prisionais estudados procurando cumprir os objetivos a que nos
propusemos com esta empresa.
1.2 Definio do problema
Face a um aumento contnuo da criminalidade, nos ltimos anos, e perante um quadro
legal que privilegia a reinsero do recluso na sociedade em detrimento da preveno ou
dissuaso da criminalidade, parece-nos, atualmente, necessria uma avaliao da
poltica prisional, no sentido de perceber qual a sua contribuio para a dissuaso da
criminalidade junto da populao prisional portuguesa.
A finalidade e medidas das penas so uma questo externa, a montante do sistema
prisional mas determinantes para uma real eficcia e eficincia da poltica criminal e
consequentemente para o sucesso da poltica prisional. Tentaremos, na medida do
possvel, isolar a poltica prisional da restante poltica criminal, mas convictos de que
nos completamente impossvel isolar a poltica prisional do restante sistema judicial.
Estamos, no entanto, certos que o sistema prisional tem uma poltica prpria
concretizada atravs do Direito Penitencirio, em particular no Cdigo de Execuo de
Penas e Medidas Privativas da Liberdade (Lei 115/2009, de 12/10), restante legislao
avulsa, e nos muitos regulamentos e normas internas, especficos de cada
estabelecimento prisional, verdadeiros instrumentos de gesto pblica destes locais de
recluso.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
3
A populao reclusa e as suas histrias de vida consubstanciadas nos processos
individuais de cada recluso so o reflexo da poltica criminal e, evidentemente, da
poltica prisional seguida nos ltimos anos no nosso pas. Neste sentido a recolha de
informao individual de uma amostra significativa de reclusos nas EP da Carregueira,
EP do Linh e EP da Sintra, mostra-se como aquela que nos oferece garantias de maior
fiabilidade face aos constrangimentos e problemas colocados pelas estatsticas da
Justia em Portugal e que sero abordados, adiante, nesta dissertao.
1.3 Questo de partida: Em que medida a poltica prisional portuguesa contribui para a
dissuaso da criminalidade na populao reclusa masculina?
1.4 Objeto e Objetivos da Dissertao
O objeto deste trabalho fazer uma avaliao da eficcia e eficincia3 da poltica
prisional em Portugal em termos de dissuaso da criminalidade. Pretendemos, assim,
fazer uma reflexo sobre o papel da organizao penitenciria e das circunstncias que a
envolvem, com o objetivo de perceber em que medida que os reclusos esto a voltar
ao sistema prisional (reincidncia prisional), considerado como um robusto indicador do
poder dissuasor desta poltica.
Os objetivos so:
1.4.1 Objetivo Principal
Pretendemos traar o perfil dos reclusos do gnero masculino de acordo com o universo
da amostra, e assim descrever, entender e discutir a contribuio da poltica prisional e
do atual sistema prisional, para a dissuaso da criminalidade face ao aumento
continuado da delinquncia em Portugal.
1.4.2 Objetivo Secundrio
Face aos resultados obtidos com este trabalho pretendemos apresentar algumas
propostas de alterao atual poltica criminal/prisional no sentido de a tornar mais
dissuasora e preventiva da criminalidade. 3 A eficcia tida como a avaliao do grau de prossecuo dos objetivos pr-definidos. J a eficincia compreendida como a busca de uma mquina administrativa menos dispendiosa e/ou mais produtiva (Carvalho 2007).
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
4
1.5 Hipteses
H 1: A poltica prisional contribui para a dissuaso da criminalidade entre a
populao reclusa.
H 2: O trabalho prisional influencia a taxa de reincidncia prisional.
H 3: O ensino e formao profissional influenciam a taxa de reincidncia
prisional.
1.6 Metodologia
Para a elaborao desta dissertao utilizamos mtodos e tcnicas de investigao no
mbito das cincias sociais, particularmente os utilizados no domnio da Cincia da
Administrao Pblica e das Polticas Pblicas. Utilizando para o efeito uma
combinao de mtodos quantitativos e qualitativos que atravs da lgica da
triangulao nos revelar diferentes aspetos da realidade emprica (Carmo, Ferreira
2008).
Nesse sentido, depois do levantamento do estado da arte em relao problemtica
abordada, atravs da reviso da literatura, procedemos pesquisa documental de
bibliografia diversa, documentos oficiais, artigos especializados e sites na internet.
1.6.1 Recolha de Dados
De forma a garantir uma consistncia cientfica s concluses da dissertao optou-se
pelo uso de uma metodologia mista, sustentada nos dois paradigmas de acordo com a
descrio que se segue. Ao nvel dos mtodos de recolha de dados, dada a natureza do
estudo, optou-se pela realizao de algumas entrevistas estruturada dirigida aos guardas
prisionais e diretora de um dos estabelecimentos prisionais analisados, bem como pela
constituio de uma base de dados resultante de uma consulta aos processos individuais
de 1643 reclusos, inseridos no SIP (Sistema de Informaes Prisionais), a cumprir pena
de priso nos supracitados estabelecimentos, o que fornece uma opo de mtodos no
interferentes.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
5
1.6.2 Anlise de Dados
Ao nvel dos mtodos de anlise de dados optou-se pelo uso de mtodos multivariados
de classificao de dados, modelos de classes latentes, em primeiro lugar, com o
objetivo central de proceder ao traado do perfil dos reclusos, tentando descobrir,
descrever e entender a tipologia associada aos reclusos, usando para o efeito dois
conjuntos de variveis: um conjunto principal, as variveis base de agrupamento
(clustering), responsveis pela estimao dos parmetros do modelo e
consequentemente pela descoberta da tipologia e um outro conjunto de variveis (s
quais chamaremos covariveis), variveis demogrficas, que ajudaro na descrio,
compreenso e entendimento da tipologia encontrada (Fonseca e Cardoso 2007;
Fonseca 2010).
A metodologia mista, nesta fase, surgir, no mnimo, quando usarmos o conhecimento
qualitativo gerado pelas entrevistas para aumentar o entendimento sobre a tipologia
gerada quantitativamente. Do ponto de vista de mtodos quantitativos de anlise de
dados recorrer-se- ainda ao teste de Qui-quadrado procurando encontrar relaes entre
as variveis correspondentes (Fonseca 2010a).
1.7 As Estatsticas Criminais
De acordo com Herrero (2001: 212) la estadstica () se concibe como la ciencia que
tiene como fine el agrupamiento sistemtico, para un tiempo determinado, de hechos de
carcter social, con la pretensin de valorarlos numricamente. O que significa que as
estatsticas servem-se de dados relativos a uma amostra de uma determinada populao,
depois de ordenados e analisados, com a finalidade de alcanar determinadas concluses
em relao populao total fazendo uso do clculo das probabilidades, ou seja, as
concluses tm um carcter de aproximao realidade.
As estatsticas criminais tm como objetivo principal oferecer-nos um quadro descritivo
da criminalidade recolhida pelas vrias instncias de controlo tenham elas carcter
oficial ou no oficial4. As estatsticas oficiais de acordo com a sua provenincia podem-
se classificar de policiais, judiciais e penitencirias relativamente s fontes donde
4 A Associao Portuguesa de Apoio Vtima (APAV), por exemplo, uma instncia de controlo social no oficial que merece ser analisada no que respeita violncia domstica (Carvalho 2006).
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
6
provenham. Em Portugal as estatsticas oficiais so, fundamentalmente, coligidas pelas
polcias, pela Direo Geral da Poltica de Justia e pela Direo Geral dos Servios
Prisionais, ambas as direes integradas no Ministrio da Justia, que fazem uso de
bases de dados, relativamente, distintas.
As estatsticas policiais resultam das queixas apresentadas s polcias (PJ, PSP e GNR)
e por isso se denominam de criminalidade participada ou criminalidade na tica
policial cujo resultado mais visvel corresponde ao Relatrio Anual de Segurana
Interna (RASI) elaborado pelo Gabinete do Secretrio Geral do Sistema de Segurana
Interno (GSGSSI). Estas estatsticas apenas nos permitem conhecer a criminalidade que
registada pelas polcias ignorando os crimes que ficam ocultos das autoridades
policiais5, como por exemplo os crimes sexuais, por a vtima recear o estigma social,
os chamados pequenos crimes em que as vtimas nem se do ao trabalho de
participarem por acharem o ato intil, os chamados crimes invisveis como a
corrupo ou os crimes de colarinho branco, porque muitas vezes as pessoas no
tm conhecimento de que esto a ser vtimas de tais crimes (Carvalho 2006).
As estatsticas judiciais so as elaboradas pela Direo Geral da Politica de Justia
(DGPJ), o servio responsvel pela informao estatstica do Ministrio da Justia, que
nos d acesso a uma informao mais vasta em relao justia penal, que vai desde o
movimento dos processos dos tribunais (ex. nmero de processos entrados e processos
julgados por delito) ou a atividade das polcias e entidades de apoio investigao
criminal (ex. crimes registados por tipo de crime, localizao geogrfica e tipo de arma
utilizada). Este sistema de informao tem, no entanto, as suas fragilidades ou porque
no regista os conflitos que no chegam a tribunal, quer porque no existiu acusao ou
porque as vtimas desistiram da queixa, ou, ainda, porque o sistema de notao obedece
a critrios especficos que colocam obstculos a um conhecimento mais profundo da
realidade criminal6.
5 Um inqurito sobre a delinquncia em Inglaterra e Pas de Gales, British Crime Survey 2009/10, conclui que metade dos crimes praticados naquele perodo no est includa nas estatsticas policiais. Cfr. Flatley, John et al. 2010. Crime in England and Wales 2009/20010. Home Office Statistical Bulletin, pp. 1-2. 6 Como, por exemplo, a regra que determina que no caso da ocorrncia de vrios crimes, numa mesma data, apenas o crime mais grave anotado para efeitos estatsticos. Cfr Manual de Preenchimento: Modelo 262/DGPJMJ/DSEJI - Crimes Registados: Instrues de Preenchimento, p.2.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
7
As estatsticas penitencirias elaboradas pela Direo Geral dos Servios Prisionais
(DGSP) correspondem a dois tipos de base de dados, a de acesso livre ao cidado que
corresponde aos dados publicadas no seu site7 e o de acesso condicionado que
corresponde base de dados interna denominado SIP (Sistema de Informaes
Prisionais) que rene informao individual atualizada sobre a trajetria prisional de
todos os reclusos que se encontram a cumprir uma pena de priso8 (efetiva ou
preventiva).
A notao no SIP feita com base na atribuio de um nmero mecanogrfico nico
para cada recluso, quer ele saia ou volte a entrar no sistema, o que nos permite uma
recolha de dados fidedigna em relao ao percurso prisional de cada recluso. Atendendo
aos objetivos deste trabalho, foi este o sistema de que fizemos uso para realizar a nossa
investigao.
Por fim, os inquritos de vitimizao, dirigidos populao, constituem o instrumento
mais fivel para o conhecimento da criminalidade real de uma determinada
comunidade, uma vez que nos permite conhecer os crimes que no so denunciados mas
que efetivamente so cometidos durante um determinado perodo de tempo e num
determinado lugar (Garrido et al. 1999; Carvalho 2006), o que foi feito em Portugal no
ano de 1993, relativamente ao ano de 1992, mas que deixou de se fazer por razes a que
desconhecemos9.
1.8 Conceitos Fundamentais
Esta dissertao pretende abordar fenmenos como poltica criminal, poltica prisional,
controlo social, preveno, dissuaso, reincidncia criminal, reincidncia prisional e
reinsero social do recluso, porque so fenmenos correlacionados, alguns porventura
similares, que tm um grande efeito na criminalidade e consequentemente na recluso
em Portugal. Porm consideramos necessrio clarificar todos estes conceitos de forma a
imprimir maior rigor e sentido ao restante trabalho.
7 Cfr. http://www.dgsp.mj.pt/ (Consultado em 03-07-2011). 8 O SIP no regista as pulseiras eletrnicas (i.e. prises no domiclio), as penas suspensas, penas de multa, penas de trabalho a favor da comunidade ou qualquer outra ou medida de coao aplicada pelos tribunais cuja execuo no da competncia da Direo Geral dos Servios Prisionais (DGSP). 9 Cfr. Almeida, Maria Rosa. 1993. Inqurito de Vitimizao de 1992. Lisboa: Gabinete de Estratgia e Planeamento do Ministrio da Justia.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
8
O controlo social um conceito deveras amplo e reporta-se a certos processos sociais
que a sociedade impe ou tenta impor ao comportamento individual sujeitando-o s
regras, formas e exigncias de coeso, disciplina e integrao, que so as condies
necessrias para garantir a ordem e paz social, contra a incorreo e desvio do
comportamento individual. Estes processos podem ter um carcter informal que
consistem na aprovao ou no aprovao de um comportamento por parte da sociedade
ou podem ter um carcter formal que levado a cabo pelos distintos sistemas
normativos em vigor nessa mesma sociedade, sejam eles tico, religioso, jurdico ou
outros (Herrero 2001; Molina 2001). Este conceito de controlo social essencial
defesa e segurana da sociedade, o que inclui a poltica prisional, pelo que ser
abordado em maior profundidade adiante neste trabalho.
Em relao poltica criminal a Lei-quadro de Poltica Criminal consagra como seu
objeto a definio de objetivos, prioridades e orientaes em matria de preveno da
criminalidade, investigao criminal, ao penal e execuo de penas e medidas de
segurana10. Neste sentido, a poltica criminal um conceito que abarca tanto as
decises polticas em matria de preveno da criminalidade, atravs das vrias opes
legislativas, como as aes e resultados apresentados pelas diversas instncias do
sistema de Justia criminal do Estado, que genericamente compreende as polcias, os
tribunais e os estabelecimentos prisionais.
Assim, a Poltica Criminal uma disciplina que permite enquadrar as opes cientficas
consistentes e mais adequadas para um controlo eficaz do crime atravs de alternativas
legais consequentes com a luta contra a criminalidade (Paz e Prez 2002; Molina 2009).
A Poltica Prisional encontra-se, por esta via, dentro da Poltica Criminal e traduz-se no
conjunto sistemtico de normas jurdicas destinadas a regular a execuo de penas e
medidas privativas da liberdade na luta da sociedade, atravs do aparelho legal do
Estado, contra a criminalidade e nos seus resultados em termos de controlo social
formal.
A preveno pode, efetivamente, corresponder ao efeito de dissuadir um potencial
delinquente com a ameaa de um castigo, ou seja, a preveno concebida como
10 Cfr. Art. 1. da Lei 17/2006, de 23 de Maio.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
9
preveno criminal eficcia preventiva da pena pode operar-se diretamente no
processo motivacional do infrator ou indiretamente alterando o cenrio do crime,
atravs da modificao de alguns dos seus fatores ou elementos (i.e. espao fsico,
atitude das vtimas, eficcia do sistema legal, etc.), aumentando os custos e diminuindo
os benefcios da ao criminosa com o consequente efeito dissuasor (Molina 2009).
Porm, a preveno neste trabalho corresponde a algo mais do que o simples efeito
dissuasor do crime. A preveno aqui entendida, segundo Molina, como uma
interveno dinmica e positiva de toda a sociedade que tenha o objetivo de neutralizar
as razes e causas da criminalidade. A preveno do crime , assim, uma necessidade da
sociedade e no apenas do aparelho legal do Estado, pelo que a preveno deve
completar-se atravs da mobilizao de toda a sociedade preveno social para
resolver o problema social da criminalidade (Molina 2001). A preveno da
criminalidade vai, assim, para alm do simples efeito dissuasor do crime por atacar o
crime nas suas razes beneficiando toda a sociedade.
Por dissuaso ou efeito dissuasor entende-se a ao imediata e superficial de dificultar a
execuo dum crime, quer intimidando o infrator com a ameaa de uma pena ou castigo,
quer alterando o cenrio do crime colocando obstculos de todo o tipo ao autor ou
autores de um crime no seu processo de planificao e execuo do mesmo (Molina
2001; Giddens 2008). Assunto que ser desenvolvido mais frente neste trabalho.
A reincidncia criminal corresponde a um conceito jurdico aplicado no direito penal
que significa expressamente cometer um crime doloso que deva ser punido com priso
efetiva superior a seis meses, depois de ter sido condenado por sentena transitada em
julgado em pena de priso efetiva superior a seis meses por outro crime doloso, se, de
acordo com as circunstncias do caso, o agente for de censurar por a condenao ou
condenaes anteriores no lhe terem servido de suficiente advertncia contra o
crime11. J a reincidncia prisional, objeto desta dissertao, corresponde ao fato de
algum j condenado com uma pena de priso efetiva ter sido condenado a outra pena
de priso efetiva independentemente de qualquer outra circunstncia em que o crime ou
crimes tenham ocorrido.
11 N. 1, art. 75. do Cdigo Penal.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
10
Por ltimo, a reinsero social do recluso corresponde ao esforo da sociedade, atravs
da Administrao Pblica, no sentido de integrar o recluso socialmente para que este
possa participar de forma ativa e responsvel na vida econmica e social. A reinsero
social de recluso assenta no pressuposto de que durante o perodo de recluso deve
facultar-se ao recluso os meios e as competncias necessrias adequadas para que este
consiga, uma vez em liberdade, integrar-se socialmente de forma a no cometer novos
crimes ou a reincidir no crime (Gomes, Duarte e Almeida 2004).
1.9 A Interdisciplinaridade da Dissertao
Esta dissertao trata, como sustenta Bilhim (2000), do estudo cientfico da
administrao pblica como entidade no seio da qual se desenvolvem atividades
administrativas, como o caso da execuo de penas e medidas privativas da liberdade,
destinadas satisfao de necessidades coletivas de Segurana e Justia. Atividades que
decorrem da atividade desenvolvida pela correspondente Direo Geral dos Servios
Prisionais um servio da administrao direta do Estado. Este trabalho est, assim,
englobado na cincia da administrao em sentido estrito e que se diferencia do estudo
da administrao pblica em sentido geral pela especificidade e dependncia
instrumental em relao ao poder poltico.
As satisfaes das necessidades coletivas pela Administrao Pblica (AP) conferem-
lhe, desse modo, a supracitada especificidade, que por demais evidente na atividade
administrativa da execuo de penas e medidas privativas da liberdade, e que
corresponde dependncia instrumental da tutela que pertence ao Ministrio da Justia
(MJ). O poder poltico est ento subordinado ordem jurdica. No h uma ideia de
poder sem uma ideia de Direito, que se concretiza nas polticas pblicas como atividade
destinada resoluo de problemas com que se defronta a sociedade, na qual o papel
central desempenhado pelo governo (Bilhim 2008).
O direito constitui, assim, uma realidade indissocivel do Estado moderno que o cria e o
impe quase exclusivamente, tendo como finalidade ltima a ordem social expressa
atravs de regras obrigatrias que visam a segurana dos cidados (Ribeiro 2004). Neste
trabalho interessa realar o papel desempenhado pelo Direito Penal, um ramo do Direito
Pblico, que corresponde a uma cincia jurdica e normativa do dever ser, que se
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
11
ocupa da delimitao, interpretao e anlise terico - sistemtica do delito bem como
dos pressupostos da sua persecuo e das suas consequncias atravs do mtodo
dedutivo (Molina 2009).
Muitas e muito diversas so as disciplinas que se ocupam de um ou de outro modo da
poltica criminal ou, mais precisamente, da poltica prisional com os seus mtodos,
perspetivas e enfoques diferentes. Neste trabalho, para alm da cincia da
Administrao pblica, faremos uso das seguintes cincias auxiliares: (i) a cincia
poltica entendida como o estudo do fenmeno poltico onde se engloba a poltica
prisional; (ii) a histria compreendida como a cincia que estuda os factos passados
onde se encontram os factos relacionados com as causas e consequncias da
delinquncia; (iii) a filosofia concebida como a cincia que se ocupa da investigao das
causas, efeitos e consequncias da delinquncia; (iv) a psicologia como cincia que
estudo os atos psquicos de um ponto de vista objetivo (inteligncia, carcter e/ou
atitudes) e do ponto de vista subjetivo (processos psquicos e/ou motivos dos atos) dos
delinquentes; (v) a sociologia entendida como a cincia que estuda os factos sociais
(estmulos sociais) relacionados com a delinquncia; (vi) a criminologia como cincia
emprica que estuda o crime como fenmeno real e autntico nas sociedades; e (vii) a
economia concebida como uma cincia que estuda a alocao de recursos escassos no
combate criminalidade enquanto problema social.
1.10 Estrutura da Dissertao
Este trabalho comea com uma clarificao, no seu captulo inicial, de todas as questes
que enformam a investigao, incluindo o enquadramento conceptual onde abordamos o
problema das estatsticas, delimitamos conceitos, arrolamos as cincias de que nos
socorremos, e estruturamos a dissertao.
No segundo captulo situamos o corpo terico na Cincia da Administrao Pblica
focalizada na reforma da administrao pblica e na contribuio desta para a avaliao
das polticas pblicas atravs duma breve abordagem ao estado da arte.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
12
No subsequente captulo enquadra-mos teoricamente o estudo atravs duma abordagem
s origens da poltica prisional, teorias e ideias que ento emergiram e suas implicaes
para a poltica prisional portuguesa.
No quarto captulo analisamos as teorias e modelos que hodiernamente contribuem para
o controlo da criminalidade, atravs de mtodos e tcnicas que visam a dissuaso da
criminalidade, e suas contribuies para atual poltica prisional portuguesa.
No captulo seguinte descrevemos o atual sistema de controlo social existente em
Portugal, destacando a organizao prisional contempornea, caracterizando a
populao prisional e especificando eventos prprios do ambiente prisional que influem
na dissuaso da criminalidade e na poltica prisional em geral.
No sexto captulo caracterizamos os estabelecimentos prisionais alvos da nossa
investigao e analisamos e discutimos os resultados obtidos com o objetivo de
caracterizamos a populao reclusa desses estabelecimentos.
No ltimo captulo apresentamos as concluses finais da avaliao feita poltica
prisional portuguesa e o efeito dissuasor que esta tem sobre a populao reclusa,
apresentando algumas propostas no sentido de aumentar o efeito dissuasor das penas de
priso sobre os reclusos em Portugal.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
13
Capitulo II A Reforma da Administrao Pblica e a Poltica Prisional
Existe uma afinidade muito estreita entre as polticas pblicas e o modelo vigente em
determinado pas (Bilhim 2008), ainda que os modelos adotados pelos diferentes pases
no sejam completamente puros, como veremos mais frente, pelo que comeamos por
abordar a evoluo dos modelos que foram determinantes para a mudana nas polticas
pblicas e na organizao dos servios pblicos como o caso da poltica prisional e da
organizao dos servios prisionais.
Durante grande parte do sculo transato (sculo XX), as organizaes de servio
pblico personalizaram a estabilidade e segurana, invariavelmente integradas como
partes dos governos como um todo, estas organizaes correspondiam s clssicas
burocracias weberianas (Osborne e Kerry 2005). Organizaes, essas, que colocavam
grande nfase na competncia tcnica e na diviso do trabalho, exigindo uma grande
coordenao formal, com recurso hierarquia como soluo param o controlo e
superviso das tarefas a realizarem.
As burocracias formais esto infestadas de regras excessivas, vinculadas a oramentos e
sistemas de gesto rgidos e concentradas no controlo. Nesse sentido, estas organizaes
acabam por gerar disfunes que afetam o seu desempenho, atravs da falta de
transparncia, ausncia de incentivos inovao, excessiva preocupao com as regras
e procedimentos em vez de com o desempenho e os resultados (Arajo 2000).
Nos derradeiros anos do sculo XX assistimos a um a mudana crucial neste tipo de
organizaes, essencialmente fruto das mudanas na economia global, que j no
podiam mais confiar no crescimento incremental e no desenvolvimento lento e planeado
da administrao dos servios pblicos (Osborne e Kerry 2005). As organizaes de
servio pblico (i.e. prises) tiveram como consequncia de tais mudanas a focalizao
na eficincia e efetivo uso dos recursos escassos, optando em alternativa pelo crescente
aumento da gesto managerial em oposio a tradicional proviso dos servios pblicos
(Rocha 2009).
O managerialismo esteve, assim, na base da reforma da Administrao Pblica e referia-
se a um cluster de ideias e prticas que procuram, no seu ncleo, usar as prticas do
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
14
sector privado e as abordagens empresrias no sector pblico (Robert e Janet Denhardt
2000). Baseando-se na convico de que o caminho para o progresso social reside no
aumento da produtividade, da aplicao das tecnologias da informao e comunicao
(TIC), da especializao cada vez maior dos funcionrios pblicos, de uma gesto
profissional e competente e de uma maior autonomia dos poderes dos gestores pblicos
(Pollitt 1993) incluindo os diretores das cadeias.
A Administrao Pblica portuguesa tem seguido esta tendncia a nvel mundial, nas
ltimas dcadas, adotando um conjunto de reformas no sentido de modernizar e adequar
os servios a esta nova conceo, refletindo-se sobretudo na reduo do peso da
administrao no oramento de Estado, na reduo e complexidade burocrtica dos
servios e na tendncia de descentralizao, flexibilizao e democratizao da
Administrao Pblica (Mozzicafredo 2001).
Apesar da especificidade prpria da administrao da Justia tambm esta rea sofreu a
influncia do managerialismo. A reforma da administrao pblica, nesta rea, comeou
pela comparao de produtividade e eficincia dos diversos tribunais, fazendo depender
o seu financiamento dos nveis de performance tendo, sempre, em conta os objetivos
destas organizaes como o respeito pelos direitos humanos, para alm de que
complicado falar em clientes da instituio judiciria, particularmente, no que respeita
Justia Penal. Situao que, ainda hoje, de difcil aplicao no que respeita
administrao prisional, no entanto o discurso managerial tem legitimado um discurso
de racionalizao do funcionamento da Justia que passa por uma gesto mais eficaz e
eficiente dos meios ao seu dispor com o objetivo de melhorar a imagem tanto dos
tribunais (Rocha 2009) como das prises junto da opinio pblica.
Existe, assim, uma poderosa histria para contar acerca do managerialismo, a qual nos
diz que existe algo de novo no mundo naquilo que nos pases anglo-saxnicos se chama
de governance12 (Pollitt 2000). No entanto, vamo-nos debruar em seguida sobre a
Nova Gesto Pblica (NGP), por ser aquela que mais influenciou e continua a
influenciar a gesto pblica e as polticas pblicas em Portugal, desde 1985, com a
12 Uma histria que inclui a Nova Gesto Pblica, o Reiventing Government ou um outro qualquer simples e dinmico termo como o E-Government e o New Pblic Service (Hood 1991).
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
15
tomada de posse do X Governo Constitucional, at 2009, com o fim do mandato do
XVII Governo Constitucional (Carvalho 2008) e que aparentemente, perante a crise
econmica iniciada em 2008, continua a influenciar as polticas dos governos que se
seguiram13.
2.1 A Nova Gesto Pblica (NGP)
Devemos realar: (i) as tentativas de reverter ou abrandar o crescimento do Estado, em
termos de despesas e pessoal; (ii) a mudana para a privatizao ou quase privatizao
do sector pblico com nfase nos servios auxiliares; (iii) o desenvolvimento das
tecnologias da informao e comunicao (TIC) na produo e distribuio de servios
pblicos; e (iv) o desenvolvimento de uma agenda internacional com grande foco em
assuntos gerais de administrao pblica, como as quatro mega tendncias que parecem,
segundo Christopher Hood (1991), estar ligadas ascenso da NGP, nos ltimos 15
anos, um pouco por todo o mundo.
Para Hood (1995) a NGP no um resultado inevitvel de um conjunto de fatores mas
um produto de escolhas intencionais feitas pelos governos dos diversos pases que
adotaram estas ideias e que desde ento seguiram esta doutrina. Uma espcie de menu
la carte donde se escolhe os pratos que melhor servem o apetite ideolgico dos
nossos governantes.
Escolhas, essas, que a maioria dos comentadores e defensores desta doutrina concordam
poderem ser feitas de uma lista a que Hood (1991) chama componentes doutrinais da
NGP (doctrinal components of new public management), a saber: (i) o poder na
gesto profissional do sector pblico, o que significa uma gesto ativa, visvel, em que
existe a liberdade de gesto, o que se justifica por uma clara atribuio da
responsabilidade de ao (accountability); (ii) a utilizao de modelos explcitos de
desempenho, o que significa uma clara definio dos objetivos, dos alvos, dos
indicadores do sucesso em termos quantitativos (mensurao), o que tem como
justificao a responsabilidade (accountability) em termos de uma clara definio dos
objetivos uma vez que a eficincia requer uma ateno redobrada no que respeita aos
objetivos; (iii) uma grande nfase no controlo dos resultados, o que significa dotao de
13 XVIII Governo Constitucional (2009-2011) e XIX Governo Constitucional (2011-Actualidade).
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
16
recursos e recompensas ligadas ao controlo da performance, o que tem como
justificao a necessidade de salientar os resultados em vez dos procedimentos; (iv) a
mudana para uma maior desagregao das unidades do sector pblico, o que significa o
desmembramento das antigas unidades monolticas e a criao de unidades
descentralizadas com oramentos prprios e em competio umas com as outras, o que
tem como justificao a necessidade de criar unidades gerveis separando a proviso da
produo, ganhando vantagens de eficincia no uso de contratos dentro e fora do sector
pblico; (v) mudana para uma maior competio no sector pblico, o que significa
mudar para procedimentos de contratos a termo e concursos pblicos, o que tem como
justificao a competio como chave para custos mais baixos e melhores
desempenhos; (vi) a nfase nos estilos de gesto praticados no sector privado, o que
significa uma maior flexibilidade (na contratao e nas recompensas) e maior uso de
tcnicas utilizadas no sector privado, o que tem como justificao a necessidade do uso
de ferramentas do sector privado com provas dadas no sector pblico; e (vii) a nfase
numa maior disciplina e parcimnia na utilizao dos recursos, o que significa a
necessidade de cortes nos custos diretos, a criao de uma disciplina de trabalho, a
resistncia s exigncias sindicais e a limitao da complacncia com os custos da
organizao, o que tem como justificao a necessidade de verificar as exigncias dos
recursos do sector pblico e fazer mais com menos.
A NGP pode, assim, definir-se como um a doutrina da cincia da administrao pblica
que defende a aplicao de princpios de gesto privada no fornecimento de servios
pblicos com o objetivo de alcanar uma maior eficincia e eficcia na afetao dos
recursos escassos (Carvalho 2001).
No que respeita avaliao das polticas pblicas incluindo a poltica prisional, esta
nova doutrina exige uma maior responsabilizao (accountability), no s em termos de
uma gesto mais profissional mas, tambm, em termos de uma clara definio de
objetivos, consequncia natural da necessidade de sermos eficientes. Mais, esta doutrina
coloca uma maior nfase no controlo dos resultados para alm de socorrer-se do uso de
ferramentas do sector privado que no dispensa a avaliao das polticas ou projetos que
levam a cabo. Exigncias que abarcam desde logo a implementao de um modelo de
avaliao permanente, integrado no processo de gesto e preparao oramental, at
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
17
avaliao de eficcia do programa pblico. O que ultrapassa a despectiva de uma
simples avaliao de desempenho, para abarcar uma lgica mais holstica no sentido de
solucionar o problema para o qual a poltica foi criada (Cardim 2006).
A NGP um modelo, como fcil deduzir, orientado para a gesto por resultados, o
que exige uma diferente organizao da Administrao Pblica. No basta, por
exemplo, publicar uma lei que exija a obrigao de levar a cabo um processo avaliativo
mas necessrio fazer compreender aos diferentes agentes includos no processo a
utilidade desta importante obrigao ou que a prestao pblica de contas no implica
apenas a aferio de resultados em termo financeiros, mas, tambm, as consequncias
de tais escolhas para a sociedade.
2.2 A Avaliao das Polticas Pblicas como Instrumento da NGP
Para Thomas Dye a avaliao das polticas pblicas uma atividade que depende dos
relatrios sobre os outputs dos programas de governo, da avaliao dos impactos das
polticas junto dos grupos envolvidos ou no envolvidos e nas propostas de alteraes e
de reformas. Considerada a ltima fase do processo de produo de polticas pblicas
em que os participantes resumem-se aos departamentos executivos e institucionais
vocacionados para a consolidao das polticas pblicas, as seces parlamentares, os
media e os Think Tanks (Cardim 2006).
Outro conceito considera que a policy evaluation thus refers broadly has actually fared
in action. It involves the evaluation of the means being employed and the objectives
being served. () After a policy has been evaluated, the problem and solutions it
involves may be completely re-conceptualized, in which case the cycle may swing back
to the agenda setting or some other stage of the cycle, or the status quo may be
maintained. (Howlett, Ramesh e Perl 2009).
Uma poltica pblica pressupe, assim, uma ao ou afirmao do que se pode ou no
fazer, difundido que foi atravs de um quadro legal vigente (leis, regulamentos,
orientaes ou determinaes), o que impe uma posterior avaliao. A avaliao faz
parte de um processo de produo de polticas pblicas que se desenrola de forma
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
18
cclica iniciado com a identificao de um problema14, que entra na agenda poltica,
seguindo-se a formulao de propostas polticas tendentes a resolver os problemas,
escolhida uma alternativa (legitimao poltica) procede-se sua implementao,
sucedendo-se a avaliao das polticas pblicas, encerrando-se o ciclo quando os
resultados da fase de avaliao fornecem contributos para a redefinio ou no das
solues polticas (polticas pblicas) para solucionar os problemas sociais como o
caso da criminalidade (Pasquino 2002).
A avaliao das polticas pblicas persegue numerosos e diferentes critrios, no entanto,
segundo Pasquino, existem dois que parecem ser essenciais, so eles a avaliao da
eficcia que mede a capacidade da poltica para atingir os fins a que se props e a
avaliao da eficincia que concentra-se no alcance dos fins a atingir com um menor
custo possvel. Para alm dos critrios da avaliao necessrio, tambm, perceber qual
o impacto de uma determinada poltica, os efeitos que produziu, o que habitualmente
no consensual e provoca muitos conflitos pelo facto das polticas, em geral,
beneficiarem ou prejudicarem alguns grupos alargando-se de seguida a outros.
O que confere uma importncia acrescida ao modo como efetuada a avaliao de uma
poltica pblica. Torna-se, assim, necessrio encontrar diversos tipos de exerccios15
avaliativos para conferir um maior consenso e justia a este exerccio avaliativo e
consequentemente poder dar uma melhor resposta ao problema em causa.
A avaliao das polticas pblicas, por fim, como exerccio final do processo de
produo de polticas pblicas fornece-nos, como verificamos antes, a reao pblica
aos resultados obtidos (feedback), o que nos possibilita a correo ou redefinio de
uma determinada poltica. Mas revela-nos, tambm, a estruturao da forma de governo
e de administrao pblica possibilitando-nos fazer as reformas governamentais e
administrativas que melhor sirvam os interesses da sociedade em geral e por esta via do
governo e administrao pblica relativamente a uma determinada poltica pblica
(Howlett, Ramesh e Perl 2009) como seja a poltica prisional.
14 Podendo ter sido identificado pelas autoridades ou expresso pela sociedade. 15 Por exemplo as avaliaes ex ante que corresponde avaliao do problema em si e do contexto social em que se insere; a avaliao on going feita ao longo da implementao; e a avaliao ex post que corresponde avaliao final (Pasquino 2002).
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
19
Segundo Carvalho (2007:6) no h polticas de reformas administrativas iguais. Alis,
no presente estdio de evoluo, a Cincia da Administrao Pblica, em geral,
continua a ser um assunto essencialmente nacional. A compreenso e explicao dos
fenmenos administrativos esto dependentes do conhecimento do contexto histrico,
jurdico, econmico e social de cada Estado. Avancemos, assim, para uma breve
anlise histrica da poltica e organizao prisional em Portugal.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
20
Captulo III A Escola Clssica e a Dissuaso da Criminalidade
A Europa do sculo XVIII vivenciou uma situao econmica e poltica revolucionria,
a passagem de uma economia feudal para uma economia capitalista, bem como, a
transformao de uma sistema de monarquia absoluta num sistema parlamentar liberal,
proporcionando mudanas profundas: a criao de uma nova sociedade e de um novo
Direito (Molin e Pijoan 2001).
neste contexto histrico que surgem as ideias da escola clssica do Direito Penal
nascidas do iderio iluminista, que marcaram o fim do ancien-rgime, pelas suas
ideais humanistas e utilitaristas. O que vai imprimir um novo entendimento s leis e
penas a que deveriam estar sujeitos os indivduos que violavam a lei penal em vigor
(Vaz 2000). A escola clssica vai, assim, questionar a irracionalidade das estruturas de
controlo, principalmente a lei, pressuposta que estava a racionalidade do homem,
criando uma nova tica poltica a partir das novas ideias filosficas (Dias e Andrade
1997).
As ideias da escola clssica constituem os fundamentos dos modernos sistemas jurdico-
legais aplicados um pouco por todo o mundo (Garrido et al. 1999). A contribuio dos
autores da escola clssica para o Direito Penal bem visvel nas discusses sobre a
legitimao do direito de punir, os efeitos da punio ou princpios que devem reger
aquele Direito. Porm, atendendo aos objetivos desta dissertao vamos, em seguida,
expor quais foram as suas contribuies mais importantes para a preveno e dissuaso
da criminalidade.
3.1 Cesare Beccaria
Cesare Bonesana, marqus de Beccaria (1738 1794), conhecido por Cesare Beccaria,
foi um filsofo poltico italiano cuja formao sofreu uma forte influncia dos filsofos
polticos franceses, como Montesquieu (1689-1755)16 ou Helvtius (1715-1771)17.
Escreveu Dei delitti e delle pene (Dos Delitos e Das Penas), que publicou 16 Beccaria (2009) demonstra especial estima por Montesquieu quando se refere a ele como o imortal Montesquieu (p. 63) ou o grande Montesquieu (p. 64), ou, mesmo, quando adota alguns dos seus princpios, como por exemplo, mais vale prevenir os delitos que puni-los, ou seja, que um trabalho eficaz de preveno faz com que no seja necessrio o recurso pena (Marinucci 2009). 17 Esta obra de Beccaria baseia-se, implicitamente, nas teorias da motivao criminal adotadas da obra de Helvtius que considerava, por exemplo, que o egosmo era o motor das aes humanas (Garrido et al. 1999).
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
21
anonimamente e onde se insurge contra a arbitrariedade, desigualdade e abusos de poder
que caracterizavam a Justia do seu tempo. O livro cuida, sobretudo, de como o Estado
deve organizar a resposta social delinquncia, segundo Costa (2009: 7), o contedo
do livro se traduz em um real e atual programa de poltica criminal e da a sua
perenidade.
Recordando, Montesquieu considera a liberdade deveras importante, um conceito que
compreendia o exerccio da vontade ou pelo menos na opinio que o cidado tem desse
exerccio, o que indissocivel da segurana ou de opinio que o cidado tem dela
(liberdade poltica). A liberdade, no entanto, est alicerada no aperfeioamento e
conhecimento das leis criminais, no estrito interesse de toda a sociedade, e a liberdade
triunfa sempre que as leis criminais extraem uma pena da natureza de um determinado
crime (Montesquieu 1982). Este autor considera, assim, que a liberdade indissocivel
da natureza e proporo das penas pelo que inseparveis da dissuaso e preveno da
criminalidade como forma de alcanar a to ambicionada segurana.
As principais ideias de Beccaria (2009) sobre as formas de dissuaso e preveno dos
delitos so as seguintes: (i) a pena eficaz para impedir a prtica de delitos porque o
prazer e a dor so motores dos seres sensveis (p. 75). Os homens cometem crimes em
funo das suas paixes que os movem com o objetivo de alcanar o prazer e evitar a
dor; (ii) o fim das penas to-somente o de impedir o ru de fazer novos danos aos
seus concidados e de dissuadir os outros de fazer o mesmo. (p. 85); (iii) para que a
pena seja eficaz deve existir uma proporcionalidade entre penas e delitos, ou seja, as
penas devem ser dotadas da severidade suficiente para que possam afetar a conscincia
dos homens; (iv) as penas devem ser aplicadas com celeridade pois quanto mais
pronta e mais perto do delito cometido esteja a pena, tanto mais justa e til ser (p.
102); (v) as penas devem, tambm, ser certas porque A certeza de um castigo, se bem
que moderado, causar sempre uma maior impresso do que o temor de um outro mais
terrvel unido com a esperana da impunidade (p. 115); e (vi) por fim, a rejeio da
pena de morte, defendendo que a perda da liberdade tem um maior efeito sobre a alma
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
22
humana porque obriga os homens a meditar sobre as suas aes, sobre a sua conduta
passada e futura, ao contrrio da impetuosa e momentnea pena de morte18.
A conceo beccariana do delito, para alm de colocar nfase na reforma penal, no
ignorou outros fatores, tambm, importantes que influenciavam a delinquncia, como
sejam: (i) a sociedade deveria estudar cientificamente os delitos, as fontes dos delitos e
as penas necessrias preveno destes; (ii) as leis deveriam prevenir os delitos
mediante a recompensa das boas aes dos homens, ou seja, um outro meio de
prevenir os delitos o recompensar a virtude (p. 160); e por fim (iii) o mais seguro
mas mais difcil meio de prevenir os delitos aperfeioar a educao. A tendncia para
delinquir , segundo Beccaria, inversamente proporcional educao que desfrutava
cada ser humano.
Esta obra de Beccaria constitui, assim, um verdadeiro tratado sobre o controlo social
pois as suas reflexes encontram-se, na sua maioria, focadas no procedimento penal e
cdigo que deveriam ser apangio de um Estado do Direito, uma verdadeira pedrada
no charco da poltica criminal vigente, que vai alterar para sempre a relao entre o
cidado e o Estado detentor do ius puniendi, com o objetivo de assegurar a mxima
felicidade repartida pelo maior nmero (p. 62). Uma vez que a felicidade um
conceito subjetivo a liberdade e a segurana so direitos fundamentais intimamente
associados relao instrumental recproca entre os cidados e o Estado no contrato
social evitando, pelo menos, a infelicidade dos primeiros (Pereira 1998).
3.2 Jeremy Bentham
Jeremy Bentham (1748 1832) foi um promitente filsofo e jurista ingls, considerado
o pai do utilitarismo19, foi o primeiro a escrever sobre os fins das penas com detalhe
em An Introduction to the Principles of Moral and Legislation, uma das obras menos
conhecidas deste autor, ainda que considerada fundamental para a compreenso da
18 Beccaria defendia, no entanto, que a pena de morte deveria ser aplicada em casos extremos de anarquia ou desordem generalizada como nica forma de dissuadir os homens de continuar a cometer crimes (Beccaria 2009). 19 O utilitarismo assenta no pensamento basilar, tanto tico como jurdico, de que o agir humano se orienta, tanto, pelo interesse ou felicidade individual como pelo interesse ou felicidade geral. Sendo que o geral devem impor limites ao individual para que possa existir segurana e bem-estar social considerada uma regra diretora da conduta humana (Mill 1976)
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
23
escola clssica. Obra na qual Bentham (2007) enfatiza com clareza o fim que justifica
uma pena:
The general object which all laws have, or ought to have, in common, is to
augment the total happiness of the community; and therefore, in the first place,
to exclude, as far as may be, everything that tends to subtract from that
happiness: in other words, to exclude mischief. But all punishment is mischief:
all punishment in itself is evil. Upon the principle of utility, if it ought at all to be
admitted, it ought only to be admitted in as far as it promises to exclude some
greater evil (p. 170).
Considera, este autor, que a preveno dos delitos evita o mal maior da aplicao da
Justia e punio do crime. Pelo que utilidade da punio resulta, assim, na preveno
da criminalidade, estabelecendo os seguintes princpios sobre a conduta humana e o
controlo penal: (i) o comportamento dos homens est condicionado por dois princpios
absolutos, evitar a dor e alcanar o prazer, que determinam a conduta dos homens; (ii) o
nmero de pessoas que valorizam o prazer e a dor ser maior ou menor segundo as
seguintes circunstncias: a intensidade; a durao; a certeza ou incerteza; a proximidade
ou distncia; a fecundidade20; a pureza21; ou a extenso22; (iii) o princpio da utilidade
um princpio bsico que rege o comportamento humano e deve orientar o governo dos
homens segundo a tendncia para a busca da felicidade ou preveno da infelicidade de
toda a comunidade em geral; e (iv) as leis tm quatro objetivos concretos com
aspiraes decrescentes: prevenir, na medida do possvel, todo o tipo de delitos
quaisquer que eles sejam; no sendo possvel prevenir um delito induzir o delinquente a
cometer um menos grave; quando algum est decidido a cometer um delito disp-lo a
no fazer mais danos que os necessrios; e efetuar a preveno do modo mais barato
possvel.
A proporo entre delitos e penas devia reger-se, segundo Bentham, pelas seguintes
regras: (i) o valor da pena no deve ser menor, em nenhum caso, que o suficiente para
compensar o benefcio do delito; (ii) quanto maior for o dano do delito, maior ser a
gravidade da pena; (iii) quando dois delitos entram em competio, a pena pelo delito 20 A probabilidade de que a um prazer ou dor lhes sigam sensaes do mesmo sinal. 21 A probabilidade que a um prazer ou dor lhes sigam sensaes de sinal contrrio. 22 O nmero de pessoas que so afetadas pelo prazer e dor.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
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maior deve ser suficiente para induzir algum a preferir o menor; (iv) a punio deve
ajustar-se, de tal maneira, a cada delito de forma que exista um motivo que impea o
delinquente de o praticar; e (v) nenhuma pena deve ser superior ao necessrio para estar
em conformidade com as regras atrs expostas.
No entanto, neste livro Bentham claramente a favor de um direito penal preventivo,
expondo as suas preocupaes em relao aos casos em que os castigos carecem de
justificao e como tal no deviam ser infligidos, como sejam: (i) quando o castigo
infundado e no existe um dano para prevenir porque o comportamento no
socialmente lesivo; (ii) quando o castigo ineficaz porque no capaz de prevenir o
dano; (iii) quando o castigo intil ou demasiado caro pode produzir um dano maior
que aquele que acautela; e (iv) o dano deve ser prevenido com os meios menos lesivos e
dispendiosos para a sociedade.
A priso, no entanto, pr-existe utilizao sistemtica das leis penais, contudo o
triunfo da pena de priso, como pena principal, surge com a criao dos novos cdigos
influenciados pela teoria clssica. A priso, como pea essencial no conjunto das
punies, marca um momento importante na histria da justia penal ao permitir o
acesso humanidade (Foucault 2009), e quando a priso se converteu na pena
principal, Bentham converteu-se no seu arquiteto.
Para Bentham (2008) o modelo de priso celular assente no isolamento e no silncio
total seria o mais eficaz e eficiente atendendo aos fins das penas de priso. Como tal,
concebeu os planos de uma priso na qual existiria uma torre central circular em que
todas as celas estariam dispostas de forma redonda, ao seu redor, a partir da qual os
guardas teriam uma boa visibilidade sobre as celas. A posio do inspetor combinada
com o eficaz estratagema de ver sem ser visto era de extrema importncia para este
modelo.
A sua obra Panopticon or the Inspection-House inspirou um pouco por todo o mundo
a criao do regime de priso celular e constitui, muito provavelmente, o primeiro
manual sobre poltica prisional. Nela, Bentham (2008) regula de forma rigorosa como
devia ser o funcionamento deste modelo de priso. Estabelecendo, por exemplo, a
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
25
separao de sexos, o trabalho interno, a alimentao, o asseio, o vesturio, a assistncia
religiosa, a assistncia mdica, os castigos por faltas aos regulamentos internos e a ajuda
que requeria o preso quando saa da priso. Princpios que teriam muita influncia nas
polticas prisionais de muitos pases, incluindo Portugal como iro verificar mais
frente nesta dissertao.
3.3 Escola Portuguesa
As ideias iluministas da escola clssica, preconizadas por Beccaria e Bentham, teriam
bastante influncia na escola portuguesa, modelando as reflexes sobre o crime e a
justia penal no Portugal de finais do sculo XVIII, princpios do sculo XIX. Segundo
Albuquerque (1983: 257) os ventos filosficos que sustentavam o humanitarismo
jurdico na determinao e execuo das penas, no deixou o legislador Pombalino de
refletir por vezes, a influncia dessas ideias, o que antecipava a existncia de um clima
ideolgico permevel s novas doutrinas.
Neste sentido, eram necessrios pensadores portugueses que promovessem e dessem
corpo s ideias humanistas e utilitaristas da escola clssica. Com o propsito de renovar
as leis penais, at a rudemente repressivas sem espao para a dignidade da pessoa
humana. Consideramos que dois autores nacionais e suas obras foram fundamentais
para que fosse possvel introduzir na legislao portuguesa as ideias e princpios
iluministas da escola clssica. Foram eles Pascoal Jos de Melo Freire dos Reis e o seu
sobrinho Francisco Freire de Melo.
3.3.1 Pascoal Jos de Melo Freire
Pascoal Jos de Melo Freire dos Reis (1738-1798) foi um conceituado jurista portugus,
que desempenhou vrios cargos ligados governao e administrao da Justia23. Foi
um dos pioneiros do estudo do direito em Portugal24 e escreveu Institutiones Juris
Criminalis Lusitani (Instituies de Direito Criminal Portugus) onde se insurge contra
23 Entre os muitos cargos e ttulos a que, pelas suas competncias e empenho, desempenhou, realamos os seguintes: Deputado da Bula da Cruzada (1783); Deputado da Assembleia da Ordem de Malta (1783); Provisor do Gro-Priorado do Crato (1785); Desembargador dos Agravos da Casa da Suplicao (1785); Cnego Doutoral das Ss da Guarda, de Faro e de Braga; Deputado da Mesa da Comisso Geral do Exame e Censura dos Livros (1787); Deputado da Casa do Infantado (1792); Deputado do Conselho Geral do Santo Ofcio (1793); Conselheiro de D. Maria I (1793). 24 Foi, tambm, autor de uma notvel obra Institutiones Juris Civilis Lusitani (1788) que serviu de base ao ensino do Direito, durante muitos anos em Portugal (Saraiva, Vol. 17, 2004).
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
26
a crueldade das penas e graduao dos castigos a aplicar aos criminosos. Nela as suas
ideias vo ao encontro dos princpios defendidos pelos autores da escola clssica
criticando abertamente a jurisprudncia criminal, contida no Livro V das Ordenaes25,
pela incoerncia, falta de mtodo e pela abundncia de penas cruis e injustas.
Algumas das suas principais ideias para a preveno e dissuaso da criminalidade
(Freire 1794), foram: (i) os delinquentes devem ser obrigados reparao do dano e
pena pelas instituies representativas da sociedade, consequncia do pacto social que
inclui o direito de punir; (ii) a pena deve ser proporcional ao delito e decidida em
harmonia com a natureza e ndole deste; (iii) o objetivo da pena a segurana do lesado,
a emenda do lesante, e o exemplo dos outros para que se abstenham de perpetrar
semelhantes crimes; (iv) defendia que era melhor prevenir os delitos que puni-los
mesmo com penas justas; e por fim (v) sustentava que os delinquentes devem ser
castigados sem remisso () para que de futuro tanto eles como outros no ousem
fazer; e assim se previnem os delitos (p. 79).
Esta sua obra assentava em alguns dos seguintes axiomas criminais: melhor deixar
impune um crime do que condenar um inocente; antes de sentena condenatria todo o
ru inocente; a pena a infligir deve ser, inteiramente, proporcional quantidade e
gravidade do delito e ao mal causado sociedade; as penas foram estabelecidas para
prevenir os crimes e no tanto para punir; a imposio das penas deve ter em conta a
utilidade pblica; e justa a pena que impede o criminoso de voltar a cometer um
crime.
Persistia, no entanto, em alguns princpios proclamados pelo direito penal e poltica
criminal do ancien-rgime, como por exemplo: (i) reconhece que uma pena cruel
injusta no entanto defende a necessidade da pena capital que podia ser simples ou atroz
dependendo das circunstncias do delito; (ii) sustenta que as penas corporais que apelida
de pena vil, como os aoites, mutilaes e trabalhos forados so necessrias
25 As ordenaes eram coletneas de leis (textos de diversa natureza e providncia) promulgadas pelos reis que as terminaram e que por isso lhes deram o nome, a saber: Ordenaes Afonsinas; Ordenaes Manuelinas; e Ordenaes Filipinas. Todas as ordenaes, grosso modo, seguiram a mesma sistematizao, divididas que foram em cinco livros: o Livro I cuidava do Direito Pblico e Administrativa; o Livro II tratava do Direito Cannico; o Livro III ocupava-se do Direito Processual; o Livro IV regulava o Direito Civil; e o Livro V tratava do Direito Penal (Albuquerque 1983).
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
27
preveno da criminalidade; (iii) defende que a pena de priso poderia ser executada
num crcere pblico ou secreto, perptua ou temporria, de acordo com a lei em vigor; e
(iv) considera, ainda, a Inquisio26 embebida do esprito humanista ser til e
necessria, tanto para punir como para amedrontar os herticos.
3.3.2 Francisco Freire de Melo
Francisco freire de Melo (1760/64-1838/40) foi um controverso filsofo e jurista
portugus, sobrinho de Pascoal Jos de Melo Freire de quem ficou eternamente grato
contribuindo para a glorificao do seu nome e da sua obra, editando e anotando vrias
das suas obras aps a sua morte. Escreveu o Discurso sobre delitos e penas e qual foi a
sua proporo nas diferentes pocas da nossa jurisprudncia, principalmente nos trs
sculos primeiros da Monarquia Portuguesa publicada pela primeira vez em Londres
no ano de 1816 e s depois publicado em Portugal, dois anos aps o triunfo da
Revoluo Vintista (Albuquerque 1983).
A influncia da escola clssica de Beccaria, Bentham e Filangieri27 neste seu livro
bem patente atravs das vrias citaes feitas aos mesmos. Melo (1916) vai rebuscar
muitas das ideias daqueles autores relativamente preveno e dissuaso da
criminalidade, como sejam: (i) a desproporo entre delitos e penas fruto de leis penais
desatualizadas que no tm em conta a preveno dos crimes; (ii) a dureza da pena deve
ter como nica medida a que o legislador se props prosseguir, pois quando uma pena
basta para conter o delinquente, e com ela se consegue o mesmo fim, no deve ser
imposta pena maior (p. 10); (iii) afasta a possibilidade da aplicao de penas cruis
quando diz que nunca necessria uma pena cruel, porque desumana, e no tem por
fim seno a vingana, que deve ser alheia da lei (p. 10); (iv) demonstra averso
priso perptua, ao contrrio de seu tio, pois a pena que castigando o ru e ao mesmo
26 A este respeito recordamos algumas palavras de Antero de Quental num discurso prenunciado em 1871, na sala do Casino Lisbonense, sobre as Causas da Decadncia dos Povos Peninsulares nos ltimos Trs Sculos (Quental 1979: 28): A Inquisio pesava sobre as coincidncias como a abbada de crcere. O esprito pblico abaixava-se gradualmente sob a presso do terror, enquanto o vcio, cada vez mais requintado se apossava placidamente do lugar vazio que deixava nas almas a dignidade, o sentimento moral e a energia da vontade pessoal esmagados, destrudos pelo medo. 27 Gaetano Filangieri (1752-1788) foi um brilhante jurista e economista italiano, defensor do despotismo esclarecido, acreditava que a cincia e a razo possibilitavam a existncia de uma doutrina que buscava a felicidade do gnero humano no campo da moral e da economia. Considerava, por isso, que a legislao vigente era barbara e obscura pelo que defendia a reforma das leis, uma revoluo que considerava til aos direitos e felicidade da sociedade.
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
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tempo utiliza ao pblico parece a melhor. Um crcere longo ou perptuo aflige, e no
utiliza, nem d aos cidados um exemplo to vivo (p. 35); e (v) encara a pena numa
perspetiva claramente correcionalista com a finalidade de prevenir a criminalidade,
quando afirma, por exemplo, que o fim das penas emendar o delinquente, impedir o
dano sociedade, dar exemplo aos mais cidados, e nunca vingana ou satisfao do
ofendido (p. 39).
Afasta-se, porm, dos princpios defendidos pela escola clssica, mais em consonncia
com as ideias defendidas pelo tio quando admite que as penas infamatrias, que se
traduzem na imposio de castigos vexatrios, ainda que sujeitas a vrios requisitos
podem evitar alguns delitos ou quando no se atreve a negar ao legislador o direito de
impor a pena capital nem a restrinjo a to poucos casos (p. 49) como forma de
intimidar os criminosos a no cometer crimes.
3.4 Implicaes para a Poltica Prisional em Portugal
Recordemos, primeiro, a poltica criminal do ancien regmen lembrando um episdio
da Justia portuguesa, ocorrido no dia 13 de Janeiro de 175928, no qual os lisboetas
assistiram impvidos e serenos ao final de uma pea de teatro poltico cuja nica certeza
que temos hoje foi o fim trgico de grande parte dos seus protagonistas29. Falamos do
Processo dos Tvoras, um acontecimento habitual da poltica criminal da poca no
fora o elevado estatuto social dos seus principais atores (Gomes 1974).
Neste processo, a sentena condenatria aplicada ao ru Jos Mascarenhas (Duque de
Aveiro), pretenso principal instigador dos crimes, e cumprida no dia seguinte sua
proclamao, constituiu um bom exemplo deste tipo de Justia:
Condenam o ru Jos Mascarenhas () que seja levado Praa do Cais de
Belm, e que nela seja visto de todo o Povo depois de ser rompido vivo,
quebrando-se-lhe as oito canas das pernas e dos braos, seja exposto em uma
roda, para satisfao dos presentes e futuros Vassalos deste Reino; e que depois 28 O Processo dos Tvoras foi iniciado no dia 9 de Dezembro de 1758, as sentenas condenatrias foram proferidas no dia 12 de Janeiro de 1859 e executadas no dia 13 de Janeiro de 1759 (Gomes 1974). 29 Naquele dia foram, ainda, executados, no mesmo cadafalso, com requintes muito semelhantes: Francisco de Assis de Tvora, Antnio lvares Ferreira, Jos Policrpio de Azevedo, Lus Bernardo de Tvora, Jernimo de Atade, Jos Maria de Tvora, Brs Romeiro, Joo Miguel e Manuel lvares, e Dona Leonor de Tvora a quem coube a pena de morte simples aplicada aos fidalgos da degolao (Gomes 1974).
A Poltica Prisional e a Criminalidade Portuguesa Contempornea
29
de feita a execuo, seja queimado vivo o mesmo ru, com o dito cadafalso onde
for justiado, at que tudo pelo fogo seja reduzido a cinza e p, que sero
lanados ao mar, para que dele e da sua memria no haja mais notcia
(Gomes 1974: 118).
Condenado, ainda, ao confisco de todos os seus bens, destruio das armas e escudos,
demolio de materiais e edifcios da sua habitao que foram arrasados e reduzidos a
campos salgados pelos crimes de rebelio, sedio, alta traio e parricdio, conforme a
Ordenao do Livro V.
Com a morte de D. Jos (1777) e subida ao trono de D. Maria, a primeira rainha
portuguesa, qual foi atribuda o cognome da Pia ou Piedosa, inicia-se uma fase de
mudana na Justia portuguesa. D. Maria revogou inmeras prises arbitrrias dos
crticos do pombalismo, num ato de libertao macia de prisioneiros, que foi apelidada
pelo povo de ressurreio, uma vez que alguns prisioneiros j estavam h tanto tempo
presos que imaginavam-se mortos. Aceitou, inclusive, a reviso do processo dos
Tvoras os quais chegou a defender (Saraiva 2004).
No reinado de D. Jos (1750-1777) teve incio um perodo de reflexo jurdica e mesmo
de concretizao de algumas medidas tendentes a dar corpo ao humanitarismo jurdico
apangio do iluminista30. Contudo, no reinado de D. Maria (1777-1816) que tem
incio um vasto conjunto de reformas no campo jurdico31, que inclua a legislao penal
e poltica prisional, conjugando uma vontade poltica mais consentnea e harmoniosa
com os valores liberais, humanistas e utilitaristas.
A Constituio de 182232 vai, finalmente, consignar alguns artigos com relevncia para
o direito penal e poltica criminal da poca. No seu artigo 9. considera a igualdade dos
30 Cfr. Alvars de 28 de Julho de 1751 e de 12 de Junho de 1769 que manifestavam o princpio da proporcionalidade das penas em relao aos delitos; ou Alvar de 17 de Janeiro de 1757 e Lei de 3 de Agosto de 1759 que afirma o primado da preveno geral da pena, dispondo-se que quando aquela no for suficiente para prevenir o delito, carece de uma nova medida (Albuquerque 1983). 31 Cfr. Decreto de 31 de Maro de 1778 que nomeia uma junta de jurisconsultos encarregues de organizar um novo cdigo (penal) aos quais se junta Pascoal de Melo Freire em 1783; e trabalhos preparatrios que finalmente dariam ao pas uma Constituio escrita que seria aprovada e jurada por seu filho D. Joo VI e que, como iremos constatar, iriam influir na poltica criminal e prisional portuguesa (Albuquerque 1983). 32 A Constituio de 1822 teve dois perodos de vigncia, um primeiro de 1 de Outubro de 1822, aps o juramento de D. Joo VI, a 2 de Junho de 1833 e um segundo de 10 de Setembro de 1836 a 4 de Abril de 1838, num total de cerca de 13 meses de vigncia.
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30
cidados perante a lei; no artigo 10. estabelece a absoluta necessidade da lei penal; e no
artigo 11. afirma a proporcionalidade da pena ao delito praticado, abolindo a tortura,
confiscao de bens, a infmia, os aoites, marca de ferro e demais penas cruis e
infames, o que constitui o primeiro avano em relao ao Direito Penal das ordenaes.
A Carta Constitucional de 1826, a nossa lei f