UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇ Ã O EM LÓGICA E METAFÍSICA
Cleber de Lira Farias
A Possibilidade do Conhecimento de Deus na Perspectiva
da Concepção Humeana de Causalidade
Rio de Janeiro
2017
Cleber de Lira Farias
A Possibilidade do Conhecimento de Deus na Perspectiva
da Concepção Humeana de Causalidade
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Alberto Oliva
Rio de Janeiro
2017
Farias, Cleber de Lira
Possibilidade do Conhecimento de Deus na Perspectiva da Concepção
Humeana de Causalidade / Cleber de Lira Farias. Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS, 2017.
111 f.
Orientador: Alberto Oliva
Dissertação (mestrado) – UFRJ / IFCS / Programa de Pós-Graduação
em Lógica e Metafísica, 2017.
1. Teoria do Conhecimento. 2. Conhecimento de Deus. 3.
Causalidade. I. Oliva, Alberto. II. Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-
Graduação em Lógica e Metafísica. III. Mestre.
Cleber de Lira Farias
A Possibilidade do Conhecimento de Deus na Perspectiva
da Concepção Humeana de Causalidade
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa
de Pós-Graduação Lógica e Metafísica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Lógica e Metafísica. Á rea de
Concentração: Filosofia, Teoria do
Conhecimento, Filosofia da Religião.
Orientador: Prof. Dr. Alberto Oliva
Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 2017.
______________________________________________________________
Alberto Oliva, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
______________________________________________________________
Antonio Frederico Saturnino Braga, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
______________________________________________________________
Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira, Doutor, Universidade Católica de Petrópolis (UCP)
A Deus, família, namorada, amigos e orientador pelo apoio,
força, incentivo, companheirismo e amizade. Sem eles nada disso teria sido possível.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, princípio de sabedoria e bondade.
Aos meus pais, Maria e Cicero, meu infinito agradecimento por sempre acreditaram em minha
capacidade. Obrigado pelo amor incondicional.
Ao meu querido meu irmão, pelo seu companheirismo, amizade, paciência, compreensão e
apoio, este trabalho pôde ser concretizado.
À minha namorada, Carolina Almeida, por sua constante contribuição, apoio e compreensão.
Ao Professor Doutor Alberto Oliva, que acreditou em meu potencial. Por sua inteira
disponibilidade e disposição em me ajudar. Agradeço às suas críticas que me guiaram nesta
dissertação. Levarei seu exemplo de referência profissional e pessoal para meu crescimento.
Ao amigo Saturnino Rodriguez, do Colégio Estadual Dom Walmor, por me apoiar nessa
pesquisa.
Aos meus amigos do mestrado, pelos momentos compartilhados, especialmente nas aulas
obrigatórias de disciplinas obrigatórias do primeiro semestre e nas apresentações do seminário
de pesquisa.
Aos alunos, professores e funcionários do Departamento de Pós-Graduação em Lógica e
Metafísica.
Por fim, agradeço à CAPES pelo apoio financeiro, sem o qual esta pesquisa não se
concretizaria.
RESUMO
O objetivo da dissertação será apresentar e defender os argumentos de Hume acerca da
possibilidade do conhecimento de Deus a partir da perspectiva causal. Considerando que o
autor visa fundamentar sua filosofia como ciência rigorosa, se baseará em critérios que
possam ser justificados empiricamente. Todas as coisas, portanto, que não estiverem de
acordo com tais critérios serão denominadas de irracionais ou ilusórias. Partindo do rigor
empírico de Hume, o primeiro capítulo será dedicado à análise da questão da causalidade em
sua origem e natureza, pois ela é o pano de fundo das problemáticas que serão desenvolvidas
nos capítulos subsequentes. No segundo capítulo, o objeto de estudo será a problemática do
argumento do desígnio, que defende a posição que a existência de Deus pode ser conhecida de
forma a posteriori, a partir da análise da ordem e funcionalidade do mundo. Esta posição é
duramente criticada por Hume, no entanto, suas críticas são questionáveis, pois são expressas
através de personagens e não assumidas diretamente enquanto autor. No terceiro capítulo,
buscaremos compreender se é possível justificar de forma racional a crença na ocorrência em
fatos miraculosos, levando em consideração que as evidências empíricas não são atendidas.
Nesse contexto, podemos observar que diversas religiões, para satisfazerem suas crenças, se
contrapõem a tais evidências.
PALAVRAS-CHAVE: Causalidade; Religião Natural; Desígnio; Milagres.
ABSTRACT
The purpose of the dissertation will be to present and defend Hume’s arguments about the
possibility of the knowledge of God from the causal perspective. Considering that the author
attempts to ground philosophy as a rigorous science, it will rely on criteria that can be
empirically justified. All things, therefore, which do not meet these criteria will be called
irrational or illusory. Starting from Hume’s empirical rigor, the first chapter will be devoted to
the analysis of the question of causality in its origin and nature, since it is the background of
the problems that will be developed in the subsequent chapters. In the second chapter, the
object of study will be the problematic of the argument of the design, which defends the
position that the existence of God can be known in a posteirectional way, from the analysis of
the order and functionality of the world. This position is harshly criticized by Hume, however,
his criticisms are questionable because they are expressed through characters and not directly
assumed as the author. In the third chapter, we will try to understand if it is possible to
rationally justify the belief in the occurrence in miraculous facts, taking into consideration
that the empirical evidences are not met. In this context, we can see that various religions to
satisfy their beliefs counteract such evidence.
KEY-WORDS: Causality; Natural Religion; Design; Miracles.
SIGLAS
T – Tratado da Natureza Humana (T, livro, parte, seção, parágrafos)
EHU – Investigação Acerca do Entendimento Humano (EHU parte, parágrafo)
DNR – Diálogos da Religião Natural (DNR, Parte, página)
CRP – Crítica da Razão Pura (CRP, parte, parágrafo)
Resumo – Resumo do Tratado da Natureza Humana (Resumo, página)
HNR – História da Religião Natural (HNR, seção, página)
Ensaios – Ensaios Acerca do Entendimento Humano (Ensaios, livro, parte, parágrafo)
HE – História da Inglaterra (HE, seção, página)
SUMÁRIO
INTRODUÇ Ã O .......................................................................................................................... 9
Capítulo I - ANÁ LISE DO PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE .............................................. 12
1.1 As operações da mente humana ...................................................................................... 14
1.1.1 A origem das ideias .................................................................................................. 14
1.1.2 Princípios associativos das ideias ............................................................................. 18
1.2 Sobre a distinção dos objetos da razão humana .............................................................. 21
1.2.1 Hume’s Fork ............................................................................................................. 23
1.3 Dinâmica do princípio causal ......................................................................................... 28
1.3.1 A ideia de conexão necessária .................................................................................. 29
1.3.2 A inferência causal ................................................................................................... 32
1.3.3 A crença causal......................................................................................................... 37
Capítulo II - A RELIGIÃ O NATURAL E A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO DE
DEUS ........................................................................................................................................ 40
2.1 A religião natural: do politeísmo ao monoteísmo ........................................................... 42
2.1.1 Distinção entre providência particular e providência original ................................. 48
2.2 Análise do argumento do desígnio .................................................................................. 55
2.3 Os personagens dos Diálogos e suas teses ...................................................................... 58
2.3.1 Posição de Demea: fideísmo .................................................................................... 58
2.3.2 Posição de Cleantes: argumento do desígnio ........................................................... 60
2.3.3 Posição de Filo: ceticismo ........................................................................................ 62
2.4 Debate acerca da existência de Deus e sua natureza....................................................... 63
Capítulo III - A POSSIBILIDADE DOS MILAGRES ............................................................ 81
3.1 A questão dos milagres e do uso dos testemunhos ......................................................... 82
3.3 A história de Joana d’Arc ............................................................................................... 92
3.3 Análises de Flew e Fogelin acerca da perspectiva humeana de milagre ........................ 95
3.4 A questão da fé de Hume ................................................................................................ 97
CONCLUSÃ O ........................................................................................................................ 102
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁ FICAS ................................................................................... 108
9
INTRODUÇ ÃO
Este trabalho tem como objetivo a apresentação dos argumentos de David Hume
acerca da possibilidade do conhecimento de Deus a partir da perspectiva do princípio de
causalidade. Essa problemática pode ser entendida como uma das principais do século XVIII.
Nesse contexto, podemos ressaltar a figura Hume que é considerado um dos grandes filósofos
britânicos1 pela extensão e profundidade de seu pensamento acerca das diversas temáticas
epistemológica, metafísica, moral e, sobretudo, religiosa.
Com relação à temática religiosa, podemos afirmar que Hume demonstrava-se
cauteloso em sua escrita, por receio das consequências junto às autoridades eclesiásticas.
Entretanto, seu esforço não foi suficiente, pois seus escritos não deixaram de serem lançados
no Index Librorum Prohibitorum em 1761. Dentre os intelectuais da época, foi acusado de
cético extremo – fruto de uma linha de interpretação tradicional – e de ateu – por sua postura
diante de alguns posicionamentos religiosos. Hume chegou a ser considerado “inimigo da
religião”, em 1756, pela Igreja da Escócia, mas, posteriormente, essa grave acusação foi-lhe
retirada. Pela postura dos argumentos humeanos destinados à religião, podemos, de acordo
com as palavras de Gaskin, afirmar: “A crítica de Hume à religião e à crença religiosa é, como
um todo sutil, profunda e prejudicial para a religião de uma forma que não tem antecedentes
filosóficos e que teve poucos sucessores” (GASKIN, 2009, p. 480).
Para que possamos cumprir o objetivo deste estudo, devemos, primeiramente,
estabelecer as bases epistemológicas que se assentam os conceitos fundamentais da crítica
humeana à religião natural.
Desse modo, no capítulo primeiro, pretendemos realizar a análise da origem, natureza
e fundamentação do princípio de causalidade, pois, sendo um importante pressuposto,
background assumption, sua compreensão torna-se indispensável para o desenvolvimento das
questões religiosas. Nesses termos, trataremos da distinção feita por Hume entre impressões e
1 “Hume es sin duda una de las figuras más influyentes de la historia de la filosofía. Pero a pesar de ser uno de
los filósofos más importantes, no ha sido siempre de los más conocidos. De hecho, aunque Hume llegó a ser un
autor bastante popular en su época, su filosofia provocó más rechazos que aceptaciones, fruto de unas
posiciones que, fieles a su método, se enfrentaban a las crencias más extendidas en su entorno cultural. Con
posterioridad a la muerte de Hume, su papel en la historia de la filosofía se redujo prácticamente a ser el
despertador del sueno dogmático de Kant y se considero que la mayoría de los problemas propuestos por Hume
se resuelven o superan a través de la filosofia de Kant. Fue a principios del siglo XX cuando la filosofía de
Hume resurgió y se le empezó a considerar como un autor clave en la historia de la filosofía y como pensador
que aún tiene mucho que ensenarnos” (CABEZAS, 2008, p. 7).
10
ideias, uma vez que se pressupõe que para toda ideia exista uma impressão correspondente; de
modo contrário, se uma ideia não tem uma gênese na impressão, é vazia. Por conseguinte,
buscaremos compreender como essas ideias se organizam na mente humana investigando o
papel elaborado pelas faculdades da memória e da imaginação.
Hume afirma que todos os conteúdos formulados pelas ideias presente na mente
humana são distinguíveis em relações entre ideias e questões de fato. Dessa forma,
priorizando a análise das questões de fato, observa que as ideias se associam de acordo com
três princípios associativos, a saber: semelhança, contiguidade e causalidade. Ao voltar sua
atenção para o princípio de causalidade, quer-se analisar sua natureza e suas consequências
para a natureza humana. Por intermédio da observação da ordem e regularidade com que a
natureza se apresenta aos sentidos, a mente humana, guiada pela constância sucessiva dos
eventos e influenciada pelo hábito ou costume, sugerirá que entre os eventos haja uma
conexão causal. Por conseguinte, habituados a esperar que a natureza mantenha sua
regularidade haverá um fortalecimento da crença causal. Esta que por sua vez está fundada na
probabilidade. A investigação deste princípio e suas implicações são necessárias, uma vez
que, como já dissemos, servem como pressuposto para as investigações propostas no capítulo
II, estabelecendo ligações diretas entre a perspectiva causal e sua crítica à religião natural.
No capítulo II, almejamos, através da investigação da crítica de Hume à religião
natural, verificar a possibilidade do conhecimento de Deus – sua origem e natureza – a partir
da concepção de causalidade analisada no primeiro capítulo. Nesse contexto, dividiremos
nossa pesquisa em duas partes: a primeira parte abarca a análise histórica feita por Hume,
contida na História natural da religião, que busca compreender se a origem da religião é
predeterminada ou produto da natureza humana. Buscando compreender os efeitos oriundos
da religiosidade na vida e na conduta humana, Hume distinguirá o teísmo supersticioso do
teísmo genuíno, compreendendo o progresso reflexivo humano do entendimento da
divindade. Embora não seja uma obra, de fato, filosófica, podendo ser denominada de
antropologia religiosa, sua análise torna-se necessária, pois questionará o surgimento e o
desenvolvimento do sentimento religioso no homem.
A segunda parte do segundo capítulo será dedicada à investigação do argumento do
desígnio, temática central dos Diálogos sobre a Religião Natural, que defende que a
existência de Deus pode ser comprovada de modo a posteriori. Essa obra foi redigida em
forma de diálogo retratando os argumentos dos personagens Demea, Cleantes e Filo, com o
intuito de velar as verdadeiras posições de Hume referente à temática religiosa. Por isso que a
11
leitura e interpretação dos Diálogos de Hume torna-se tarefa de complexidade ímpar em
relação a seus contemporâneos.
O debate do argumento do desígnio entre Cleantes e Filo, que envolve as rodas de
conversa da sociedade britânica como um todo, é a espinha dorsal dos Diálogos. Cleantes
defenderá que a partir da experiência dos fenômenos da natureza podemos identificar certa
ordem e regularidade no universo que são elementos que podem justificar a existência de um
ser de infinita inteligência, justiça, bondade. Por outro lado, Filo usará argumentos que
demonstram a fragilidade contida nesse argumento como, por exemplo, a incompatibilidade
da existência de um Deus e a observação dos males no mundo. Para tanto, buscando
alternativas ao argumento do desígnio, Filo objeta que através da experiência organizacional
do universo, pode-se considerar a possibilidade da própria natureza se auto-organizar. No
final dos Diálogos parece haver, por parte de Filo, uma concordância relativa ao argumento
do desígnio. No entanto, este serve para demonstrar a habilidade de Hume no uso da
linguagem, como um véu de discrição acerca de sua posição na obra. Entretanto, após a
investigação do argumento do desígnio nos restam algumas questões em aberto como, por
exemplo, a questão dos milagres, que será exposta no próximo capítulo.
Após a investigação da crítica humeana ao argumento do desígnio, no terceiro e último
capítulo dessa pesquisa, buscaremos, em primeiro lugar, investigar a possibilidade da
existência de milagres, presente no ensaio Dos milagres, e, por conseguinte, se eles podem ser
justificados a partir de testemunhos. A pressuposição da existência de um milagre
fundamenta-se na descontinuidade da constância da natureza, considerando que as questões
de fato, baseiam-se na aparente conexão causal estabelecida mentalmente pelo hábito,
consequentemente, torna-se inviável a crença em milagres. O testemunho, por conseguinte,
afirmará Hume, além das inúmeras circunstâncias para considerar sua legitimidade (como
caráter, número) só é digno de crença se a sua negação for de natureza mais miraculosa que o
fato testemunhado.
Para o desenvolvimento desta dissertação, utilizaremos principalmente as seguintes
obras de Hume: Tratado na natureza humana (Trad. Déborah Danowski), Investigação
acerca do entendimento humano, Resumo do tratado da natureza humana, História natural
da religião (Trad. Jaimir Conte) e Diálogos acerca da religião natural. Além das obras
humeanas, também contribuíram para essa pesquisa os comentários de Gaskin, Flew, Fogelin,
Monteiro, Noxon, Beebe dentre outros pesquisadores reconhecidos por interpretar de modo
profícuo a filosofia de David Hume.
12
Capítulo I - ANÁLISE DO PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE
Esta parte da dissertação tem como escopo apresentar os principais argumentos de
Hume acerca da possibilidade do conhecimento de Deus a partir da perspectiva causal.
Considerando que Hume tenta fundamentar a filosofia como uma ciência rigorosa segundo
critérios passíveis de ser justificados empiricamente, as teses que não passarem por
determinados crivos eram consideradas irracionais ou ilusórias. Isto posto, entendemos que,
primeiramente, devemos nos debruçar sobre o estudo de um importante pressuposto, ou
background assumption, que é o princípio da causalidade avaliado em termos de sua origem,
natureza e fundamentação. A compreensão deste princípio é a chave de reconstrução dos
argumentos humeanos referentes à sua filosofia em geral e às questões religiosas em especial.
As questões que são objeto do presente estudo só conseguirão ser efetivamente enfrentadas
através da discussão preliminar relativa a como Hume encara a problemática da causalidade.
Partindo do rigor empírico que Hume pretende aplicar na construção de sua filosofia,
este primeiro capítulo se dedica à análise da problemática da causalidade, em seus
fundamentos, já que é o substrato epistemológico essencial das questões substantivas que
serão tratadas nos capítulos subsequentes. Em consonância com programa epistemológico
humeano, impõe-se considerar que toda ideia presente na mente humana tem uma impressão
correspondente. Esta visão introduzida por Hume parte da divisão das percepções humanas
entre impressões e ideias, ou melhor, entre sentir e pensar. Sempre que houver alguma dúvida
acerca da origem de determinada ideia, devemos nos reportar à impressão que lhe
corresponde. É assim que Hume formula o célebre método do desafio na Investigação sobre o
Entendimento Humano: “Portanto, quando suspeitamos que um termo filosófico está sendo
empregado sem nenhum significado ou idéia — o que é muito freqüente — devemos apenas
perguntar: de que impressão deriva esta suposta ideia?” (EHU II, 17). Este é o método2
utilizado por Hume para designar que todos os objetos presentes na mente humana têm uma
impressão que lhe corresponda. A indagação “de que impressão deriva esta suposta ideia?” é
proposta por Hume como uma exigência empírica capaz de evitar as construções abstrusas e
sem referentes que inundam a filosofia especulativa. O “método do desafio” cobra que cada
2 A questão – “de que impressão deriva esta suposta ideia?” – levantada por Hume pode ser entendida como o
“método do desafio”, que consiste em desafiar qualquer pessoa, que não esteja seguro que para toda ideia existe
uma impressão correspondente, a demonstrar uma ideia que não tenha como premissa uma impressão.
13
pessoa indique a cadeia experimental e conceitual que levou à formação de determinada ideia.
O pressuposto é o de que para toda ideia exista uma impressão correspondente, próxima ou
distante, de tal modo que se uma ideia não tem uma gênese na impressão é vazia.
Seguindo o itinerário filosófico proposto por Hume, buscaremos analisar como as
ideias se organizam na mente e como as faculdades da memória e imaginação exercem seus
papéis na elaboração delas. Com o intuito de salvaguardar a inteireza do pensamento
humeano, presente tanto na Investigação como no Tratado, partiremos da análise das ideias,
exporemos a distinção que Hume estabelece entre os dois tipos de conhecimento: relações de
ideias (relations of ideas) e questões de fato (matters of facts). As primeiras têm caráter
universal e necessário, pois estão vinculadas ao raciocínio demonstrativo da matemática
(Geometria, Aritmética, etc) estribado no princípio da não-contradição. As segundas, por se
reportarem a conteúdos empíricos são verdades, na melhor das hipóteses, contingentes. A
estas será prioritariamente dedicada a atenção de Hume. E no conjunto das matters of facts,
Hume priorizará a temática da causalidade3.
Por último, nossa atenção se voltará especialmente para a análise da natureza do
princípio causal e suas consequências para o entendimento do que vem a ser a natureza
humana. Primeiramente, trata-se de compreender como as ideias presentes na mente humana
são importantes para o processo causal e como a partir delas surge a ideia de conexão
necessária. Outro ponto importante a ser investigado é o hábito ou costume e qual é o seu
papel no entendimento da questão causal. Por fim, impõe-se saber o que é a crença e como ela
exerce influência sobre o conhecimento humano. Esses tópicos são importantes para uma
efetiva compreensão da questão da causalidade e seu impacto sobre os pontos relacionados
com a questão religiosa.
3 Tendo em vista esquema teórico de Hume, podemos observar que ele divide os objetos da mente em relações
de ideias e questões de fato. Após essa divisão, voltando-se para as questões de fato, as quais ele julga como as
mais importantes para o estudo da natureza humana. Ainda sobre as questões de fato, Hume destaca os princípios
associativos de semelhança, contiguidade e causalidade, sendo que sobre essas últimas é que ele devota sua
investigação.
14
1.1 As operações da mente humana
A problemática epistemológica da causalidade pode ser considerada o eixo central da
filosofia humeana, pois ela é a chave de interpretação para diversas questões substantivas
presentes em seus escritos. Nesse contexto, em que se entende a centralidade desse tema para
análise que nos propomos a realizar, devemos, a partir da distinção entre impressões e ideias,
nos colocar, como Hume, a seguinte questão: de que impressão deriva esta suposta ideia?”
(EHU II, 17). Essa questão direciona nossa pesquisa para o entendimento da problemática
acerca das origens das ideias e como que elas funcionam como elementos-chave para a
compreensão da noção de causalidade. Sendo assim, na abordagem desse item, trataremos da
origem das ideias e, por conseguinte, de quais são os princípios que fazem com que elas se
associem na mente humana.
1.1.1 A origem das ideias
Como podemos constatar seguindo os argumentos de Hume, tanto no Tratado como
nas Investigações, todos os conteúdos da mente humana são derivados da experiência. Dessa
forma, Hume se utiliza do termo percepção4 para designar os conteúdos geral da mente
humana. A percepção se divide entre impressões e ideias (Cf. T 1. 1. 1. 1); estas se distinguem
“... pelos seus diferentes graus de força e vivacidade” (EHU II, 12). As impressões são, de
acordo com as palavras de Hume, “... todas as nossas percepções mais vivazes, quando
ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos” (EHU II, 12). Sendo
que, na concepção filosófica de Hume, “todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são
cópias de nossas impressões, ou percepções mais vivas” (EHU II, 13).
Em síntese, uma vez que podemos distinguir nossas percepções, saberemos com
alguma evidência que a experiência imediata de alguma sensação é o que chamamos de
impressão; e, posteriormente, o pensamento que teremos sobre a sensação que não estamos
4 “Locke classifica todas as percepções, incluindo as sensações, pensamentos e paixões, sob o termo “ideias”,
enquanto que Hume usa o termo “percepção” para definir o conteúdo geral da mente, dividindo as percepções
em impressões e ideias” (COVENTRY, 2011, p. 55).
15
mais experimentando é o que chamamos de ideia (Cf. COVENTRY, 2011, p. 55). Essa
distinção é reforçada por Hume no Resumo do Tratado na Natureza humana com as seguintes
palavras: “Essa distinção é evidente; tão evidente como a distinção entre sentir e pensar”
(Resumo, p. 47) 5
.
Segundo Hume, há duas espécies de ideias, as simples e as complexas. Para as ideias
simples existem impressões simples que a elas correspondem, porém nem todas as ideias
complexas encontram sua correspondente nas impressões. Nesse caso, as impressões simples
e suas ideias derivadas são aquelas que não admitem separação ou distinção, pois representam
uma unidade. Por isso não podem ser analisadas em suas minúcias. Por outro lado, as
impressões complexas são compostas por um encadeamento de impressões simples, visto que
a partir de um único objeto pode ser extraída mais de uma impressão.
O pensamento humano, que à primeira vista parece ilimitado, se revela, após
analisarmos esta questão, submetido a limites preestabelecidos pela experiência. Desse modo,
o estudo da divisão entre ideias simples e complexas nos faz enxergar esses limites, uma vez
que, por meio da observação, perceberemos que existem algumas ideias complexas que não
têm correspondência com qualquer impressão. A respeito desse “enigma”, Hume salienta:
Mas, embora nosso pensamento pareça possuir essa liberdade
ilimitada, examinando o assunto mais de perto vemos que em
realidade ele se acha encerrado dentro de limites muito estreitos e que
todo o poder criador da mente se reduz à simples faculdade de
combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos
pelos sentidos e pela experiência (EHU II, 13).
A explicação de Hume acerca dos limites da mente humana pretende mostrar que se
por um lado, os objetos da mente dependem estritamente da experiência, percebemos que, por
outro lado, não existem, ao contrário do pensamento racionalista, ideias inatas na mente do
homem (Cf. EHU II, 17).
Através do entendimento do princípio da cópia, que consideramos que as ideias, em
sua gênese, dependem dos elementos fornecidos pela experiência, conseguiremos esclarecer o
enigma acerca da liberdade do pensamento humano. Nesse sentido, a ligação desse princípio
com as relações entre impressões e as ideias pode assegurar que as ideias simples
originalmente dependem das impressões simples. Por isso, Hume afirma que: “todas as nossas
5 “This distinction is evident; as evident as that betwixt feeling and thinking”.
16
ideias simples, em suas primeiras manifestações, são derivadas de impressões simples, que
são correspondentes a elas, as quais representam de maneira exata” (T 1. 1. 1. 7). No entanto,
nas ideias complexas não conseguimos encontrar, em sua totalidade, uma correspondência
direta com sua impressão, como ocorre entre as ideias e impressões simples, pois a
imaginação, ao atuar sobre as ideias, as transpõe e através de uma nova combinação podendo
aumentar ou diminuir determinada ideia. Entretanto, à primeira vista, as ideias complexas não
parecem ter nenhuma ligação com qualquer impressão, mas por meio de uma minuciosa
análise, percebemos que suas composições derivam de ideias simples e a partir dessas ideias
podemos verificar a correspondência com a impressão6. Analisando os argumentos de Hume
diante daqueles que rejeitam tal posição, Vergez afirma: “Hume convida-os então a procurar
as ‘impressões’ autênticas. Não se trata de reduzir tudo ao plano do sensorial. Antes se trata
duma crítica à linguagem, de um convite para reencontrar o pensamento vívido, actual”
(VERGEZ, 1984, p. 19)7.
Nesse sentido, mesmo aquelas ideias que a princípio carecem de uma impressão
correspondente precisam ser analisadas detalhadamente a fim constatar sua ligação com
alguma percepção originária, isto é, de que impressão determinada ideia deriva. Esse crivo
epistemológico humeano, de compreender de que impressão deriva determinada ideia, é o
método que devemos aplicar acerca da ideia que o homem tem de Deus, como um ser de
suprema sabedoria, inteligência e bondade, que, de acordo com as palavras de Hume, “...
surge das reflexões que fazemos sobre as operações de nossa mente, aumentando num grau
ilimitado essas qualidades de sabedoria e bondade” (EHU II, 14). Ao demonstrar que as ideias
presentes na mente dos homens são cópias das impressões (princípio da cópia), o objetivo de
Hume é exaurir “... esse jargão que por tanto tempo dominou os nossos raciocínios
metafísicos e os tornou inaceitáveis” (EHU II, 17), e os que desejam negar esta proposição
devem apenas “... apresentarem uma ideia que, na sua opinião, não derive desta fonte” (EHU
II, 14).
6 Acerca da origem das impressões, André Vergez esclarece que: “ na realidade, Hume não se interroga sobre a
origem das impressões. Para ele as impressões são dados originários, para além dos quais não se pode remontar”.
Podemos, contudo, nos perguntar se Hume, por não se interrogar acerca da origem da impressão, poderia
defender um certo inatismo em relação à impressão, porém, continua Vergez, “‘Se se entender inato o que é
primitivo, o que não é cópia de nenhuma impressão anterior, então podemos afirmar que todas as nossas
impressões são inatas que as nossas ideias o não são’” (VERGEZ, 1984, p. 18). 7 Vergez afirma também, em paralelo com a posição com Laporte, acerca dessa postura humeana de procurar
pela impressão fonte, que salienta-se não o preconceito com o sensualismo, mas ao contrário, há uma aversão ao
verbalismo. (Cf. VERGEZ, 1984, p. 19).
17
Com relação à questão da origem das ideias, Hume afirma que as percepções
originárias, ao atingirem a mente humana, dividem-se entre aquelas que são produzidas pela
memória e as que o são pela imaginação. A faculdade da memória é a que mantém a
vivacidade da impressão e a tenuidade da ideia, isto é, a que preserva a forma original da
percepção (Cf. T 1. 1. 3. 1), assim como a ordem e a posição com que foi percebida. A
faculdade da imaginação, ao contrário da memória, não consegue manter a vividez da
impressão original. Desse modo, surgem ideias lânguidas que não preservam a forma a ponto
de, por conseguinte, haver a possibilidade de transpor e mudar as ideias a bel-prazer (Cf. T 1.
1. 4. 3).
Levando em consideração a liberdade8 que contém a faculdade da imaginação –
transpor, recortar, transformar e combinar (Cf. EHU II, 13) – é possível que ela quebre as
ideias em partes e as ordene formando outras novas. Desse modo, acrescenta Coventry: “...
Hume acha que qualquer coisa que a imaginação acha distinguível é capaz de existir
separadamente, ou qualquer coisa capaz de existir separadamente é distinguível pela
imaginação” (COVENTRY, 2011, p. 66.). Assim, as ideias complexas que são capazes de
existir separadamente são distinguíveis uma das outras, o que pode ser chamado de princípio
da separabilidade9. Por intermédio dele, podemos entender o surgimento de novas ideias na
mente sem que haja uma ligação direta com sua impressão correspondente.
Na perspectiva em que é proposto o conceito de princípio da separabilidade, verifica-
se que ele é formulado para salientar a habilidade da imaginação de distinguir as ideias
complexas das ideias simples e, consequentemente, tornam-se, através da imaginação,
possíveis de uma recombinação10
. Sendo assim, ao verificar que as ideias simples, em si
mesmas, não admitem nenhuma distinção por serem entendidas como “limite” da atividade de
separação e distinção, de outro modo, as ideias complexas são distintas em suas partes (em
8 Ao salientarmos a liberdade contida na faculdade da imaginação, esta que, de acordo com Hume, “... pareça
possuir essa liberdade ilimitada” (EHU II, 13), no entanto, ela caminha dentro dos limites impostos pelas
impressões simples. Essa liberdade da imaginação é o que exige a postulação de certos princípios, uma vez que,
a permanência da união daquilo que não é inseparável exige princípios associativos que expliquem essa
permanência. 9 Vale lembrar do artigo do Carlos Alberto Ribeiro de Moura (2001, p. 111-132) sobre a crítica humeana da
razão onde o princípio empirista é tributário do princípio atomista (ou princípio de separabilidade, modo pelo
qual o autor se refere a tal princípio). De acordo com esse autor o princípio atomista possui grande importância
para a filosofia humeana, podemos citar como exemplo, usado pelo autor em seu ensaio, a questão referente à
ideia de conexão necessária em que a ideia de efeito pode ser separada da ideia de causa. Daí se conclui que a
relação causal não pode ser objeto da razão pura. 10
Leonardo Porto Sartori, ao comentar sobre o princípio de separabilidade, introduz um novo conceito, a saber:
atomismo mental. Este conceito em sua natureza manifesta o mesmo modo do conceito de separabilidade, uma
vez que, de acordo com as palavras de Porto, “Impressões e ideias simples são aquelas que não admitem
nenhuma ‘distinção ou separação’, ou seja, são átomos mentais” (PORTO, 2006, p. 27).
18
ideias simples), uma vez que, como sugere Hume, “... que não existem duas impressões que
sejam perfeitamente inseparáveis” (T 1. 1. 3. 4).
Com base no entendimento do princípio de cópia e do princípio de separabilidade,
podemos destacar as relações existentes entre impressões e ideias. Nesse sentido, com relação
às ideias simples percebemos com mais facilidade sua derivação de impressões simples, que
nos assegura afirmar que, mantendo sua integralidade, não dependem de qualquer ligação ou
construção da mente. No que tange às ideias complexas, percebemos que elas nem sempre
derivam de impressões complexas, mas que necessitam dos pressupostos da experiência para
que sejam compostas como, por exemplo, a ideia do Centauro, Minotauro e outras figuras da
mitologia, que surgem da combinação de diversas ideias e formando outras que não tem
qualquer relação direta com a experiência. Por isso, quando surgir qualquer dúvida com
relação à origem de determinada ideia, devemos recorrer às percepções simples que as
originam.
Caso se entenda, a natureza da imaginação na ordenação das ideias, mesmo que por
sua vontade, segue alguns limites impostos pela experiência, pode-se verificar a necessidade
de alguns mecanismos associativos para a composição das ideias.
1.1.2 Princípios associativos das ideias
Apesar de certa liberdade da imaginação, é evidente, descreve Hume, “... que existe
um princípio de conexão entre os diversos pensamentos ou ideias do intelecto e que, no se
apresentarem à memória ou à imaginação, são introduzidos uns pelos outros com certo grau
de método e regularidade” (EHU III, 18). No que tange à relação de ideias, Hume as discute
de forma mais ampla no Tratado, enquanto que nas Investigações são analisadas de forma
sintética, no entanto, preserva a mesma visão do trabalho anterior11
.
11
Podemos observar que no Tratado, obra com menor atenção do público geral, Hume procurou formular de
forma mais extensa e rigorosa a referida tese. Hume inicia, já na primeira parte do livro 1, parte 1, seção 5,
enumerando de forma exaustiva sete tipos de “relações filosóficas”. Esta temática é retomada na terceira parte
desse livro, que inicia justamente com a subdivisão das sete relações em dois grupos (Cf. T 1. 1. 5. 1): Primeiro,
as que “dependem unicamente das idéias que comparamos”: semelhança, proporção em quantidade ou número,
graus em qualquer qualidade, e contrariedade; segundo, as que “podem ser mudadas sem nenhuma mudança nas
idéias” relacionadas: identidade, relações de tempo e lugar, e causação. Somente as relações do primeiro tipo
“podem ser objeto de conhecimento e certeza”; elas são o “fundamento da ciência” (Cf. T 1. 1. 5. 1-10). Dentre
as quatro primeiras, três “podem ser descobertas à primeira vista”, ou seja, de modo intuitivo: semelhança, graus
19
Ao se pensar sobre a liberdade com que a imaginação age relacionando as ideias, com
real destaque para a formação de ideias complexas, verifica-se que existem princípios ou
qualidades associativas como a semelhança, a contiguidade – no espaço e no tempo – e a
causa e efeito (Cf. EHU III, 19), que atuam na mente do homem que, como afirma Coventry,
“... não deveria ser considerado como uma ‘conexão inseparável’ entre as ideias, mas sim
como uma ‘força gentil’ conectando nossas ideias” (COVENTRY, 2011, p. 67). Desse modo,
quando há entre as ideias uma associação12
– de semelhança, de contiguidade ou de causa e
efeito –, na visão humeana, elas conectam-se em nossa mente, fazendo com que sejam
naturalmente introduzidas13
, sem que percebamos, como se fossem princípios secretos14
.
Dessa forma, podemos perceber que as ideias são conectadas umas às outras de acordo com
os princípios elencados, associando (a) as ideias simples separadas formando ideias
complexas e (b) associando as ideias independentes segundo à experiência passada.
De acordo com o Tratado, Hume nega que possamos conhecer as causas pelas quais
associamos as ideias (Cf. T 1. 1. 4. 6), em virtude de rejeitar qualquer hipótese que possa ser
em qualquer qualidade e contrariedade. Deste modo, somente podem requerer alguma demonstração as relações
de proporção em quantidade ou número. Das relações supracitadas as que interessa a Hume são as relações do
segundo grupo, a saber: identidade, relações de tempo e lugar, e, especialmente, causação. Hume começa seu
estudo esclarecendo a noção de raciocínio. “Todos os tipos de raciocínio consiste apenas em uma comparação, e
de uma descoberta das relações [...] entre dois ou mais objetos” (Cf. T 1. 1. 4. 4). Percebendo a abrangência de
tal questão, Hume imediatamente acrescenta “... que quando os dois objetos estão presentes aos sentidos,
juntamente com a relação, chamamos a isso antes de percepção que de raciocínio – pois neste caso não há,
propriamente falando, um exercício do pensamento, e tampouco uma ação, mas uma mera admissão passiva das
impressões pelos órgãos da sensação. De acordo com esse modo de pensar, não deveríamos considerar como
raciocínio nenhuma das observações que se podem fazer respeito da identidade e relações de tempo e espaço.
Em nenhuma delas, a mente é capaz de ir além daquilo que está imediatamente presente aos sentidos, para
descobrir seja a existência real, seja as relações dos objetos. Apenas a causalidade produz uma conexão capaz de
nos proporcionar uma convicção sobre a existência ou ação de um objeto que foi seguido ou precedido por outra
existência ou ação” (Cf. T 1. 1. 5. 1-10). Este ponto a que Hume chega é o mesmo ponto ao que chegou na
Investigação e o citamos anteriormente, contudo, através de um processo de enumeração e exclusão. 12
Em relação a tais princípios associativos, Hume afirma, no Resumo do tratado da natureza humana, que sua
filosofia não nutre grandes pretensões, “... mas se qualquer coisa pode conferir ao autor um título tão glorioso
como o de inventor, é o uso que ele faz do princípio da associação de idéias, que perpassa a maior parte de sua
filosofia”; “... but if any thing can intitle the author to so glorious a name as that of an inventor, 'tis the use he
makes of the principie of the association of ideas, which enters into most of his phiiosophy” (Resumo, p. 118-
121). 13
Acerca desta força gentil pela qual as ideias são associadas umas às outras pela imaginação, Coventry afirma:
“A força gentil é compatível à força da atração gravitacional. Assim como a lei universal da gravidade de
Newton é responsável pelo movimento e subsequente posição de todas as partículas físicas no universo, também
os Princípios de Associação de Ideias são responsáveis por todos os fenômenos psicológicos, explicando como e
por que as várias percepções acontecem na mente. Uma outra possível influência em Hume é a de Hobbes, que
dedicou um capítulo inteiro na sua obra Leviatã àquilo que chamou de ‘Consequência ou Trem das
Imaginações’, que é a ‘sucessão de um pensamento após o outro’” (COVENTRY, 2011, p. 67). 14
“As hipóteses de Hume dizem respeito aos princípios da natureza humana, e é perfeitamente claro que, se a
sua ciência aspira à descoberta de princípios secretos, seria absurdo supor que ela se interesse primacialmente
por causas observáveis. Se esses princípios são secretos, só pode ser porque são causas escondidas; se essas
molas são ocultas, só pode ser porque são mecanismos inobserváveis” (MONTEIRO, 1984, p. 43).
20
concebida além da experiência. Sendo assim, Hume estabelece que a associação de ideias é
determinada pelos princípios gerais de associação, de modo que, não devemos nos prender a
especulações infrutíferas dos porquês da existência deles (Cf. COVENTRY, 2011, p. 68.).
Para reforçar o modo pelo qual as ideias são conectadas pela imaginação e reguladas
através de princípios associativos, Hume buscará, na Investigação, por meio de exemplos,
ilustrar como a mente humana é movida por tais princípios.
Primeiramente, por uma tendência natural da mente humana, as ideias são associadas
por semelhança. A imaginação exercitada por meio da semelhança entre os diversos tipos de
ideias, como, por exemplo, ao se observar uma pintura ou uma fotografia, a mente humana,
por sua natureza, tende a buscar ao original (Cf. EHU III, 19; Cf. Resumo, p. 123).
Já o segundo tipo de associação, a contiguidade no espaço e no tempo, tende a ligar as
ideias que decorrem de uma proximidade no espaço e no tempo, de tal modo que ao fazermos
menção a um apartamento em determinado prédio, naturalmente, passamos a nos perguntar
sobre os outros apartamentos (Cf. EHU III, 19; Cf. Resumo, p. 123).
O terceiro princípio, denominado de causa e efeito15
é o que, segundo o pensamento
humeano, contém maior extensão e produz uma conexão mais forte (Cf. T 1. 1. 4. 2). Na
Investigação, Hume se serve do exemplo do ferimento: ao pensarmos nele, sucessivamente
pensamos na dor que dele sucede (Cf. EHU III, 19). Desse modo, devemos considerar que
dois objetos sucessivos que estão presentes na experiência nos levam a pensar que um produz
o outro, isto é, estabelecemos esta conexão ao dizer que um deles é causa do outro, o qual, por
sua vez, se pode chamar de efeito16
. Para reforçar essa análise da causalidade, evocamos mais
um exemplo dado por Hume no Resumo, sobre o princípio associativo de causa e efeito “...
quando pensamos no filho, estamos aptos a transferir nossa atenção para o pai” (Resumo, p.
122-123)17
. Por essa mesma óptica, podemos concluir a respeito dos princípios associativos
de ideias na mente humana: “Será fácil conceber de quão vastas conseqüências devem ser
esses princípios na ciência da natureza humana, se considerarmos que, no que diz respeito à
15
Segundo Anthony Quinton, a explicação que sobre a relação de causa e efeito é, sem dúvidas, a parte da
filosofia de David Hume mais conhecida (Cf. QUINTON, 1999, p. 21). Sobre este princípio associativo, Quinton
diz: “Hume trata a causação como uma relação entre objetos antes de expor suas desconcertantes opiniões
céticas sobre o nosso conhecimento dos objetos, mas isso é porque ele considera que todas as nossas crenças
sobre questões de fato (...) são produtos de inferências causais” (QUINTON, 1999, p. 21). 16
Ao observamos uma causalidade entre os objetos podemos ser levados a pensar que eles, igualmente, contêm
em todas as suas formas certa semelhança e contiguidade. Contudo, Quinton alerta sobre este tipo de pensamento
ao dizer: “Nem a contiguidade, nem a sucessão são, de fato, essenciais a causação (...) Não é importante porque
contiguidade e sucessão são empiricamente não problemáticas; temos impressões de ambas” (QUINTON, 1999,
p. 22). 17
“... when we think of the son, we are apt to carry our attention to the father”.
21
mente, são esses os únicos elos que atam entre si as partes do universo, ou que nos ligam com
qualquer pessoa ou objeto exterior a nós” (Resumo, p. 122-123)18
.
1.2 Sobre a distinção dos objetos da razão humana
Na literatura filosófica humeana, dentre inúmeros aspectos importantes a serem
investigados, destacamos uma importante distinção em sua teoria do conhecimento. Trata-se
da contraposição entre os dois objetos da mente humana:
Todos os objetos da razão ou da investigação humanas podem dividir-
se naturalmente em dois gêneros, a saber: relações de idéias e questões
de fatos. Ao primeiro pertencem as ciências da geometria, da álgebra e
da aritmética e, numa palavra, toda afirmação que é intuitivamente ou
demonstrativamente certa. (...) Os fatos, que são os segundos objetos
da razão humana, não são determinados da mesma maneira, nem
nossa evidência de sua verdade, por maior que seja, é de natureza
igual à precedente (EHU IV, 20).
De acordo com os argumentos de Hume, podemos, com certa evidência, distinguir, por
um lado, as relações entre ideias (relations of ideias) e, por outro, as questões de fato (matters
of facts) (Cf. EHU IV, 20). Sendo assim, essas modalidades marcam os limites da mente
humana, uma vez que, todos os seus objetos estão englobados dentre essas duas categorias.
Ainda sobre a distinção formulada por Hume, cabe observar que alguns dos seus
comentadores se utilizam de uma conhecida expressão para se referirem a ela: Hume's Fork19
.
Essa expressão é cunhada para designar propriamente a divisão dos dois objetos da mente
humana introduzidas por Hume e, que, em sequência, serão analisadas mais detalhadamente.
18
“Twill be easy to conceive of what vast consequence these principies must be in the science of human nature, if
we consider, that so far as regards the mind, these are the only links that bind the parts of the universe together,
or connect us with any person or object exterior to ourseives”. 19
O que pode designar por Hume’s Fork encontra-se localizado na obra Investigação acerca do entendimento
humana na seção IV, parte I, parágrafos 20-21. Devemos ter em vista que este conceito não é formulado por
Hume, mas foi sendo cunhado e introduzido por seus comentadores com o propósito de caracterizar este
fundamental ponto da filosofia humeana. Hume's Fork, contudo, é uma expressão empregada para designar o
modo com que Hume apresenta sua filosofia acerca dos objetos da razão humana.
22
Levando em consideração as concepções epistemológicas de Hume, as questões
tratadas no Hume’s Fork20
são o objeto desse estudo, sobretudo, no que diz respeito às
questões de fato, visto que estas se voltam, prioritariamente, para a problemática causal.
Diante deste quadro, a partir das questões que ganham destaque nos escritos humeanos – tanto
no Tratado e na Investigação – buscaremos compreender os argumentos de Hume
direcionados à causalidade que, servindo como pano de fundo, nos ajudará a entender, em
termos racionais, os pontos cruciais da religião natural, sobretudo, no que diz respeito à
possibilidade do conhecimento da existência de Deus e seus atributos.
Para que possamos compreender melhor a distinção estabelecida por meio do conceito
Hume’s Fork podemos introduzir uma modificação nos termos empregados por Hume de
modo a torná-los mais contemporâneos ou mais familiares. Nesse caso, se pode propor
substituir relações entre ideias e questões de fato, por, respectivamente, verdades necessárias e
contingentes (ou analíticas e sintéticas)21
.
Vistas por esse prisma contemporâneo, as proposições que envolvem as relações entre
ideias – proposições da geometria, álgebra e aritmética, por exemplo, 3x5=15 – podem ser
consideradas universal e necessariamente verdadeiras, já que estão imunes às cambiantes
contingências dos fatos; já as proposições que envolvem as questões de fato – “a fruteira está
ao lado do computador” ou “a dor em meu dedo do pé foi causado por esbarrar em meu
armário” – se forem verdadeiras, deverão sê-lo de modo contingente. Dessa maneira, como
forma de esclarecimento, os termos contemporâneos, necessidade e contingência, delineiam
muito bem a proposta de Hume. Portanto, enquanto que as primeiras se referem às verdades
necessárias, proposições verdadeiras em todos os mundos possíveis, as últimas, em
contraposição, se referem às proposições de conteúdo veritativo contingente (Cf. VERGEZ,
1984, p. 20).
Desse modo, a partir da análise do entendimento da expressão Hume's Fork,
primeiramente, nas Investigações queremos relacioná-la com os elementos presentes no
Tratado. Por conseguinte, após a investigação do termo supracitado, queremos vislumbrar a
consequência do mesmo para o problema da causalidade.
20
Precisamos ter clareza sobre exatamente o que Hume pretende aqui, pois a compreensão de sua concepção
sobre semelhanças e diferenças entre as questões de fato e as relações entre ideias é crucial para entender suas
discussões do raciocínio causal e a origem da ideia de conexão necessária. Hume faz três distinções: a distinção
entre relações de classe A e as relações de classe B; a distinção entre o que pode e não pode ser demonstrado; e,
por último, a distinção entre o que pode e o que não pode ser conhecido com certeza. (Cf. BEEBE, 2006, p. 19). 21
Essa modificação empregada sobre os termos humeanos está, em certo modo, associada aos dois tipos de
inferências: dedutiva e indutiva (Cf. BEEBE, 2006 p. 19).
23
1.2.1 Hume’s Fork
Os primeiros objetos da razão humana – relações entre ideias – são representadas por
proposições cuja verdade pode ser conhecida, simplesmente, pela inspeção das ideias. Basta
averiguar a veracidade de suas relações22
. Tais relações podem corresponder a verdades
apenas com base no significado dos relata. Tudo que está em questão são as relações lógicas
entre as ideias ou significado as palavras que compõem as sentenças. Assim, elas são
verdadeiras ou falsas a priori23
.
Para alargar o nosso conhecimento acerca das relações entre ideias, Hume recorre ao
princípio da demonstração presente na matemática, tornando-o uma espécie de fundamento
das relações entre ideias. Na Investigação, recorre ao modo típico de raciocínio matemático,
uma vez que só na ciência da Geometria, Álgebra e Aritmética se pode falar em “... afirmação
que seja intuitivamente ou demonstrativamente certa” (EHU IV, 20). Sendo assim, para
comprovar a veracidade das proposições que se fundam nas relações entre ideias, tomando a
matemática como modelo, cumpre ter presente que para serem verdadeiras não podemos
conceber que seu oposto seja acolhido, uma vez que, isso implicaria gerar contradição (Cf.
COVENTRY, 2011, p. 106).
A fim de esclarecer o emprego que Hume faz do emprego do método matemático
aplicado às relações de ideias, evocamos alguns exemplos dados por Hume a fim de que
possamos elucidar a referida relação: ao afirmarmos que 1+1=2 entendemos, por uma simples
operação do pensamento, essa relação entre ideias, mas se afirmamos, contraditoriamente, a
mesma soma com um resultado diferente saberemos rapidamente que há algum equívoco.
Desse modo, através do tipo de conhecimento provido pela matemática pode-se conhecer a
veracidade de uma proposição (ou de outra com ela incompatível) por meio de uma simples
inspeção das ideias e de suas relações. Se, por ventura, há algum equívoco em relacionar
determinadas ideias, detectaremos isso sem muito esforço (Cf. EHU IV, 20).
No que respeita à relação entre ideias, devemos considerar que, havendo verdade, será
de tipo necessário, já que podem ser intuitivas ou demonstrativamente certas, pois formam
22
Podemos dizer, como Coventry, que são relações lógicas pelas quais as ideias são relacionadas com certa
segurança e, de fato, não podem ser concebidas de modo falso (COVENTRY, 2011, p. 106). 23
O termo a priori não é utilizado por Hume em suas obras, porém seus comentadores por entender que as
relações de ideias podem ser conhecidas por uma simples inspeção de ideias, este termo a priori designa o modo
de conhecimento as ideias pela mente do homem, isto é, não dependem da experiência, de um conhecimento a
posteriori.
24
proposições descobertas, segundo Hume, por uma “... simples operação do pensamento, sem
dependerem do que possa existir em qualquer parte do universo” (EHU IV, 20). Podemos
recorrer a outro exemplo dado por Hume a fim de que não reste dúvidas sobre as proposições
que representam relações entre ideias: “Que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do
quadrado dos dois lados é uma proposição que expressa uma relação entre estas figuras. Que
três vezes cinco é igual à metade de trinta expressa uma relação entre estes números” (EHU
IV, 20). Nas palavras de Hume, não dependem de uma relação com alguma coisa existente no
universo, de tal modo que se nunca tivéssemos observado um círculo na natureza, as verdades
demonstradas por Euclides serviriam para manter a certeza e evidência da compreensão do
que seja um círculo24
.
Em suma, relações de ideias são sentenças que nada mais fazem que estabelecer
vínculos entre ideias; são por isso sentenças provedoras de um tipo de conhecimento
necessário e estabelecido de modo a priori. Em termos kantianos, são os juízos chamados de
analíticos25
. Visto que relações entre ideias são construídas e validadas por raciocínio lógico,
disto se segue que não nos fornecem nenhuma informação sobre as questões de fato, nem
sobre o que são e, muito menos, como se comportam.
No que respeita à relation of ideas, Hume concorda com a posição dos racionalistas
em defesa da existência de verdades demonstráveis. Contudo, em seus escritos, nota-se que há
uma diferença entre eles no que tange à importância dessas relações para a compreensão da
natureza do homem. Nesse sentido, a importância das relações entre ideias varia em função da
importância que se atribui a elas para a produção do conhecimento em geral. O aspecto de
serem vazias, desprovidas de informações sobre questões de fato e de existência26
, reduz em
muito a importância delas para quem é empirista.
24
Da mesma forma, quando sabemos que por intuição que azul marinho é mais escuro do que azul turquesa,
apenas inspecionando as nossas ideias, e o conhecimento assim adquirido não é conhecimento de algo que seja
externo a mente do homem, isto é, as ideias presentes em sua mente. (Cf. BEEBE, 2006, p. 32). Essa questão dos
diversos tipos de matizes iremos tratar de forma mais efetiva quando tratarmos dos Diálogos da Religião Natural
no próximo capítulo. 25
De acordo com as palavras de Kant, podemos entender essas relações de ideias propostas por Hume por meio
das proposições e juízos analíticos presentes na seção IV da Crítica da razão pura, ao afirmar: “Porque seria
absurdo fundar um juízo analítico na experiência, pois para formá-lo não preciso sair do meu conceito e por
conseguinte não me é necessário o testemunho da experiência” (CRP, «Introdução», IV). 26
A partir dessa informação, podemos citar alguns pontos conclusivos que Coventry ressalta acerca das relações
de ideias, são eles:
“∙ incluem tudo o que é intuitivamente ou demonstrativamente certo;
∙ negá-las envolve contradição;
∙ podem ser descobertas só pelo pensamento, sem evidencia alguma de algo existente;
∙ incluem pura matemática (geometria, álgebra e aritmética)” (COVENTRY, 2011, p. 107).
25
As questões de fato, entendidas por Hume como o segundo objeto da razão humana,
são consideradas as mais importantes para a compreensão do conhecimento humano.
Destarte, as proposições acerca das questões de fato são verdadeiras por sua correspondência
direta com os dados provenientes da experiência27
. Em contraste com as relações entre ideias,
Hume, de modo sintético assim as caracteriza, “... não são verificadas da mesma forma; e,
tampouco a evidência de sua verdade, por maior que seja, tem a mesma natureza que a
antecedente” (EHU IV, 21). Dada a natureza das proposições acerca das questões de fato, sua
verdade só pode ser contingente. Sua negação é concebível distintamente e representa uma
possibilidade em relação ao modo com que a realidade se apresenta em determinado momento
(Cf. EHU IV, 21). Com base nessa visão, Hume passa a destacar um tipo de matters of fact:
“... todos os raciocínios sobre questões de fato parecem fundar-se nas relações de causa e
efeito” (EHU IV, 22). Além da relação de causa e efeito, priorizada entre as questões de fato,
há outras relações como semelhança e contiguidade, estas que serão analisadas mais adiante.
No que tange às proposições acerca das questões de fato, podemos entender que, de
acordo com Hume, se referem à realidade e, sem incorrer em contradição, abrem a
possibilidade de seu oposto, tendo em vista que, para ser verificada a sua verdade, suas
proposições dependem de condições e circunstâncias marcadas pela contingência. Sobre essa
problemática, Hume elabora o seguinte argumento-exemplo: “Que o sol não nascerá amanhã
não é uma proposição menos inteligível e não implica mais contradição do que a assertiva
contrária, de que o sol nascerá” (EHU IV, 21). Ao analisar essa proposição, Coventry
pondera o seguinte: “‘De que o sol vai surgir amanhã’ é uma declaração de uma certeza das
coisas em geral que aprendemos através da experiência. Faz perfeito sentido dizermos que o
sol não vai surgir amanhã, pois é possível conceber algo dessa situação” (COVENTRY, 2011,
p. 108.) Essa demonstração, implicada no exemplo dado por Hume, não pode gerar, por se
tratar de uma questão de fato, especificamente causal, conhecimento seguro que possa ser
justificado racionalmente. Mesmo porque, reiteramos, a negação de qualquer questão de fato é
sempre concebível (Cf. BEEBE, 2006, p. 32).
Como podemos observar sobre questões de fato, sobretudo, as causais, ao contrário
das relações de ideias, não podemos determinar se essas afirmações são verdadeiras
simplesmente inspecionando o significado das proposições. Por não se aplicar, nesse caso, o
27
Coventry corrobora com as afirmações de Hume, acerca da correspondência das proposições das questões de
fato com a experiência, afirma: “Isso é uma certeza das coisas em geral que aprendemos através da experiência”
(COVENTRY, 2011, p. 108).
26
método matemático, tais questões estão atreladas à dimensão empírica, isto é, ao exame das
proposições concernentes às questões de fato, o que depende dos variados estados de coisas
encontráveis na experiência. No que tange às questões de fato, portanto, devemos considerar
que elas são verdadeiras ou falsas a posteriori, pois a sua verificação ocorre a partir dos dados
sensoriais que o homem experimenta de forma contínua, por isso não podemos emitir juízo
sem que antes se tenha observado uma determinada sucessão de eventos28
.
Por se tratar de questões de fato e por se ter de admitir sempre a possibilidade de seu
contrário, a mente do homem adapta-se facilmente à nova realidade, pois sabendo da natureza
contingente dos fenômenos, a concepção do seu oposto não implica em falsidade. Dessa
forma, as proposições podem ser verdadeiras apenas de modo contingente, uma vez que, sua
falsidade jamais poderá ser concebida como necessária (Cf. EHU IV, 22). Por conseguinte,
não há nenhuma contradição em se negar uma proposição sobre questões de fato e conceber o
seu oposto; algo que manifestamente não ocorre com as relações de ideias. Portanto, as
afirmações que fazemos sobre as questões de fato são proposições acerca dos fenômenos
componentes de uma natureza sujeita a variações abruptas e inesperadas. Só podem por isso
ser sintéticas, contingentes e cognoscíveis a posteriori29
.
Desse modo, ao definirmos o significado do Hume's Fork, faz-se mister estabelecer
um contraponto com Descartes antes de adentrarmos no problema da origem da ideia de
causalidade propriamente dito.
O modo com que Hume põe em destaque a experiência para construir sua filosofia é
diferente, situando-se nos antípodas do que propõe Descartes. Podemos considerar,
primeiramente, mesmo que brevemente, as teses que cartesianas30
formuladas nas Meditações
28
Coventry ao observar a natureza das questões de fato chega à conclusão de que as relações entre coisas
(objetos da natureza) estão baseadas na relação de causa e efeito e que estas, por sua vez, estão baseadas na
experiência (Cf. COVENTRY, 2011, p. 108). 29
A partir das informações concernentes a esse tipo de questão, podemos citar alguns pontos conclusivos que
Coventry ressalta acerca das relações de ideias, são eles:
“∙ não intuitivamente certas;
∙ negativa envolve não contradição;
∙ envolve existência ou não existência de algo;
∙ intui tudo abaixo da certeza da demonstração” (COVENTRY, 2011, p. 108). 30
“Há três aspectos cruciais do método de Descartes que são nitidamente opostos para Hume. Em primeiro
lugar, o interesse de Descartes é abertamente epistemológico em vez de genético: Descartes está interessado na
justificação de crenças empíricas, e não na forma como ou por que passamos a tê-los. Em segundo lugar, ele não
sustenta que o método de destruição e reconstrução da crença desenvolvido nas Meditações é um meio pelo qual
nós, de fato, viemos a ter crenças empíricas; nem que ele está recomendando que nós devemos seguir esse
método, a fim de adquirir essas crenças. Nós não precisamos passar pelo processo de dúvida cética radical e
reconstrução posterior de nossas crenças, a fim de acabar com crenças justificadas sobre o mundo; pelo
contrário, o fato de que poderíamos seguir esse método - que existe o método, e que por lendo as meditações
queremos entender como e por que ela funciona - mostra que pelo menos algumas de nossas crenças atuais são
27
concernentes à primeira filosofia. Descartes inicia percurso argumentativo introduzindo o
método da dúvida (metódica), mostrando que todas as crenças baseadas em experiências
sensoriais são dubitáveis, isto é, são passíveis de serem postas em dúvidas, pois não oferecem
um conhecimento seguro (Cf. Meditações I, 2). Em seguida, na meditação segunda e na
terceira, Descartes pretende através do “ego sum, ego existo” (Meditações II, 4) 31
demonstrar
a validade dos raciocínios a priori acerca da realidade, que se inicia pelo eu. Nesse contexto,
para sustentar a validade dos argumentos a priori, Descartes recorre aos argumentos que
afirmam a necessidade da existência de Deus: “Por isso, do que foi dito deve-se concluir que
Deus existe necessariamente” (Meditações III, 24). E esse Deus não é enganador, e dada a sua
benevolência, não somos radicalmente enganados sobre a natureza do mundo. Desse modo,
seguindo o argumento cartesiano observa-se que o modo com que o homem enxerga o mundo,
isto é, a capacidade de julgar, é recebida de Deus. Uma vez que a natureza do homem está
encerrada em certos limites, os erros tratam da escolha errônea, pelo livre-arbítrio; por isso o
homem deve suspender o juízo caso haja qualquer dúvida. No entanto, devemos, nas palavras
de Descartes, buscar com maior zelo a verdade (Meditações IV, 17). Em suma, ele tenta
estabelecer todos os conteúdos presentes na mente humana devem ser justificadas por
intermédio de proposições claras e evidentes que podem ser supostamente conhecíveis a
priori.
Nesse sentido, de acordo com as concepções filosóficas de Descartes e Hume,
podemos destacar que, por um lado, Descartes, em seu programa privilegia o aspecto
epistemológico, o que faz com que a dúvida cética radical se faça presente já no início das
Meditações. Enquanto Hume, por outro lado, em sua Investigação afirma que o ceticismo é
necessário para que se desfaçam todas as crenças metafísicas que solapam a mente humana.
Nesse sentido, segundo Beebe, o ceticismo humeano deve ser empregado de modo atenuado,
de forma que não ameace afetar nossa capacidade de formar crenças, mas apenas a sua
justificação (Cf. BEEBE, 2006, p. 33).
O ceticismo de Hume, como entendido por ele, é mitigado. Nesse sentido, ao mesmo
tempo, que serve para curar o dogmatismo entranhado na mente do homem, quer verificar e
analisar os limites da razão. Por isso, podemos observar que a maioria dos homens sequer esta
consciente dos problemas céticos que podem emergir em seu cotidiano. E mesmo aqueles que
justificados. Hume, pelo contrário, como já disse, seu principal interesse reside na questão genética: como é que
vamos chegar a ter nossas crenças empíricas em primeiro lugar?” (BEEBE, 2006, p. 33). 31
“Eu sou, eu existo”
28
se tornam conscientes da existência deles, não conseguem refutá-los e, se por acaso, logram
refutá-los os deixam rapidamente de lado e voltam às suas crenças mais primitivas. Nesse
contexto, Hume, ao propor um ceticismo mitigado, almeja, como diz Coventry, que “... um
grau de dúvida, cuidado e modéstia deveria sempre acompanhar uma pessoa razoável”
(COVENTRY, 2011, p. 211). Desse modo, devemos entender que o ceticismo proposto por
Hume tencionar conscientizar os homens dos perigos da metafísica tradicional.
A partir dos argumentos humeanos, podemos afirmar que os juízos científicos são
impossíveis de serem demonstrados a priori, pois como eles estão relacionados com as
questões de fato, o conhecimento humano necessita indispensavelmente dos dados que são
coletados pela experiência. Nesses termos, queremos ressaltar que a natureza das relações de
causalidade se sobrepõem às demais relações referentes a questões de fato. Portanto, se faz
necessário, após a investigação de sua natureza, considerarmos o argumento humeano acerca
de sua origem e, posteriormente, delinear alguns pontos fundamentais sobre suas
consequências.
1.3 Dinâmica do princípio causal
Após a pesquisa passar pelos itens que tratam da origem das ideias e suas associações,
neste terceiro item temos como objetivo a análise sistemática da ideia de causalidade
oferecida por Hume. Não podemos, no entanto, perder de vista a consideração que o intuito
do filósofo escocês é alertar o homem sobre os perigos que o dogmatismo pode causar.
Evocaremos, assim, duas perguntas feitas por Hume no Tratado para que, suas
respostas nos sirvam de fio condutor para o estudo proposto neste item:
Em primeiro lugar, porque razão afirmamos ser necessário que tudo
aquilo cuja existência tem um começo deva ter também uma causa?
Em segundo lugar, por que concluímos que tais causas particulares
devem necessariamente ter tais efeitos particulares; e qual a natureza
da inferência que fazemos daqueles a estes, bem como da crença que
depositamos nessa inferência (T 1. 3. 2. 14-15).
29
1.3.1 A ideia de conexão necessária
O dogmatismo leva à afirmação da proposição de que ‘todas as coisas têm uma causa
para a sua existência é intuitivamente ou demonstrativamente correta’, pode ser considerada
uma crença generalizada (Cf. COVENTRY, 2011, p. 110).
Essa proposição pode ser verificada pelo fato de estarmos tão acostumados com as
sucessões de fatos que, arbitrariamente, esperamos que se comportem como anteriormente
fora observado. Por conseguinte, essas sucessões podem nos levar a pensar que, na sucessão,
o fato precedente é, necessariamente, causa do que lhe sucede. Nesse sentido, a partir da
observação de um fato diremos, com base em experiências passadas, qual lhe sucederá. O
sentido que comporta essa sucessão é a relação de causa e efeito32
.
Vale ressaltar que a crítica de Hume, estribada em seu ceticismo, quer questionar a
afirmação de que tudo que existe tem uma causa e que esta é, de modo estrito, intuitiva e
demonstrativamente certa (Cf. COVENTRY, 2011, p. 111). Hume na Investigação, não nega
o princípio causal, uma vez que, “... é universalmente permitido que nada exista sem uma
causa de sua existência” (EHU VIII, 25). O próprio Hume, esclarece, acerca dessa afirmação,
sua posição numa carta a John Stewart, “...eu nunca considerei uma proposta tão absurda
como a de que qualquer coisa pode surgir sem uma causa. Eu somente mantive que nossa
certeza da falsidade desta proposta não procedia da intuição e nem da demonstração, mas sim
de outra fonte” (Apud. COVENTRY, 2011, p. 111). A fonte a que Hume se refere é a
experiência, como ele mesmo indica: “Qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e
conclusões a respeito dessa relação?, poderemos responder com uma simples palavra: a
Experiência” (EHU IV, 28). Por isso, que ele mesmo sustenta no Tratado: “É apenas pela
EXPERIÊNCIA, portanto, que podemos inferir a existência de um objeto da existência de
outro” (T 1. 3. 6. 2).
A experiência irá nos mostrar através dos frequentes exemplos acerca da existência
dos objetos de certa espécie são sempre acompanhados por uma ordem regular de
contiguidade e sucessão em relação a eles (Cf. T 1. 3. 6. 2). Nesse sentido, pela experiência
que temos por intermédio da regularidade e da sucessão, não temos elementos suficientes para
32
“Em resumo, isso significa que quando A causa B, se A ocorre, então B deve ocorrer: B deve, de forma
absoluta, resultar da ocorrência de A. Para o A ser a causa de B, então, não somente devem o A e B serem
espaciais e temporariamente contíguos, e não somente o A preceder B; mas A e o B também devem ser
necessariamente conectados” (Coventry, p. 109).
30
uma justificativa racional acerca de uma conexão causal necessária. Não obstante isso, Hume
apresenta um terceiro elemento: “Em todos os casos com base nos quais constatamos a
conjunção entre causas e efeitos foram percebidos pelos sentidos, e são recordados [...] Tal
relação é a CONJUNÇÃO CONSTANTE” (T 1. 3. 6. 3). Tão logo tenhamos tido a
experiência dessa conjunção constante ou regular passamos a inferir efeitos de causas33
.
Sendo assim, diante dos argumentos de Hume, podemos dizer que não temos como saber
sobre a extensão de tal correspondência entre quaisquer eventos, uma vez que as conexões
que formamos são baseadas em uma causalidade sobre a sucessão de eventos observados no
mundo. Portanto, mesmo que acreditemos na relação necessária de causalidade existente entre
a sucessão dos fatos, devemos considerar que não conseguiremos justificá-la empírica e
racionalmente determinada conexão34
. Não podendo considerar essa relação causal, somente
pela experiência de sua união constante denotamos o primeiro evento como sendo causa e o
segundo, por conseguinte, efeito (Cf. VERGEZ, 1984, p. 21).
A conexão necessária entre os fenômenos da natureza surge, através da experiência, da
observação de numerosos exemplos semelhantes e, por conseguinte, a imaginação levada por
essa constância dos fenômenos leve a mente estabelecer uma ideia conexão necessária entre
eles (Cf. MONTEIRO, 1984 p. 20).
Essa noção de necessidade entre os fenômenos da natureza é um dos pontos mais
discutidos pela filosofia de Hume para a explicação do princípio de causalidade. A ideia de
necessidade caracteriza mesmo a vontade humana35
, que não pode ser tida como livre,
aleatória ou arbitrária, pois, para que possamos chegar a conclusões acerca dos fenômenos, a
vontade humana tem como base a experiência da união constante de ações semelhantes em
circunstâncias semelhantes. Por isso, a noção de necessidade tem lugar apenas no espírito do
observador, uma vez que, a ação que é dita como necessária depende do ponto de vista de
quem a observa, dando a esta sucessão uma intenção causal. De acordo com os argumentos de
Hume presentes na Investigação, percebemos que a relação de causalidade é subjetiva, pois
33
De acordo com o pensamento de Marconi Pequeno sobre a experiência constante, afirma: “... a causalidade faz
com que a conjunção constante de um enigma se transformem uma chave para a sua solução. O problema, diz
ele, é que a conjunção constante entre os fenômenos nada revela acerca de sua conexão necessária” (PEQUENO,
2012, p. 40). 34
Acerca dessa temática Vergez acrescenta: “Ora, a constante conjunção dos objectos, dissemo-lo, não tem
qualquer influência sobre os próprios objectos” (VERGEZ, 1984, p. 23). 35
“Quer consideremos a influência da vontade no movimento do nosso corpo, ou no controle do nosso
pensamento, pode-se afirmar com segurança que jamais conseguimos predizer o efeito, pela mera consideração
da causa, sem a experiência”; “Whether we consider the influence of the will in moving our body, or in governing
our thought, it may safely be affirmed, that we could never foretel the effect, merely from the consideration of the
cause, without experience” (Resumo, p. 88-89).
31
concerne à perspectiva do observador, e não existe senão como ideia imaginária fundada
exclusivamente na observação constante e uniforme do fluxo contínuo dos fenômenos da
natureza. Por isso, podemos afirmar que a causalidade não é uma relação objetiva entre as
coisas, mas uma operação do entendimento influenciado pela inferência humana que decorre
da experiência da conjunção constante dos fenômenos da natureza, sob cuja imagem eles se
oferecem à percepção (Cf. EHU VII, 32). Nesses termos, de acordo com as palavras de
Vergez: “A ideia de conexão necessária não pode, pois, provir, de uma impressão de
sensação” (VERGEZ, 1984, p. 21).
Poder-se-ia dizer que a ideia de causalidade não é mais que um caso de probabilística,
de percepção de padrões ou modelos que se reproduzem no curso ordinário da experiência. A
conexão necessária decorre da percepção, repetidas vezes, de uma sucessiva conjunção, como
generalizações a partir do observável (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 19). Nesse diapasão,
compreendemos que o homem, ultrapassando os dados fornecidos pela experiência, acredita,
por uma projeção fundada no hábito, que a qualidade produtiva36
dos fenômenos está contida
necessariamente no objeto. Hume contrariando a tese cartesiana de que uma causa é sempre
necessária, segundo a qual ‘tudo o que existe tem causa de existir’, evidencia, também, a
problemática acerca da existência de Deus. Pois, de acordo com termos empíricos, os
fenômenos tomados isoladamente são desprovidos de qualquer qualidade ou poder que
pudesse sugerir qualquer ideia de movimento ou causalidade. Desse modo, a ideia de Deus,
ser divino que contém em sua natureza toda excelência e perfeição, insurge como necessária
para pôr as coisas em movimento, como primeiro motor do universo, que cria todas as coisas
e os efeitos dessa criação são evidentes aos nossos sentidos (Cf. T 1. 3. 14. 9). Seguindo essa
linha pensamento, Hume afirma:
Pois se toda ideia é, derivada de uma impressão, a ideia de Deus
procede da mesma origem; e se nenhuma impressão, de sensação ou
reflexão, implica uma força ou eficácia, é igualmente impossível
descobrir ou sequer imaginar um tal princípio ativo em Deus. Como
esses filósofos, portanto, concluíram que a matéria não pode ser
dotada de nenhum princípio eficiente, porque é impossível descobrir
36
Podemos citar aqui a investigação que o próprio Hume faz sobre as questões concernentes ao poder e a
eficácia, quando afirma: “Começo observando que os termos eficácia, ação, poder, força, energia, necessidade,
conexão, qualidade produtiva são quase sinônimos; e, por isso, é absurdo empregar qualquer um deles para
definir o resto. Com essa observação rejeitamos, de uma só vez, todas as definições comuns que os filósofos dão
para poder e eficácia. Em vez de procurar a ideias nessas definições, devemos procurá-las nas impressões de que
originalmente deriva. Se for uma ideia composta, deverá resultar de impressões compostas. Se for simples, de
impressões simples” (T 1. 3. 14. 4).
32
nela tal princípio, o mesmo raciocínio deveria determinar que o
excluíssem do ser supremo. Ou, se consideram tal opinião absurda e
ímpia, como realmente o é, direi que podem evitá-la: concluindo,
desde o início, que não possuem uma ideia adequada de poder ou
eficácia em nenhum objeto – pois nem o corpo nem o espírito, nem
nas naturezas superiores nem nas inferiores, serão capazes de
descobrir um só exemplo desse poder (T 1, 3, 14, 10).
Hume contesta essa proposição evocando do princípio de separabilidade: como todas
as ideias distintas são separáveis entre si, e como as ideias de causa e efeito são distintas,
pode-se perfeitamente entender, pela experiência, que um objeto não exista neste momento e
se apresente, em seguida, como existente, sem que essa mudança envolva um princípio
produtivo, isto é, sem que se possa deduzir uma causa de existir a partir da percepção de um
objeto existente37
. Segundo os argumentos humeanos, podemos entender que a ideia de causa
não está implicada na de efeito, pois ao verificarmos as qualidades intrínsecas de um objeto a
que a imaginação outorga o papel de “efeito” de uma relação causal, igualmente, ao
verificarmos o objeto precedente, nada há que indique que tal objeto foi causador de outro
para lhe atribuir a condição de causa38
. Desse modo, sendo que nem a função de efeito nem a
função de causa são intrínsecas aos objetos, a relação de causalidade, portanto, é subjetiva,
dependendo da perspectiva do observador; gera-se a inferência causal, que não existe senão,
como ideia imaginária.
1.3.2 A inferência causal
O homem familiariza-se com a sucessão dos fenômenos da natureza, tendo em vista
que os experimenta constantemente. Entretanto, as qualidades presentes nos fenômenos não
nos fornecem qualquer noção de força que possam conectar eventos diferentes. Nesse sentido,
37
Podemos lembrar aqui do emblemático raciocínio das falácias causais, a post hoc (post hoc ergo propter hoc,
ou “depois disso, donde devido a isso” — ou seja, sustentar que como B sucede a A, A é a causa de B). A falácia
post hoc está por trás do raciocínio que leva a concluir que, uma vez que todo banqueiro usa gravata, se usarmos
gravata seremos todos ricos. O engano aqui reside em que ser rico é causado pelo uso da gravata. Pode ocorrer
que as pessoas ricas usem gravatas porém não é uma condição sine qua non. Ambos ocorrem, mas um não é a
causa do outro (Cf. ZILLES, 2009, p. 56). 38
“Em suma, a necessidade é algo que existe na mente, e não nos objetos. E jamais poderemos formar a menor
ideia dela se a considerarmos uma qualidade dos corpos” (T 1. 3. 14. 22).
33
Hume afirma que a única coisa que a experiência nos oferece é a conjunção constante e que
por meio dela não conseguimos justificar qualquer noção de causalidade. Sublinha que: “... a
energia da causa é tão ininteligível como nos mais insólitos, e que só aprendemos pela
experiência a conjunção freqüente dos objetos, sem mais podermos perceber qualquer coisa
que se pareça com a conexão entre eles” (EHU VII, 54). Por maior que seja nosso esforço em
encontrar essa força ou poder39
que conecte distintos objetos ou eventos, não podemos
concluir através deles como se pode desenhar qualquer inferência indutiva40
. Desse modo,
Hume, persuadido que o entendimento não participa desta operação, segue o raciocínio de que
há outro princípio que faça com que a mente humana seja induzida a conceber uma conexão
necessária entre eventos distintos. Segundo Hume: “Este princípio é o costume ou hábito.
Com efeito, sempre que a repetição de algum ato ou operação particular produz uma
propensão a renovar o mesmo ato ou operação sem que sejamos impelidos por qualquer
raciocínio ou processo do entendimento, dizemos que essa propensão é um efeito do
hábito”41
.
Hume entende, portanto, que a inferência causal se fundamenta na semelhança entre o
passado e o futuro. Este processo é fruto do princípio do hábito, que faz com que a mente
humana suponha a conformidade entre o passado e o futuro42
. Sendo assim, a inferência
causal não pode ser justificada racionalmente, pois tanto o raciocínio demonstrativo como o
provável não conseguem dar uma resposta embasada à questão na natureza conexão. No
Resumo do tratado da natureza humana, Hume emite o seguinte juízo sobre este princípio,
afirma: “E mesmo depois de termos a experiência desses efeitos, é o hábito apenas, não a
39
O termo “poder” é usado aqui em para designar o sentido pelo qual o homem pode a partir de eventos distintos
conceber uma conexão ou um poder que os conecte (Cf. EHU VII, 52); Acerca deste termo também podemos
compreendê-lo pelas palavras de Hume no Resumo: “But, beside these circumstances, this commonly supposed,
that there is a necessary connexion between the cause and effect, and that the cause possesses something, which
we call a power, or force, or energy” (Resumo, p. 90). 40
De acordo com Coventry, existem três estágios numa inferência de causa e efeito: 1) existe uma impressão
original; 2) existe uma transição a uma ideia da causa e efeito conectados; 3) existe uma qualidade especial
agregada à ideia inferida, isto é, crença ou aquiescência” (Cf. COVENTRY, 2011, p. 113). 41
EHU V, 36. Acerca deste termo, Monteiro, afirma: “O hábito ou costume de Hume pode ser correctamente
considerado uma ‘propensão’, mas é uma propensão postulada, ou pressuposta pela teoria humeana, não uma
propensão descoberta no inteiro de um contexto observacional – e este facto em nada será modificado se
chamarmos a essa propensão de ‘disposição’” (MONTEIRO, 1984, p. 47-48). 42
A proposta humeana de que as inferências causais não podem ser justificadas racionalmente através do
entendimento, ou seja, por meio da parte cogitativa humana, deixa aberta a investigação por parte da imaginação,
esta que, naturalmente, favoreceu uma interpretação puramente cética de sua teoria, agora abre margem para
uma interpretação naturalista. De fato, podemos dizer que há duas formas de interpretação: uma que predominou
nas duas centenas de anos que se seguiram ao aparecimento das obras de Hume, que chamamos de interpretação
clássica. E a nova interpretação que pergunta, que credenciais epistêmicas tem a faculdade da imaginação,
faculdade usualmente associada à ficção, sobre a base de meros hábitos, de tal modo a poder assegurar um
conhecimento legítimo?
34
razão, que nos determina a fazer deles o padrão de nossos futuros julgamentos. Quando a
causa está presente, a mente, pelo hábito, passa imediatamente à concepção e crença no efeito
costumeiro”43
.
Hume, na Investigação, não está introduzindo um mecanismo mental completamente
novo com a introdução dos termos “costume ou hábito” como princípios associativos da
mente. No entanto, utiliza-se desses termos como uma forma de explicar a inferência das
causas aos efeitos. Hume, de algum modo, deixa evidente na discussão sobre raciocínio causal
no Tratado sua posição acerca da natureza destes raciocínios:
A razão nunca pode nos mostrar a conexão entre dois objetos, mesmo
com a ajuda da experiência e da observação de sua conjunção
constante em todos os casos passados. Portanto, quando a mente passa
da ideia ou impressão de um objeto à ideia de outro objeto, ou seja, à
crença neste, ela não está sendo determinada pela razão, mas por
certos princípios que associam as ideias desses objetos, produzindo
sua união na imaginação. Se as ideias não fossem mais unidas na
fantasia que os objetos parecem ter no entendimento, nunca
poderíamos realizar uma inferência das causas aos efeitos, nem
depositar nossa crença em qualquer questão de fato. A inferência,
portanto, depende unicamente da união de ideias (T 1. 3. 6. 12).
Podemos observar que os objetos se associam na imaginação em consequência da
observação de sua conjunção constante, que não implica relação causal. Desta forma, o
homem por uma tendência de sua natureza (from my feeling), isto é, pelo hábito adquirido
pela observação constante de determinada sucessão, poderá conceber uma conexão entre as
ideias. Nesse sentido, a mente do homem operando embasada pelos ditames do hábito,
inferirá a existência causal a partir da aparição do outro (Cf. T 1. 3. 8. 12). Desse modo, a
razão jamais conseguiria nos convencer a respeito de uma relação causal entre os distintos
objetos, uma vez que, não logra encontrar qualquer processo de argumentação ou raciocínio
que possa justificá-lo (Cf. T 1. 3. 7. 6).
Dentre os argumentos formulados tanto na Investigação como no Tratado, acerca da
inferência causal, podemos salientar alguns aspectos que se mostram importantes para
qualquer inferência. O primeiro deles versa sobre as experiências passadas obtidas pelo
homem, das quais dependem os juízos concernentes às questões de causa e efeito, pois atuam
43
“And even after we have experience of these effects, this custom alone, not reason, which determines us to
make it the standard of our future judgments. When the cause is presented, the mind, from habit, immediately
passes to the conception and belief of the usual effect” (Resumo, p. 88-89).
35
na mente de forma despercebida. Como afirma Vergez: “É a transição, o fácil deslizar da
imaginação de um objecto para outro, que lhe é habitualmente concomitante, que fornece a
única impressão donde deriva a ideia de ligação necessária” (VERGEZ, 1984 p. 23). O
segundo ponto a ser salientado diz respeito à impressão presente, da qual todos os nossos
raciocínios são originados. Para que possamos inferir qualquer relação causal são
imprescindíveis dois componentes: experiências passadas e uma impressão presente. Dessa
forma, as experiências de sucessão entre os objetos contida na mente a influencia na fixação
da ideia de causalidade, uma vez que, ao observarmos o primeiro objeto de determinada
sucessão, isto é, por meio da impressão presente, extrapolamos os dados dos sentidos e
esperamos que ocorra conforme ocorrera anteriormente. Por isso, Hume afirma: “O costume
age antes que tenhamos tempo de refletir” (T 1. 3. 8. 13).
De acordo com esse contexto, compreendemos recorrendo às palavras de Hume no
Resumo, compreendemos que: “Não podemos apresentar razão alguma para estender ao
futuro nossa experiência do passado; mas somos inteiramente determinados pelo costume
quando concebemos um efeito seguindo-se a sua causa habitual”44
. Desse modo, podemos
afirmar que o costume ou o hábito é o grande guia da natureza humana, sem o qual não
saberíamos como ajustar os meios com aos fins (Cf. COVENTRY, 2011, p. 116). Portanto, o
modo de agir do homem se baseia nos fatos procedentes da experiência em outras palavras, no
que se pode estabelecer por meio da relação de causa e efeito45
.
Considerando que a mente humana está habituada com a constante sucessão de fatos, a
partir da observação do evento que denominamos causa rapidamente inferimos o efeito. Nessa
perspectiva, acerca dessa inferência, como Hume avalia, “... já não temos escrúpulo de
predizer uma ao aparecimento da outra e de que empregar o único tipo de raciocínio que nos
pode garantir qualquer questão de fato ou de existência. Chamamos então causa a um objeto e
efeito ao outro” (EHU VII, 59). Assim, o princípio que leva a mente humana associar eventos
distintos ultrapassando os limites impostos pela experiência é a presença real do objeto
conjugado com a costumeira transição dos fenômenos46
. A satisfação dessa concepção causal
44
“Nothing can be known to be the cause of another but by experience. We can give no reason for extending to
the future our experience in the past; but are entirely determined by custom, when we conceive an effect to
follow from its usual cause” (Resumo, p. 80-81). 45
“Por conseguinte, a existência de qualquer ser só pode ser provada mediante argumentos derivados de sua
causa ou de seu efeito; e esses argumentos baseiam-se inteiramente na experiência. Se raciocinamos a priori,
qualquer coisa pode parecer capaz de produzir qualquer outra” (EHU XII, 132). 46
“Esta transição do pensamento, partindo da causa para o efeito, não procede razão. Tira sua origem
exclusivamente do hábito e da experiência. E, como nasce de um objeto presente aos sentidos, torna mais viva e
forte a ideia ou concepção da chama do que qualquer devaneio solto e desconexo da imaginação. Esta idéia surge
36
garante força e solidez à relação causal presente na mente humana, contudo, dentre as
qualidades que podemos extrair dos objetos não conseguimos verificar qualquer justificativa
que sugira causalidade, por isso que Hume no Tratado afirma: “O fundamento de nossa
inferência é a transição resultante da união habitual” (T 1. 3. 14. 21).
Hume admite que o hábito gera no homem uma inclinação, ou melhor, propensão a
esperar os mesmos efeitos, renovados a partir de uma determinada impressão. O hábito,
contudo, deve ser entendido como um princípio da natureza humana que nenhum raciocínio
pode produzir ou evitar. No entanto, através desse princípio o homem por intermédio da
superação da experiência imediata pressupõe pela inferência que a sucessão anteriormente
observada se renove. De acordo com Hume, é devido ao princípio do hábito que a experiência
humana é útil e que leva o homem a esperar, no futuro, um conjunto de acontecimentos
semelhantes aos acontecimentos passados. A esse respeito são apropriadas as considerações
de Conte acerca das ações do hábito na mente humana:
É nesse sentido que se pode dizer que a causalidade é uma forma
nossa de perceber o real, uma ideia derivada da reflexão sobre as
operações de nossa própria mente que tem como origem a ação do
hábito sobre a imaginação por ocasião de experiências repetidas e não
uma conexão necessária entre causa e efeito, uma característica do
mudo natural (CONTE, 2010, p. 222).
O maior efeito que podemos conceber por meio do hábito ou costume é uma falsa
comparação entre ideias, uma vez que, Hume afirma, “dificilmente os homens irão se
convencer um dia de que os efeitos de tal consequência podem emanar de princípios em
aparência tão insignificantes” (T 1. 3. 10. 1), simplesmente, por nos habituarmos com a
sucessão dos objetos. Essa transição entre as ideias ocorre de modo fácil, imperceptível, e se
instala na mente do homem comunicando-lhe uma maior força e vivacidade. Esse modo de
sentir, forte e vívido, nos é dado através da crença. É a crença, portanto, que dá ao homem a
impressão de estar diante de uma conexão necessária e é ela que leva o homem a crer que
entre os distintos objetos há uma relação de causalidade no sentido de que de uma causa,
deve-se seguir um efeito – o que se aplica inversamente.
imediatamente. O pensamento move-se ato contínuo para ela e lhe comunica toda aquela força de concepção que
recebe da impressão presente aos sentidos” (EHU V, 44).
37
1.3.3 A crença causal
Após a análise da ideia de conexão necessária e inferência causal, Hume volta-se para
o estudo da última parte da segunda questão, que foi introduzida no início deste item pela
pergunta: qual é a natureza da inferência que realizamos entre fenômenos desassociados
sugerindo uma causalidade? Qual o papel da crença para a concepção da relação causal?
A uniformidade das conjunções e sua reiteração na experiência reforçam na mente a
suposição de sua ocorrência futura, isto é, da crença causal. Através da costumeira da
observação sucessória que se repete na natureza, surge no homem a ideia de crença, que,
segundo Hume, parece ser, até os dias de hoje, um dos maiores mistérios da filosofia (Cf. T 1.
3. 7. 6). Tendo em vista que a razão não pode justificar que a existência de um objeto implica
causalmente a de outro, podemos observar que a ideia de causalidade não é uma relação
objetiva entre as coisas. Como vimos no item anterior, uma inferência causal é decorrente da
experiência de sua conjunção constante. Desse modo, uma impressão presente tem o poder de
corroborar com as experiências passadas, de tal modo que a mente, a partir de repetição que
fora habituado, reavive e fortifique a crença causal. Este é modo pelo qual nasce no homem a
crença (belief), que segundo Hume, “... não faz senão variar a maneira como concebemos um
objeto, ela só pode conceder a nossas ideias uma força e vividez adicionais” (T 1. 3. 7. 5).
Portanto, “É uma maneira particular de formar uma ideia” (T 1. 3. 7. 6).
A crença, contudo, não altera em nada a natureza ou as ordens de nossas ideias, mas
versa sobre a maneira com que a concebemos e como as sentimos na mente. “A crença dá a
essas ideias mais força e influência; faz que pareçam mais importantes, fixa-as na mente; e as
torna princípios reguladores de nossas ações” (T 1. 3. 7. 7). Essa visão é elaborada pelo
próprio autor quando no Resumo afirma: “A crença, portanto, em todas as questões de fato,
brota apenas do costume, e é uma idéia concebida de um modo peculiar” (Resumo, p. 80-81)
47.
De acordo com o argumento humeano, Coventry, explica o modo como é concebida a
crença na mente do homem: “Ele rejeita essa possibilidade [acréscimo de alguma nova ideia
naquela já concebida], insistindo que a crença não acrescenta nada de novo àquilo que já foi
concebido” (COVENTRY, 2011, p. 119. Acréscimo nosso). O argumento humeano de que
47
“Belief, therefore, in all matters of fact arises only from custom, and is an idea conceived in a peculiar
manner”
38
não existe ideia separada está ligada às questões de existência, uma vez que nossas ideias
estão associadas as suas impressões. Por isso, ao concebermos algo na mente é o mesmo que
considerá-lo como existente, pois ao analisarmos a origem de nossas ideia chegaremos a uma
impressão original. Sendo assim, a ideia de Deus e a sua existência são concebidas de forma
equivalente, como Hume afirma: “Assim, quando afirmamos que Deus existe, simplesmente
formamos a ideia desse ser, tal como nos é representado; (...) Quando penso em Deus, quando
penso nele como existente, e quando creio que ele existe, minha ideia dele não aumenta nem
diminui” (T 1. 3. 7. 3).
Nesses termos, podemos admitir que a crença é a maneira diferente de sentir a ideia
(this different feeling) que deriva da experiência repetida, que de modo diferente, não tão
filosóficos, como descreve Hume, pode ser denominada como uma força, vividez, solidez,
firmeza, ou estabilidade superior (Cf. T 1. 3. 7. 7). A crença, então, decorre estritamente do
hábito, pois, de forma semelhante, surge imediatamente sem qualquer operação do
entendimento, e ela nos faz passar, costumeiramente, dos objetos procedentes de experiências
passadas a outros de forma causal, sem que haja qualquer raciocínio (Cf. COVENTRY, 2011,
p. 120-121).
A união, na mente, de casos repetidos de conjunção constante produz outra impressão:
a impressão da repetição, isto é, “o sol nascerá amanhã porque todos os dias até hoje nasceu”,
a conjunção porque não se reporta a nenhuma impressão: o que produz a ideia de que a
posteridade liga-se à anterioridade na experiência e leve a mente a vagar de um objeto a outro,
projetando o passado sobre o porvir, é apenas a crença na previsibilidade. A imaginação opera
pela crença quando, determinada pela experiência reflexiva, transita da impressão presente de
um objeto à ideia de outro, ausente. A imputação de causalidade aos casos de conjunção
constante constitui o hábito, sob cuja influência a imaginação tende a prever o futuro de
acordo com o passado.
Se crer é inferir com base na experiência, quando a mente humana guiada pelo hábito
e, por conseguinte, pela crença, conserva-se nos limites do entendimento e se apresenta, na
imaginação, como ato de conhecimento. A regularidade da experiência permite-nos tirar
conclusões que excedem as percepções presentes; pela crença nascida do hábito
progressivamente constituído, convertemos a mera repetição de casos de conjunção constante
em uma produção de inferências de probabilidade48
. A passagem do hábito — que abrange, na
48
“Há, sem dúvidas, uma probabilidade que resulta de um maior número de acasos favoráveis; e, à medida que
aumenta essa superioridade numérica, ultrapassando os acasos contrários, a probabilidade aumenta em proporção
39
mente, a união dos casos de conjunção constante na experiência — à crença — ato próprio de
conhecimento — é comparável à transição da quantidade à qualidade, pela qual simples
acréscimos quantitativos se transformam em diferenças qualitativas: outro modo de sentir a
ideia de crença. Produzida por certo número de impressões acerca de conjunções passadas, a
crença não acrescenta nada à ideia, mas altera o modo pelo qual a mente a concebe, dotando-a
de maior força e vividez.
A ideia de causalidade sob a qual a mente relaciona os objetos é imaginária, subjetiva,
e não corresponde a qualquer conexão natural discernível pela experiência: é a experiência
passada que nos informa dos padrões de conjunção causal constantemente observados e nos
habitua a supor ou inferir os termos de uma conjunção a partir da percepção de um deles.
A crença na causalidade, por meio de uma leitura naturalista, pode ser considerada
como o critério de verdade da ciência da natureza humana, refletindo na impossibilidade da
adopção do ceticismo absoluto. A questão da crença causal abordada neste item, visa cumprir
a missão de investigarmos a possibilidade de conhecer a ideia de Deus a partir dos
pressupostos causais presentes nos argumentos humeanos. Sendo assim, podemos afirmar que
esse pressuposto será a coluna vertebral dos argumentos de Hume dirigidos a problemática
religiosa.
No transcorrer desta pesquisa, veremos como o entendimento do pressuposto causal é
fundamental para o estudo dos capítulos seguintes. Desse modo, a leitura e a compreensão49
do presente capítulo se tornará indispensável ao leitor, pois na medida em que os argumentos
de Hume forem compreendidos e aprofundados, veremos que o entendimento desse
importante pressuposto nos auxiliará na compreensão da sua posição em relação às questões
religiosas.
e engendra em grau superior de crença ou assentimento a essa hipótese em que descobrimos a superioridade. [...]
Talvez esse processo mental ou raciocinativo pareça trivial e óbvio, mas para quem o considera mais a fundo ele
pode dar margem a interessantes especulações” (EHU VI, 46). 49
De acordo com Monteiro: “A filosofia não é um domínio reservado, uma região onde o discurso se veja
condenado a uma chã e sem brechas literalidade. Veja-se o exemplo de David Hume: os seus textos estão
permeados de ironia, de exemplos de ocultação do significado real por detrás de um véu de ambigüidade. E nos
textos deste filósofo, [...], a interpretação só se pode fazer através da clara identificação do contexto de cada
argumento, ou de cada proposta” (MONTEIRO, 1984, p. 50).
Capítulo II - A RELIGIÃO NATURAL E A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO
DE DEUS50
Partindo dos conceitos epistemológicos basilares de Hume, com atenção especial ao
princípio de causalidade, apresentados de modo sucinto, no capítulo anterior. Pretendemos,
nesse momento, debruçar-nos sobre os argumentos desenvolvidos nas análises das obras
História natural da religião (1757) e Diálogos sobre a religião natural (1779). Faremos isso
com o objetivo de investigar a possibilidade do conhecimento de Deus à luz dos princípios
epistemológicos formulados por Hume.
Desse modo, iniciaremos essa parte da pesquisa devotando-nos em especial à obra
História natural da religião, cujo título nos sugere, por intermédio de uma narrativa histórico-
filosófica, que a existência da divindade não é uma concepção predeterminada, mas
decorrente de uma perspectiva que afirma que a crença deve ser entendida como produto da
natureza humana. Com base nesse entendimento, Hume busca as origens e as causas do
fenômeno religioso, seus efeitos sobre a vida e a conduta humanas, compreendidas nas
variações cíclicas entre o politeísmo e o monoteísmo. Nesse caso, desvendar os princípios que
levam o ser humano a procurar e adotar das crenças religiosas vinculando-os aos contextos
sociais em que se inserem torna-se primordial importância nessa investigação. O fato é que a
partir dos argumentos elaborados por Hume na História abrem-se duas perspectivas de
investigação da problemática religiosa: (a) a sua origem na natureza humana; e, (b) se existe
um fundamento racional para a religião.
Na segunda parte deste capítulo, almejamos analisar a principal temática dos Diálogos
sobre a religião natural: o argumento do desígnio. No decorrer dessa obra, Hume pretende
demonstrar, através da agudeza de suas estratégias argumentativas (ou literárias), a fragilidade
das analogias que servem de suporte ao referido argumento. Mesmo porque a forma mais a
abrangente desse argumento a ser adotada é a formulada por intermédio da uma analogia entre
a ordem presente no universo e a existência de um criador, inteligente, forte, sábio,
benevolente e justo.
Os argumentos presentes nos Diálogos ocupam-se, quase exclusivamente, das mais
acuradas críticas de Hume à religião natural, da minuciosa análise do argumento do desígnio
50
“Natural religion (the phrase usually does duty in the eighteenth century for the now more common term
natural theology) is the system of conclusions about God’s (or the god’s) existence and nature supposedly
attainable from evidence and by reasoning accessible to any intelligent person irrespective of any special
information conveyed in the Bible, Koran, or other revelatory source” (GASKIN, 1993, p. 314).
41
que, na verdade, é o mais bem aceito e difundido argumento a favor da existência de Deus.
Tal argumento, no século XVIII, se voltava para uma questão popular, amplamente debatida
entre intelectuais e religiosos. E até os dias de hoje suscita amplos e acalorados debates (Cf.
MONTEIRO, 1984, p. 142). O argumento do desígnio quer demonstrar, através da
observação dos fenômenos da natureza, que a identificação da ordem, complexidade e
estrutura no cosmos permite inferir que são elementos que fornecem sustentação à crença na
existência de uma inteligência criadora. Desse modo, dentre as objeções pertinentes a serem
apresentadas está a de se por meio da experiência que revela uma organização no universo
podemos encontrar uma justificativa para o argumento do desígnio. O fato de a própria
natureza se mostrar auto organizada seria a evidencia da existência de um designer
inteligente.
A crítica humeana à religião elaborada, sobretudo, na História e nos Diálogos, se
articula com os pressupostos epistemológicos básicos de sua teoria da causalidade,
investigados no primeiro capítulo. No fundo, está tudo relacionado com a investigação da
natureza humana51
. Desse modo, a análise humeana se volta para as religiões reveladas, a
existência de milagres e as crenças religiosas de um modo que favorece um frutuoso debate,
em torno de diversos pontos, entre teísmo (monoteísmo e politeísmo), deísmo, ateísmo,
ceticismo, fideísmo, superstição e fanatismo. Enfim, essa temática reúne um número
considerável de questões relevantes presentes tanto no século XVIII como nas discussões
atuais.
Devemos ressaltar que, na História, Hume preocupa-se claramente em fugir dos
ditames eclesiásticos para que não pudesse ser acusado de blasfêmia ou ateu. Por isso que a
distinção dos tipos de teísmo presentes no início da supracitada obra, sugere que a existência
de Deus possa ser provada de maneira racional52
, bem como, afirma ser o cristianismo a
verdadeira religião. Nesse contexto, devemos entender que a posição assumida por Hume é
tão somente uma estratégia com o intuito de evitar problemas decorrentes de sua verdadeira
posição acerca das crenças religiosas, que será melhor explanada nos Diálogos sobre a
religião natural, que foi publicada postumamente.
51
“Hume’s critique of religion and religious belief is, as a whole, subtle, profound, and damaging to religion in
ways that have no philosophical antecedents and few successors” (GASKIN, 1993, p. 313). 52
Neste sentido temos João Paulo Monteiro, afirmando que é justamente na obra religiosa de Hume que “(...) o
estilo irônico mais vezes lhe serviu como um véu de obscuridade, destinado a ocultar do vulgo, ao qual pertencia
notadamente o censor, suas opiniões mais heterodoxas, revelando-as apenas a um reduzido círculo de leitores
mais esclarecidos” (MONTEIRO, 1984, p. 19). “Um dos exemplos mais intrigantes da estratégia de Hume é sua
aparente aceitação, na História natural da religião, do argumento do desígnio tão drasticamente demolido por ele
mesmo nos Diálogos” (MONTEIRO, 1984, p. 129).
42
Seguindo o itinerário filosófico de Hume, a partir do convite de formar os juízos com
base na experiência, intencionamos discutir, na sua dimensão filosófica, a questão da
possibilidade do conhecimento de Deus. Para tanto, nesse capítulo nos concentraremos nos
argumentos elaborados por Hume acerca da religião natural, sobretudo, na História e nos
Diálogos.
2.1 A religião natural: do politeísmo ao monoteísmo
Seguindo a ordem cronológica de publicação das obras humeanas sobre a religião,
dirigimos nossa atenção ao estudo da História natural da religião53
(1757), na qual Hume
investiga a origem do sentimento religioso no homem a partir da distinção feita entre o
teísmo54
supersticioso e o teísmo genuíno. A partir dessa perspectiva, recorrendo aos
argumentos presentes na obra supracitada, pretendemos lidar com a questão fundamental de
se a filosofia da religião proposta por Hume acena para um teísmo ou um ateísmo. Nesse
diapasão, a compreensão da abordagem argumentativa presente na História deve nos conduzir
à pesquisa sobre a origem do sentimento religioso – baseada na fé da revelação ou, de outro
modo, erigida com base na experiência natural – e, por conseguinte, sobre os efeitos que esse
sentimento pode ocasionar na sociedade55
.
53
O título dessa obra, provavelmente, foi inspirado na Histoire Naturelle (1744), de Bufon, que tem a intenção
de estudar cientificamente os fenômenos humanos em paralelo aos estudos dos fenômenos naturais. No entanto,
como destaca Robert Brow, em The world’s religions (1982), que a História Natural da Religião deve
compreendida, por suas conclusões, como uma sociologia da religião, uma vez que, não sendo incluída no rol
das obras filosóficas, sua proposta é discutir os efeitos sociais causados pelo sentimento religioso (Cf. BROW,
1982, p. 33). 54
“Este termo, usado desde o séc. XVII para indicar genericamente a crença em Deus, em oposição a ateísmo
(assim também em Voltaire, Dictionnaire philosophique, a. Théiste), foi definido por Kant, no seu significado
específico, em oposição a deísmo (v.). Kant diz: "Quem só admite uma teologia transcendental é chamado de
deísta; quem admite também uma teologia natural é chamado de teísta. O primeiro admite que com a razão
apenas podemos conhecer um Ser originário do qual só temos um conceito transcendental, de Ser que tem
realidade mas que não pode ter nenhuma determinação a mais. O segundo afirma que a razão tem condições de
dar mais determinações do objeto segundo a analogia com a natureza, ou seja, pode determiná-lo como Ser que,
por intelecto e liberdade, contenha em si o princípio originário de todas as outras coisas” (ABBAGNANO, 1998.
p. 943). 55
Para Cabezas, a História da religião natural se destaca entre as obras acerca da filosofia da religião, uma vez
que é nela “(...) onde faz uma investigação quase antropológica das origens do fenômeno” – “(...) donde hace
una investigación casi antropológica de los orígenes del fenômeno” (CABEZAS, 2008, p. 37).
43
Na História, Hume pretende investigar a origem do sentimento religioso no homem.
Nesse sentido, os elementos de ordem histórica que essa obra expõe podem ser considerados
anteriores no que tange ao objeto principal dessa pesquisa. No entanto, não podem ser
considerados como menos importantes. Para essa discussão, cabe destacar a posição de Brow,
em The world’s religions (1982), para quem a História Natural da Religião deve ser
compreendida, pelas conclusões a que chega, como uma sociologia da religião, uma vez que,
não sendo incluída no rol das obras filosóficas, sua proposta é discutir os efeitos sociais
gerados pelo sentimento religioso (Cf. BROW, 1982, p. 33).
A confecção da História sugere uma preocupação atrelada às autoridades religiosas, o
que fez com que Hume revisasse algumas partes e as alterasse para que não fosse acusado de
blasfêmia. Desse modo, na História, logo nas primeiras páginas, podemos observar que
Hume, por contraposição com as posições incrédulas ou céticas, faz uma distinção entre o
teísmo puro ou genuíno e o teísmo supersticioso. É importante destacar que essa posição é,
certamente, elaborada com o receio de retaliações, e suas reais intenções são nebulosas. Por
isso, algumas posições se apresentam de maneira velada (subentendidas), a fim de evitar
certos tipos de problema. De forma equivalente, ocorre com alguns elementos que serão
retomados nos Diálogos sobre a religião natural, obra publicada postumamente a ser
analisada na próxima seção.
Por teísmo supersticioso, Hume compreende a crença do politeísmo idólatra, que se
destaca pelo antropomorfismo, pela submissão a paixões e apetites. Como Hume afirma:
“Quanto mais remontamos à Antiguidade, mais encontramos a humanidade no politeísmo”
(HNR, p. 23). Ainda em relação a esse tipo de teísmo, Hume afirma que ele concebe também
a crença do monoteísmo em uma divindade sob a forma de puro espírito, com poderes
perfeitos de onipotência e onipresença e com atributos morais (Cf. HNR, p. 25). No caso
desse teísmo, percebemos que há apenas uma elevação gradual do espírito humano, isto é, por
abstração, pela qual distinguirá as partes mais nobres daquelas grosseiras concepções, de tal
modo a formar uma divindade mais elevada e pura.
Nesse contexto, Hume afirma, acerca das crenças supersticiosas: “parece impossível
que o monoteísmo possa ter sido, a partir do raciocínio, a primeira religião da raça humana, e
tenha dado nascimento em seguida, por conta da corrupção, ao politeísmo e a todas as
diversas formas de superstições do mundo pagão” (HNR, p. 28). Nesse sentido, a gênese da
religião reside na natureza humana, uma vez que, por seus medos e esperanças, dá origem à
crença em deuses com poderes passíveis de regular a ordem cósmica como, de modo
44
semelhante, o fazem as fadas e os gnomos (Cf. HNR, p. 44). O teísmo genuíno revela um
abismo existente entre ele e o teísmo supersticioso que conseguimos transpô-lo como, por
exemplo, em um salto, por meio de argumentos racionais, fazendo com que se reconheça a
ordem e o plano do universo (Cf. HNR, p. 25).
À luz do teísmo genuíno podemos afirmar que todas as coisas presentes no universo
demonstram certa uniformidade, isto é, as coisas estão associadas, ajustadas umas às outras. A
uniformidade pode levar ao reconhecimento da existência de um só autor, uma vez que,
segundo Hume, a concepção de vários autores só serviria para tornar a imaginação complexa
não traria nenhuma satisfação ao entendimento. Nesse sentido, a estrutura com que a natureza
se apresenta aponta para a existência de um autor inteligente e criador da ordem cósmica, em
que todas as coisas existentes são por ele articuladas em um plano que envolve a totalidade
das coisas (Cf. HNR, p. 30). Essa concepção, pelo fato de ser tão evidente e natural a ponto de
podermos atribuir, através da experiência, um desígnio ao mundo, torna necessária uma
investigação a fim de justificar racionalmente as estruturas da natureza. Desse modo, pelo uso
da razão, o homem é conduzido à crença em um Ser Supremo e não à crença no politeísmo,
visto que, segundo Hume, “... nenhum investigador racional pode, após uma séria reflexão,
suspender por um instante sua crença em relação aos primeiros princípios do puro
monoteísmo e da pura religião” (HNR, p. 21).
A distinção dos tipos de teísmos, elaborada por Hume logo no início da obra História
Natural da Religião, parece sugerir que seu posicionamento não nega a essencial verdade
religiosa acerca da existência de Deus. Entretanto, a recusa de alguns elementos primordiais
das teses teístas como, por exemplo, as referências aos atributos morais e, sobretudo, da
ressurreição como prefiguração de um estado futuro e eterno, por não satisfazerem os critérios
estritos da razão, apontam para algumas posições ateístas.
A respeito dessa questão, sublinharemos que, na Investigação acerca do entendimento
humano, a ideia que o homem tem de Deus, como um Ser infinitamente inteligente e bondoso,
decorre da reflexão sobre as operações da própria mente humana que eleva de modo ilimitado
suas qualidades de bondade e de sabedoria (Cf. EHU II, 14). Nessa perspectiva, o que se
considera um Ser possuidor de suprema sabedoria, inteligência e bondade, causa imediata dos
acontecimentos e fenômenos naturais, carece de elementos que justifique sua existência
racionalmente, uma vez que não se logra encontrar uma impressão correspondente a essa
ideia. Entretanto, na História, a preocupação de Hume não está voltada para a afirmação ou
45
negação de uma divindade, visto que através do teísmo genuíno abre-se a possibilidade da
existência de um Ser supremo como causa última e original de todas as coisas.
Para que possamos compreender mais a fundo a gênese da ideia que o homem tem de
Deus, diz Hume, “devemos voltar nosso pensamento para o politeísmo, a religião primitiva
dos homens incultos” (HNR, p. 29) que foi, sem dúvida, a primeira religião da humanidade.
Nesse sentido, ao recorrermos ao testemunho histórico observaremos que, desde à
Antiguidade, a humanidade encontrava-se imersa no politeísmo (Cf. HNR, p. 23), uma vez
que a concepção monoteísta, em qualquer uma de suas formas, não se revelou acessível a
muitos povos primitivos.
De acordo com os argumentos humeanos acerca da origem do sentimento religioso no
homem, podemos afirmar que ela se entrelaça estreitamente com suas preocupações
cotidianas:
Podemos concluir, portanto, em todas as nações que abraçaram o
politeísmo, as primeiras ideias de religião não nasceram de uma
contemplação das obras da natureza, mas de uma preocupação em
relação aos acontecimentos da vida, e da incessante esperança e medo
que influenciam o espírito humano (HNR, p. 31).
Podemos afirmar, então, que as divindades são concebidas e buscadas não pelo
estabelecimento da verdade constatada, mas pelas paixões humanas. A existência delas é
postulada em associação com a preocupação acerca da felicidade e com o temor de futuras
calamidades, entre outras coisas. Por essa visão, a boa ou a má fortuna no desenrolar da vida
humana resulta da boa ou má celebração dos sacrifícios, ritos e cerimônias (Cf. HNR, p. 32).
Assim, agitados pelas paixões, os homens suplicam o apoio e o amparo das divindades por
sua “ansiosa busca da felicidade, o temor de calamidades futuras, o medo da morte, a sede de
vingança, a fome e outras necessidades” (HNR, p. 32).
Por desconhecer as verdadeiras causas que regem o mundo, os homens são levados por
uma ansiosa expectativa dos acontecimentos futuros, e orientados pela imaginação, a
atribuírem às divindades poderes invisíveis que regem o curso da natureza da qual são
totalmente dependentes (Cf. EHU IV, 19). Nesse sentido, a gênese das divindades por parte
dos homens está enraizada no desconhecimento das causas que conferem regularidade à
natureza. Por isso, quanto mais o homem vive sua existência guiada pelo acaso, mais ele é
supersticioso (Cf. HNR, p. 37).
46
Hume admite que, por uma tendência geral, o homem concebe as divindades segundo
a sua própria imagem, transferindo para as divindades aquelas qualidades que são
classificadas como as mais elevadas56
. O que pode justificar o emprego de prosopopeias nas
poesias e mitos da Antiguidade ocorrem de modo frequente (Cf. HNR, p. 36-38), elaborando
uma figura divina que se iguala às paixões humanas tanto na aparência quanto nos desejos.
Nesse contexto, por desconhecerem as causas do mundo, os homens confiam quase que
cegamente no poder dos deuses e com trêmula curiosidade quantos aos eventos futuros,
entregam a eles a responsabilidade pelos poderes da natureza. Por conseguinte, a preocupação
em relação aos acontecimentos da vida, influenciados por suas esperanças e medos, fazem
com que os homens se voltem aos deuses para que lhes sejam favoráveis aos seus desejos, por
isso é necessário realizar sacrifícios, como exercícios litúrgicos, a fim de obter dos deuses os
efeitos esperados (Cf. HNR, p. 31).
Uma das alternativas encontradas pelos homens para contornar os efeitos arbitrários da
natureza é recorrer aos deuses, como observa Hume: “Não é surpreendente, então, que o
homem, absolutamente ignorante das causas, e ao mesmo tempo tomado por tamanha
ansiedade quanto ao seu futuro destino, reconheça imediatamente que depende de poderes
invisíveis, dotados de sentimentos e inteligência” (HNR, p. 37). Nota-se aqui que o homem
não procura as divindades para que respondam aos anseios mais profundos de sua existência
ou a questões abstratas, mas, pelo contrário, para buscar soluções para as suas variadas
necessidades. Hume advoga que, justamente, em razão dos sentimentos humanos de
esperança e medo surgem as primeiras divindades, as quais são invocadas pelos homens, que
tentam agradá-las (uma forma de adulação), com o intuito de obter delas proteção para seu
destino (Cf. HNR, p. 37).
Pela própria estrutura, o politeísmo, por meio de sua diversidade de sistemas, se
mostra capaz de responder às necessidades do homem, uma vez que as divindades nascem de
acordo com os seus anseios. Todavia, sendo prisioneiros da incerteza, os homens se entregam
aos erros mais grosseiros e evidentes, e imbuídos de um espírito supersticioso se satisfazem
com respostas superficiais e, por vezes, inescrupulosas. Hume, em sua interpretação desse
sistema religioso, salienta que: “Os homens comuns provavelmente nunca foram levados tão
longe em suas pesquisas, nem derivaram da razão seus sistemas religiosos, embora filólogos e
56
A tese de Hume de conceber um deus Arquiteto como semelhante ao homem, sendo dotado de poderes
infinitos, vai de encontro aos fundamentos judaicos, cristãos ou islâmicos, em que se concebe um único Deus do
qual, como se pode verificar, criou o homem à sua imagem e semelhança (Cf. HNR, p. 36).
47
mitólogos, como vimos, jamais manifestaram tanta penetração” (HNR, p. 51). Justamente por
não se questionarem de maneira profunda, sobretudo, sobre sua existência, mas buscando
respostas para suas necessidades, os homens se satisfazem com as respostas das divindades e
entregam-se aos seus cultos para obterem a garantia de uma vida segura e próspera graças aos
poderes ocultos e inteligentes.
O culto politeísta, conforme a interpretação apresentada por Hume, está estreitamente
vinculado às necessidades do homem. Disso segue que a concepção que os homens tem dos
deuses, excetuando os poderes divinos, são concebidas atrelados às características humanas,
uma vez que conservam suas paixões e apetites. Sendo assim, como sublinha Hume, em sua
maior parte, “... foram outrora homens, e que sua divinização deve-se a admiração e ao afeto
do povo” (HNR, p. 56)57
. Por isso, em decorrência da incapacidade humana de se questionar,
o que predomina principalmente entre os homens incultos, com certa facilidade, são levados
pelos seus sentimentos, de modo que imaginam que cada evento ocorra por uma decisão
divina58
.
Seguindo o fio condutor dos argumentos humeanos acerca do monoteísmo, podemos
afirmar: “A doutrina de um deus supremo e único, autor da natureza, é muito antiga e
propagou-se entre nações importantes e populosas, onde os homens de todas as classes e de
todas posições sociais a abraçaram” (HNR, p. 59). A crença monoteísta, que se origina no
politeísmo e na consequente supremacia de um deus dentre os demais, conserva alguns
elementos supersticiosos de sua origem como, por exemplo, os cultos idólatras de adulação.
Por isso, podemos observar, como salienta Hume, que muitos homens deixam-se levar por
recônditas crenças de cunho idólatra, pois à medida que o temor e a misérias se fazem mais
fortes, inventam novas formas de adulação, a fim de agradar a divindade (Cf. HNR, p. 61-62).
Ademais, pela existência de um ente supremo, de acordo com as formas mais perfeitas de
monoteísmo, e pela demasiada distância dos homens se faz necessário alguma espécie de
intermediários responsáveis por essa ligação entre Deus e os homens. Rememorando a figura
dos semideuses presentes nas crenças politeístas, no monoteísmo os santos são os que
exercem essa função. Contudo, por estarem mais próximos dos homens e se assemelharem a
57
Devemos sublinhar que, de acordo com Hume, as divindades são tão pouco superiores aos homens, uma vez
que estes podem ser convertidos em deuses ao ganharem a gratidão dos homens por algum benefício concedido. 58
Podemos observar que o homem, por seu modo grosseiro e vulgar de considerar o mundo, legitimará a
existência de seres divinos cujos eventos são deles derivados. Por isso, ao retratar o deus da guerra será
naturalmente representado através de uma figura violenta, cruel e furiosa. Assim como o deus da poesia,
representado por sua distinção, educação e amabilidade. Por fim, o deus do comercio poderá ser desenhado como
desonesto e impostor. Por notar que através desses exemplos os homens são levados a unir o poder invisível a
algum objeto de natureza visível (Cf. HNR, p. 53).
48
eles acabam se transformando no grande objeto de devoção em detrimento a divindade, que é
deixada em segundo plano. Nesse contexto, podemos afirmar que há uma verdadeira volta do
politeísmo, camuflada pretensamente na crença monoteísta.
Em suma, podemos perceber primeiramente que, através da análise histórica descrita
por Hume, o teísmo supersticioso na forma politeísta é a primeira forma de religiosidade do
homem e, por conseguinte, a forma monoteísta originada da evolução do politeísmo e,
consequentemente, da supremacia de um deus sobre os demais (Cf. HNR, p. 61). Nesse
contexto, podemos, atentando para as palavras de Hume, concluir que: “Eis aqui a origem da
religião e, consequentemente, da idolatria ou do politeísmo” (Cf. HNR, p. 72). Nesse sentido,
em segundo lugar, podemos perceber mais claramente a distinção realizada por Hume entre
teísmo supersticioso, que delineamos até aqui, e teísmo genuíno, que será delineado a partir
da investigação entre distinção entre providência particular e providência original, proposta
no item abaixo.
2.1.1 Distinção entre providência particular e providência original
Com a pretensão de compreender as formas de teísmo supersticioso e de teísmo
genuíno, Hume explicitará na História natural da religião que a distinção entre a providência
particular e a providência original é uma maneira de abarcar a distinção entre os tipos de
teísmo apresentados no início da supracitada obra. A providência particular, delineada até
aqui pelas crenças do politeísmo e do monoteísmo, se refere aos acontecimentos da natureza
como efeitos imediatos e arbitrários das volições particulares da divindade suprema, que é por
Hume rejeitada. Já a providência original, se refere à regularidade e uniformidade que
vislumbramos na natureza possibilita a afirmação da existência de uma mente organizadora
que formula leis gerais e imutáveis que percebemos através dos sentidos. No entanto, essa
perspectiva mesmo quando defende a existência de um ser supremo, não deixará de ressaltar
que ele se limita a dar o impulso originário.
Como já dissemos, a distinção entre os tipos de providência, representa também os
tipos de teísmos apresentados, permeando toda extensão da História natural da religião.
Nessa linha de pensamento, podemos admitir que o itinerário das crenças humanas nasce e se
desenvolve através dos preconceitos religiosos presentes nas formas de politeísmo e
49
monoteísmo que declinam a partir da descoberta dos erros grosseiros e de concepções
vulgares (Cf. HNR, p. 73). Como Hume afirma, por admitir que, a partir de uma pequena
reflexão, podemos vislumbrar na natureza uma certa regularidade e uniformidade, afirmamos
haja a possibilidade da existência de uma mente organizadora:
Pois o homem, tendo aprendido através de preconceitos
supersticiosos a dar importância a algo falso, quando isso lhe falta e
ele descobre, ao refletir um pouco, que o curso da natureza é
regular e uniforme, toda sua fé cambaleia e desmorona. Mas
quando chega a aprender, por meio de uma reflexão mais profunda,
que precisamente tal regularidade e uniformidade constitui a prova
mais clara da existência de um desígnio e de uma inteligência
suprema, volta àquela crença que tinha abandonado e pode, agora,
estabelecê-la sobre fundamento mais firmes e duráveis (HNR, p.
60-61).
Recorrendo à história da humanidade e à Antiguidade clássica, berço da filosofia,
vemos que os primeiros filósofos por meio de suas elucubrações não tencionavam incluir em
seus sistemas uma divindade como causa criadora. Com o objetivo de alcançar uma
explicação racional que justifique as causas primeiras, até então desconhecidas ou explicadas
de maneira alegórica, buscavam, por um lado, se afastar concepções míticas do pensamento e,
por outro, procuravam, de modo racional, a causa de todas as coisas. Nesse contexto,
podemos citar Tales de Mileto que, no século VI a.C., afirmou ser a água o elemento
formador do universo. A importância dessa afirmação não consiste propriamente na escolha
do elemento água como arché, mas no tipo de justificativa que apresentá-lo como origem
primordial de tudo. Tudo defendido como fruto da reflexão racional acerca das causas
primeiras de tudo que existe. Por essa óptica, através da reflexão racional ocorre,
paulatinamente, um afastamento da postulação da existência de divindades humanizadas, mas
com poderes superiores ou extraordinários. Essa a razão pela qual os primeiros filósofos, ao
se perguntarem a respeito da causa primeira de todas as coisas, serão acusados de ateísmo. Por
deixarem de lado os cultos supersticiosos, por não reconhecerem os poderes divinos, são
acusados de blasfêmia (Cf. HNR, p. 50).
Apesar das crenças monoteístas rejeitarem algumas crenças politeístas, serão
conservados alguns princípios dessas crenças, pois é possível verificar que alguns traços,
irracionais e supersticiosos estão presentes em ambas formas de crença. Sendo assim, ao
compararmos as religiões politeístas com as monoteístas, notamos que a primeira forma de
50
culto assenta-se sobre as mais inescrupulosas tradições a ponto de conceber práticas ou
opiniões bárbaras de acordo com a credulidade dos homens. Em contraposição, o
monoteísmo, em sua forma mais elevada, supõe que exista uma única divindade, que encarna
a perfeição da razão e da bondade, de tal modo que rejeitará, por conseguinte, os cultos
considerados frívolos, irracionais e desumanos. Todos os cultos, portanto, que enveredarem
para alguma forma de idolatria supersticiosa, advertem os monoteístas, devem ser banidos,
uma vez que não oferecem aos homens os princípios mais basilares de justiça e benevolência.
As palavras de Hume, acerca dos demais cultos religiosos para além das crenças monoteístas,
são enfáticas: “Quando se admite um único objeto de devoção, a adoração de outras
divindades é considerada absurda e ímpia” (HNR, p. 76).
O culto monoteísta, por sua vez, nos apresenta um Deus que é a representação fiel da
bondade e da moral. Sendo assim, todos os atos realizados pelos homens, devem estar
pautados, para que sejam considerados bons, nos mandamentos divinos. Por outro lado, os
homens que fogem dessas prescrições serão punidos, sendo assim, a contestação da
autoridade divina é considerada falta grave e que pode acarretar reações duras59
. Perante essas
questões, Norton afirma:
A partir desta conclusão Hume continua a argumentar que o
monoteísmo, aparentemente a posição mais sofisticada, é na
verdade moralmente retrógrada, pois, uma vez tendo se
estabelecido, o monoteísmo tende naturalmente para o status quo e
a intolerância, estimulando degradantes “virtudes monásticas”,
sendo mesmo um perigo para a sociedade, pois demonstra ser uma
causa de atos violentos e imorais contra aqueles que não
conseguem agir de acordo com seus princípios. Em contraste, o
politeísmo é tolerante com a diversidade e incentiva virtudes
naturais que melhoram a condição humana, sendo, portanto, de um
ponto de vista moral, superior ao monoteísmo60
59
Hume, acerca dessa questão afirma: “Quanto aos partidos eclesiásticos, podemos observar que, em todas as
épocas do mundo, o clero tem sido inimigo da liberdade; e certamente essa sua conduta constante deve ter se
baseado em razões permanentes de interesse e ambição. A liberdade de pensamento, e de expressão dos
pensamentos, é sempre fatal ao poder clerical, bem como às piedosas fraudes em que geralmente assenta (...)”
(HUME, 2004, 168-169). 60
“From this conclusion Hume goes on to argue that monotheism, seemingly the more sophisticated position, is
in fact morally retrograde, for, once having established itself, monotheism tends naturally toward zeal and
intolerance, encourages debasing, “monkish virtues”, and is itself a danger to society because it proves to be a
cause of violent and immoral acts directed against those who fail to act in accord with its tenets. In contrast,
polytheism is tolerant of diversity and encourages those genuine virtues that improve the circumstances of
humankind, and thus from a moral point of view is superior to monotheism” (NORTON, 1993, p. 20-21).
51
De acordo com os argumentos humeanos, existe uma máxima proverbial que é
postulada na confirmação de uma experiência geral a respeito do caminhar da humanidade
dentre as crenças teístas supersticiosas, de politeísmo e monoteísmo, que espera piamente no
poder transcendente de uma divindade (Cf. GASKIN, 1993, p. 486). Por isso, defende que: “A
ignorância é a mãe da devoção” (HNR, p. 126). Nesse contexto, percebemos que a
superstição e ignorância, que imperam nas religiões reveladas, guiam o homem enveredando-
o por práticas frívolas, por um zelo imoderado, por êxtases violentos ou pela crença em
opiniões misteriosas e absurdas61
. Sobre essa questão, Quinton destaca que a crença
monoteísta: “(...) é menos tolerante que seu predecessor selvagem. Outra deficiência moral do
monoteísmo é sua preferência por ‘virtudes monásticas’ tais como a humildade em oposição à
coragem e à autoconfiança de nossos ancestrais” (QUINTON, 2009, p. 56).
Seguindo os argumentos de Hume, podemos compreender que a passagem do teísmo
supersticioso para o teísmo genuíno ocorre mediante uma simples reflexão que, certamente,
consegue entrever a ordem do universo. De modo análogo, ocorre, paulatinamente, na
passagem da providência particular para a providência original: primeiramente, o homem
imbuído por suas crenças supersticiosas, busca na intervenção divina a satisfação de suas
necessidades e, posteriormente, desvinculando-se dessas práticas supersticiosas, por meio de
reflexões sobre o fluxo da natureza, poderá admitir uma providência original da mente
suprema. Nesse sentido, esse último tipo de providência compreende a existência de Deus
como sendo um ser que planeja a ordem observada na natureza. No entanto, mesmo
conservando o caráter imutável e eterno presente em muitas religiões reveladas, exclui a
possibilidade de qualquer intervenção divina, seja ela por meio de milagre, revelação e
escatologia, tal como é apresentada pelo carácter redentor com que se apresentam algumas
religiões (Cf. HNR, p. 98-101).
De acordo com os argumentos humeanos apresentandos, podemos concordar com a
interpretação de Gaskin que a análise dos argumentos descritos na História parecem
direcionar para a pergunta: “Por que será que alguém acredita em Deus ou em deuses?”62
.
Responderíamos, assegura Gaskin, que os argumentos da religião natural não comprovam a
existência de qualquer divindade que justifique alguma crença religiosa, mas, por uma
61
Como assegura Norton: “The important point here, however, is that all religious belief derive from fear and
ignorance, and, moreover, to foster the continued development of these undesirable characteristics” (NORTON,
1993, p. 21). 62
“Why does anyone believe in God or gods?” (GASKIN, 1993, p. 486).
52
tendência natural (assim como ocorrem nas crenças causais), os homens, por superstição ou
ignorância, são levados a acreditar em um poder superior.
Diante das conclusões extraídas da História, recorreremos a Gaskin que faz uma
hermenêutica embasada da obra de Hume. De acordo com esse comentador, qualquer
rotulagem acerca da posição religiosa de Hume pode ser enganosa, uma vez que a distinção
elaborada por Hume entre teísmo supersticioso e teísmo genuíno perfazem uma estratégia
irônica de sua concepção religiosa frente as autoridades eclesiásticas (Cf. GASKIN, 1993, p.
317).
De acordo com a interpretação de Gaskin, os argumentos humeanos acerca das crenças
religiosas não tencionam afirmar a inexistência de Deus, mas através da forma mais perfeita
de teísmo, designada na forma de teísmo genuíno, podemos mediante a observação da ordem
e regularidade com que a natureza se apresenta podemos identificar a possibilidade de um
agente ordenador. Por isso, afirma Gaskin, na História podemos afirmar que a posição
humeana, pelas circunstâncias históricas, pode ser caracterizada pela expressão “deísmo
atenuado” (Cf. GASKIN, 1993, p. 322)63
. Tal expressão pode ser entendida como uma
posição filosófica naturalista de Hume que acredita a natureza é fruto de uma inteligência
superior, que é compreendida através da razão, contrário aos elementos teístas como, por
exemplo, a revelação64
.
A posição de Monteiro, descrita na introdução da História, concordando com a
perspectiva apresentada por Gaskin, reafirma que o termo deísmo atenuado expressa a posição
de Hume em favor da existência de um Ser supremo criador do mundo. No entanto, nega sua
intervenção sobrenatural como uma providência particular. Essa posição, certamente, é
permeada por elementos irônicos, por motivos anteriormente mencionados, e dão margem a
diferentes tipos de reconstrução argumentativa acerca da posição de Hume sobre a religião
(Cf. HNR, «Introdução», p. XVI).
63
Como afirma Abbagnano acerca dessa expressão: “O deísmo do séc. XVIII, assim como o seu precedente histórico, a
doutrina da religião natural dos sécs. XVI e XVII (Thomas Morus, Herbert de Cherbury, Locke), contrapõe à revelação
histórica a revelação natural, que ocorre através da razão, chegando a ver no Evangelho (como Matteo Tindall) apenas "uma
republicação da lei da natureza" (O cristianismo antigo como criação, 1730)” (ABBAGNANO, 1998, p. 260). 64
“Doutrina de uma religião natural ou racional não fundada na revelação histórica, mas na manifestação natural
da divindade à razão do homem. O Deísmo é um aspecto do Iluminismo (v.), de que faz parte integrante. (...) As
teses fundamentais do Deísmo podem ser recapituladas assim: 1ª a religião não contém e não pode conter nada
de irracional (tomando por critério de racionalidade a razão lockiana e não a cartesiana); 2a a verdade da religião
revela-se, portanto, à própria razão, e a revelação histórica é supérflua; 3a as crenças da religião natural são
poucas e simples: existência de Deus, criação e governo divino do mundo, retribuição do mal e do bem em vida
futura” (ABBAGNANO, 1998, p. 238).
53
Mesmo que Hume aceite a existência de um Ser supremo como criador e ordenador
universal, isso não implica que possamos atribuir a Ele quaisquer qualidades ou conhecer a
sua natureza. Nessa perspectiva, os graus de poder, inteligência e benevolência que são
atribuídos à divindade através da analogia com a natureza humana, então, ao atribuirmos,
supondo certas qualidades, recaímos ao campo da hipótese criada pela analogia (Cf. EHU XI,
106). Por isso, com base na experiência causal não conseguimos justificar a existência de
Deus bem como apontar a partir ordem visível da natureza atributos divinos.
Podemos entender que o termo “deísmo atenuado” que é sugerido como a posição de
Hume em relação as crenças religiosas partem de uma analogia com uma máquina perfeita,
que permite supor a existência de um designer inteligente através da percepção de uma
organização com leis fixas e imutáveis apresentes na observação da ordem e harmonia
presentes na natureza, na qual todas as coisas subsistem dando vida e movimento a tudo (Cf.
DNR VI, p. 57). Contudo, inexiste ulterior intervenção, seja milagrosa ou não, que muitas
religiões supõem como sendo efeito dos inúmeros atributos de Deus.
Em todas as religiões, portanto, por mais benéficas que possam ser ou parecer, seus
seguidores se dedicam a fim de alcançar os favores divinos enveredam-se, como sublinha
Hume, “(...) por práticas frívolas, por um zelo imoderado, por êxtases violentos ou pela crença
em opiniões misteriosas e absurdas” (HNR, p. 115).
Em suma, o medo e o desconhecimento das causas primeiras impulsionam o homem
para a crença em poderes divinos. Essa questão ocorre principalmente nas religiões reveladas,
nas quais a ignorância e a superstição se sobrepõem à razão. Não é o que ocorre na religião
natural, pois através da racionalidade se rechaçam os perigos dos atos devocionais baseados
na ignorância. Sobre essa problemática Hume escreve:
É tudo uma incógnita, um enigma, um mistério inexplicável. O
único resultado de nossas investigações mais meticulosas sobre
esse assunto parece ser a dúvida, a incerteza e a suspensão do juízo.
Mas tal é a fraqueza da razão humana e tal é o irresistível contágio
da opinião que dificilmente poderíamos manter essa dúvida
deliberada, se não ampliássemos nossa visão e, opondo uma
espécie de superstição à outra, as colocássemos em disputa,
enquanto de nossa parte, durante essa fúria e controvérsia,
felizmente escapássemos para as regiões calmas, ainda que
obscuras, da filosofia (HNR, p. 126).
54
Desse modo, com base nos argumentos humeanos, podemos afirmar que o politeísmo
é a religião original de todos os homens, uma vez que, levados por suas superstições, os
homens buscam nos poderes ocultos das divindades elementos que satisfaçam suas
vicissitudes beneficiando-os ou, pelo menos, os afastando dos possíveis males. Não há outra
explicação para o momento crucial da história da religião a não ser a da satisfação das
necessidades humanas. Desse modo, são explicadas as concepções de divindades com traços
antropomórficos, que nascem das projeções que ultrapassam os limites do próprio homem.
Ademais, em um processo análogo ao desenvolvimento social, os homens elegem uma
divindade como sendo a principal, pois através dela muitos benefícios são considerados
recebidos e, progressivamente, dentre as inúmeras divindades passa-se a ter a predominância
de uma divindade que sobrepuja as demais. No entanto, as adulações dos ritos anteriores são
mantidos, com a diferença que são canalizados, por influenciarem, direta ou indiretamente, a
vida da sociedade. Esse percurso leva-nos a indagar de que modo, através de nosso estudo,
podemos compreender a concepção de um desígnio ao qual toda a natureza e a vida humana
estão ajustados. Embora a História esteja permeada pela problemática do desígnio, somente
nos Diálogos sobre a religião natural – que analisaremos no próximo item – sua investigação
efetivamente se realiza.
Destarte, influenciado pela racionalidade iluminista, Hume buscará compreender a
causa ordenadora de todas as coisas através dos conceitos basilares da epistemologia
empirista. Sua obra suscita inúmeros questionamentos, até mesmo pelo número limitado de
fontes históricas. Contudo, podemos afirmar que a publicação de suas obras de cunho
religioso gerou um clima de insegurança por dois aspectos: abandono definitivo da religião ou
nova fundamentação da filosofia da religião. Nesse sentido, como Mounce ressalta, a hipótese
que Hume formulou na História, e que buscará desenvolvê-la nos Diálogos sobre a religião
natural, não se confunde com um posicionamento antiteológico. Isso, faz com que suas obras
devotadas à problemática do fato religioso possam ser consideradas, no mínimo,
interessantes65
.
65
Mounce avança igualmente uma hipótese interessante. Hume, ao rejeitar o argumento do desígnio, o faria por
razões de conformidade com sua própria epistemologia. A experiência é uma instância insuficiente para fornecer
uma explicação, seja das “conclusões na ciência” seja das conclusões na “teologia natural” (Cf. MOUNCE,
1999, p. 110). No entanto, Mounce trata indistintamente os argumentos da seção XI da Investigação sobre o
Entendimento Humano e os argumentos dos Diálogos. Para ele, quando Hume nega o princípio da ação
permanente da providência, ele estaria igualmente a negar a legitimidade da ciência; como não se pode inferir do
efeito mais do que aquilo que é percebido no próprio efeito (a causa deve ser proporcional ao efeito), então,
como argumenta Mounce, não se poderia inferir da harmonia do mundo a existência da providência, pois seria
atribuir ao efeito propriedades que nele estão ausentes (Cf. MOUNCE, 1999, p.111). Ora, Hume tinha perfeita
55
2.2 Análise do argumento do desígnio
Considerando a proposta teórica desta dissertação, a análise da temática do argumento
do desígnio torna-se um ponto fundamental, quiçá central. Com esse intuito, tomaremos como
base os Diálogos sobre a religião natural, escrito por Hume entre 1751 e 1755 e publicado
postumamente em 1779. Embora essa obra seja considerada pelos comentadores como a que
melhor representa a filosofia da religião de Hume66
, sua contribuição relaciona-se também
com a metafísica, teoria do conhecimento e, de modo semelhante, com a filosofia moral que
Hume formulou.
O texto dos Diálogos é considerado um grande clássico filosófico, pois inúmeros
pensadores reconhecem a maestria de Hume em relacionar diversas temáticas filosóficas
numa mesma obra. Entretanto, sua redação em forma de diálogos67
visa a evitar a expressão
explícita de sua real posição sobre a temática religiosa. Essa é a razão pela qual seus
argumentos são elaborados sem comprometimento direto com nenhum deles, através das
posições apresentadas pelos personagens. Desse modo, podemos afirmar que para desvelar o
pensamento do autor acerca da religião, como Monteiro adverte, devemos investigar o que é
sugerido nas entrelinhas (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 47). Tendo isso presente, Monteiro
afirma que autores como Kemp Smith, Flew e Noxon concordam que Hume ao redigir os
noção desta dificuldade e a tratou como convinha através de duas estratégias distintas. Em primeiro lugar, na
seção XI da Investigação sobre o Entendimento Humano, pressupôs a ação da providência e limitou-se a apontar
algumas dificuldades para esta hipótese. Já nos Diálogos, Hume enfrentou a árdua tarefa de justapor uma
alternativa que, pelos seus argumentos, jamais considerou verdadeira, mas apenas (como torna-se claro na parte
VIII dos Diálogos) mais plausível. Da mesma forma, Hume nunca considerou verdadeira sua hipótese do hábito,
mas apenas a hipótese mais plausível. Registre-se que eu considero de extrema importância ressaltar esta leitura
de Mounce, pois ela auxilia-nos a compreender a importância de separar metodologicamente as estratégias
utilizadas por Hume nos dois textos que estão em questão. Se tomamos simplesmente o método empirista de
Hume como um guia para rejeitar as hipóteses teológicas, temos de tomá-lo também como uma boa razão para
suspeitar de qualquer hipótese acerca da harmonia natural (e, como bem argumenta Mounce, de qualquer
hipótese científica). No entanto, desde a formulação da hipótese do hábito (pelo menos), Hume se assume como
um filósofo construtivo, e esta atitude não é abandonada nos Diálogos. Esta atitude, talvez por razões de
estratégia metodológica, foi abandonada na seção XI da Investigação sobre o Entendimento Humano, onde
nenhuma hipótese alternativa foi proposta. Contudo, como a parte VIII dos Diálogos mostra, Hume adianta uma
interessante hipótese rival ao argumento do desígnio. 66
Sobre os Diálogos, Zilles observa que “sem dúvida constituem uma das grandes linhas divisórias nas
discussões filosóficas sobre a religião” (ZILLES, 2009, p. 2). 67
Os Diálogos são escritos em forma de conversação para favorecer a exposição das ideias de Hume, de modo
que não o envolva diretamente em polêmicas. No entanto, sobre esse gênero literário, como o autor afirma: “...
qualquer questão filosófica que seja tão obscura e incerta a ponto de não ser possível à razão humana chegar a
uma conclusão definitiva sobre ela parece levar-nos naturalmente (se é que, afinal, devemos ocupar-nos dela) ao
estilo de diálogo e conversação” (EHU, «Introdução», p. IV).
56
Diálogos tinha como meta exprimir seu ceticismo em matéria religiosa sem ficar exposto aos
controles da censura (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 42).
Passaram-se vinte anos das primeiras linhas até a publicação póstuma dos Diálogos.
Esse longo tempo é devido à preocupação de Hume de evitar se contrapor a uma sociedade
fortemente religiosa e, consequentemente, se proteger de eventuais retaliações pelas teses
defendidas. Por isso, os Diálogos relatam que Pânfilo contará ao seu amigo Hérmipo um
encontro entre três intelectuais – Cleantes, Demea e Filo – que discutirão a plausibilidade do
argumento do desígnio.
A publicação dos Diálogos insere-se no rol de debates da temática acerca do
argumento do desígnio, pois diversos pensadores, assim como também cientistas e clérigos,
investigam a possibilidade de desígnios presentes na natureza legitimarem a existência de um
Ser supremo criador de todas as coisas. Nesse contexto, por meio de diversos exemplos
poderemos mostrar que a crítica ao argumento do desígnio realizada por Hume é bem
sucedida, como relatam seus comentadores, pois recebeu boa acolhida a ponto de influenciar
muitos pensadores que se devotaram à temática religiosa68
.
Podemos dar o exemplo de Darwin (1809-1882) quando cita a obra Provas do
cristianismo (1794) de Paley (1743-1805), bem como Filosofia moral e política (1785) e
Teologia natural (1803), como obras indispensáveis para o estudo de temáticas que se
desenvolveram a partir da crítica humeana ao argumento do desígnio. A respeito das obras
que Darwin utilizou em suas pesquisas, Darwin afirma que: “O estudo cuidadoso desses
trabalhos, sem tentar aprendê-los de cor, foi a única parte do curso acadêmico que, como
julguei na época e ainda julgo agora, teve alguma utilidade para a minha formação
intelectual” (DARWIN, 1993, p. 59). A aprovação do pensamento de Paley feito por Darwin
aparece também na obra Origem das Espécies na qual elabora os argumentos fundamentais
acerca da seleção natural.
Diante da dificuldade de alcançar objetivamente alguma conclusão acerca das questões
religiosas, principalmente por sua vastidão, presume-se a necessidade de um esforço maior
para sua compreensão. Nesse sentido, o ceticismo servirá como suporte investigativo de
assuntos aos quais Hume devota especial atenção: “somos como forasteiros em uma terra
68
Dentre muitos pensadores podemos destacar: John Ray com A sabedoria de Deus manifestadas nas obras da
criação (1691); Paley com a Teologia natural (1803); William Whewell com a Astronomia e a física geral
consideradas em relação à teologia natural (1833); dentre outros que discordavam do pensamento humeano
acerca da religião como John Bruce, Thomas Brown, Daniel Dewar, Dugald Stewart, John Abercrombie e James
McCosh, e, outros que concordavam, como Robert Blakey, Thomas Belshan, Ernest Albee e Henry Sidgwick.
57
estranha, aos quais tudo parece suspeito e que permanentemente correm o risco de transgredir
as leis e os costumes das pessoas com as quais convivem e se relacionam”69
. Desse modo, os
limites da razão humana são vislumbrados no desenrolar da obra e na comprovação da
inexistência de uma justificativa racional como fundamento para a religião natural. Portanto,
acerca da faculdade da razão devemos tomar consciência, como Hume afirma, tomar
consciência da sua debilidade, cegueira e estreiteza (Cf. DRN, I, p. 16).
Em conformidade com seu empirismo, Hume nos Diálogos elaborará com
profundidade, e de modo recorrente, sua crítica em relação às crenças religiosas. Dessa forma,
podemos destacar, através das falas de Filo, alguns trechos que contém certa ironia e
sarcasmo, capazes de reiterar o posicionamento cético humeano de escritos anteriores:
Quando nossas especulações se restringem aos negócios, à moral
ou à política, podemos a cada instante apelar para o senso comum e
para a experiência, que fortalecem nossas conclusões filosóficas e
removem (em grande parte, ao menos) a desconfiança que
acertadamente experimentamos frente a todo raciocínio demasiado
sutil e refinado. No caso dos raciocínios teológicos, contudo, não
dispomos dessa vantagem; e, ao mesmo tempo, estamos lidando
com objetos que são sem dúvida excessivamente vastos para que
possamos entendê-los, e que, de todos, são os que mais esforço
exigem para que se tornem familiares à nossa compreensão70
.
Em linhas gerais, podemos sintetizar o estudo da temática religiosa exposta por Hume
nos Diálogos recorrendo a duas vertentes: (a) a busca da análise dos desígnios presentes na
natureza podem justificar a existência de um ser onipotente e criador; e (b) a partir da possível
justificação podemos conhecer a sua natureza.
69
“We are like foreigners in a strange country, to whom every thing must seem suspicious, and who are in
danger every moment of transgressing against the laws and customs of the people with whom they live and
converse” (DRN, I, p. 20) 70
“So long as we confine our speculations to trade, or morals, or politics, or criticism, we make appeals, every
moment, to common sense and experience, which strengthen our philosophical conclusions, and remove, at least
in part, the suspicion which we so justly entertain with regard to every reasoning that is very subtitle and
refined. But, in theological reasonings, we have not this advantage; while, at the same time, we are em‐ ployed
upon objects, which, we must be sensible, are too large for our grasp, and of all others, re‐ quire most to be
familiarized to our apprehension” (DRN I, p. 19-20).
58
2.3 Os personagens dos Diálogos e suas teses
A forma dialógica por meio da qual os três personagens defendem suas posições serão
consideradas, primeiramente, de forma individual e, em seguida, conjunta a fim de favorecer a
eficácia argumentativa da obra, bem como as respostas a possíveis objeções contra as
posições sustentadas por cada personagem.
2.3.1 Posição de Demea: fideísmo
Demea é descrito por Pâmfilo (narrador) como uma pessoa imbuída de uma “ortodoxia
rígida e inflexível” (DNR «Introdução», p. 12). Este personagem defende um argumento
(considerado a priori) em favor da existência de Deus e da incompreensibilidade dos atributos
divinos por causa da fragilidade da natureza humana e das limitações do entendimento
humano. Nesse sentido, a existência de Deus é entendida como certa e self-evident71
e,
consequentemente, não se abre à discussão. A compreensão do ponto de vista de Demea fica
facilitada quando afirma:
Estou convencido de que ninguém dotado de bom senso jamais
manteve alguma dúvida diante de uma verdade tão certa e
autoevidente. A questão não diz respeito à EXISTÊNCIA, mas à
NATUREZA de DEUS. E esta, eu afirmo, é-nos completamente
incompreensível e desconhecida, dada a fragilidade do
entendimento humano72
.
Com base nos argumentos elaborados por Demea, podemos concluir, de forma
sintética, que sua posição defende que o único elemento suficiente para legitimar a aceitação
da existência de Deus são os argumentos místico-religiosos, pois, segundo ele, a razão, sendo
potente para provar a existência de Deus, não tem poderes intelectuais para afirmar quais são
71
A posição defendida por Cleanthes, corroborando com a posição de Demea, concebe a existência de Deus, no
entanto não é self-evident (Cf. DNR II, 25). 72
“I am persuaded, ever entertained a serious doubt with regard to a truth so certain and self‐evident. The
question is not concerning the BEING, but the NATURE of GOD. This, I affirm, from the infirmities of human
understanding, to be altogether incomprehensible and unknown to us” (DRN II, p. 25).
59
os atributos de Deus. De acordo com Demea, a existência de Deus pode ser demonstrada por
uma prova formal, isto é, a priori73
ou, como era denominado, por meio do argumento
cosmológico. Como esse argumento cosmológico é rechaçado por Hume razões ditadas por
sua epistemologia, não entraremos neste mérito74
.
Seguindo o fio condutor da defesa que Demea elabora em favor da compreensão a
priori da existência de Deus, sua posição ressalta que, dada fragilidade do entendimento
humano, não se pode conceber a natureza da mente suprema, seus atributos, seu modo de
existência e a natureza de sua duração. Há, para Demea, uma espessa névoa encobrindo as
infinitas perfeições Divinas, de tal modo que a única alternativa que se coloca para o homem é
adorá-Lo em silêncio, pois tentar penetrar nessa obscuridade sagrada constitui uma
profanação, e a temeridade de perscrutar seus decretos e atributos, sua natureza e essência,
pode ser considerada uma postura ímpia (Cf. DNR II, p. 26-27).
A defesa da posição de Demea acerca da incompreensibilidade da natureza divina
segue tanto de autores da escolástica como Anselmo e Tomás de Aquino, como de autores
modernos, por exemplo, Descartes e Malebranche (que é citado nominalmente na parte II dos
Diálogos). Podemos dar como exemplo Tomás de Aquino que na Summa Teologicae afirma
que não podemos ter completo e pleno conhecimento da natureza de Deus: “A razão não pode
atingir uma forma simples de modo a lhe conhecer a quididade; pode, contudo, conhecer-lhe a
existência” (Suma Teológica I, Questão XII, Art. XII). Na Summa contra os Gentios reafirma
essa posição: “A inteligência humana é incapaz, pelas suas próprias forças, de apreender a
substância ou a essência íntima de Deus. [...] E, todavia, os objetos sensíveis conduzem nossa
inteligência a certo conhecimento de Deus, até ao ponto de conhecermos que Ele existe”
(Súmula Contra os Gentios, cap. III, p. 65).
73
Talvez uma boa maneira de tentar responder a essa questão seja por meio de um exame atento do que seria
exatamente uma prova ontológica e uma prova cosmológica; ou uma prova a priori (ou puramente a priori), e
uma prova a posteriori, uma vez que, ao que tudo indica, há elementos a posteriori e a priori na argumentação
de Demea - o que nos permite dizer, no mínimo, que sua prova não é completamente a priori, mas sim uma
versão híbrida, isto é, uma versão que mistura argumentos e/ou conceitos a priori e a posteriori. Devemos
também reconhecer o esforço realizado por Hume em mostrar que os raciocínios demonstrativos (compreendidos
como a priori) não eram apropriados para tratar das questões relativas à religião natural, pois estas, sendo
questões de fato e existência, deveriam ser pensadas a partir de raciocínios experimentais (a posteriori) (Cf.
CAMPBELL, 1996, p. 160). 74
Nesse sentido, pode-se supor que a prova de Demea seja denominada a priori pois sua crítica visa, sobretudo,
um método baseado na argumentação. A confusão acerca dessa posição surge porque Demea parte de uma
premissa empírica (a posteriori), e o método de raciocínio desenvolvido pretende ser demonstrativo. Em outras
palavras, parte-se da experiência, mas a conclusão não sendo derivada assume princípios apriorísticos.
60
O’Connor lança a conjectura de que os argumentos empregados por Demea
estabelecem uma hipótese complexa, persuasiva, sofisticada e carrega consigo certo grau de
plausibilidade sobre os limites da mente humana75
.
2.3.2 Posição de Cleantes: argumento do desígnio
Cleantes apresenta-se como defensor do argumento do desígnio – da prova a
posteriori da existência de Deus – e crítico da prova pretensamente a priori apresentada por
Demea:
Pretende-se que a Divindade seja um Ser necessariamente existente, e
intenta-se explicar a necessidade de sua existência pela asserção de
que se conhecêssemos integralmente sua essência ou natureza,
perceberíamos que é tão impossível que ele não exista como que duas
vezes dois não sejam quatro76
.
No pensamento elaborado por Cleantes, encontramos o tema central dos Diálogos –
debate sobre a legitimidade do argumento do desígnio – que sugere que a existência de um
Ser criador sumamente inteligente, justo, poderoso e benevolente pode ser inferida a partir da
ordem e da harmonia observada no mundo.
Cleantes advoga em defesa de que os desígnios presentes na natureza contêm
elementos similares com certas características humanas, o que possibilita a justificação,
através dessa analogia, da existência de Deus. A ordem e regularidade observadas na natureza
permitem compreender, de forma mais acurada, o movimento das marés, do sol, da lua, da
terra e dos planetas, as variações do clima, o tempo de gestação e vida e dos animais etc. A
mente humana é guiada pela constância com que a experiência a afeta e, por conseguinte,
tende a esperar que se repitam os fatos que outrora foram sucessivamente observados. Essa
organização que observamos nos fenômenos da natureza estimula uma comparação com a
75
David O’Connor, sobre Demea, afirma: “Whatever its merits, Demea’s distinction is Hume’s first introduction
in the Dialogues of the idea that there are severe limits to what we can understand and know, and that those
limits are important in our philosophical thinking about religion” – (O’CONNOR, 2001, p. 40). 76
“It is pretended that the Deity is a necessarily existent being; and this necessity of his existence is attempted to
be explained by asserting, that if we knew his whole essence or nature, we should perceive it to be as impossible
for him not to exist, as for twice two not to be four” (DNR IX, p. 74).
61
ordem que depende do desígnio humano, como, por exemplo, a construção de casas, navios,
relógios e barcos. Nessa perspectiva, a mente habitua-se a esperar que de causas semelhantes,
de tal maneira que inferimos, por analogia, a existência de um ser inteligente como causa da
ordem natural. A analogia é vivificada a partir da corroboração da constância com que se
apresentam à mente humana, sugerindo, contudo que os fenômenos naturais são planejados
por um designer inteligente. Nesse contexto, Merrill salienta que a defesa do argumento do
desígnio feita por Cleantes é o melhor meio para explicar para certos fenômenos observáveis
na natureza, pois a hipótese de um designer inteligente como causa ou princípio do mundo
contém uma adaptação dos meios aos fins constatados na natureza (Cf. MERRILL, 2008, p.
91).
Desse modo, partindo do pressuposto descrito na Investigação, que tudo que existe
necessariamente tem uma causa (Cf. EHU VIII, 25), podemos concluir que a existência do
mundo (efeito) sugere uma causa criadora. Por isso, Cleantes, dirigindo-se a Demea nos
Diálogos, adverte-o:
Olhem para o mundo ao redor, contemplem o todo e cada uma de
suas partes: verão que ele nada mais é que uma grande máquina,
subdividida em um número infinito de máquinas menores que, por
sua vez, admitem novamente subdivisões em um grau que
ultrapassa o que os sentidos e faculdades humanas podem descobrir
e explicar. Todas essas diversas máquinas, e mesmo suas partes
mais diminutas, ajustam-se umas às outras com uma precisão que
leva ao êxtase todos aqueles que já as contemplaram. A singular
adaptação dos meios aos fins, ao longo de toda a Natureza,
assemelha-se exatamente, embora excedendo-os em muito, aos
produtos do engenho dos seres humanos, de seu desígnio,
pensamento, sabedoria e inteligência. E, como os efeitos são
semelhantes uns aos outros, somos levados a inferir, portanto, em
conformidade com todas as regras da analogia, que também as
causas são semelhantes, e que o Autor da Natureza é de algum
modo similar ao espírito humano, embora possuidor de faculdades
muito mais vastas, proporcionais à grandeza do trabalho que ele
realizou. É por meio deste argumento a posteriori – e apenas por
meio dele – que chegamos a provar, a um só tempo, a existência de
uma Divindade e sua semelhança com a mente e inteligência
humanas77
.
77
“Look round the world: contemplate the whole and every part of it: you will find it to be nothing but one great
machine, subdivided into an infinite number of lesser machines, which again admit of subdivisions to a degree
beyond what human senses and faculties can trace and explain. All these various machines, and even their most
minute parts, are adjusted to each other with an accuracy which ravishes into admiration all men who have ever
contemplated them. The curious adapting of means to ends, throughout all nature, resembles exactly, though it
62
A defesa que Cleantes elabora a favor da defesa do argumento do desígnio – prova a
posteriori da existência de Deus, centra-se em três pontos importantes, a saber: (a) defende
um argumento baseado na analogia; (b) a posteriori, isto é, a partir da experiência; e (c) o
comprometimento de defender apenas esse argumento.
2.3.3 Posição de Filo: ceticismo
O que caracteriza Filo é sua postura cética a respeito da existência de Deus a ponto de
buscar refutar tanto as provas de Cleantes quanto as de Demea78
. Filo, aliando-se parcialmente
a Cleantes formula uma crítica ao argumento apresentado por Demea. Entretanto, através da
sequência argumentativa, podemos observar que seu objetivo é desqualificar o argumento do
desígnio defendido por Cleantes. Deste modo, através da crítica ao argumento do desígnio,
Filo estabelece uma pluralidade de hipóteses como alternativas ao argumento do desígnio,
que, em sua perspectiva, são plausíveis quanto à hipótese do desígnio (Cf. DNR VIII, p. 69-
70). Filo é o principal personagem dos Diálogos e tem como seu principal interlocutor
Cleantes.
De acordo com os argumentos de Filo, como os conteúdos das ideias humanas são
fundados na experiência humana, por conseguinte, seria razoável buscar compreender a
possibilidade da existência de Deus, por se tratar de uma questão de fato, uma justificativa
empírica e racional. Dessa forma, Filo afirma:
Do mesmo modo, se um homem habituou-se às considerações
céticas sobre a incerteza e os estreitos limites da razão, ele não as
esquecerá inteiramente quando dirigir sua reflexão para outros
assuntos, ao contrário, em todos os seus princípios e raciocínios
much exceeds, the productions of human contrivance; of human designs, thought, wisdom, and intelligence.
Since, therefore, the effects resemble each other, we are led to infer, by all the rules of analogy, that the causes
also resemble; and that the Author of Nature is somewhat similar to the mind of man, though possessed of much
larger faculties, proportioned to the grandeur of the work which he has executed. By this argument a posteriori,
and by this argument alone, do we prove at once the existence of a Deity, and his similarity to human mind and
intelligence” (DRN II, p. 27). 78
“Cada uno de los personajes representa una posición filosófica con respecto a Díos: Demea es el fideísta,
Cleantes personifica el racionalismo, mientras que, por lo general, la posición de Hume viene expuesta por
Fílon” (CABEZAS, 2008, p. 37).
63
filosóficos – embora eu não ouse dizer que também em sua vida
cotidiana – ele se revelará como diferente daqueles que nunca
formaram quaisquer opiniões sobre o assunto, ou que alimentaram
sentimentos mais favoráveis à razão humana79
.
De acordo com a maioria dos estudiosos, a posição apresentada por Filo é a que
melhor representa o pensamento humeano. No entanto, a temática dessa obra – o argumento
do desígnio – nos é apresentada e defendida por Cleantes que afirma que, através da
observação empírica, a criação do mundo, em comparação com as criações provenientes de
ações humanas, é realizada por uma mente inteligente.
Através de um olhar periférico, podemos concluir que as posições defendidas por
Demea, Cleantes e Filo concordam que Deus existe. Entretanto, a discussão destina-se a
elaborar uma alternativa que justifique não a existência de Deus, mas sua natureza. Contudo,
mesmo que a existência de Deus não seja o ponto central da discussão, as críticas tanto ao
argumento de Demea quanto ao argumento do desígnio atingem a legitimidade da suposta
crença na existência de um Deus concebido pela religião natural. Nesse sentido, podemos
dizer que a existência divina é posta em xeque, mesmo sendo entendida como segundo plano,
quando as provas de sua natureza são debatidas nos Diálogos.
2.4 Debate acerca da existência de Deus e sua natureza
Discordando da posição apresentada por Cleantes, Demea alega que é impossível
conhecer a natureza de Deus, uma vez que é “completamente incompreensível e
desconhecida, dada a fragilidade do entendimento humano”80
. Nesse sentido, a partir da clara
finitude das criaturas, é necessário que exista um ser perfeito, mas, considerando os limites
humanos, seus atributos não têm como ser identificados81
. Sendo assim, resta ao homem,
como afirma Demea, “... adorar em silêncio suas infinitas perfeições, que os olhos não podem
79
“In like manner, if a man has accustomed himself to sceptical considerations on the uncertainty and narrow
limits of reason, he will not entirely forget them when he turns his reflection on other subjects; but in all his
philosophical principles and reasoning, I dare not say in his common conduct, he will be found different from
those, who either never formed any opinions in the case, or have entertained sentiments more favourable to
human reason” (DRN I, p. 19). 80
“from the infirmities of human understanding, to be altogether incomprehensible and unknown to us” (DRN,
II, p. 25). 81
“His attributes are perfect, but incomprehensible” (DRN, III, p. 40).
64
ver nem os ouvidos escutar e que ao coração humano não é dado conhecer”82
. Contrário a essa
posição defendida por Demea, Filo afirma, como veremos adiante, que a única prova a favor
da existência de Deus digna de consideração baseia-se em raciocínios empíricos e
probabilísticos.
A posição a priori elaborada e defendida por Demea considera os limites humanos
demonstram a impossibilidade de determinar lógica e filosoficamente a natureza de Deus. Por
isso, devido à debilidade humana em compreender, mesmo que minimamente, os mistérios
divinos indicam-nos a existência de um ser infinitamente perfeito e necessário. Mostra-se em
conformidade com o pensamento de Demea o que Hume, no Tratado e na Investigação,
através do exemplo das diferentes tonalidades de cores, admite a possibilidade de o homem
conhecer algo sem que tenha experiência: “... há, porém, um fenômeno contraditório que pode
provar que não é absolutamente impossível o aparecimento de ideias independentemente de
suas correspondentes impressões” (EHU II, 16).
O exemplo dado por Hume fundamenta-se na observação das várias tonalidades de
azul: “Suponhamos, que, uma pessoa que tenha gozado de sua visão durante trinta anos e
tenha se familiarizado com todos os tipos de cores, exceto com uma única tonalidade de azul,
por exemplo, a qual nunca teve a ocasião de encontrar” (T 1, 1, 2, 10). Nesse caso, ao
colocarmos defronte dessa pessoa todos os matizes dessa cor, exceto daquela tonalidade que
ainda não tinha observado, certamente, notará um vazio entre os diferentes matizes. Por isso,
Hume afirma: “Acredito que poucos serão de opinião de que tal não lhe seja possível, o que
pode servir como prova de que as ideias simples nem sempre são, em todos os casos,
derivadas das impressões correspondentes” (EHU II, 16).
Através do exemplo dado por Hume acerca dos diversos matizes de azul, podemos
vislumbrar que as bases para os argumentos de Demea se fazem presentes no Tratado e na
Investigação83
. No entanto, como o próprio Hume afirma, não podemos nos prender a esse
argumento, pois “... embora esse exemplo seja tão singular que quase não vale a pena
examiná-lo, e tampouco merece que, apenas por sua causa, venhamos a alterar nossa tese
geral” (EHU II, 16). Portanto, mesmo que os argumentos apresentados por Demea não sejam
82
“... adore in silence his infinite perfections, which eye hath not seen, ear hath not heard, neither hath it
entered into the heart of man to conceive” (DRN, II, p. 25). 83
Alguns comentadores afirmam que em alguns momentos Demea fala por Hume. Geralmente, diversos
comentadores identificam a posição de Hume coerentemente com Filo, mas há controvérsias de quem se
identifica com quem. Outros comentadores, ainda, se arriscam a afirmar que algumas passagens Cleantes
contenham teses humeanas. Essa questão suscitou bastante polêmica entre os comentadores de Hume sobre qual
dos personagens fala por ele.
65
o porta-voz do pensamento de Hume nos Diálogos, no entanto, nos revelará algumas antigas
posições apresentadas pelo autor em outros escritos.
Para ilustrar a impossibilidade da conclusão a priori acerca da existência e natureza
divinas, podemos relembrar a posição de Locke, nos Ensaios, ao considerar que a mente do
homem é tábula rasa: “... suponhamos então que a mente seja um papel em branco (white
paper), vazio de todos os caracteres, sem nenhuma ideia” (Ensaios II, I, §2). Nesse sentido,
todo conhecimento humano deriva exclusivamente da experiência dos sentidos e da reflexão.
Desse modo, com a delimitação da origem e extensão de nosso conhecimento, não podemos
conceber a existência de ideias inatas na mente dos homens, sejam elas práticas ou
especulativas. Levando em conta o princípio da tabula rasa de Locke, a própria ideia de Deus
não pode ser inata, uma vez que todas as ideias da mente do homem derivam da experiência.
Segundo Locke, devemos ponderar se “foram descobertas pelas navegações, em nosso
tempo, nações inteiras, na baía de Soldânia, no Brasil, em Boranday, e nas ilhas do Caribe
etc., entre as quais não se encontrou nenhuma noção de um Deus, nem da religião?” (Ensaios
I, IV, § 8). Por meio desse forte argumento antropológico, Locke não pretende negar a
existência de Deus, já que, assim como Hume, defende que haja um autor da lei da natureza.
No entanto, diferentemente de Descartes, Locke adverte que a existência de uma Divindade
não pode ser provada a priori como uma ideia inata, pois isso envolveria demonstrar a
existência de um assentimento geral entre os homens, sendo “a explicação de uma concepção
que temos em comum de Deus” (CURLEY, 1997, p. 55).
O próprio Hume é que dá o primeiro passo para recusar o argumento a priori, uma vez
que, para provar a existência de Deus, deve-se recorrer à experiência, pois, como afirma, as
provas acerca das questões de fato são derivadas da relação de causa e efeito (Cf. EHU IV,
22). Desse modo, a investigação acerca da existência de Deus, não pode ser considerada uma
disputa verbal que é solucionada com base nas relações entre ideias, pois, no que tange a essa
temática, se faz necessária uma análise empírica, como se observou no capítulo primeiro.
Portanto, mesmo que haja uma justificação a favor da existência de Deus (Cf. DNR VIII, p.
74), essa não pode ser provada de acordo com os argumentos apresentados por Demea.
Pretendendo seguir, na medida do possível, a ordem argumentativa que o próprio
Hume estabeleceu, examinaremos a sequência de argumentos em que os dois principais
adversários (Cleantes e Filo) apresentam nas partes II à VIII dos Diálogos. Devemos ressaltar
que ambos rejeitam veementemente o argumento defendido por Demea, pois questões de fato
não podem ser provadas a priori. Por isso Cleantes objeta que “há um absurdo evidente na
66
pretensão de demonstrar uma questão de fato ou de prová-la por meio de qualquer argumento
a priori” e que, por isso, “consequentemente, não há nenhum Ser cuja existência seja
demonstrável”84
.
Cabe enfatizar que a temática central dos Diálogos destina-se à investigação do
argumento do desígnio, hipótese que defende, que a partir da observação da ordem e da beleza
presentes no mundo, que podemos inferir a existência um criador inteligente, justo, bondoso.
Nesse sentido, Cleantes entende que esse argumento contém os fundamentos suficientes para
se acreditar numa divindade (como causa primeira de todas as coisas) dotada de suprema
inteligência, atributos e intenções morais. Com base nessa visão, Cleantes afirma: “É por
meio deste argumento a posteriori – e apenas por meio dele – que chegamos a provar, a um só
tempo, a existência de uma Divindade e sua semelhança com a mente e inteligências
humanas”85
. Entretanto, diferentemente da posição assumida por Demea, Filo não rejeita o
argumento do desígnio de imediato, uma vez que sua transigência ocorre quando o que está
em questão são os argumentos que pretendem estabelecer os atributos da divindade. Desse
modo, podemos afirmar que sua pretensão é apontar a fraqueza das analogias que respaldam o
argumento do desígnio formulando alternativas igualmente plausíveis.
A formulação do argumento do desígnio realizada por Cleantes (Cf. DNR II, p. 27)
fundamenta-se nas regras da analogia, que permitem inferir a partir da “curiosa adaptação dos
meios aos fins em toda a natureza exatamente semelhante, embora muito exceda, às
produções da invenção humana”86
. No entanto, essa semelhança que Cleantes reivindica não é
de todo exata, mas elemento suficiente para legitimar a analogia. Por isso, ao supor que todo o
universo se assemelha com a classe de casas, relógios, máquinas que são criados por seres
inteligentes, por conseguinte, o universo inserido nessa classe permite inferir que sua criação
é fruto de um ser inteligente87
. Filo adverte que essa analogia com casas, relógios e máquinas
84
“that there is an evident absurdity in pretending to demonstrate a matter of fact, or to prove it by any
arguments a priori. (…) Consequently there is no being, whose existence is demonstrable” (DNR IX, p. 74). 85
“By this argument a posteriori, and by this argument alone, do we prove at once the existence of a Deity, and
his similarity to human mind and intelligence” (DRN II, p. 27). 86
“curious adapting of means to ends, throughout all nature, resembles exactly, though it much exceeds, the
productions of human contrivance” DNR II, p. 27. 87
“The universe might so naturally have been chaotic, but it is not – it is very orderly. And then there is the
spatial order of the intricate arrangement of parts in human (and animal) bodies. We have limbs, liver, herat,
kidneys, stomach, sense organs, etc. Of such a kind that, givne the regularities of temporal order, our bodies are
suitable vehicles to provide us with an enormous variety of purposes in it [...]. This is similar to the way in which
parts of machines are arranged so as to produce an overall result from the operation of the machine; though –
so far – machines intentionally constructed by humans are far less intricate than human bodies”
(SWINBURNW, 2004, p. 154).
67
não apresenta nenhum ponto de semelhança que possamos considerar legítima uma analogia,
a menos que os casos sejam exatamente semelhantes. Por isso Filo objeta:
Se ao vermos uma casa, Cleanthes, concluímos, com a maior certeza,
que ela tinha um arquiteto ou construtor; porque é precisamente essa
espécie de efeito que experimentamos proceder dessa espécie de
causa. Mas certamente você não vai afirmar que o universo tem uma
semelhança com uma casa que podemos com a mesma certeza inferir
uma causa similar, ou que a analogia está aqui inteira e perfeita. A
dissimilitude é tão impressionante, que o máximo que você pode aqui
fingir é uma suposição, uma conjectura, uma presunção sobre uma
causa semelhante; E como essa pretensão será recebida no mundo,
deixo-vos a considerar88
.
A crítica de Filo é um ataque direto contra a analogia que fundamenta esse argumento,
não pela perspectiva a posteriori formulada por Cleantes, mas pelo fato de a analogia entre o
universo e uma máquina mostrar-se extremamente tênue e imperfeita (Cf. DNR II, p. 28). Por
isso, uma vez que as semelhanças não são satisfeitas, os elementos dessa analogia legitimam
sua insuficiência para realização de qualquer inferência. Cabe relembrar que a crítica de Filo
ao argumento do desígnio é formulada com base na concepção humeana de causalidade.
Os exemplos dados por Cleantes compara o trabalho do arquiteto na construção de
uma casa com a criação do mundo como efeito do poder criador de uma mente inteligente ou
compara o trabalho de um relojoeiro com o de uma divindade que produz mundos. Segundo
Merril, dentre os referidos exemplos, podemos admitir o conhecimento de um lado dessa
analogia, mas o outro lado nos é praticamente desconhecido (Cf. MERRILL, 2008, p. 92).
Desse modo, podemos nos deparar com consequências aterradoras para os defensores do
teísmo como, por exemplo, pode-se conceber que para construir casas, em geral, necessita-se
de vários trabalhadores, tais como arquitetos, carpinteiros e pedreiros. Por conseguinte,
estaríamos justificados em concluir, por analogia, que o universo foi criado por uma
pluralidade de criadores (ou melhor, divindades).
De acordo com Filo, a dificuldade em conceber essa analogia assenta-se na concepção
do universo como um objeto singular, individual, sem qualquer paralelo ou semelhança com
88
“If we see a house, Cleanthes, we conclude, with the greatest certainty, that it had an architect or builder;
because this is precisely that species of effect which we have experienced to proceed from that species of cause.
But surely you will not affirm, that the universe bears such a resemblance to a house that we can with the same
certainty infer a similar cause, or that the analogy is here entire and perfect. The dissimilitude is so striking, that
the utmost you can here pretend to is a guess, a conjecture, a presumption concerning a similar cause; and how
that pretension will be received in the world, I leave you to consider” (DRN, II, p. 28)
68
as demais espécies. Dessa forma, o debate entre Cleantes e Filo envolve saber se a analogia é
suficientemente forte e contém regras que possam legitimá-la, pois, como coloca Cleantes,
“os efeitos se assemelham uns aos outros, somos levados a inferir, por todas as regras de
analogia, que as causas também se assemelham”89
. Quais regras são essas pelas quais
poderíamos legitimar com exatidão essa analogia implicada no argumento do desígnio? Nas
Investigações há uma explanação dessas regras (EHU XI, 30), que serão, por outras palavras,
corroboradas nos Diálogos por Filo ao afirmar:
Quando duas espécies de objetos surgem sempre conjugados, posso
inferir, pelo costume, a existência de um deles onde quer que eu veja a
existência do outro; e a isto chamo um argumento a partir da
experiência. Mas seria difícil explicar como esse argumento pode ser
aplicado a um caso como o que estamos presentemente considerando,
no qual os objetos são singulares, individuais, sem paralelo ou
semelhança específica90
.
Nesse sentido, Filo quer ressaltar que a analogia tem sua gênese e ganha força através
do raciocínio derivado da experiência constante de eventos distintos, mas por sempre
surgirem conjugados, inferimos por guia do hábito uma conexão causal. Desse modo, essa
perspectiva em que se apoiam os argumentos de Filo, reitera a visão de Hume no Tratado em
que apenas a experiência regular, repetida, frequente ou constantemente conjugada é
suficiente produzir um nexo de causalidade entre dois objetos distintos (Cf. T 1. 3. 6. 3).
Com a pretensão de formular uma crítica contundente, Filo procura argumentar no
“terreno do próprio Cleantes” (Cf. DNR II, p. 29). Nesse sentido, partindo dos princípios
epistemológicos que o aproximam de Cleantes como, por exemplo, a impossibilidade de
determinar, como afirmado por Demea, a existência de Deus de forma a priori, uma vez que
“só a experiência pode apontar a verdadeira causa de qualquer fenômeno”91
. Nesse sentido,
Filo defende que:
a ordem, arranjo ou ajustamento das causas finais não constituem por
si sós quaisquer provas de desígnio, mas somente na medida em que já
89
“the effects resemble each other, we are led to infer, by all the rules of analogy, that the causes also resemble”
(DNR II, p. 30). 90
“When two species of objects have always been observed to be conjoined together, I can infer, by custom, the
existence of one wherever I see the existence of the other; and this I call an argument from experience. But how
this argument can have place, where the objects, as in the present case, are single, individual, without parallel,
or specific resemblance” (DNR II, p. 33). 91
“Experience alone can point out to him the true cause of any phenomenon” (DNR II, p. 30).
69
se tenha constatado pela experiência que eles procedem daquele
princípio. Por tudo que podemos saber a priori, a matéria pode conter
originalmente em si mesma a fonte ou princípio da ordem, tanto
quanto a mente os contém; e não há mais dificuldade em conceber que
os diversos elementos possam, a partir de uma causa interna
desconhecida, produzir a mais extraordinária organização, do que
conceber que as ideias, no interior da grande mente universal, possam
se organizar da mesma maneira, a partir de uma semelhante causa
interna desconhecida92
.
Essa perícope o afasta de Cleantes e destaca outro ponto importante da crítica
realizada por Filo, em que a ordem na natureza seria inerente à matéria que se autoorganiza
estabelecendo seu próprio curso. Essa possibilidade formulada por Filo favorece uma hipótese
alternativa ao argumento de um designer inteligente, que justifica a ordem que encontramos
na observação dos fenômenos. Esta alternativa dada por Filo quer demonstrar, através de
numerosos exemplos de hipóteses cosmogônicas rivais à hipótese do desígnio, que “uma
suspensão integral do juízo é, aqui, nosso único recurso razoável”93
.
Cleantes buscando alternativas às objeções realizadas pela argumentação de Filo,
estrategicamente, oferece os exemplos da voz articulada proveniente das nuvens (Cf. DNR III,
p. 37) e da biblioteca natural (Cf. DNR III, p. 38), pois tais exemplos corroboram a
sustentação da analogia implicada no argumento do desígnio.
Cleantes pede a Filo, no primeiro exemplo, que considere uma voz articulada
proveniente das nuvens, que se sobrepõe as vozes humanas, e que todas as nações
compreendem independentemente de sua língua ou dialeto e seu conteúdo transmite
recomendações dignas de um Ser poderoso (Cf. DNR III, p. 37-38). De acordo com esse
exemplo dado por Cleantes, a partir dessa voz poderosa, supomos que ela contém um desígnio
ou propósito, pois através da observação da ordem no mundo e da curiosa adaptação dos
meios aos fins chegamos à conclusão de que tais fenômenos são causados por um desígnio. A
construção desse exemplo pretende concluir que podemos manter o grau de analogia a partir
da experiência de efeitos similares, assim, mesmo que não tenhamos nenhum exemplo de uma
92
“that order, arrangement, or the adjustment of final causes, is not of itself any proof of design; but only so far
as it has been experienced to proceed from that principle. For ought we can know a priori, matter may contain
the source or spring of order originally within itself as well as mind does; and there is no more difficulty in
conceiving, that the several elements, from an internal unknown cause, may fall into the most exquisite
arrangement, than to conceive that their ideas, in the great universal mind, from a like internal unknown cause”
(DNR II, p. 30). 93
“A total suspense of judgment is here our only reasonable resource” (DNR VIII, p. 71).
70
voz com as características da que provém das nuvens, nem de sua fonte, temos a experiência
da origem dos discursos articulados. No entanto, objeta Filo, esse exemplo não obedece ao
princípio de causa e efeito, pelo qual julgamos os fenômenos da natureza, pois nesse caso não
há experiência da repetição, de uma conjunção constante, isto é, não há um exemplo análogo.
De acordo com a interpretação de Morris, esse exemplo não ilustra situações
concretas, devendo ser visto como construção especulativa da metodologia experimental
admitida por Cleantes. Desse modo, esses exemplos podem ser não apenas irrelevantes, mas
também inconsistentes. No entanto, assegura Morris, esse exemplo torna-se relevante e
apropriado quando acena para uma estratégia elaborada por Hume para legitimar as críticas de
Filo (Cf. MORRIS, 2010, p. 5).
No segundo exemplo, Cleantes solicita a Filo que “suponha a existência de uma
linguagem natural, universal e invariável, comum a todo indivíduo da raça humana; e que
livros são produtos naturais que se perpetuam da mesma maneira que os animais e vegetais,
isto é, por descendência e propagação”94
. Nesse contexto, fica patente a defensa da hipótese
de que “a anatomia de um animal fornece exemplos mais fortes de desígnio”95
, pois através da
observação da anatomia de um animal podemos vislumbrar a organização e ajuste entre suas
partes, bem como uma cuidadosa adaptação dos meios aos fins. Através desse exemplo,
Cleantes pretende reforçar a ideia de que a ordem e os ajustes percebidos na natureza são
realizados em virtude de um Ser inteligente.
Apesar de logicamente irregular, Cleantes recorre ao exemplo persuasivo, que
podemos designar como um critério de força natural a favor do argumento do desígnio96
,
quando afirma:
Considere, analise o olho; examine sua estrutura e seu plano, e diga-
me, a partir de seu próprio sentimento, se a ideia de um planejador não
lhe ocorre imediatamente, com tanta força quanto aquela da sensação.
94
“Suppose that there is a natural, universal, invariable language, common to every individual of human race;
and that books are natural productions, which perpetuate themselves in the same manner with animals and
vegetables, by descent and propagation” (DNR III, p. 38). 95
“The anatomy of an animal affords many stronger instances of design” (DNR III, p. 39). 96
O argumento de Cleanthes que propõe como critério a força natural a favor do argumento do desígnio é um
tópico que inevitavelmente remete às teorias de Hume sobre crenças religiosas (tema central da História Natural
da Religião). Ressaltamos que o propósito da História é examinar somente as origens da religião na natureza
humana, e não seus fundamentos na razão (tema dos Diálogos). Neste contexto, ele nos diz que tal inclinação
pode e deve ser controlada, e não pode ser um legítimo fundamento para aprovação (Cf. DNR, p. 39), pois “a
crença num poder invisível e inteligente não seja tão universal a ponto de não admitir nenhuma exceção” (NHR,
p. 134). Por isso, a inclinação, a propensão da mente em direção ao argumento do desígnio fosse mesmo
irresistível, não haveria tantos céticos, ateus e agnósticos.
71
A mais óbvia conclusão seguramente é em favor do desígnio; e se
requer tempo, reflexão e estudo para coletar todas essas frívolas, ainda
que abstrusas objeções que podem dar apoio à descrença97
.
Para Filo, a anatomia dos animais como dos homens certamente nos sugere um forte
exemplo do desígnio, pois é concebível para a subsistência de ambos uma cooperação com a
natureza. Entretanto, dificilmente, poderíamos conceber que os ajustes das partes com o todo
possam servir de evidência para a justificação do desígnio. Assim como no exemplo da voz
articulada proveniente das nuvens e na biblioteca natural, segundo assegura Smith, Hume
prepara o caminho para os contra-argumentos de Filo (Cf. SMITH, 1988, p. 103).
Filo admite, a partir dos próprios argumentos elaborados por Cleantes através de seus
exemplos, que semelhanças presentes na observação entre o princípio dos animais e vegetais
com o princípio do mundo sugere uma boa analogia. Dessa forma, a semelhança entre ambos
os princípios são reveladas por meio de uma ordem, mas, como destaca Filo, esta não é
suficiente para explicar a hipótese de um desígnio ou propósito de um designer,
diferentemente do proposto por Cleantes. Nesse contexto, pode-se afirmar, com base nos
argumentos elaborados por Filo, que o argumento do desígnio não impede de se ter uma causa
material e não inteligente para a ordem observada no mundo.
Diante os argumentos apresentados nos Diálogos, observamos que Filo alvidra uma
hipótese de que a ordem relaciona-se com a corrupção e degeneração da matéria originada de
uma causa desconhecida ou uma causa intrínseca à própria matéria. Essa hipótese surge da
pretensão de se ter uma alternativa ao argumento do desígnio e que ao mesmo tempo seja
justificado epistemologicamente. Por essas questões, Filo passa a observar como outras partes
do mundo se ordenam:
Basta apenas que você olhe ao seu redor para obter a resposta a
essa questão. Uma árvore confere ordem e organização a outra
árvore que dela procede sem ter qualquer conhecimento dessa
ordem. O mesmo ocorre a um animal em relação à sua prole, e a
um pássaro em relação a seu ninho; e casos dessa espécie são até
97
“Consider, anatomize the eye; survey its structure and contrivance; and tell me, from your own feeling, if the
idea of a contriver does not immediately flow in upon you with a force like that of sensation. The most obvious
conclusion, surely, is in favour of design; and it requires time, reflection, and study, to summon up those
frivolous, though abstruse objections, which can support Infidelity” (DNR III, p. 39).
72
mais frequentes no mundo do que aqueles em que a ordem surge da
razão e do artifício98
.
Acerca da hipótese formulada por Filo, a análise de Gaskin afirma que ele adota essa
sugestão como a mais plausível entre um grupo de teorias que ele rejeita, a saber, aquelas que
defendem que podemos inferir o todo por intermédio da experiência que temos das partes (Cf.
GASKIN, 1993, p. 48). Essa alternativa, como prevê Filo, tem a possibilidade de ser
facilmente objetada por Cleantes, uma vez que seria “fácil supor que todos os homens e
animais, sendo mais numerosos e menos perfeitos, tenham brotado sem intermediação de uma
origem semelhante”99
. Poderíamos concluir, a partir da consideração dessa hipótese, que
“uma sociedade de numerosas Deidades é tão explicável quanto uma única Deidade universal
que possua em si mesma os poderes e perfeições daquela sociedade como um todo”100
.
Cleantes afirma que os argumentos elaborados por seu adversário não passam do
resultado da liberdade contida na imaginação que “pode nos confundir, mas jamais nos
convencer”. Entretanto, Filo contesta essa posição afirmando que tais argumentos surgem da
própria natureza, uma vez que “centenas de perspectivas contraditórias podem preservar um
tipo de analogia imperfeita e a inventividade tem um amplo campo para se exercer”101
. Desse
modo, dentre os inúmeros tipos de sistemas defendidos e hipoteticamente apresentados,
podemos considerar que a posição de Filo consiga justificar a natureza de um Ser superior.
Com base nas considerações apresentadas, na parte VIII dos Diálogos, Filo
desenvolvendo uma hipótese cosmogônica afirma que podemos pressupor que a matéria a
partir do seu movimento e das suas ininterruptas alterações possa sugerir que ela seja seu
agente motor, dispensando uma intervenção externa (Cf. DNR VIII, p. 86). Essa nova
hipótese cosmogônica defende que os movimentos da natureza podem ter sua gênese na
própria matéria, como percebemos nos fenômenos da elasticidade, gravidade e eletricidade,
uma vez que tais movimentos possam ter sido gerados a partir de um impulso inicial,
afirmamos: “o início do movimento na própria matéria é a priori tão concebível quanto sua
98
“A tree bestows order and organization on that tree which springs from it, without knowing the order; an
animal in the same manner on its offspring; a bird on its nest; and instances of this kind are even more frequent
in the world than those of order, which arise from reason and contrivance” (DNR VII, p. 64). 99
“easy to suppose all men animals, beings more numerous, but less perfect, to have sprung immediately from a
like origin” (DNR VI, p. 59). 100
“a numerous society of deities as explicable as one universal deity, who possesses within himself the powers
and perfections of the whole society” (DNR VI, p. 59). 101
“a hundred contradictory views may preserve a kind of imperfect analogy; and invention has here full scope
to exert itself” (DNR VIII, p. 67).
73
comunicação a partir da mente e da inteligência”102
. Por isso, podemos destacar que não é
necessário supor que cada movimento particular da matéria seja ocasionado pela mente e
inteligência de um designer (Cf. DNR VIII, p. 87). Nesse sentido, cabe ressaltar que:
O movimento incessante da matéria deve, portanto, em um número
infinito de transposições, chegar a produzir essa ordem ou
organização; e essa ordem, uma vez estabelecida, deve se
autossustentar, pela sua própria natureza, ao longo de muitas era ou
mesmo da eternidade. Ora, onde quer que a matéria se equilibre,
arranje ou ajuste de modo a preservar, apesar de seu contínuo
movimento, uma constância nas formas sua disposição deverá
necessariamente apresentar a mesma aparência de arte e engenho
que presentemente observamos103
.
Entendemos, com isso, que a movimentação inerente à matéria é de forma contínua e
constante e, por sua vez, não necessita de um ente que a impulsione (Cf. DNR VIII, p. 68).
Sendo assim, o ajuste perfeito e harmonioso da matéria depende estritamente de suas partes.
A ideia elaborada por Filo se contrapõe ao argumento do desígnio, uma vez que transfere para
a matéria a responsabilidade por sua existência, ressaltando a correlação entre os organismos.
Seguindo esse fio condutor, Filo afirma, “uma falha em quaisquer desses aspectos destrói a
forma”104
e, poderíamos supor uma degradação da matéria caso não houvesse movimentação
da mesma, a menos que “... venha a unir-se a alguma outra forma regular”105
. Entretanto,
podemos notar que há um ajuste perfeito e harmonioso tendo em vista “... que as partes do
mundo estão tão bem ajustadas que uma forma regular se apropriaria imediatamente dessa
matéria corrompida”106
.
Diante desse quadro, devemos nos perguntar se a hipótese apresentada por Filo seria
capaz de atribuir um caráter completamente distinto das alternativas apresentadas nos
Diálogos, como, por exemplo, o argumento do desígnio apresentado por Cleantes. Nesse
sentido, levando em conta que essa hipótese não seja considerada como absurda e nem
102
“The beginning of motion in matter itself is as conceivable a priori as its communication from mind and
intelligence” (DNR VIII, p. 68). 103
“The continual motion of matter, therefore, in less than infinite transpositions, must produce this economy or
order; and by its very nature, that order, when once established, supports itself, for many ages, if not to eternity.
But wherever matter is so poised, arranged, and adjusted, as to continue in perpetual motion, and yet preserve a
constancy in the forms its situation must, of necessity, have all the same appearance of art and contrivance
which we observe at presente” (DNR VIII, p. 68). 104
“A defect in any of these particulars destroys the form” (DNR VIII, p. 68). 105
“... till it unite itself to some other regular form” (DNR VIII, p. 68). 106
“... that the parts of the world are so well adjusted, that some regular form immediately lays claim to this
corrupted matter” (DNR VIII, p. 70).
74
improvável (Cf. DNR III, p. 38), como afirma Filo a respeito de sua alternativa, no entanto
necessariamente deve ser analisada com cautela. Cabe relembrar que o intuito de Filo é
desestabilizar o argumento do desígnio apresentado por Cleantes, pois acredita que ele não
contém elementos razoáveis que justifiquem a existência de uma Divindade. Por isso, de
acordo com Filo, a atitude mais prudente e recomendável frente às alternativas seria o
ceticismo, pois “todos eles, em conjunto, preparam um triunfo completo para o cético, que
lhes diz que nenhum sistema deve jamais ser abraçado em relação a este assunto: por esta
simples razão que nenhum absurdo deveria jamais ser admitido em relação a qualquer
assunto”107
.
Essa hipótese quer sugerir que não devemos buscar explicações transcendentes para
justificar a experiência de causalidade entre os fenômenos da natureza, uma vez que ela é
fruto do hábito108
. Contudo, assegura Filo, mesmo que abandonássemos por completo a
perspectiva de Cleantes, deveríamos, ao menos, admitir um princípio originário
impulsionador da matéria. De acordo com essa perspectiva, Oppy (Cf. OPPY, 1996, p. 521) e
Dennett109
ressaltam que o objetivo de Hume, através da hipótese apresentada Filo, é de
desestabilizar o argumento do desígnio de Cleantes, adiantando, ainda que de modo sumário,
um caminho para o princípio da seleção natural de Darwin. Portanto, devemos analisar
cuidadosamente essa hipótese que não pode ser, de acordo com Filo, caracterizada como
absurda ou improvável (Cf. DRN III, p. 43).
A partir da hipótese levantada por Filo, devemos considerar, em primeiro lugar, que o
mundo não está entregue ao caos, uma vez que através da observação podemos observar certa
regularidade na natureza. Em segundo lugar, em consonância com a anterior, podemos admitir
que a ordem observada entre os fenômenos da natureza prescinde de um princípio regulador,
107
“But all of them, on the whole, prepare a compleat triumph for the Sceptic; who tells them, that no system
ought ever to be embraced with regard to such subjects: for this plain reason, that no absurdity ought ever to be
assented to with regard to any subject” (DNR VIII, p. 71). 108
Filo afirma que “em todos os casos que presenciamos o pensamento não tem influência sobre a matéria, salvo
naqueles em que a matéria está de tal modo conjugada ao pensamento, a ponto de exercer igualmente uma
influência recíproca sobre ele” (DNR VIII, p. 71). 109
De acordo com a perspectiva apresentada por Dennett, Hume, através de Filo, como forma de desestabilizar o
argumento do desígnio, adiantaria algumas ideias de Darwin. Na parte XII dos Diálogos, argumenta Dennett,
Filo admite que ainda que abandonássemos a hipótese de Cleantes teríamos que nos contentar com a ideia de um
princípio regulador originário. No entanto, é exatamente esta noção, assegura Dennett, que deve ser abandonada.
Mas Hume não irá abandonar esta ideia, uma vez que não dispõe de alternativa e pela complexidade em torno
deste argumento, sustenta Dennett, é razoável que tenha deixado a questão em aberto, que ulteriormente seria
respondida por Darwin. (Cf. DENNETT, 1995, p. 26-27).
75
gerador de harmonia. Nesse contexto, encaixa-se a afirmação de Filo acerca dessa hipótese:
“O acaso não pode ter lugar em qualquer hipótese, cética ou religiosa”110
.
Tanto Gaskin111
como Sessions112
admitem que não há dúvidas de que as hipóteses
elaboradas por Filo tenham a pretensão de desqualificar o argumento do desígnio. Dessa
forma, através da experiência de ordem no mundo podemos cogitar da possibilidade da
existência de um ordenador dos fenômenos naturais, distintamente das crenças teístas que
privilegiam a noção de um ordenador intervencionista. A preocupação com essa hipótese,
assegura Zilles, não reside na existência ou não de um princípio ordenador, mas sobre na
precariedade dos elementos que possam justificar sua natureza113
. Nesse sentido, Zilles assim
comenta essa questão:
Na verdade, não se consegue mostrar pela razão nem pela
experiência que existe uma causa espiritual da ordem no Universo
ou que este necessita de tal. Segundo Filo, desconhecemos tanto a
natureza quanto a essência do mundo. Por isso não se pode
fundamentar uma explicação do mundo a partir do conceito de
Deus, nem a partir do próprio mundo. Nem pela razão nem pela
experiência se pode mostrar que uma causa espiritual da ordem no
universo por sua vez não necessite de outra causa (ZILLES, 2009,
p. 02).
A visão apresentada por Zilles corrobora os argumentos de Filo segundo os quais nem
a razão nem a experiência conseguem justificar a causa da origem do universo a partir da
observação da ordem e harmonia em que, de modo curioso, as partes de adaptam ao todo.
Desse modo, a aparência da relação causal presente na ordem do mundo não legitimam as
inferências sobre sua causa primeira e original. Poderíamos, assim, supor uma causa
originária para todos os elementos da natureza, mas pelas razões expostas nos argumentos de
Filo, não podemos inferir que elas são causadas por um Deus que possui qualidades e
intenções morais.
O último e decisivo recurso elaborado por Filo para demonstrar a fragilidade dos
exemplos expostos por Cleantes expõe que o argumento do desígnio não oferece bases sólidas
que justifiquem a existência de um Deus como ser de infinito poder, justiça e bondade diante
110
“Chance has no place, on any hypothesis, sceptical or religious” (DNR VI, p. 76). 111
Cf. GASKIN, 1993, p. 36-39. 112
Cf. SESSIONS, 1993, p. 131. 113
Cf. DNR XI, p. 124.
76
da existência do mal amplamente observado no mundo114
. Sem dúvida, a problemática da
conciliação entre a experiência do mal ou sofrimento constatado no mundo e sua
incompatibilidade com a existência de Deus torna-se um tópico decisivo para Filo contestar o
argumento do desígnio.
Os argumentos de Filo que tratam do problema do mal são elaborados nos Diálogos
através das “velhas questões de Epicuro”. Essa expressão é utilizada por Filo na apresentação
do dilema entre a existência de um Deus bondoso e a presença de males no mundo:
As velhas questões de Epicuro permanecem ainda sem resposta. A
Divindade quer evitar o mal, mas não é capaz disso? Então, ela é
impotente. Ela é capaz, mas não quer evitá-lo? Então, ela é malévola.
Ela é capaz de evitá-lo e quer evitá-lo? De onde então provém o
mal?115
O problema formulado por Filo parte de uma inconsistência lógica gerada pela
existência concomitante de Deus, apresentado como onipotente e absolutamente bom, e a
presença dos males no mundo. Nesse caso, de imediato, admoesta Mackie, surge uma
contradição lógica, pois a verdade de uma declara a falsidade da outra (MACKIE, 1955, p.
202). Para tentar solucionar essa questão abrem-se diversas alternativas como a restrição da
onipotência divina, do mal como ilusão (privação de bem), do mal como uma desordem não
compreendida e outros ainda aventam a hipótese de que Deus permite a existência do mal
como necessário para a liberdade humana.
Filo sustenta que a concepção da hipótese do mundo como algo planejado e criado por
Deus de suma bondade, sabedoria e poder, só é concebível por total desconhecimento dos
males naturais e morais. Em outras palavras, ao supor que um homem esteja convencido da
“existência de uma inteligência suprema, benevolente e poderosa, mas é deixado a adquirir tal
crença a partir da aparência das coisas (...), ele jamais encontrará qualquer razão que dê apoio
a tal conclusão”116
. Pode-se aventar a hipótese de que Hume, através dos argumentos descritos
114
Storig sublinha que essa alternativa exposta por Filo relaciona-se estreitamente com as questões religiosas
suscitadas pelas religiões do contexto histórico em que Hume está inserido. Por isso afirma: “As terríveis
desordens das guerras religiosas que a Inglaterra tinha influenciaram estas ideias de Hume” (STORIG, 2008, p.
309). 115
“Epicurus’s old questions are yet unanswered. Is he willing to prevent evil, but not able? then is he impotent.
Is he able, but not willing? then is he malevolent. Is he both able and willing? whence then is evil?” (DNR X, p.
84). 116
“convinced of a supreme intelligence, benevolent and powerful, but is left to gather such a belief from the
appearances of things; this entirely alters the case, nor will he ever find any reason for such a conclusion”
(DNR XI, p. 90).
77
por Filo, queira refutar a existência de Deus. No entanto, não nos parece que a intenção de
Filo com essa hipótese seja provar a inexistência de Deus, mas demonstrar a fragilidade do
argumento do desígnio mostrando a insuficiência, nesse caso, entre a experiência dos males
no mundo com os atributos de poder e bondade da divindade. Em suma, a proposta de Filo
não conclui que a benevolência não seja um atributo da divindade em razão da
impossibilidade de inferirmos a existência de um ser benevolente e, concomitantemente,
conceber a existência do mal no mundo117
. Essa perspectiva é corroborada pela Investigação
quando Hume afirma:
Que a divindade pode ser dotada de atributos que nunca vimos
exercerem-se; que talvez seja governada por princípios de ação
inacessíveis à nossa pesquisa – tudo isso será prontamente admitido.
Não impede, porém, que se trate aqui de uma simples possibilidade ou
hipótese. Jamais teremos motivos para inferir quaisquer atributos ou
princípios de ação nela, a não ser na medida em que saibamos terem
sido exercidos e satisfeitos (EHU XI, 113).
Essa perícope ressalta a posição de Filo que não temos razões que justifiquem inferir a
existência de um Ser bondoso a partir dos males do universo. Nesse sentido, a partir da
objeção de Cleantes sugerindo que possamos admitir uma finitude dos poderes divinos, uma
vez que poderia ao menos através de sua força e poder remediá-los, mesmo assim o
sofrimento humano torna-se um obstáculo à concepção de um Deus benevolente (Cf. DNR
XI, p. 97). Por isso, o argumento do desígnio partindo da observação da ordem no mundo
pode nos indicar a existência de um Ser inteligente como sendo necessário (Cf. EHU VIII,
78), mas, por outro lado, seus elementos são insuficientes para apontar sua natureza bem
como qualquer caráter moral118
, como diz Filo, não chegamos a nada, exceto à ideia de uma
natureza cega (Cf. DNR XI, p. 97).
De acordo com essa linha de raciocínio, podemos observar que nos Diálogos a questão
do mal resulta numa hipótese oferecida por Filo que sugere uma indiferença moral daquele
117
Essa proposta expressa por Filo nos Diálogos é uma retomada da crítica de Hume nas Investigações ao tratar
da temática da liberdade, necessidade e responsabilidade moral: “Há muitos filósofos que, após um exame
rigoroso de todos os fenômenos da natureza, concluem que o TODO, considerado como um sistema só, é, em
todos os períodos da sua existência, ordenado com perfeita benevolência; e que para todos os seres criados
resultará finalmente a maior felicidade possível, sem nenhuma mistura de mal ou de infortúnio positivo ou
absoluto” (EHU VIII, 79). 118
Para as crenças teístas, a experiência de ordem suscita uma teleologia moral no ajuste e na composição do
universo, no entanto, objeta Cruz: “A refutação dos atributos morais da divindade seria a pá de cal definitiva no
teísmo. O argumento de Philo é, grosso modo, o de que a ideia da finalidade moral não resiste à evidência do
mal, a menos que estejamos predispostos a conceber os atributos morais da divindade” (CRUZ, 2001, p. 58-59).
78
que é tido como causa primeira e original de todas as coisas. Desse modo, dada a observação
do mal presente no mundo e, concomitantemente, a crença teísta de um Deus benevolente e
justo como causa de todas as coisas somos levados a concluir que esse Ser é moralmente
indiferente aos acontecimentos que ocorrem no mundo, por isso “não tem o bem em maior
estima que o mal, assim como não lhe importa o calor sobre o frio, a aridez sobre a umidade
ou a leveza sobre o peso”119
.
Essa alternativa elaborada por Filo, sublinha Pike, corrobora com a postura cética de
Hume, uma vez que tem como finalidade reforçar a tese de que a observação do mal e do
sofrimento no mundo obstrui a possibilidade de conhecermos a Deus através do argumento do
desígnio defendido por Cleantes.
Entretanto, após inúmeros debates dos principais personagens dos Diálogos,
estranhamente, por meio de uma linguagem imprecisa, indefinida e vaga, Filo parece
reconhecer a tese de Cleantes ao afirmar:
se o todo da teologia natural se resolve (...) numa simples, embora de
algum modo ambígua ou ao menos indefinida proposição de que a
causa ou as causas da ordem no universo provavelmente mantêm
alguma remota analogia com a inteligência humana; se esta
proposição não é capaz de extensão, variação, ou uma explicação mais
particular; se ela não fornece nenhuma inferência que afeta a vida
humana, nem pode ser a fonte de qualquer ação ou abstenção; e se a
analogia, imperfeita como ela é, não pode ser conduzida para além da
inteligência humana, nem pode ser transferida com qualquer aparência
de probabilidade às outras qualidades da mente; se este é realmente o
caso120
Devemos ressaltar a presença dos termos “provavelmente” e “remota” querem apontar
para mais uma hipótese formulada por Filo. Aliás, toda essa perícope pode ser caracterizada
como hipotética e pretende gerar, ironicamente, uma aparente conversão de Filo às teses
teístas. Entretanto, para que se possa compreender a verdadeira posição de Hume necessita-se
atenção às entrelinhas das quais pode emergir. Nesse sentido, O’Connor sublinha que
119
“no more regard to good above ill, than to heat above cold, or to drought above moisture, or to light above
heavy” (DNR XI, p. 97) 120
“If the whole of Natural Theology, as some people seem to maintain, resolves itself into one simple, though
somewhat ambiguous, at least undefined proposition, That the cause or causes of order in the universe probably
bear some remote analogy to human intelligence: if this proposition be not capable of extension, variation, or
more particular explication: if it affords no inference that affects human life, or can be the source of any action
or forbearance: and if the analogy, imperfect as it is, can be carried no further than to the human intelligence,
and cannot be transferred, with any appearance of probability, to the qualities of the mind; if this really be the
case” (DNR XII, p. 113)
79
devemos desconfiar desse aparente recuo de Hume, pois através de uma fina ironia objetiva
afigurar-se um inimigo das crenças teístas de menor proporção do que de fato é (Cf.
O’CONNOR, 2001, p. 195).
Devido à grandeza e obscuridade proposta por essa temática, o homem inseguro em
virtude da carência de uma resposta satisfatória sobre a sua origem e das demais coisas pode
sofrer certa angústia uma vez “que não pode dar uma solução mais satisfatória com relação a
uma questão tão extraordinária e magnificente”. Nessas circunstâncias, Filo afirma que:
(...) o sentimento mais natural que um espírito bem-disposto
experimentará nessas ocasiões, é o de um ardente desejo e expectativa
de que o Céu se digne a dissipar ou, ao menos, aliviar, essa profunda
ignorância, fornecendo alguma revelação mais específica à
humanidade, proporcionando, assim, descobertas da natureza,
atributos e operações do divino objeto de nossa Fé121
.
Cabe ressaltar, através dos argumentos de Filo, os claros limites do entendimento
humano como elemento para se compreender uma sentença colocada na primeira parte dos
Diálogos: “somos como forasteiros numa terra estranha, na qual tudo parece suspeito”122
.
Diante desses limites, muitos homens deixam-se guiar pelas mais frívolas crenças religiosas
que asseguram de forma pia que o céu lhe revele esse Deus no qual ele deposita sua crença
bem como todos os seus atributos tradicionais. Nesse sentido, assinala Tilley: “quando um
homem é deixado na frustrante posição de ser incapaz de resolver o problema da natureza dos
deuses, é ‘natural’ que ele deseje ardentemente uma revelação” (TILLEY, 1988, p. 718).
Portanto, podemos afirmar que os perigos das religiões, referindo-se as crenças teístas
defendida através do argumento do desígnio, são os saltos dados pelas inferências que se
baseiam na regularidade causal observada no mundo. Sendo assim, as provas a posteriori nas
quais que baseiam o argumento defendido por Cleantes ferindo a lógica das regras do
conhecimento humano, fundamentadas na experiência, não conseguem justificar a crença da
existência de Deus e seus atributos.
Ademais, a partir das investigações deste capítulo, chama-nos a atenção a preocupação
de Hume com as religiões reveladas, pois, em sua maioria, em nada se relacionam com as
crenças naturais dos homens obtidas pela constante observação da regularidade que os
121
“the most natural sentiment which a well‐disposed mind will feel on this occasion, is a longing desire and
expectation that Heaven would be pleased to dissipate, at least alleviate, this profound ignorance, by affording
some particular revelation to mankind, and making discoveries of the nature, attributes, and operations of the
Divine object of our faith” (DNR XII, p. 113). 122
“We are like foreigners in a strange country, to whom everything must seem suspicious” (DNR I, p. 20).
80
fenômenos da natureza se apresentam. Nesse sentido, diversas religiões, para fortalecerem
seus dogmas e responderem aos anseios mais profundos dos homens quanto à sua existência,
servem-se das mais fortes formas de caráter sobrenatural como as crenças em milagres. Desse
modo, a questão dos milagres insere-se, como nota Tasset, na dificuldade de conciliar os
relatos acerca da existência de milagres e com a plausibilidade das justificativas racionais (Cf.
TASSET, 2005, p. 33). A busca da solução dessa problemática, inserida no quadro das
crenças teístas, será a temática investigada no capítulo subsequente.
Capítulo III - A POSSIBILIDADE DOS MILAGRES
Neste capítulo, temos como escopo a investigação da seção X, da Investigação sobre o
entendimento humano, intitulada “Dos Milagres”, de David Hume. Nesta primeira seção, nos
dedicaremos à investigação da problemática acerca dos milagres. Será abordada a partir de
dois problemas centrais bem destacados por Hume: (a) é possível averiguar a ocorrência de
um milagre; e (b) podemos justificá-lo a partir do testemunho de seres humanos no que
afirmam ser manifestações de milagres.
Nesse contexto, para podermos analisar a primeira problemática, buscaremos mostrar
como Hume desenvolve, por meio da perspectiva causal, a discussão a respeito de se é ou não
possível a ocorrência de milagres e a crença neles, uma vez que são definidos pelo autor como
“violação das leis da natureza”. Levando em consideração a natureza empirista da filosofia
humeana, podemos afirmar que os milagres são consequência de uma descontinuidade causal
criada pela metafísica, instaurada na mente humana pelo hábito de uma conexão necessária
entre os fenômenos.
Por conseguinte, na abordagem da segunda problemática, a análise perpassa pelo
testemunho dos homens, que ocupa posição central neste ensaio. Acerca do testemunho,
afirma Hume, devemos levar em consideração várias circunstâncias que levaram o homem a
julgar esse fenômeno como um milagre, bem como o caráter, a quantidade e o modo como os
testemunhos são apresentados. Nesse sentido, conclui Hume acerca do testemunho que “...
nenhum testemunho é suficiente para estabelecer um milagre, a menos que (...) a falsidade
desse testemunho seja mais milagrosa que o fato que se pretende estabelecer”. Sendo assim,
pretendemos, com um breve relato da história de Joana D’Arc, ilustrar o posicionamento de
Hume acerca da questão dos testemunhos e sua finalidade.
Para engrandecer essa discussão levaremos em conta os comentários de renomados
estudiosos, como Folegin e Flew, sobre a questão humeana dos milagres. E, por fim, a partir
dos argumentos elaborados por Hume na seção X, buscaremos compreender se Hume
professa alguma crença religiosa em virtude de entendermos que alguns parágrafos parecem
abrir espaço para questões de fé e de revelação.
82
3.1 A questão dos milagres e do uso dos testemunhos
Considerando que os acontecimentos denominados miraculosos são atribuídos a Deus,
inúmeras doutrinas religiosas fundamentam-se neles para a explicação da existência Divina e
para justificarem suas doutrinas (Cf. EHU X, 86). Nesse caso, os argumentos humeanos
apresentados na seção X da Investigação, analisados à luz da perspectiva causal, sugerem o
questionamento sobre a possibilidade dos eventos considerados miraculosos poderem
legitimar a crença na existência de Deus.
Para que possamos investigar a possibilidade do conhecimento da existência de Deus
por intermédio dos milagres, devemos, primeiramente, considerar o que Hume entende por
milagre e quais as condições de sua existência. Nesse sentido, são elucidativas as palavras de
Hume:
Um milagre é uma violação das leis da natureza; e, como essas leis
foram estabelecidas por uma experiência firme e inalterável, a prova
contra um milagre, pela própria característica do fato, é tão completa
quanto o pode ser qualquer argumento extraído da experiência. (...)
Nenhuma coisa que tenha ocorrido alguma vez no curso ordinário da
natureza é jamais considerada como um milagre. (...). Deve, portanto,
haver uma experiência uniforme contra todo fato milagroso, de outra
forma ele não merecia tal designação. E, como uma experiência
uniforme equivale a uma prova, temos aqui uma prova direta e cabal,
baseada na própria natureza do fato, contra a existência de qualquer
milagre; e uma tal prova não pode ser destruída, nem o milagre tornar-
se digno de crédito, senão por uma evidência contrária e que lhe seja
superior (EHU X, 90).
Considerando a perícope extraída da Investigação, podemos ressaltar dois pontos que
caracterizam o entendimento de Hume acerca dos milagres. No primeiro ponto, parte-se do
pressuposto de que os milagres são caracterizados como eventos que violam as leis da
natureza. No entanto, a segunda parte, por considerar as premissas causais como leis da
natureza, a ponto de a crença na existência de milagres resultar numa eventual prova direta e
cabal, uma vez que habituada a uma conexão causal, a mente humana espera que todos os
efeitos sigam necessariamente sua suposta causa.
Outra questão que está intimamente relacionada com os milagres são os relatos de
testemunhas para justificar a existência de um fato miraculoso. Nesse sentido, Hume pensa
83
que se deve esperar com a devida cautela a reunião das evidências empíricas, pois, mesmo
não sendo infalíveis, são o guia exclusivo dos raciocínios sobre as questões de fato. A crença
regulada pela evidência fará com que o homem proceda com indispensável preocupação, pois,
como pondera Hume, “pesa os experimentos contrários; examina qual das alternativas se
apoia em maior número de experimentos; e para esse lado que se inclina, com dúvida e
hesitação; e quando finalmente fixa o seu juízo, a evidência não ultrapassa o que propriamente
chamamos de probabilidade” (EHU X, 87). Portanto, por nossos raciocínios se assentarem
sobre a probabilidade, devemos pressupor que exista na possibilidade oposta aos
experimentos outrora observados.
O testemunho de uma ou mais pessoas fundado na experiência passada de um
acontecimento extraordinário em relação ao curso normal da natureza, reivindica ser uma
prova cabal da violação das leis que regem a natureza. No entanto, trata-se da problemática
que se situa entre uma espécie particular de um relato e a constância da natureza. Nessas
circunstâncias, o homem deve proceder com cautela. Nesse sentido, Hume afirma que, “pesar
os experimentos opostos, quando são tais, e deduzir o número do maior para conhecer a força
exata da evidência superior” (EHU X, 87). Com isso, a confiança que depositamos no
testemunho das pessoas pode variar em relação aos fatos que são costumeiramente
observados, pois quando corroboram a percepção outrora experimentada servem de prova, de
outro modo, quando são dissociados recebem a classificação de milagres. Nesse contexto,
entendemos as palavras de Hume no Tratado quando afirma:
Não há fraqueza mais universal e manifesta na natureza humana que
aquilo que comumente chamamos de CREDULIDADE, ou seja, uma
fé demasiadamente fácil no testemunho alheio. Essa fraqueza também
se explica, de modo muito natural, pela influência da semelhança.
Quando admitimos uma questão de fato, baseados no testemunho dos
homens, nossa fé tem exatamente a mesma origem que nossas
inferências de causas a efeitos e de efeitos a causas. Somente nossa
experiência dos princípios que governam a natureza humana pode nos
assegurar da veracidade dos homens (T 1, 3, 9, 12).
Todo o conhecimento histórico e filosófico adquirido pelo homem resulta dos relatos
de testemunhas, que, por sua vez, estão assentados no acúmulo e crivo da evidência empírica
(Cf. T 1, 3, 13, 6). Estando o homem habituado com a sucessão dos acontecimentos, o milagre
deve ser visto como um fato único, irrepetível na história da humanidade e, em certo sentido,
84
não contém justificativa racional ou psicológica que explique sua existência ou do testemunho
a seu favor.
Se a memória não mostrasse um certo grau de tenacidade; se os
homens não se inclinassem comumente pela verdade e por um
princípio de probidade; se não fossem sensíveis à vergonha quando
surpreendidos a mentir – se a experiência, digo eu, não mostrasse que
essas são qualidades inerentes à natureza humana, jamais
depositaríamos a menor confiança no testemunho de nosso próximo.
Um homem presa de delírio, ou conhecido pela mendacidade e pela
baixeza de caráter, não tem autoridade alguma junto de nós (EHU X,
88).
Podemos verificar a partir das experiências passadas, quando nos deparamos com
circunstâncias contrárias que nos causam embaraço, que o padrão que servirá de guia do juízo
será acompanhado pela constância da experiência. Por isso, Hume afirma que “... quando
descobrimos uma superioridade de um dos lados, inclinamo-nos para ele, mas sempre com
um decréscimo de segurança, proporcionalmente à força do seu antagonista” (EHU X, 88). A
regularidade provocada pela constante observação do curso da natureza dispõe o espírito
humano a inclinar-se para as circunstâncias mais prováveis, pois o critério mais prudente é
aquele que se assemelha à frequência que temos observado os fatos.
Em conformidade com a natureza humana, que tende a esperar que a regularidade dos
eventos observados mantenha sua constância, de maneira paralela ocorre com os relatos
empreendidos pelos testemunhos, nosso assentimento a eles depende da evidência em que se
amparam. Nessa perspectiva, Hume relembrando os escritos do Dr. Tillotson contra as
verdades da religião cristã que, baseadas no testemunho dos apóstolos, observa que tendem a
diminuir gradativamente pelo distanciamento com a presença real comunicada pelos sentidos
(Cf. EHU X, 86). Assim se pronuncia o teólogo e arcebispo de Canterbury:
Todo homem tem a evidência de que a transubstanciação é falsa como
tem de que a religião cristã seja verdadeira. Suponha, então, que a
transubstanciação faça parte da doutrina cristã, então ela deve ter a
mesma confirmação como o todo, e isso são milagres: mas, de toda a
doutrina no mundo, é peculiarmente incapaz de ser provada por um
milagre, pois um milagre ou a prova dele carrega a mesma certeza que
85
qualquer homem tem da verdade do milagre, ele tem da falsidade da
doutrina; e essa é a clara evidência de seus sentidos123
.
O argumento de Tillotson, que Hume considera “tão conciso, elegante e vigoroso”
(EHU X, 86), é direcionado ao catolicismo, pois observa que “a autoridade, não só das
escrituras como da tradição, se funda exclusivamente no depoimento dos apóstolos, que foram
testemunhas oculares dos milagres de nosso Salvador” (EHU X, 86). Considerando a
importância do conceito de evidência, podemos verificar que os relatos miraculosos que o
catolicismo reivindica como sendo verdadeiros não nos oferecem evidência maior do que
supridos por nossos próprios sentidos. Desse modo, segundo Hume, “nada mais útil do que
um argumento decisivo dessa espécie, que deve pelo menos silenciar o mais arrogante
fanatismo e superstição e nos livrar de suas impertinentes solicitações” (EHU X, 86). Por isso,
todo tipo de conhecimento obtido através da experiência direta dos sentidos assegura certa
confiabilidade em detrimento de uma percepção indireta. Essa a razão por que hesitamos,
nesses casos, em acreditar no testemunho dos outros.
Hume apresenta o argumento elaborado por Tillotson para demonstrar que as
evidências para serem plausíveis devem estar escoradas na credibilidade da experiência direta
em detrimento dos relatos de testemunhas, como ocorre com as crenças do catolicismo. Cabe
ressaltar que o objetivo de Hume não é tecer uma crítica ao catolicismo, mas silenciar
qualquer tipo de superstição e fanatismo presente em toda história da humanidade através dos
relatos de milagres e prodígios. Nesse sentido, ampliando essa crítica pretende estendê-la a
qualquer tipo de testemunho que pretenda justificar a existência de milagres.
Os motivos que Hume elenca para desqualificar a confiabilidade dos relatos de
terceiros provêm de diversas causas, a saber: “... da oposição de depoimentos contrários; do
caráter ou do número das testemunhas; da maneira pela qual formulam o seu depoimento; ou
da união de todas essas circunstâncias” (EHU X, 89). Além dos motivos elencados, há outros
tipos de particularidades que podem diminuir ou aumentar a relevância contida nos
argumentos relatados pela testemunha. Nesse sentido, quanto mais elementos fantasiosos e
123
“Every man hath as great evidence that transubstantiation is false as he hath that be Christian religion is
true. Suppose then transubstantiation to be part of the Christian doctrine, it must then have the same
confirmation with the whole, and that is miracles: but, of the all the doctrine in the world, it is peculiarly
incapable of being proved by a miracle. For a miracle were wrought or the proof of it, the very same assurance
which any man hath of the truth of the miracle, he hath of the falsehood of the doctrine; that is, the clear
evidence of his senses” (LEVINE, 1989, p. 134).
86
pouco prováveis são contados, resultando, além na descrença da testemunha, menor também
será nossa confiança na veracidade dos fatos relatados e, consequentemente, tornará nossa
crença numa conexão necessária entre os eventos mais vivaz. Dessa forma, o grau de
confiança que podemos creditar a alguma testemunha sobre um fato tido como milagroso leva
Hume a observar que:
Esse mesmo princípio da experiência, que nos dá um certo grau de
confiança no depoimento de testemunhas, nos comunicam também,
neste caso, um outro grau de prevenção contra o fato que elas se
esforçam por estabelecer; dessa contradição surge necessariamente um
contrapeso e uma mútua destruição de crença e autoridade (EHU X,
89).
Dados os argumentos humeanos referentes à confiabilidade do testemunho, podemos
destacar um provérbio romano, citado por Hume nas Investigações a fim de ilustrar nossa
análise: “Eu não acreditaria em tal história nem que ma contasse o próprio Catão era um dito
provérbio em Roma, mesmo durante a vida desse patriota-filósofo” (EHU X, 89). Dada a
figura de Catão, com o respaldo de inúmeras pessoas quanto ao seu caráter exemplar de
virtuosidade, poderíamos depositar nossa confiança em seus relatos. Entretanto, a
incredibilidade de um fato pode ser um fator que invalide os argumentos assentados na
autoridade. Em suma, Hume quer ressaltar que a confiabilidade da autoridade é diminuída
quando há recurso a argumentos insólitos, pois a natureza humana guiada pela perspectiva
firmada em raciocínios probabilísticos inclina-se para eventos que se assemelham com os que
são constantemente evidenciados.
Por meio desse raciocínio, em última análise, busca-se uma resolução de uma questão
de probabilidade, em que confrontamos a veracidade do relato de testemunhas acerca dos
eventos miraculosos com as leis da natureza que adquirimos por hábito. No que tange a esse
paradoxo, pondera Hume: “Toda probabilidade, pois, supõe uma oposição de experimentos e
observações em que uma das alternativas supera a outra e produz um grau de evidência
proporcional a essa superioridade” (EHU X, 87). Com o intuito de conceder credibilidade a
algum fato considerado como miraculoso, inúmeras religiões recorrem à autoridade que
provém de Deus como a causa da ocorrência desses eventos. Nesse sentido, a configuração do
milagre, e sua violação das leis que regem a natureza, serve como elemento capaz de justificar
as crenças causais estabelecidas na mente humana através do hábito. No entanto, por outro
prisma, considerando o pressuposto em que se assenta o milagre, isto é, as leis da natureza,
87
podemos concluir que não seria contraditório conceber o seu oposto, uma vez que se tratando
de questões de fato é necessário pensar que se trata de algo contingente. Portanto, para que se
resolva esse impasse, podemos conceder veracidade aos relatos dos testemunhos e,
consequentemente, reavivamos nossas crenças causais; ou, por outro lado, ponderando, entre
os depoimentos e as experiências passadas do homem, prevalecerá a crença que supera a sua
oposta de acordo com seu grau de evidência.
A experiência que o homem adquire através das percepções do mundo permite
verificar que existem alguns fenômenos que são inteiramente uniformes e constantes, mas,
por outro lado, existem outros que se apresentam alguma irregularidade gerando incerteza.
Nesse sentido, de acordo com os argumentos humeanos, mesmo que as crenças sejam
reguladas pela probabilidade adquirida pela experiência constante de determinado fenômeno,
devemos estar conscientes da contingência das questões de fato, pois no que “... tange à
probabilidade das causas, dá-se exatamente o mesmo que com as do acaso” (EHU VI, 47).
Desse modo, quando uma testemunha reivindica a existência dos milagres, por si mesmo,
torna-se uma prova da contingência dos fenômenos da natureza e, portanto, da inexistência
dos milagres.
Como todos os raciocínios humanos estão fundados numa probabilidade causal, afirma
Hume: “A única utilidade imediata de todas as ciências é ensinar-nos a maneira de controlar e
regular os acontecimentos futuros por meio de suas causas” (EHU VII, 60). Considerando que
o homem prudente é aquele que regula sua crença pela evidência (Cf. EHU X, 87),
cautelosamente, ponderará seus juízos e formulará raciocínios preferindo, dentre as
alternativas que se apoiam no maior número de experiências, aquela mais provável. Assim, o
poder que o hábito exerce na mente humana é o que “... leva a esperar de uma causa qualquer
as mesmas consequências que vimos resultar de causas semelhantes” (EHU IX, 82). A
propensão produzida por este princípio é acompanhada pela probabilidade com que a mente
humana é atingida pelas repetições constantes dos fenômenos, resultando na identificação de
“leis da natureza”. No Tratado, Hume considerando essas questões:
Nenhuma probabilidade é tão grande que não permita uma
possibilidade contrária; porque, de outro modo, deixaria de ser uma
probabilidade e tornar-se-ia uma certeza (...) Uma experiência no
passado demonstra [proves] sempre ao menos uma possibilidade para
o futuro (T 1, 3, 12, 8).
88
A contingência dos fenômenos da natureza exerce menor força na mente humana em
relação àqueles eventos arraigados na mente humana pelo hábito. Desse modo, de acordo com
a probabilidade dos acontecimentos, haverá um favorecimento das denominadas “leis da
natureza” (EHU X, 89). Entretanto, alega Hume, há uma possibilidade de considerarmos a
existência de um evento miraculoso, quando consideramos que sua negação implicaria na
aceitação de um fato com índole milagrosa maior que o próprio fato negado (Cf. EHU X, 91).
Como Hume atesta no final da parte I da seção X:
Nenhum testemunho basta para estabelecer um milagre, a não ser que
seja de tal índole, que sua falsidade seria mais milagrosa do que o
próprio fato que procura estabelecer; e, mesmo assim, há nesse caso
uma destruição mútua dos argumentos, e o argumento que superior só
nos dá a certeza proporcional ao grau de força que lhe resta após
deduzir-se o inferior (EHU X, 91).
Nessa perícope, através das palavras de Hume, podemos ressaltar que a prova da
admissibilidade de um milagre é, em certo sentido, o atestado da contingência fenomênica.
Contudo, mesmo que se admita a possibilidade de eventos dissociados da regularidade, o
estatuto epistemológico fundamenta-se na constância da natureza e, diante de alternativas
possíveis e contrárias, nos inclinamos àquelas mais prováveis.
Desse modo, o testemunho acerca de um fato dissociado das “leis da natureza”, pode
ser considerado digno de crença pela credibilidade depositada na pessoa que o relata, mas, de
modo contrário, por conter elementos fantasiosos e insólitos, divergentes do curso da
natureza, implica incredibilidade e desconfiança (Cf. EHU X, 92). Nesse contexto, Hume,
relembra o exemplo dado por Locke nos Ensaios acerca de um príncipe indiano que se
recusou a acreditar que a água congela em climas frios. Dada a situação completamente
desconhecida, podemos afirmar que esse príncipe raciocinou corretamente, pois
desconhecendo empiricamente este fato, não conseguiria prever a não ser por um relato de
uma testemunha. Entretanto, por mais fidedigno que seja o relato descrito pela testemunha,
esse elemento pode atenuar a crença causal, pois recaindo a atenção sobre as questões de
probabilidade, consideraria esse fato apenas como extraordinário124
.
Ao considerar a contingência presente nas questões de fato, se faz necessário explicar
que a concessão da contrariedade pode gerar dois tipos de eventos, a saber: extraordinários ou
124
Locke utiliza exatamente este exemplo para comentar a questão da probabilidade que deve ser atribuída aos
testemunhos. (Cf. Ensaios IV, XVI, 5).
89
milagrosos. Com o intuito de esclarecer esta distinção, Hume, nas Investigações, dará dois
exemplos (Cf. EHU X, 99). O primeiro relato, por exemplo, supõe que todos os autores em
diversas partes do mundo, concordem em afirmar que a partir do dia 1º de janeiro do ano de
1600 houve um período de oito dias de total escuridão na Terra. Esse relato, descreve Hume,
continua vivo na lembrança dos povos, podemos considerá-lo extraordinário e “... deveriam
aceitá-lo como certo e investigar as suas possíveis causas” (EHU X, 99).
O segundo relato, parte da suposição do testemunho unânime de diversos historiadores
que narram a morte da Rainha Elizabeth da Inglaterra no dia 1º de janeiro de 1600. Este fato
foi acompanhado de diversas testemunhas e não resta incredulidade quanto a esse evento. No
entanto, ao passar um mês após ter sido sepultada, reaparece. Podemos confessar que este
evento nos surpreende pela desassociação com as circunstâncias regularmente observadas, “...
mas não me inclinaria em absoluto a acreditar num acontecimento tão milagroso” (EHU X,
99). Embora esse caso seja incluído no rol de um sistema religioso, não é o suficiente para lhe
creditarmos veracidade, pois, durante os séculos, muitos homens foram embalados por
histórias ridículas desse mesmo tipo e, por isso, rejeitam qualquer exame ligados ao plano
religioso (Cf. EHU X, 99). Neste caso, mesmo que atribuamos o “milagre” a Deus, não o
tornará mais forte ou mais provável, uma vez que a mente será guiada pela experiência do
curso usual da natureza. “Como sempre, isso nos reduz à observação do passado e nos obriga
a comparar os exemplos de violação da verdade nos testemunhos humanos com os da
violação das leis da natureza por milagres, a fim de julgar qual é a mais provável e
verossímil” (EHU X, 99). Como observa Mossner, podemos perceber uma estreita relação
entre os milagres e seus testemunhos com o aspecto religioso, pois, para torná-los
justificáveis, admitem que o milagre é um sinal de uma vontade anterior e externa ao curso da
natureza, justificando, por conseguinte, a existência e a singularidade que cabe somente à
divindade. No entanto, conclui Mossner, essa concepção apresentada por diversas religiões é
incompatível com qualquer grau de crença fundamentado na experiência (Cf. MOSSNER,
1954, p. 95).
Com relação ao uso de testemunhos, utilizados para dar credibilidade aos eventos que
fogem à perspectiva humana decorrente do hábito, podemos perceber que a ligeira diferença
entre os fatos excepcionais e os milagrosos está relacionada com relatos que se contrapõem
com a experiência humana. Desse modo, os fatos chamados de extraordinários estão
relacionados com a contingência da natureza e são facilmente concebidos pela mente humana.
Entretanto, por outro lado, os relatos que pretendem testemunhar algum milagre pressupõem a
90
necessidade da natureza ser uniforme, pois querem situá-lo fora ou, até mesmo, acima da
natureza.
Em suma, ao considerar a prova mais consistente que justifique a veracidade do
testemunho de um relato miraculoso, devemos levar em conta dois pontos: (a) sua pretensão
de singularidade; (b) e, por sua própria definição, deve ser uma prova incomparavelmente
mais forte que viole as leis da natureza. Considerando o fluxo da experiência da mente
humana, podemos, através de uma análise da probabilidade, afirmar que a crença daí derivada
será apenas insensivelmente tocada pela imagem do milagre, a não ser, como diz Hume, que a
negação de um milagre leve a estabelecer algo mais milagroso que o próprio milagre (Cf.
EHU X, 91). Dado o reconhecido caráter irônico de alguns trechos das obras humeanas,
sobretudo aquelas relacionadas às questões religiosas, sobretudo na seção XII dos Diálogos.
Contudo, a posição humeana acerca do uso de testemunho é tratada como algo inútil e
insignificante diante de um evento excepcional que tem a pretensão de ser aceito como uma
prova cabal de um milagre (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 67).
Além das questões supracitadas referentes ao uso de testemunhas para certificar a
existência de determinado milagre, cabe ressaltar a apresentação feita por Hume, na parte II
da seção X das Investigações, de quatro problemas relativos à credibilidade desses
testemunhos, a saber: 1) os fundamentos empíricos não são satisfeitos (Cf. EHU X, 92); 2)
muitos homens se deleitam com o extraordinário e deixam-se guiar pelas paixões, fazendo
com que se dê mais crédito ao milagre que às leis da natureza – o que não tem fundamento
científico para Hume (Cf. EHU X, 93); 3) os milagres só acontecem entre os bárbaros e não
entre os sábios, fazendo com que sejam menos confiáveis (Cf. EHU X, 94); e 4) há várias
contradições entre milagres de várias religiões, o que desacredita ainda mais poder ter havido
um fato milagroso (Cf. EHU X, 95).
Hume, para ilustrar sua compreensão acerca relatos miraculosos, dará o exemplo dos
milagres narrados por Tácito, em que conta que Vespasiano teria curado um cego em
Alexandria com sua saliva, e, supreendentemente, fez como que um homem manco
restabelecesse a normalidade com o toque de seus pés. Sobre esses relatos, Hume avalia que
“... não se pode supor evidência mais forte para uma falsidade tão grosseira e palpável” (EHU
X, 96).
Outros relatos considerados miraculosos são atribuídos à tumba do Abade de Paris,
investigado pelo próprio Hume em sua estadia na capital francesa entre 1734 e 1737,
91
enumerado dentre os mais expressivos testemunhos125
. Nesse sentido, devemos considerar a
questão feita por Hume: “Onde encontraremos tão grande número de circunstâncias a
concorrer para a ratificação de um fato? E que podemos nós opor a essa nuvem de
testemunhas, a não ser a impossibilidade absoluta ou o caráter miraculoso dos acontecimentos
que elas relatam?” (EHU X, 96). Em certos casos, como os exemplificados, Hume dirá: “Não
preciso dizer quanto é difícil desmascarar a falsidade de qualquer caso privado ou mesmo
público, no lugar onde se diz que aconteceu; quanto mais quando nos separa da cena alguma
distância, embora pequena!” (EHU X, 97). A tentativa de rebater tais argumentos será uma
tarefa vã, pois os relatos milagrosos estão entranhados na mente dos homens com tamanha
força e complexidade, movidos implicitamente por interesses diversos, por ignorância, ou até
mesmo pela vileza da tendência natural dos homens à credulidade e à superstição. Portanto, a
respeito da complexidade de argumentos acerca dos milagres, Hume conclui: “tudo isso me
poderia assombrar, mas continuaria respondendo que a velhacaria e a loucura dos homens são
fenômenos tão comuns que preferia tomá-las como origem desses supostos acontecimentos
extraordinários a admitir tão insigne violação das leis da natureza” (EHU X, 99).
Podemos considerar também a referência que Hume faz ao Cardeal de Retz que ao
relatar sua fuga para Espanha, passando por Saragoça, encontrou um homem que era o
porteiro da catedral há sete anos e que lhe contou que tinha apenas uma perna e que, ao passar
um óleo sagrado, houve a recuperação do membro que faltava. Ao presenciar a consistência e
o número das testemunhas que relatam os milagres, Hume afirma que “... o milagre, de
natureza singular que mal poderia admitir uma contrafação, as testemunhas numerosíssimas e
todas elas, de certo modo, espectadoras do fato que afirmavam” (EHU X, 96). Nesse contexto,
observamos que este relato não é digno de crédito ou, pelo contrário, motivo de riso, pois,
como o cardeal de Retz afirma, “... como raciocinador correto, que tais depoimentos eram
implicitamente falsos e que um milagre apoiado em testemunhos humanos era mais
propriamente matéria para riso do que para argumentação” (EHU X, 96).
125
Sobre esta questão, Hume afirma: “Em suma, a cura sobrenatural era tão incontestável que, durante algum
tempo, salvou aquele famoso monastério [jansenista] da ruína com que os Jesuítas o ameaçavam. Se fosse uma
trapaça, teria sido detectada por antagonistas tão sagazes e poderosos, e teria apressado a ruína dos que a
forjaram” (EHU X, 96).
92
3.3 A história de Joana d’Arc
Hume, na História da Inglaterra, pretendendo distinguir os fatos maravilhosos dos
miraculosos apresentará o exemplo da história de uma jovem chamada Joana d’Arc, que
nasceu em 1412 na aldeia de Domremy-la-Pucelle. Essa história ocorre durante a guerra entre
Ingleses e Franceses, que posteriormente foi denominada Guerra dos Cem anos. Devemos
destacar que, com ironia, para não dizer escárnio, Hume retrata os inúmeros casos prodigiosos
e milagrosos que são apresentados na História da Inglaterra (Cf. HE XX, p. 398-400). Hume
quer ressaltar que o poder das manifestações supersticiosas quando atreladas às paixões
humanas podem servir como mecanismo político-religioso. Nesse sentido, o filósofo escocês
quer propor algumas alternativas com o intuito de explicar os eventos considerados
miraculosos.
O próprio Hume admite a singularidade do caso ao descrever a vida da jovem da
pequena cidade francesa de Domremy, preocupada com o domínio inglês e, por conseguinte,
com o destino do povo francês. Com 12 anos afirmou escutar as vozes de anjos vindas do céu
que lhes admoestavam para salvar a França do domínio inglês e ajudar a reestabelecer a
coroa:
Joana, inflamada pelo sentimento geral, foi tomada de um desejo feroz
de trazer alívio a seu soberano em suas dificuldades presentes. Seu
espírito inexperiente, trabalhando dia e noite sobre este objeto único,
confundiu os impulsos da paixão com inspirações celestes; e ela
imaginou ter visões e ouvir vozes, que a exortavam a restabelecer o
trono da França e a expulsar os invasores estrangeiros (HE XX, p.
397).
Exemplo transmitido por Joana d’Arc de segurança e convicção, é a carta escrita ao rei
Carlos VII, que relata uma visão divina; serviu de inspiração às tropas francesas que, estando
sob seu comando, avançaram no cerco de Orleans contra os adversários ingleses, alertando-
os: “A vós, ingleses, que não tendes nenhum direito neste Reino de França, o Rei dos Céus
vos ordena, e manda, por mim, Joana, a Donzela, que deixeis vossas fortalezas e retorneis ao
vosso país, caso contrário farei grande barulho” (GARÇON, 2001, p. 64). Aos poucos as
tropas francesas conseguem êxito em seus combates, transformam as convicções inglesas em
medo e incerteza, pois desconhecendo a causa de sua derrocada atribuem a uma vingança
93
divina. Por fim, empreendendo importantes vitórias conseguem expulsar totalmente os
ingleses dos territórios franceses, sobretudo no do norte da França.
Após a expulsão dos britânicos e cumprimento da missão dada por Deus para ajudar
seu povo, suas vitorias suscitaram a inveja de outros líderes militares que, com o apoio do
temeroso governo de Carlos VII de uma aliança entre Joana e população, decidem entregá-la
aos ingleses. A traição dos franceses custou a Joana D’Arc a prisão e, posteriormente, acusada
de feitiçaria, em função de suas visões, e condenada à morte em fogueira na praça pública (Cf.
HE XX, p. 398-402).
Hume em sua narrativa sobre a História da Inglaterra, sobretudo no caso da jovem de
Domreny, pretende demonstrar que na dinâmica político-estratégica presente nessa obra
perpassa uma leitura supersticiosa que envolve os fatos reais. A história de Joana D’Arc é o
exemplo da superação do exército francês que por sua bravura expulsou os britânicos de suas
terras, sobre essa questão Hume acrescenta: “Uma coisa é certa: todas estas estórias
miraculosas foram espalhadas a fim de cativar o vulgo. Quanto mais o rei e seus ministros
estavam determinados a aquiescer à ilusão, mais escrúpulos fingiam ter” (HE XX, p. 399).
Diante das conotações supersticiosas que diversos relatos históricos contemplam, mesmo que
sejam histórias reais, eles servem para aperfeiçoamento como, por exemplo, da história de
Joana D’Arc:
Sua ocupação anterior foi até negada: Ela não era mais serviçal de
uma estalagem. Foi convertida em pastora, um emprego bem mais
agradável à imaginação. Para torná-la ainda mais interessante,
subtraíram-se dez anos de sua idade; e todos os sentimentos do amor e
da cavalaria se uniram aos do entusiasmo, a fim de inflamar a tola
fantasia do povo com predisposições a seu favor (HE XX, p. 399).
Em suma, Hume quer propor um cuidadoso exame do relato dos fatos, pois, segundo
ele, cabe ao historiador separar os fatos verdadeiros daqueles criados pela fantasia,
superstição ou, até mesmo, pelos interesses dos homens que se servem de fatos reais para
satisfazer suas paixões e “dar crédito a cada exagero” (HE XX, p. 405). Nesse sentido, ao
observamos a história de Joana D’Arc por inúmeros historiadores, seriam mínimas as
condições de uma camponesa combater ao lado de uma tropa, além do mais dirigi-las e liderar
as estratégias que uma guerra requer, pois tais atividades necessitam “mais gênio e capacidade
que qualquer outra cena ativa da vida” (HE XX, p. 405).
94
Após a longa narrativa feita da história de Joana D’Arc, Hume admite que a história
que reveste dessa personagem levanta dúvidas quanto à sua veracidade, pois, tratando-se de
uma jovem, já seria digno de elogio o discernimento entre as pessoas capazes e as confiáveis
na tropa que comandava. Entretanto, mesmo que o feito realizado por essa jovem seja
considerado de caráter admirável, como de uma heroína (Cf. HE XX, p. 410), dificilmente
uma pessoa de bom senso, admite Hume, aceitaria a possibilidade de seus atos serem
realizados por intermédio de inspiração divina (Cf. HE XX, p. 403-404).
Portanto, a difícil tarefa que a história impõe, de acordo com Hume, é a diferenciação
entre os fatos miraculosos e os fantásticos. Com relação aos primeiros, assegura Hume,
devem ser rejeitados de todas as narrativas humanas e profanas, pois não há elementos que
justifiquem racionalmente sua existência. Já com relação aos segundos fatos, devemos
assumir uma postura cética e pôr em dúvida a veracidade do relato. Entretanto, quando os
testemunhos forem inquestionáveis, devemos admitir a possibilidade do fato, mesmo que
extraordinário, mas aceitar aquilo que corrobore com as circunstâncias conhecidas (Cf. HE
XX, p. 398).
Com relação à diferenciação dos fatos milagrosos e extraordinários realizada por
Hume, Beyssade a interpreta como a distinção entre milagres religiosos e não-religiosos (Cf.
BEYSSADE, 1987, p. 65-67). Segundo Beyssade, o que denomina de “milagre não-religioso”
é o que Hume considera como sendo um “acontecimento extraordinário”, pois vislumbra a
possibilidade de encontrar a causa que o explica. De modo diverso, o que caracteriza um
acontecimento milagroso é a atribuição de uma causação a Deus, que serve de apoio para os
diversos tipos de sistemas religiosos. Portanto, podemos afirmar que quando atribuímos um
milagre a uma causa sobrenatural, ele será religioso; se natural, não será um milagre.
A diferenciação dos relatos milagrosos e extraordinários, segundo Hume, é uma tarefa
histórica e interminável, pois a natureza do homem, que é guiada pela experiência e pela
probabilidade de chances de ocorrer, muitas vezes, inclina-se, de modo paradoxal, aos
caminhos inteiramente obscuros, “isso diminui em muito a autoridade de tais testemunhos e
nos leva a tomar a resolução geral de nunca lhes dar atenção, por mais especiosas as vestes
com que se apresentam” (EHU X, 99). Todos os relatos que envolvam milagres e outras
espécies de produções fantasiosas servem de alimento às paixões humanas que se inclinam a
essas histórias com surpresa e admiração. Nesse sentido, algumas pessoas mesmo que não
acreditem em acontecimentos milagrosos ou construções metafísicas, experimentam o prazer
de fazer despertar a admiração dos outros pela maneira como são contados os fatos.
95
3.3 Análises de Flew e Fogelin acerca da perspectiva humeana de milagre
Diante da impossibilidade de conceber as crenças relativas à existência de milagres na
filosofia humeana, Folegin destaca que, nesse contexto, podemos vislumbrar duas
preocupações: epistemológica e metafísica (Cf. FOGELIN, 1990, p. 85-86). Respectivamente,
no que tange a primeira esfera, analisa-se a legitimidade do testemunho que atesta um evento
miraculoso. Na segunda esfera, pretende-se investigar o comportamento da natureza frente
uma intervenção de volição divina.
Nesse sentido, Fogelin, relembrando os argumentos de Dorothy Coleman, dirá que as
preocupações, mencionadas anteriormente, podem ser apresentadas através de dois modos
(Cf. FOGELIN, 1990, p. 82-83). Relacionado com o aspecto epistemológico, pretendemos
investigar se Hume tem um argumento a priori que tente comprovar que os milagres não são
possíveis. Com relação ao aspecto metafísico, pretendemos analisar se Hume tem um
argumento que possa demonstrar que o testemunho não tem força para endossar a existência
de milagres. Em suma, essas duas preocupações destacadas por Fogelin e Flew, podem ser
sintetizadas por intermédio de uma questão: há possibilidade, dentre os argumentos
humeanos, de se conceber a existência de milagres ou, de modo a priori, não há espaço para
tal possibilidade? Essa mesma questão pode ser realizada no âmbito da possibilidade que um
testemunho torne legitima a crença na existência de milagres.
De acordo com uma leitura tradicional dos argumentos humeanos, concorda-se em
afirmar que Hume não tem um argumento a priori contra a existência de milagres. No
entanto, cabe ressaltar que não pode ser dito o mesmo contra o testemunho que pretendem
comprovar a existência de eventos miraculosos. Flew, como representante dessa corrente
interpretativa, acredita que pela análise das passagens de Hume que definem o próprio
milagre não haja uma problemática, mas no conflito das evidências dos fenômenos da
natureza que atingem a mente humana. Nesse sentido, de acordo com a análise de Flew, a
ênfase do argumento humeano envereda por uma via epistêmica.
Por outro lado, Fogelin não acredita que a estrutura do argumento humeano abarque
apenas o caráter epistêmico, mas, de forma equitativa, também um olhar metafisico, que
demostra que a própria definição de milagre dada por Hume indica que não é possível a
existência de milagres. Nos argumentos presentes na Investigação, Fogelin assegura que
Hume afirma que é impossível reconhecer um fato como milagroso, dada a inexistência de
96
uma prova à qual não se pode destruir; a não ser que houvesse, como vimos anteriormente,
uma prova a favor dos milagres que fosse superior à prova da uniformidade da experiência.
Com o intuito de demonstrar que dentre os argumentos humeanos existe uma prova a
priori contra a existência de milagres, nos seguintes termos podemos destacar: diante dessa
problemática probabilística, só conceberíamos a existência de um milagre caso sua força
sobrepujasse a perspectiva alcançada pela força da natureza, pois todo conhecimento parte da
experiência; consequentemente, não existe uma prova a favor dos milagres. Desse modo, não
satisfazendo a probabilidade imposta pela constância da experiência, instaura-se, pela própria
crença em milagres, uma prova contra sua existência (Cf. FOGELIN, 1990, p. 82-83).
A interpretação tradicional, assentada na passagem subsequente à definição de milagre
dada por Hume, que sugere a possibilidade de haver um testemunho em prol dos milagres,
pelo fato de sua negação tender para um fato mais miraculoso, assegura Fogelin, que o
filósofo escocês quer demonstrar, com certa ironia, que tal testemunho não pode existir (Cf.
EHU X, 89).
A interpretação de Ellin, referente à questão dos milagres e dos relatos de
testemunhos, entende que Hume tenha elaborado um argumento a priori tanto de caráter
epistemológico quanto ontológico. Essa posição é tomada a partir da interpretação da leitura
que Flew faz de Hume, afirmando que ele não usa um argumento a priori para provar que seja
possível racionalmente acreditar na ocorrência de milagres e, por conseguinte, dar crédito ao
testemunho de eventos miraculosos (Cf. ELLIN, 1993, p. 207-209).
Portanto, por meio dos argumentos elaborados por Ellin, podemos concluir que um
milagre só poderia fornecer uma prova se sua evidência fosse mais forte que a regularidade
obtida pela experiência. No entanto, o milagre, por sua própria definição, não sendo regular e
dada a regularidade que ocorre no mundo, o testemunho de um evento miraculoso, por sua
índole, caráter e número, será somente uma prova da contingência da natureza. Portanto, o
testemunho de um milagre não tem força suficiente para se contrapor ao testemunho de uma
experiência, já que o milagre é algo que não tem força de regularidade.
97
3.4 A questão da fé de Hume
Podemos observar que outra dificuldade importante que se sobressai nos parágrafos
finais da seção X da Investigação é a relação entre a fé e filosofia empirista de Hume. Nesse
sentido, a partir da base epistemológica analisada no primeiro capítulo desta dissertação não
conseguimos justificar a referida relação, pois as questões que envolvem a fé e a revelação
não encontram uma plausibilidade racional no desenvolvimento empírico da filosofia
humeana. Seguindo essa perspectiva, na conclusão do ensaio “Dos Milagres”, Hume afirma:
... podemos concluir que a Religião Cristã não só foi inicialmente
acompanhada de milagres, como até hoje não é possível que uma
pessoa razoável lhe dê crédito sem milagre. A simples razão é
insuficiente para nos convencer de sua veracidade, e todo aquele que é
movido pela fé a aceitá-la tem consciência de uma continuação do
milagre na pessoa, subvertendo todos os princípios de seu
entendimento e dando-lhe a determinação de crer no que é mais
contrário ao costume e à experiência (EHU X, 101).
Esse trecho apresentado por Hume no final da seção “Dos Milagres” suscita uma série
de questionamentos, uma vez que desconhecemos se essa perícope retrata efetivamente seu
posicionamento verdadeiro ou seria mais umas de suas frases irônicas. Nesse caso, somos
levamos a questionar se Hume nesse momento confessa uma crença religiosa professada nos
moldes teístas; ou quer demonstrar seu ceticismo ao ser prudente com os limites impostos
pela experiência; ou, ainda, quer meramente se desviar dos ditames impostos pelas
autoridades eclesiásticas. Diversos comentadores dividem-se a favor de cada uma dessas
hipóteses, o que dificulta a elaboração de uma resposta efetiva sobre a verdadeira posição de
Hume. Por isso, não pretendemos formular uma nova hipótese sobre essa questão, mas através
da análise de determinados parágrafos da seção X da Investigação tencionamos analisar a
relação entre a sua filosofia, analisada de modo sucinto no primeiro capítulo, e a defesa velada
de uma crença religiosa por Hume.
No decurso da leitura filosófica de Hume, sobretudo nas obras dedicadas à crítica da
religião natural, podemos vislumbrar que por trás de seu ceticismo, como sua filosofia parece
indicar à primeira vista, o filósofo escocês se releva um homem de fé. Nesse sentido,
percebemos que além da perícope citada acima, podemos observar outras demonstrações que
98
parecem revelar a crença religiosa de Hume através dos relatos dos exemplos acerca da
evidência transmitida pela experiência direta de John Tillotson (Cf. EHU X, 86), dos milagres
atribuídos ao Abade de Paris (Cf. EHU X, 96) e, por fim, como Hume relata:
Ainda mais me agrada o método de raciocínio aqui exposto quando
penso que talvez sirva para confundir esses perigosos amigos ou
inimigos disfarçados da Religião Cristã que se propõem defendê-la
pelos princípios da razão humana; e é um meio seguro de traí-la, esse
de submetê-la a uma prova a que ela não pode de nenhum modo fazer
frente. A fim de que isso se torne mais claro, examinemos os milagres
referidos nas escrituras; e para que não percamos nenhum campo
demasiado extenso, limitemo-nos aos que são encontrados no
Pentateuco e encaremo-lo de acordo com os princípios desses
pretensos cristãos, não como a palavra ou o testemunho do próprio
Deus, mas como produções de um mero autor ou historiador humano
(EHU X, 100).
Os argumentos humeanos elaborados na seção X da Investigação querem evidenciar
que a crença em milagres não é impossível, mas não conseguimos justificá-la racionalmente,
assim como a fé e a revelação cristã original não podem ser justificadas. Diante desses fatos,
considerando que as crenças epistemológicas como as religiosas não contêm uma base
empírica e racional que seja suficiente para justificar a crença causal, apenas o hábito e
repetição constante garantem ao homem a ideia de conexão necessária (Cf. EHU XII, 116).
Por estarmos tratando de questões de fato, seguindo a base epistemológica analisada
no primeiro capítulo, podemos entender que a regularidade e a ordem observadas no mundo
são frutos de inferências causais reguladas pelo hábito e pela constância que os fenômenos se
apresentam ao homem. No entanto, para diversas religiões, a harmonia com que os fenômenos
da natureza se apresentam é considerada como uma prova, conforme constatamos nos
Diálogos, da existência de Deus. Entretanto, adverte Hume, as questões que envolvem a fé e a
revelação não são justificadas pela razão, mas são questões que devem ser tratadas
efetivamente pelas religiões (Cf. EHU XII, 116-123). De acordo com Gaskin (Cf. GASKIN,
1993, p. 143-146), Hume pretende romper com as crenças supersticiosas, como analisamos no
capítulo segundo, que ele chamadas de vulgares. Nesse sentido, como ressalta na seção acerca
dos milagres na Investigação, não tenciona analisar quais os tipos de sistema religioso são
obscuros ou supersticiosos, mas quer alertar o homem para que seja sábio e procure
evidências para suas crenças.
99
De acordo com Tasset: “Este tema preocupava especialmente Hume porque era um
exemplo manifesto de entrecruzamento, confuso, porém, ao final real, de considerações
baseadas na fé e com argumentos pretensiosamente racionais”126
. Dessa forma, diante da
insatisfação com as provas apresentadas pelos argumentos a posteriori e a priori, conforme
observamos nos Diálogos, Hume defende uma posição cética que suspende o juízo sobre
esses assuntos. Nesse sentido, devemos entender que o ceticismo humeano atua para
denunciar a ausência de uma justificativa racional e empírica das crenças religiosas, como,
por exemplo, a legitimidade do testemunho a respeito de um milagre. Pois se não se pode
aceitar esses argumentos como fundamentos da religião, também não se pode demonstrar que
são errôneos por irem além do entendimento humano. Nesse sentido, devemos compreender
que a crítica de Hume à religião natural pretende demonstrar os perigos envolvidos em nossas
crenças. Contudo, no que tange às crenças religiosas, ele admite que ocupam um espaço único
que é de natureza individual e incomunicável desse sentimento; é por isso que a fé deve ser
compreendida como a única base na qual a religião pode se apoiar (Cf. T 1, 3, 1, 9).
Assim como na última parte dos Diálogos sobre a Religião Natural, nas últimas linhas
de seus escritos dedicados à investigação da temática dos milagres, percebemos, como afirma
Monteiro, com certa facilidade que, “estão permeados de ironia, de exemplos de ocultação do
significado real por detrás do véu da ambiguidade” (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 136). Nesse
sentido, considerando o aspecto irônico com que Hume redige algumas partes de suas obras
dedicas à religião, a análise desses elementos torna-se imprescindível, pois através deles abre
a possibilidade de conhecermos a verdadeira posição humeana referente às questões
religiosas.
Saber efetivamente em que Hume realmente acreditava talvez seja uma questão
impossível de ser respondida de modo taxativo, mesmo que não seja a pretensão proposta
como objetivo desta dissertação, mas, sem dúvidas, serviria como guia para fazermos frente à
problemática da possibilidade do conhecimento de Deus. Nesse contexto, por intermédio de
uma entrevista que Hume concedeu a Boswell, nos últimos anos de sua vida, podemos
vislumbrar o porquê de algumas posições presentes na seção direcionada às questões dos
milagres:
126
“Este tema le preocupaba especialmente a Hume porque era un ejemplo manifesto de entrecruzamiento,
confuso, pero al fin real, de consideraciones basadas en la fe y argumentos pretendidamente racionales”
(TASSET, 2005, p. 33).
100
Ele parecia ser plácido e até mesmo alegre. Ele disse que estava
chegando ao fim. Acho que essas foram as palavras dele. (...) Ele disse
que jamais alimentou qualquer crença na religião desde que ele
começou a ler Locke e Clarke. Perguntei-lhe se ele não era religioso
quando era jovem. Ele disse que era, e costumava ler The Whole Duty
of Man; do qual fez um resumo do catálogo de vícios no final dele, e
examinava a si mesmo por esse resumo, deixando de lado os
assassinatos e roubos e os vícios que ele não tinha nenhuma chance de
cometer, não tendo nenhuma inclinação para cometê-los127
.
Afirmar a existência de Deus, a partir da leitura de diversas obras humeanas, talvez
seja possível com base numa leitura naturalista, apartada de uma fundamentação epistêmica e
com valores subjetivos. Devemos ressaltar que a possibilidade (da existência de Deus) que se
abre através desse viés é diferente das profissões de determinadas religiões, uma vez que
grande parte das religiões, em sua gênese e fundamento, baseiam-se em explicações que
ultrapassam os limites fixados pela razão o que gera grande confusão, crenças esdrúxulas e
corrupção moral. Nesse sentido, por não apoiar nenhuma crença religiosa, e diante da
dificuldade de expor seus verdadeiros pensamentos acerca das questões de fé, recorre à ironia
para implicitamente delinear o problema da fé e da Revelação. Podemos perceber o modo
cauteloso com que Hume expõe seus argumentos contra a doutrina da imortalidade da alma
no ensaio póstumo “Da imortalidade da alma”:
Com que argumentos ou analogias podemos provar um estado de
existência que ninguém jamais viu, e que em nada se assemelha a
qualquer estado que já tenha sido visto? Quem confiará tanto em uma
pretensa filosofia a ponto de admitir, apenas a partir de seu
testemunho, a realidade de uma cena tão fantástica? Para isto seria
necessária alguma nova espécie de lógica; e novas faculdades do
espírito que nos permitissem compreender essa lógica (HUME, 2006,
p. 59).
Nesse mesmo contexto, Hume complementa seu argumento ao afirmar: “Nada poderia
iluminar melhor a infinita dívida dos homens para com a revelação divina; pois vemos que
nenhum outro meio pode nos assegurar desta grande e importante verdade” (HUME, 2006, p.
127
“He seemed to be placid and even cheerful. He said he was just approaching to his end. I think these were his
words. (…) He said he never had entertained any belief in religion since he began to read Locke and Clarke. I
asked him if he was not religious when he was young. He said he was, and he used to read The Whole Duty of
Man; that he made an abstract from the catalogue of vices at the end of it, and examined himself by this, leaving
out murder and theft and such vices as he had no chance of committing, having no inclination to commit them”
(BOSSWELL, 2006, p. 73).
101
59). Em suma, podemos afirmar que Hume preocupado com as possíveis retaliações
eclesiásticas, se furta a expressar de modo claro e literal seu pensamento, pois suas obras
dedicadas à problemática religiosa estão permeadas de ironia como, por exemplo, na obra
póstuma escrita sob forma de diálogos. No entanto, fica latente que Hume não afirma a
inexistência de Deus, mas que não podemos justificar sua existência e seus atributos
auxiliados pelo crivo da experiência e razão. Nesse sentido, podemos afirmar que, mesmo se
tratando de questões de fato, a problemática que envolve a fé e a revelação são localizados no
interior de cada indivíduo.
CONCLUSÃO
A título de conclusão, faz-se necessário repropor algumas questões e oferecer
respostas pontuais relativas ao meu objetivo principal nesta dissertação, a fim de tornar sua
defesa mais clara. Como pudemos observar ao longo do texto, o conhecimento de Deus exige,
à luz da perspectiva humeana de causalidade, levar em conta diversas problemáticas.
Seguindo os argumentos de Hume, tanto no Tratado como na Investigação, não
podemos nos afastar da tese de que “todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são
cópias de nossas impressões, ou percepções mais vivas” (EHU II, 13). Nesse sentido,
podemos afirmar que nossas percepções são distinguidas pelo grau de força e de vivacidade.
Por isso, sabemos com alguma evidência que a experiência imediata de alguma sensação é a
chamada impressão; posteriormente, o pensamento que teremos sobre a sensação, que não
estamos mais experimentando, é o que chamamos de ideia, que, por sua vez, se apresenta em
correspondência com as impressões sensíveis (Cf. EHU II, 13). Desse modo, os argumentos
do filósofo escocês se contrapõem à teoria das ideias inatas e, por extensão, também ao
conhecimento de Deus, pois não temos nenhuma impressão que corresponda a essa ideia (Cf.
EHU II, 14).
Segundo Hume, o poder que a imaginação tem de romper os limites da natureza e da
realidade, levando-nos às mais longínquas regiões do universo, está restrito, o que não parece
ocorrer à primeira vista, aos limites preestabelecidos pela experiência, que ensejam
“combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela
experiência” (EHU II, 13). Desse modo, ressalta Hume, podemos, facilmente, perceber a
existência de princípios, não como uma ‘conexão inseparável’ entre as ideias, mas sim como
uma ‘força gentil’ que as conectam e possibilitam a conexão entre diversos pensamentos ou
ideias. De acordo com essa perspectiva, verificamos a existência entre as ideias por meio dos
princípios associativos de semelhança, de contiguidade ou de causa e efeito, que se conectam
em nossa mente, como princípios secretos, fazendo com que sejam naturalmente introduzidas
(Cf. COVENTRY, 2011, p. 67).
Segundo Hume, todos os objetos da mente humana se diferenciam pelas relações entre
ideias e questões de fato. As primeiras, por pertencerem às ciências da geometria, da álgebra e
da aritmética, suas sentenças são intuitivamente ou demonstrativamente certas (Cf. EHU IV,
20). Com relação às questões de fato, podemos afirmar que elas são consideradas por Hume
103
as mais importantes para a compreensão do conhecimento humano, pois suas proposições
estão estreitamente relacionadas com os dados provenientes da experiência e são baseadas,
sobretudo, no princípio associativo de causalidade (Cf. EHU IV, 21-22).
Seguindo o fio condutor do pensamento humeano, a principal problemática que
emerge acerca do princípio de causalidade é a seguinte: os diversos eventos em si fornecem
elementos para que se estabeleça uma conexão necessária entre os fatos? Para Hume, a
necessidade é algo que existe no espírito, não nos objetos, uma vez que a experiência não
sugere qualquer tipo de conexão causal. Em outras palavras, não há impressão de causalidade,
unicamente há uma crença causal.
A experiência constante da sucessão dos fenômenos nos leva a atribuir um caráter,
para a mente humana, de continuidade e interdependência entre eles. O resultado do processo
que repetidas vezes observamos é fruto do hábito ou costume. Nesse diapasão, podemos
afirmar que a ideia de causalidade é produzida pela mente humana, que ultrapassa os dados
fornecidos pela experiência acreditando haver um padrão ou modelo que reproduz o curso da
natureza, que contém em si uma conexão necessária. Por isso, podemos afirmar que a
causalidade é uma operação subjetiva da mente, que, por sua vez, é influenciada pelo hábito, o
qual lança o homem para além de seu momento atual, de sua memória e de seus sentidos,
levando-o a fazer inferindo juízos equivocados sobre os dados fornecidos pela experiência a
ponto de se tornar escravo do hábito (Cf. EHU VII, 32).
A propensão criada pelo hábito na mente humana é fruto de uma inferência de tipo
probabilístico, isto é, pela da constância com que observamos os fenômenos gera-se na mente
humana um sentimento de crença, atribuindo mais força e vivacidade à ideia de conexão
causal entre os fenômenos observados constantemente, fixando-os na mente e tornando-os
princípios reguladores das ações humanas (Cf. T 1. 3. 7. 7).
Podemos interpretar a questão da causalidade elaborada por Hume, sobretudo no
Tratado e na Investigação, por uma óptica tradicional em que o filósofo escocês, com o
intuito de combater as crenças metafísicas formadas na mente humana, assume um
posicionamento cético. No entanto, há também uma vertente que tende a encarar Hume como
um naturalista, de tal modo que seu ceticismo passa a ser visto como mitigado, uma vez que
algumas crenças são consideradas necessárias para a vida prática e o senso comum. Isso
indicaria a impossibilidade da adopção do ceticismo absoluto.
Nesse sentido, o ceticismo humeano é necessário para que se desfaçam todas as
crenças metafísicas que tornam dogmática a mente humana. Segundo Beebe, o ceticismo
104
humeano deve ser concebido de modo atenuado, de tal forma que não ameace afetar nossa
capacidade de formar crenças, mas apenas a sua justificação (Cf. BEEBE, 2006, p. 33).
Por intermédio do entendimento da problemática causal, buscamos compreender a
possibilidade de se conceber e fundamentar a existência de Deus com base nos princípios e
pressupostos da filosofia humeana. Nortearam este estudo os Diálogos sobre religião natural
(1779) e a História natural da religião (1757), uma vez que ambas obras retratam, mesmo
que nem sempre de modo explícito, os argumentos humeanos acerca dessa problemática.
Podemos observar que Hume aplica, em ambas as obras destinadas ao debate sobre a
natureza do fenômeno religioso, os princípios de seu empirismo radical. Na História, o
filósofo escocês, ao tratar das origens e das causas que produzem o fenômeno da religião,
afirma que os efeitos da religiosidade sobre a vida e a conduta do ser humano são percebidos,
ao longo dos séculos, pelas variações cíclicas entre o politeísmo e o monoteísmo. Dessa
forma, o exame da religião feita por Hume, sem a pressuposição da existência de Deus,
decorre de uma posição que defende uma história natural da religião. E foi esta questão que
deu o título à obra supracitada (Cf. GASKIN, 1993, p. 314), na qual seus argumentos
defendem que as religiões, primeiramente as crenças politeístas depois as monoteístas, se
originam das mais primitivas e básicas paixões humanas, de instintos naturais como o medo e
a esperança (Cf. HNR, p. 32). Nessa perspectiva, Hume rechaça a concepção que defende que
a origem da religião ocorre a partir de uma tentativa de entendimento racional do universo.
Na História, a preocupação de Hume não está voltada para a investigação do
conhecimento de Deus e de sua existência, mas de fatos e questões históricas que envolvem as
a distinção entre o teísmo supersticioso, mas formas de politeísmo e monoteísmo, e o teísmo
genuíno, que Hume acredita ser a mais plausível (Cf. HNR, p. 60-61).
Os Diálogos podem ser considerados a obra essencial de Hume acerca da temática da
religião natural, uma vez que investiga o argumento do desígnio, que engloba a existência de
Deus e os atributos que o acompanham (Cf. MONTEIRO, 1984, p. 142). A redação desta obra
exprime a maestria de Hume em relacionar as diversas posições que são expressas pelos
personagens de Demea, Cleantes e Filo. Demea propõe uma versão a priori do argumento
cosmológico da existência de Deus diante da limitação humana e da observação da perfeita
harmonia entre os fenômenos da natureza (Cf. DNR II, p. 26-27). Cleantes, por sua vez,
defende que podemos chegar ao conhecimento da existência de Deus por meio de analogias,
pois os fenômenos da natureza servem como desígnios que apontam para o Criador; esta é a
concepção do teísmo tradicional (Cf. DRN II, p. 27). Por fim, Filo, que muitos comentadores
105
afirmam ser a voz de Hume, defende que o melhor caminho acerca das questões religiosas é o
ceticismo, uma vez que carecem de fundamentos racionais que embasem as diferentes formas
de enfrentá-las (Cf. DNR VIII, p. 71).
O tema central dos Diálogos, que é o argumento do desígnio, que se debruça sobre a
possibilidade de conhecermos os atributos de Deus e não sobre sua existência. Em outras
palavras, o fio condutor dos argumentos humeanos busca compreender a plausibilidade dos
argumentos apresentados pelos teístas, e defendido por Cleantes, de que a causa do universo é
fruto de um ser sumamente bom, poderoso e sábio. Nesse sentido, Hume, por meio de Filo,
buscará desqualificar os argumentos da teologia teísta que pinta Deus como um ser pessoal,
dotado de sabedoria e conhecimento, uma vez que não há elementos racionais e empíricos que
justifiquem aplicar esses atributos à Deus. Segundo Filo, as nossas ideias não vão além da
nossa experiência e, por conseguinte, não temos experiência dos atributos e dos processos
divinos, pois ao considerar os elementos que justificam (ou não) seus atributos, percebemos
que a descrição que fazemos de Deus está apartada de sua verdadeira natureza.
Hume assevera que os principais argumentos que tencionam justificar a existência de
Deus, iniciando pelo argumento do desígnio, não são provas válidas, que contraria um dos
mais antigos e importantes argumentos acerca da existência de Deus, desde as especulações
filosóficas dos gregos em suas cosmologias. Nesse sentido, podemos perceber que o
argumento do desígnio se baseia na afirmação de que a existência do mundo físico, em
decorrência da observação da ordem e harmonia da natureza, revela a existência de um Deus
que é bom, inteligente e criador.
Segundo Cleantes, a justificação para ordem e harmonia da criação do mundo é sua
teleologia, forjada por Deus, que escolhe os melhores meios para realização das finalidades da
natureza. O mundo, por essa visão, é entendido como obra, como desígnio, que externa a
existência de um Autor inteligente, volitivo e poderoso. Cleantes expressa seu entendimento
acerca do argumento do desígnio através do exemplo de uma grande máquina, que é
subdividida num número infinito de máquinas menores, que, por sua vez, estão perfeitamente
ajustadas umas às outras com extraordinária adaptação dos meios aos fins. Pelo fato de a
mente humana deixar-se guiar com certa facilidade pelas crenças causais, por conseguinte,
naturalmente, haverá a expectativa de que de causas semelhantes tenham-se efeitos
semelhantes. Seguindo essa mesma regra da analogia, afirma que analogamente à mente
humana em suas produções, podemos entrever semelhanças com a mente de Deus em suas
criações, embora seja este dotado de faculdades muito mais vastas, proporcionais à grandeza
106
da obra que executou (Cf. DNR II, p. 27-29). Nesse sentido, os pontos que sustentam o
argumento do desígnio são as analogias entre as semelhanças dos artefatos produzidos pelos
seres humanos e os insumos naturais (Cf. MERRILL, 2008, p. 92-94).
Para Filo, tal argumento, que se baseia nas similitudes, aparentemente plausíveis como
assegura Cleantes, entre a inteligência do homem e a mente divina, contém muita fragilidade.
Em contraposição aos argumentos de Cleantes, Filo afirma que as analogias ocorrem pelo fato
de estarmos habituados com a constância dos fenômenos da natureza; por isso, ao
observarmos uma casa já pronta, inferimos imediatamente que ela é obra de um artífice. A
dificuldade de se fundamentar essa analogia decorre de nunca termos visto a criação de um
universo, uma vez que a ideia de causalidade se origina quando constantemente fazemos a
observação de determinada conjunção entre os fenômenos. Por isso que Filo adverte que a
dessemelhança é tão grande que o máximo que se pode aspirar, com relação a esse ponto, é a
uma suposição, uma conjectura, uma presunção a respeito de uma causa similar (Cf. DNR, p.
31). Desse modo, na concepção humeana, a ordem e a harmonia das causas finais não
constituem por si só, sem a mediação da experiência sensível, prova de desígnio divino no
universo.
A causalidade, portanto, não passa de uma crença baseada na ação do hábito sobre a
imaginação. Isto posto, compreendemos que a crítica humeana às provas da existência de
Deus só poderá se sustentar se o princípio de causalidade for mera conexão subjetiva entre
eventos que se sucedem regularmente. Por outro lado, a inspeção e reconstrução dos
argumentos humeanos não permitem a comprovação taxativa da posição de Hume a ponto de
se poder rotulá-lo de ateu ou deísta. Mesmo porque ele se preocupa mais com a questão do
conhecimento dos atributos divinos, que em termos epistemológicos são inacessíveis, do que
com a questão da existência pura e simples. Nesse sentido, podemos entender que, no final
dos Diálogos, ele admite a possibilidade da existência de um designer inteligente que moldou
o mundo (Cf. DNR VIII, p. 87).
Muitas religiões baseiam-se na crença da existência de milagres como sendo efeitos
dos atributos do poder divino, o que, de certa forma, favorece a concepção da existência de
Deus. Entretanto, o milagre entendido como violação das leis da natureza é, segundo Hume,
por sua própria natureza, uma questão que não tem como ser demonstrada (Cf. EHU X, 90).
Em muitos casos, o milagre se baseia no testemunho humano, o que torna seu grau de
fidedignidade e veracidade incerto, uma vez que alguns testemunhos não são dignos de
confiança. Entretanto, podemos admitir que a única chance de que um milagre possa ser
107
concebido é quando o curso da natureza, que observamos com regularidade, for mais
milagroso que o próprio milagre.
Um fator importante na crítica humeana aos milagres é que ele sempre se encontra
distante da experiência, isto é, de qualquer evidência sensível. Por isso, qualquer explicação
que se relacione com a experiência, mesmo pela pouca frequência com que ocorra, terá uma
evidência maior do que qualquer milagre. Nessa perspectiva, a experiência sensível é a chave
do conhecimento uma vez que introduz a exigência de se privilegiar a confirmação, a
comprovação do que se alega.
Outro ponto que merece ser salientado é o fato de o milagre estar intrinsecamente
relacionado com o homem, pois ele tem a ver com os anseios dos homens, com o desejo do
maravilhoso, da superação da esfera terrestre e de uma ascese que o leve da realidade atual
para outra sem as limitações desta. Nesse sentido, por intermédio do relato da vida de Joana
D’Arc, podemos perceber que muitos relatos históricos estão permeados de elementos
fantasiosos, próprios dos anseios humanos de se deixar maravilhar pelo extraordinário. O
milagre, portanto, não existe fora da realidade humana, pois ele serve unicamente para
satisfazer os anseios do homem por uma onipotência afetiva (Cf. HE XX, p. 397-399).
Em linhas gerais, podemos afirmar que se não consegue constatar racional e
empiricamente a natureza de Deus, uma vez que esta só pode ser atingida pela fé. A
concepção da fé, segundo Hume, é uma característica subjetiva, fruto que é da tendência
humana de formular crenças sem lastro, como se pode inclusive constatar nas crenças
epistêmicas que ultrapassam os dados fornecidos pelos sentidos (Cf. EHU XII, 116-123).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, Vol I, Parte I, Questão XII, Art XII e XIII (Latim-
Português). São Paulo: Loyola, 2003.
AQUINO, Tomás de. Suma Contra os Gentios. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo:
Abril Cultural, 1973.
BEEBEE, Helen. Hume on causation. New York: Routledge, 2006.
BOSWELL, James. Última entrevista com David Hume. Tradução de Daniel Swoboda
Murialdo. Em: Da imortalidade da alma e outros textos póstumos. Ijuí: UNIJUÍ, 2006.
BROW, R. Origins of Religion. in The World's Religions. England: Lion Publishing, 1982. p.
30-48.
CABEZAS, Domingo. Hume. Madrid: Montesinos/Esencial, 2008.
CONTE, J. A natureza da filosofia de Hume. Anais do III Colóquio Internacional de
Metafísica, Natal, RN, 2010. v 17, n. 28, jul./dez. 2010, p. 211-236.
COVENTRY, Angela. Compreender Hume. Petrópolis: Vozes, 2011.
CURLEY, Edwin. De volta ao argumento ontológico. Analytica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p.
51-81, 1997.
CRUZ, Fernão de Oliveira Salles dos Santos. As condições de possibilidade da ciência da
natureza humana: crítica da metafísica e ciência do homem. Tese apresentada ao
Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo para obtenção do grau de doutor em
filosofia. São Paulo, 2007.
DARWIN, C. The autobiography of Charles Darwin. New York: Norton & Co. 1993.
DENNETT, D. Darwin’s Dangerous Idea. Nova York: Touchstone.
DENNETT, D. Darwin’s Dangerous Idea: Evolution and the Meanings of Life. New York:
Simon & Schuster, 1996.
ELLIN, J. Again: Hume on Miracles. Hume Studies. v. XIX. n˚ 1, abr., 1993. Disponível em:
< http://www.humesociety.org/hs/issues/v19n1/ellin/ellin-v19n1.pdf >. Acesso em: 30 ago.
2016.
FOGELIN, Robert J. Hume`s scepticism. In: DAVE, Fate Norton (org.). The Cambrigde
companion to Hume. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
109
______. What Hume Actually Said About Miracles. Hume Studies, v. XVI. n˚ 1. abr., 1990.
Disponível em: <http://www.humesociety.org/hs/issues/v16n1/fogelin/fogelin-v16n1.pdf >.
Acesso em: 30 ago. 2016.
GARÇON, Maurice. Joana D’Arc. in. Biografias: Os grandes nomes da humanidade. Revista
História Viva, nº 2, São Paulo: Duetto-Editorial, 2001.
GASKIN, J. C. A. Hume on Religion. In: DAVE, Fate Norton (org.). The Cambrigde
companion to Hume. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
GASKIN, J. C. A. Hume’s Philosophy of Religion. London: Macmillan, 1988.
GREIG, J.Y.T. (org.). The Letters of David Hume. Oxford: Clarendon Press, 1932.
LEVINE, Michael. Hume and the Problem of Miracles: A Solution. Boston: Kluwer
Academic Publishers, 1989.
HUME, David. Ensaios Morais, políticos e literários. Trad. Lucioano Trigo. Rio de Janeiro:
Topbooks Editora, 2004.
HUME, David. Ensaios Morais, políticos e literários. Trad. Luciano Trigo. Rio de Janeiro:
Topbooks Editora, 2004.
___________. Investigações acerca do entendimento humano. Trad. Leonel Vallandro. São
Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os Pensadores).
___________. Dialogues Concerning Natural Religion. New York: Prometheus books, 1989.
___________. História natural da religião. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
___________. História da Inglaterra. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo, Editora
UNESP, 2015.
___________. Obras sobre religião. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
___________. Resumo de um tratado da natureza humana. Florianópolis: Paraula, 1995.
___________. Tratado da natureza humana. Trad. Déborah Danowski. São Paulo: Editora
UNESP, 2009.
HOLDEN, Thomas. Hume´s moral atheism. New York: Oxford University Press, 2010.
LOCKE, J. An Essay concerning Human Understanding. Oxford: Clarendon Press, 1689.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
KEMP SMITH, Norman. Introduction: Dialogues concerning natural religion. Oxford:
Clarendon Press, 1948.
110
MERRILL, Kenneth, R. Hume’s Of Miracles’, Peirce, and the Balancing of Likelihoods.
Journal of the History of Philosophy. v. 29. 1991. p. 85-113.
MONTEIRO, J. P. Hume e a epistemologia. São Paulo: Imprensa Nacional - Casa da Moeda,
1984.
___________. Novos estudos humeanos. São Paulo: Discurso Editorial, 2003.
MORRIS, E. W. Hume’s project in the Dialogues. Texto apresentado no IV Colóquio Hume
na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Agosto de 2010.
MOSSNER, E. C. “The enigma of Hume”. Mind, 45: 1936, p. 334-349.
MOUNCE, H. O. Hume’s Naturalism. London: Routledge, 1999.
NOXON, James. La evolución de la Filosofia de Hume. Madrid: Allianza Editorial, 1987.
O’CONNOR, David. Hume on religion. London: Routledge, 2001.
OWEN, David. Hume and mechanics of mind: impressions, ideas, and association. In:
DAVE, Fate Norton (org.). The Cambrigde companion to Hume. Cambridge: Cambridge
University Press, 1993.
PASSMORE, J. Hume’s Intentions. Londres: Duckworth, 1968.
PARENT, W. A. “An interpretation of Hume’s Dialogues”. The Review of Metaphysics. 30:
1976. p. 96-114.
___________. “Philo’s confession”. Philosophical Quarterly. 26 (102): 1976. p. 63-68.
PENELHUM, T. Hume. London: MacMillan, 1975.
PEQUENO, Marconi. 10 Lições sobre Hume. Petrópolis: Vozes, 2012.
PHILLIPSON, Nicholas. David Hume: the philosopher as historian. London: Penguin Books,
2011.
PORTO, Leonardo Sartori. Hume. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
QUINTON, Anthony. Hume. São Paulo. Editora UNESP, 1999.
SILVA, M. O problema de uma teoria do significado em Hume. In. Síntese, Belo Horizonte,
v. 31, n. 101, p. 389-404, 2004.
SMART, J. J. C. Laws of Nature and Cosmic Coincidences. The Philosophical Quarterly, v.
35, n. 140, 1985.
SMITH, Plínio. O ceticismo de Hume. São Paulo: Loyola, 1995.
111
STRAWSON, Galen. The Secret Connexion: Causation, Realism and David Hume. Oxford:
Clarendon Press, 2003.
STROUD, Barry. Hume. London, UK: Routledge & Kegan Paul Ltd, 1977.
SWINBURNE, Richard. The Existence of God. 2nd. ed. New York: Oxford University Press,
2004.
TASSET, José L. David Hume: escritos ímpios y antirreligiosos. Madrid: Ediciones Akal,
2005.
TILLEY, Terrence W. Hume on God and Evil: Dialogues X e XI as Dramatic Conversation.
In: Journal of the American Academy of Religion. vol. 56. nº 4. 1988. p. 703-726. Published
by Oxford University Press. Stable URL: http://www.jstor.org/stable/1464460. Acesso:
agosto de 2016.
VERGEZ, André. David Hume. Lisboa: Edições 70, 1984.
ZILLES, Urbano. A Crítica da Religião. Porto Alegre: EST Edições, 2009.