UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO
DOUGLAS FERREIRA DE PAULA
A UNIÃO DO ENSINO COM O TRABALHO PRODUTIVO: A EDUCAÇÃO EM MARX E ENGELS
São Paulo 2007
DOUGLAS FERREIRA DE PAULA
A UNIÃO DO ENSINO COM O TRABALHO PRODUTIVO: A EDUCAÇÃO EM MARX E ENGELS
Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Educação. Área de Concentração: Filosofia e Educação Orientador: Prof. Dr. Marcos Barbosa de Oliveira
São Paulo 2007
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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
379.81 Paula, Douglas Ferreira de P324u A união do ensino com o trabalho produtivo : a educação em
Marx e Engels ; orientação Marcos Barbosa de Oliveira. São Paulo : s.n., 2007.
109p. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em
Educação. Área de Concentração : Filosofia e Educação) - - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
1. Marx. Karl, 1818-1883 2. Engels, Friedrich, 1820-1895
3. Marxismo 4. Educação - Política 5. Trabalho 6. Ensino 7. Capitalismo - Educação I. Oliveira, Marcos Barbosa de, orient.
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FOLHA DE APROVAÇÃO Douglas Ferreira de Paula A união do ensino com o trabalho produtivo: a educação em Marx e Engels
Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Educação. Área de Concentração: Filosofia e Educação
Aprovado em:
Banca Examinadora: Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição________________________________Assinatura__________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição________________________________Assinatura__________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição________________________________Assinatura__________________
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AGRADECIMENTOS Ao espírito democrático, aberto a divergências, de meu orientador Marcos Barbosa de Oliveira. Aos meus companheiros de militância política. À Marcela, ao Fernando, à Angela e ao Leonardo pelo apoio que me deram durante esses anos todos, cada qual à sua maneira.
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RESUMO PAULA, Douglas Ferreira de. A união do ensino com o trabalho produtivo: a educação em Marx e Engels. São Paulo, FEUSP: 2007. Dissertação de Mestrado. O trabalho consiste num estudo de caráter teórico que investiga a inter-relação de conceitos fundamentais da teoria marxista a partir da tese político-pedagógica da união do ensino com o trabalho produtivo. Percorrendo o conjunto da obra de Karl Marx (e, por extensão, de Friedrich Engels), pretende-se demonstrar que só é possível compreender o sentido da tese em pauta com base na crítica ao ensino e ao trabalho no capitalismo, assim como na proeminência com que as contradições oriundas do modo de produção capitalista figuram nessa obra. Apoiando-se em estudos já realizados acerca da concepção educacional desses autores, a dissertação reforça o aspecto político da tese, destacando na análise conceitos como os de força produtiva, e dando ênfase às contradições entre trabalho e capital. Argumenta-se inicialmente que a tese da união de ensino e trabalho em Marx e Engels surge em oposição à realidade do ensino e do trabalho, tal qual a observavam autores do século XIX. Estuda-se em seguida o conceito de forças intelectuais da produção, abordando a questão da ciência incorporada nas forças produtivas a partir do capitalismo, e o modo pelo qual tal ciência objetivada mantém-se estranha aos trabalhadores, ainda que estes mantenham com ela estreita conexão. Dessa perspectiva, a tese é vista como apontando para a necessidade de superar a divisão técnica do trabalho colocada pelo modo de produção capitalista, e a própria divisão social do trabalho, resultado da divisão da sociedade em classes. A partir da análise desenvolvida serão evidenciados os obstáculos à transformação da escola colocados pelo capital, demonstrando-se que, no seu desenvolvimento, impossibilitada pelas relações sociais de incorporar, de forma ostensiva, as forças intelectuais da produção, ela revelou-se “velha”, isto é, não pôde refletir o grau de desenvolvimento das ciências objetivadas e contribuir para a superação da divisão entre as atividades teóricas e práticas. Ao contrário, caracterizou-se fundamentalmente por expressar a necessidade de diversificação da produção capitalista, flexibilizando a mão-de-obra para os diferentes ramos dessa produção; assim como tornou-se susceptível de assumir a ideologia da classe dominante, sem refletir os objetivos gerais da classe trabalhadora. A dissertação termina caracterizando o caráter político da tese pedagógica, com destaque para seu papel nos objetivos imediatos e mediatos da luta pela transformação da educação e da sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Marxismo; educação; trabalho e ensino; educação e capitalismo.
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ABSTRACT PAULA, Douglas Ferreira de. The union of teaching with productive work: education in Marx and Engels. São Paulo, FEUSP: 2007. Master’s degree dissertation. The dissertation consists in a theoretical study that investigates the interrelationship between fundamental concepts of Marxist theory connected to the political-educational thesis of the union of teaching with productive work. On the basis of an examination of the writings of Karl Marx (and, by extension, of Friedrich Engels), the study aims to demonstrate meaning of the thesis in question can only be understood by considering the criticism of teaching and work in capitalism, as well as the prominence with which the contradictions of the capitalist mode of production figures in those works. Taking as starting point studies about Marx’s and Engels’ educational conceptions, the dissertation emphasizes the political aspect of the thesis, by giving especial attention, in the analysis, to concepts like that of productive forces, and to the contradictions between labour and capital. It is argued, initially, that the thesis, as it appears in the work of Marx and Engels, arises in opposition to the reality of education and work as observed by 19th century authors. The concept of intellectual forces of production is then examined by considering the issue of science incorporated in the productive forces in capitalism, and the way in which such objectified science is still alien to the workers, in spite of the close relationship that the workers maintain with it. From that perspective, the thesis is seen as pointing to the need to overcome the technical division of labor imposed by the capitalist mode of production, and the social division of labour itself, as a result of the division of society into classes. The analysis brings to light the obstacles that capital creates for the transformation schooling, thus demonstrating that, in its development, unable for social relations to incorporate effectively the intellectual forces of production, the school becomes “old”, i.e., unable to reflect the level of development of science, and to overcome the division between the theoretical and practical activities. It is characterized, on the contrary, mainly by expressing the need for diversification of capitalist production through flexible labour for the different branches of production, as well as by becoming prone to incorporate the ideology of the ruling class, instead of the general objectives of the working class. The dissertation ends by pointing to the political nature of that pedagogical thesis, highlighting its role in the short and long term objectives of the struggle for the transformation of education and society. KEYWORDS: Marxism; education; work and education; Education and capitalism.
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SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................................091. A TESE POLÍTICO-PEDAGÓGICA DE MARX E ENGELS......................................18 1.1 A formulação da tese de união do ensino com o trabalho produtivo.............................22 2. DA CRÍTICA AO ENSINO E AO TRABALHO NO CAPITALISMO.........................26 2.1 Crítica do Ensino............................................................................................................27 2.2 Crítica do Trabalho.........................................................................................................35 2.2.1 O trabalho em A Ideologia Alemã..................................................................35 2.2.2 O trabalho nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos, no Trabalho Assalariado e Capital e no Salário, Preço e Lucro...................................................................................42 3. AS FORÇAS INTELECTUAIS DA PRODUÇÃO.........................................................50 3.1 As forças produtivas.......................................................................................................51 3.2 Sobre o conceito de ciência............................................................................................54 3.2.1 A ciência do século XIX..................................................................................54 3.3 Instrumentos de produção e a ciência no capitalismo....................................................67 3.4 A força viva do trabalho.................................................................................................71 3.5 O ensino científico como fundamento da tese pedagógica............................................75 4. A MANUTENÇÃO DA VELHA ESCOLA E SEU FUNDAMENTO..........................80 4.1 A escola politécnica.......................................................................................................81 4.2 A escola capitalista........................................................................................................85 4.2.1 Reprodução ideológica................................................................................... 86 4.2.2 Reprodução econômica ..................................................................................88 5. AS TAREFAS POLÍTICAS DE UMA TESE PEDAGÓGICA......................................91 5.1 Sobre a revolução...........................................................................................................91 5.2 O político e o pedagógico da tese..................................................................................96 5.2.1 O objetivo imediato.........................................................................................97 5.2.2. O objetivo mediato.........................................................................................99 CONCLUSÃO....................................................................................................................103 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................107
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Introdução
Em defesa do marxismo
“Por que estudar Marx no século XXI?” – é um questionamento que tem voltado à
tona nos últimos anos. Vem elaborado sob diferentes formas1, havendo em todas elas a
mesma preocupação em justificar um trabalho teórico em torno das idéias de Marx e
Engels. Apesar dessa justificativa ter como pano de fundo o processo de restauração
capitalista no Leste Europeu, na China e em tantos outros países que apregoavam o
marxismo “oficial”2, tal questionamento está vinculado à própria perspectiva
transformadora que o marxismo assumiu desde sua origem.
A singularidade do pensamento marxista encontra-se no fato de ele não se encerrar
em esquemas filosóficos abstratos, mas se orientar para a prática e nela encontrar seu
fundamento de objetividade3.
Estudar a obra de Marx e Engels, sob o ponto de vista acima, é defender a sua
atualidade e a sua importância para compreender a sociedade do século XXI, que se inicia
carregando as marcas indeléveis de uma década inteira do pensamento e práticas
neoliberais (no caso da sociedade brasileira). É também uma contribuição para reabilitar o
ideário socialista no interior da academia, no interior do pensamento universitário, ligando-
1 Ver Romero, D. Introdução In: Marx e a Técnica – Um estudo dos manuscritos de 1861-1863. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2005. Ou ainda, Naves, M. B. Introdução In: Marx – ciência e revolução. São Paulo: Editora Moderna, 2003. 2 “Após o fim do “socialismo realmente existente” – ou seja, dos Estados burocráticos modelados pela forma stalinista –, pôde-se assistir a uma impressionante (quase) unanimidade entre jornalistas, banqueiros, gerentes, teólogos, deputados, senadores, ministros, universitários, filósofos, politólogos, economistas e expertos em todas as disciplinas para proclamar, urbi et orbi, em nome da História, do Mercado ou de Deus – se não dos três – que “Marx está morto” (tema já repisado no decorrer dos anos 70 pelos chamados “nouveaux philosophes”). Ex-esquerdistas, ex-comunistas, ex-socialistas, ex-revolucionários, ex-tudo não perderam a ocasião de juntar-se ao coro”, Löwy, M. Prefácio à Reedição In: A teoria da revolução no jovem Marx. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. Pg. 16. 3 “Se Marx é de fato algum tipo de filósofo, ele se distingue da maioria de tais pensadores por considerar suas reflexões, por mais abstrusas que sejam, em última análise, práticas, estando inteiramente a serviço de forças políticas reais, e na verdade como um tipo de força política em si mesma”, Eagleton, T. Marx e a liberdade. São Paulo: Editora UNESP, 1999. Pg. 47.
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se à tradição daqueles pesquisadores que se reúnem, em pequenos eventos4, para divulgar
seus trabalhos com inspiração marxista.
Nosso objetivo desde o início foi seguir a trilha daqueles que buscam desenvolver
seus trabalhos apoiados na “fidelidade aos textos dos dois clássicos”5 no estudo de suas
idéias “político-pedagógicas”.
Adotar tal caminho é abandonar, senão completamente mas em grande medida,
alguns elementos muito apreciados no meio acadêmico, como a originalidade, a elegância
dos textos ensaísticos, a assunção de problemas cujas respostas o estudo pode habilmente
construir. É, ao contrário, percorrer com disciplina e paciência texto após texto, buscando
reunir fragmentos, trechos, argumentos que exponham da forma mais precisa possível a
essência do pensamento do autor: iluminando o que já estava obscurecido pela crítica e
pelos anos e reinterpretando o que já foi desgastado pelo uso.
O presente estudo objetiva ser isso: uma exegese do que “realmente” disseram e
pensaram os nossos autores, numa tentativa de ligar conceitos, noções, teses políticas (e
pedagógicas), explicitando quais seriam, do nosso ponto de vista, “as categorias
fundamentais do pensamento marxista”, como afirmamos no primeiro capítulo.
Em defesa de uma tese política-pedagógica
A pergunta retórica acerca da atualidade de Marx e Engels se repete no que tange às
discussões educacionais6. Em tempos das mais “modernas” tecnologias, e das chamadas
pedagogias do “aprender a aprender”7, voltar-se aos debates em torno da escola e da
educação que surgiram em meados do século XIX, tem ares de “anacronismo”.
4 A título de exemplo, gostaríamos de ressaltar a realização dos I e II EBEM (Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo), ocorridos nos anos de 2005 e 2006, respectivamente, como prova desse fortalecimento do pensamento marxista no interior das universidades. 5 Cambi, F. História da Pedagogia. São Paulo: Editora da UNESP, 1999, pg. 555. 6 Ver Lombardi & Saviani. Apresentação In: Marxismo e Educação – debates contemporâneos. Campinas: Autores Associados, 2005. 7 Cf. Duarte, N. Vigotski e o "aprender a aprender" : crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas: Autores Associados, 2000.
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Não obstante, adotamos aqui a perspectiva daqueles que compreendem que a
educação é determinada pela estrutura social8; assumimos, portanto, a perspectiva do
materialismo histórico. No século XX, diferentes autores se ligaram a este materialismo,
forjando uma tradição segundo a qual a teoria de Marx e Engels, enquanto teoria que reflete
a estrutura social capitalista, não foi superada, posto que sua superação ocorreria somente
num horizonte histórico em que o próprio capitalismo houvesse sido superado.
Conforme vamos defender no primeiro capítulo e desenvolver no quinto, o
“pensamento educacional” de Marx e Engels somente pode ser entendido em relação ao
conjunto de sua teoria revolucionária. Se supomos que tal teoria não está ultrapassada, uma
vez que responde à essência dos problemas surgidos nessa estrutura social, o modo de
produção capitalista, suas concepções, críticas e formulações acerca da educação também
não o estão.
A própria universalização e obrigatoriedade do ensino, tema da I Internacional
Comunista, defendida por Marx (e que está liga ao ideário iluminista surgido ainda no
século XVIII), continua a ser um horizonte a ser alcançado. Em pleno século XXI, persiste
o analfabetismo na maior parte do planeta, aliado aos precários sistemas públicos de ensino
nos países atrasados. As contradições próprias do capitalismo impedem que essa tarefa
democrática seja plenamente cumprida.
Constatar as dificuldades na implantação da escola pública, aos moldes da
sociedade burguesa, nos leva à conclusão da impossibilidade de transformação radical
daquela no interior desta. O que nos conduz, por sua vez, ao tema de nossa dissertação: a
tese da união do ensino com o trabalho produtivo. Tal como o debate em si da atualidade da
teoria marxista, as formulações político-educacionais de Marx e Engels mantêm sua
atualidade, não simplesmente por seus conteúdos internos mas propriamente pela lógica
que as fez nascer: tratam da necessidade de transformação da educação.
A tese acima tem como horizonte a elevação do homem mutilado, embrutecido,
alienado pelas sociedades de classes, e pelas divisões que são próprias delas, à condição de
homens livres, cujo desenvolvimento individual não mais se opõe artificialmente aos
8 Cf. Saviani, D. Prefácio à 7ª Edição In: Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 7ª Ed. Campinas: Autores Associados, 2000.
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condicionantes sociais. Tem como perspectiva a formação do homem novo, da humanidade
resgatada das terríveis contradições que sua própria história engendrou.
Há aí, sem dúvida, o que existe de mais elevado numa perspectiva propriamente
“pedagógica”. A educação dos homens novos, surgidos sem os entraves do modo de
produção capitalista (o que pressupõe a sua destruição num momento da história), os quais
podem se envolver em todas as esferas da vida social (produtiva), combinando o ensino
com o trabalho, sem que esses se oponham, como atualmente ocorre, é uma tarefa que
definitivamente não se realizou.
Tal espírito e tal convicção alimentam esse estudo. As partes das quais se compõe
buscam enriquecer a formulação da tese, mostrando como se articula com as necessidades
mais sentidas do desenvolvimento da sociedade: de suas forças produtivas e do seu
intercâmbio com a natureza. Trataremos dessas partes no próximo tópico.
Proposição e Crítica
Embora não tenhamos formalmente dividido a dissertação em duas partes,
implicitamente desenvolvemos os capítulos pensando nessa divisão.
Nos três primeiros capítulos, buscamos apresentar a tese e relacioná-la aos conceitos
e categorias mais relevantes para a sua compreensão. Isso conformaria o que entendemos
ser a “primeira parte”, centrada, logo, nos aspectos constitutivos, de conteúdo, da tese (sua
dimensão mais propriamente pedagógica).
Nos dois últimos capítulos, apontamos, primeiro, para os aspectos característicos da
escola na sociedade burguesa; escola que não pôde incorporar, de forma ostensiva, os
traços mais progressivos do desenvolvimento capitalista, mas que tem servido para
reproduzir ideológica e economicamente a opressão de classe. Segundo, demonstramos
que a realização plena da tese pressupõe a transformação do modo de produção capitalista,
o que implica na vinculação dessa com o conjunto de teses que envolvem a necessidade da
luta política contra a dominação burguesa. Os capítulos quatro e cinco configurariam assim
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a “segunda parte” centrada no contexto social, exterior à formulação (sua dimensão
política).
O método que adotamos de apresentar os temas não pode eclipsar a compreensão de
que a tese de união do ensino com o trabalho produtivo é, ao mesmo tempo, política e
pedagógica. As duas dimensões convivem desde sua origem e – nos parece – são cada vez
mais comprovadas pela atual etapa histórica do capitalismo9.
Poderíamos então denominar as duas partes como “proposição” e “crítica”,
respectivamente, entendidas como momentos de um mesmo movimento.
Os capítulos
Como parte da “proposição”, o primeiro capítulo elege dois estudos acerca da
concepção educacional em Marx e Engels (os estudos de Manacorda10 e Nogueira11), para,
a partir deles, apresentar a tese da união do ensino com o trabalho produtivo. Declaramos,
nesse capítulo, que o estudo da tese está: a) sempre em “relação a outras teses e
formulações”; b) que a questão educacional nos pensadores alemães não é secundária, pois
o seu verdadeiro significado só pode ser aferido no conjunto de suas obras e c) que a
centralidade da tese de união do ensino com o trabalho produtivo advém da originalidade
que ela assume quando vinculada ao materialismo histórico dos dois clássicos. 9 “Ora, em sua existência histórica nas condições atuais, educação e política devem ser entendidas como manifestações da prática social própria da sociedade de classes. Trata-se, pois, de uma sociedade cindida, dividida em interesses antagônicos. Está aí a raiz do primado da política. Com efeito, já que a relação política se trava fundamentalmente entre antagônicos, nas sociedades de classes ela é erigida em prática social fundamental. Percebe-se por aí que a autonomia relativa da educação em face da política e vice-versa, assim como a dependência recíproca anteriormente referidas não têm um mesmo peso, não são equivalentes. Em outros termos: se se trata de dependência recíproca, é preciso levar em conta que o grau de dependência da educação em relação à política é maior do que o desta em relação àquela. Poderíamos, pois, dizer que existe uma subordinação relativa mas real da educação diante da política. Trata-se, porém, de uma subordinação histórica e, como tal, não somente pode como deve ser superada. Isto porque se as condições de exercício da prática educativa estão inscritas na essência da sociedade capitalista, as condições de exercício da prática educativa estão inscritas na essência da realidade humana, mas são negadas pela sociedade capitalista não podendo se realizar aí senão de forma subordinada, secundária (…)”, in: Saviani, D. Escola e Democracia. 30º Ed. Campinas: Autores Associados, 1997. Pg. 95-96. 10 Manacorda, M. A. Marx e a Pedagogia Moderna. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1975. 11 Nogueira, M. A. Educação, Saber, Produção em Marx e Engels. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1990.
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O segundo pretende abarcar o sentido dos dois termos essenciais da tese: o ensino e
o trabalho. Nas seções iniciais desse capítulo, buscamos demonstrar o entendimento que
Marx e Engels tinham da escola e do ensino ministrado no século XIX. Tal demonstração
não é mera exposição da conjuntura histórica, o que poderia resultar no abandono completo
das conclusões dos dois autores, mas a apresentação de problemas relacionados a
implantação de um sistema público de ensino, que, na sua totalidade, não foram ainda
superados. Ainda que os países como Inglaterra, França, EUA, Alemanha e muitos outros,
reconhecidos como de capitalismo mais avançado, tenham resolvido a questão da
universalização da escola e melhoria nas condições de ensino (embora observemos hoje
uma retrocesso mesmos nesses países), tal realidade não é compartilhada pelo conjunto dos
países do globo. Se a escolarização transformou-se num traço comum a todos os países a
partir do século XX12, tal escolarização foi condicionada pelo papel mais ou menos central
de cada nação no desenvolvimento do capitalismo mundial. Dessa maneira, estudar os
problemas relativos à educação no século XIX, sob o ponto de vista do materialismo, pode
iluminar os problemas atuais, obscurecidos pela perspectiva idealista que predomina na
educação13. Nas seções seguintes, passa-se a uma análise interpretativa do conceito de
trabalho – “categoria crucial para a humanidade”14 – com o objetivo de revelar o caráter
contraditório do trabalho nas sociedades humanas, destacando-se o seu papel no modo de
produção capitalista.
Ainda nesse capítulo, mostramos que, produto dessa mesma realidade que,
aparentemente, coloca o ensino de um lado e o trabalho de outro, a tese busca refletir o
movimento real de aproximação entre a instrução dos trabalhadores e seu vínculo prático
com a produção. Diferenciando-se dos socialistas utópicos, que defendiam a união do
ensino com o trabalho como forma de amenizar a exploração, a tese de união adquire em
Marx o estatuto de condição de superação da própria exploração, porque se opõe, na sua
lógica interna, à divisão social e técnica do trabalho. Opõe-se à divisão técnica, porque
contra o ensino monotécnico afirma a politecnia, a possibilidade de as crianças e jovens
conhecerem a fundo os vários ramos da produção; opõe-se à divisão social, porque
12 Cf. Sacristán, J. G. A Educação obrigatória – seu sentido educativo e social. Porto Alegre: ARTMED Editora, 2001. 13 Cf. Dermeval, S. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, ed. cit. 14 Antunes, R. (org). Apresentação In: A dialética do trabalho. Escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004. Pg. 7.
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pressupõe a ligação consciente, organizada, entre o trabalho manual e o intelectual,
colocando aos homens a possibilidade histórica de, por exemplo, poderem caçar, pescar,
criticar, etc, sem a necessidade de se encerrarem em qualquer uma dessas atividades pelo
resto da vida, conforme afirma Marx em “A ideologia alemã”.
O terceiro capítulo, o último dessa primeira parte, é o mais extenso. Isso porque
trata de um tema que, pela divulgação mais ampla entre marxistas e não marxistas, foi
sendo desgastado ao longo de décadas, qual seja: o das forças produtivas. Há ainda hoje os
que defendem que Marx e Engels eram economicistas, que desprezavam as esferas da
“superestrutura”, o que é um contra-senso em relação às inúmeras teses dos dois autores, as
quais ressaltam a dimensão política como uma força a se contrapor à lógica econômica do
capital. A partir do capítulo, vamos delinear os elementos essenciais que compõem as
forças produtivas, mostrando como, no interior delas, encontram-se todos os
conhecimentos, capacidades, e habilidades desenvolvidas pelo homem em sua história, os
quais são mobilizadas, na sociedade capitalista, para incrementar o capital e embrutecer
física e mentalmente os trabalhadores.
Entre esses elementos que compõem as forças produtivas, vamos dar um destaque
especial à ciência. Ainda que aparentemente fujamos do objeto de nosso estudo, a questão
da ciência é crucial para entender o papel que a tese de união do ensino com o trabalho
produtivo pode ter. A compreensão do multifacetado papel da ciência na sociedade pós-
Revolução Industrial revela as potencialidades que ela tem para o desenvolvimento
humano, bem como as contradições em que se engendrou no momento em que
ostensivamente começou a ser aplicada à produção. Uma de nossas afirmações nesse
capítulo é que, dado o elo entre ciência e produção, a configuração de uma educação
“científica” está dada concretamente quando o ensino combina-se com a produção. Mais do
que o desejo ou vontade de verem “conteúdos científicos” sendo incorporados ao currículo
escolar, há uma aproximação prática entre ensino e ciência, que reforça os laços já
existentes entre o trabalhador (força viva da produção) e as forças intelectuais da produção.
O quarto capítulo inicia a crítica bastante conhecida da reprodução, por parte da
escola, da ideologia dominante, bem como a crítica das tentativas limitadas da sociedade
capitalista de combinar instrução e trabalho a partir das chamadas “escolas profissionais”.
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Reforça-se, nesse capítulo, que, enquanto as forças produtivas estiverem sob o jugo
do capital, a escola não poderá transformar-se de modo a incorporar os conhecimentos
objetivados por essas forças. Portanto, fundamentalmente, a sociedade manterá uma velha
escola, que incorpora de “moderno” somente a ideologia burguesa. Impossibilitada,
portanto, de avançar para um conhecimento mais objetivo; incapaz de desenvolver a cultura
para além de certos limites.
Na medida em que a tese da união do ensino com o trabalho produtivo não pôde ser
incorporada às práticas pedagógicas, posto que significaria um movimento contra o capital
e contra as suas atuais tendências conservadoras, a velha escola se mantém, expressando a
antiga divisão das sociedades de classe: a divisão entre trabalho manual e intelectual.
O capítulo servirá então para mostrar a diferença entre os objetivos da classe
trabalhadora ao exigir a união do ensino com o trabalho produtivo e a caricatura disso no
ensino profissional, que, dadas as determinações mais gerais da escola capitalista,
apresenta-se cada vez mais desligado das necessidades dos trabalhadores. Apresenta-se a
crítica que Marx e Engels já faziam no século XIX.
Em suma, a partir da análise desenvolvida, evidenciaremos os conflitos que o
capital impõe à transformação da escola, demonstrando que, no seu desenvolvimento,
impossibilitada, pelas relações sociais, de incorporar, de forma ostensiva, as forças
intelectuais da produção, ela revela-se “velha”, isto é, não pôde refletir o grau de
desenvolvimento das ciências e conhecimentos objetivados e contribuir para a superação da
divisão entre as atividades teóricas e práticas. Ao contrário, pôde somente expressar a
necessidade de diversificação da produção capitalista, flexibilizando a mão-de-obra para os
diferentes ramos dessa produção; assim como tornou-se susceptível de assumir,
modernamente, a ideologia da classe dominante, sem refletir os objetivos gerais da classe
trabalhadora.
Delinearemos, no último capítulo, o que denominamos de dimensão política da tese
ou a sua dimensão “crítica”. Passa por uma questão sobre a qual pouco se tem refletido nos
meios acadêmicos: a questão da revolução social. Compreendida como o centro das teses
políticas de Marx e Engels, ela é o ponto no qual convergem o conjunto de formulações dos
autores. Não há como ocultá-la, como quem, num exercício de desprezo ou imprudência,
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busca “suavizar” os desdobramentos lógicos e práticos da teoria marxista15. Ao contrário, o
que buscamos realizar é uma defesa dos significados e objetivos da revolução socialista,
focando, por um lado, nos condicionantes objetivos de tal defesa (as contradições inerentes
ao capitalismo, como a famigerada contradição entre as forças produtivas e as relações de
produção, os entraves que as relações sociais burguesas significam para o homem e a
natureza) e, por outro, na relação que a revolução estabelece com a ampliação da
democracia.
Tendo estabelecido essa conexão com a idéia da revolução socialista, a tese da
união do ensino com o trabalho produtivo volta a ser centro das elaborações. Defendemos,
a partir daí, que a tese funciona, no interior da obra dos dois autores, como uma
reivindicação socialista. Traz em si a denúncia das condições atuais de existência dos
trabalhadores, sobretudo, da juventude empobrecida, que se vê apartada dos estudos ou do
trabalho pela impossibilidade de combiná-los. E também carrega a tarefa de contribuir para
a transformação do modo de produção, na fase de transição da sociedade capitalista para a
sociedade comunista.
Não se liga, portanto, a um tempo futuro, indefinido. Está atrelada às lutas sociais
no interior do capitalismo existente. Serve como denúncia, como crítica, e se justifica como
proposta concreta para revolucionar a educação16.
15 “O marxismo se deixa esterilizar num saber inofensivo quando abandona esse empenho revolucionário que marcou sua origem. Tal risco está presente hoje na atitude daqueles que se dispõem a saudar em Marx o teórico genial do capitalismo, ao passo que repelem o corolário político do seu diagnóstico como um desvio utópico pertencente ao campo da escatologia moral (…)” In: A teoria da Revolução no jovem Marx, ed.cit., pg. 14. 16 “Penso que não é possível o avanço da discussão sobre as perspectivas transformadoras de nossa sociedade deixando-se de lado as perspectivas também transformadoras de um projeto revolucionário de educação”, Lombardi, J. C. Educação, Ensino e Formação Profissional em Marx e Engels. In: Marxismo e Educação, ed. cit., pg. 2.
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Capítulo 1
A tese político-pedagógica de Marx e Engels
Unir fios revoltos, preencher lacunas, tornar coerentes passagens de textos
aparentemente incongruentes, é o que fazem os autores cuja preocupação centra-se em
extrair de Marx e Engels uma concepção de Educação.
Sabe-se perfeitamente que os dois pensadores alemães não eram pedagogos.
Entende-se também que não foram seus enunciados acerca da educação, acerca dos
problemas do ensino que causaram o impacto verdadeiramente revolucionário sobre a
desvelada sociedade burguesa. Portanto, os trabalhos que se debruçam sobre os dois
“revolucionários” à busca de idéias pedagógicas não são trabalhos de simples explicação e
comentários de textos. Mesmo nas mais “modestas” compilações dos enunciados de Marx e
Engels sobre educação, nos quais o estudioso é “ocultado”, limitando-se a destacar notas
explicativas em certos trechos, como no livro de Roger Dangeville17, não se pode falar de
um trabalho de “comentarista”.
Parece-nos mais exato afirmar que, quando estamos diante de textos que apontam
para a concepção de Marx e Engels sobre a educação, encontramo-nos, na realidade, diante
de estudos acerca das categorias18 essenciais da própria obra marxista. É sobre a concepção
de trabalho, de ideologia, de forças produtivas, de Estado, e de outras noções fundamentais
ao pensamento dos fundadores do “socialismo científico” que nos defrontamos ao ler um
texto sobre a “pedagogia” desses autores.
Um livro como o de Manacorda19 revela-nos mais acerca da interpretação que o
próprio autor tem e das luzes que lança sobre a obra dos pensadores alemães do que sobre a
positividade no interior desta obra de concepções educacionais. Mais do que uma afirmação
17 Marx, K. & Engels, F. Critique de l’éducation et de l’enseignement (introdução, tradução e notas de R. Dangeville). Paris, Maspéro, 1976. 18 Utilizamos, de forma, às vezes, arbitrária, termos como “categoria”, “conceito”, “noção” sem jamais diferenciá-los. Apesar de conhecermos críticas a esse uso indiferenciado, ou mesmo, impreciso, como dirá Lefebvre em Sociologia de Marx, apoiamo-nos em dois autores que fazem uso ostensivo desses termos, Cheptulin (1982) e Sodré (1968), indicados nas referências bibliográficas. 19 Manacorda, M. A. Marx e a Pedagogia Moderna, ed. cit.
19
dessas concepções, temos, em geral, ensaios acerca do movimento de inter-relação entre as
categorias fundantes do pensamento marxista. No interior desse movimento de
reconstrução de tais categorias, temos a sistematização da concepção educacional de Marx
e Engels.
A diferença entre os trabalhos em torno da “pedagogia” marxista encontra-se nessa
sistematização. O livro de Manacorda, por exemplo, conforma-a a partir de dois
procedimentos. Atém-se, por um lado, à cronologia da obra marxista, enfatizando os
períodos nos quais as formulações relativas à educação teriam aparecido, confrontando,
desse modo, os tipos de enunciados e ressaltando as diferenças que surgem entre tais
períodos. Por outro, utiliza-se de um método apoiado na filologia, destacando a forma dos
próprios enunciados, precisando o conteúdo de termos aparentemente iguais.
Outro tipo de sistematização já revelado é o que se apóia no contexto histórico no
qual foram forjados os enunciados de Marx e Engels. Citamos, a titulo de ilustração, o livro
de Maria Alice Nogueira, Educação, saber, produção em Marx e Engels. Seu livro divide-
se em duas partes: na primeira, a autora traça o que chama de uma possível “história da
infância operária”. Registra aí as condições de trabalho e de ensino das crianças
trabalhadoras do século XIX. Quer demonstrar o contexto histórico vivido pelos pensadores
alemães e a maneira pela qual tal contexto teria sido apreendido na formulação das
concepções educacionais. Na segunda parte, trata propriamente das concepções, tendo
como intuito revelar a gênese da tese de “união do ensino com o trabalho produtivo” a
partir do estudo do processo capitalista de trabalho e das formulações do chamado
socialismo utópico. Além da gênese, apresenta a “evolução” dessa tese pedagógica, o
significado da proposta e o que seria o funcionamento e conteúdo de ensino inerente a essa
concepção.
Tanto em Manacorda quanto em Nogueira, o objetivo é desvelar a concepção
educacional de Marx e Engels. Eles explicitam tal objetivo nas primeiras páginas de seus
livros:
Existe uma pedagogia marxiana? Ou, por outras palavras, será possível isolar no
interior do pensamento de Marx – da sua análise, interpretação e perspectiva de
20
transformação do real – uma indicação direta para estabelecer uma temática
pedagógica distinta da pedagogia do seu e do nosso tempo?20
E:
Com efeito, nosso propósito inicial era o de compreender as formulações de
Marx e Engels, tal qual foram concebidas e se desenvolveram no quadro da obra
e da época, levando-se em consideração, naturalmente, o caráter secundário do
tema no conjunto da produção teórica. Mas uma primeira dificuldade dizia
respeito à ausência de um texto, um ensaio, em síntese, um escrito sistemático
dedicado especificamente à questão. De fato, só dispomos de reflexões parciais,
de textos, via de regra, fragmentários, de passagens esparsas semeadas ao longo
da obra. Compreendemos então que o trabalho deveria consistir em ordenar esse
conjunto de reflexões, observações, indicações dispersas. Entendendo por
“ordenar” o estabelecer relações, articular esses fragmentos, tentando organizá-
los de forma a detectar o fio condutor do pensamento, bem como as opiniões
mais conjunturais (em função, por exemplo, deste ou daquele acontecimento
político) e a existência (ou não) de relações entre os dois21.
Para esses autores, o tema educacional é secundário (em relação a outras temáticas),
mas o é justamente porque buscam isolá-lo do “conjunto da produção teórica” de Marx e
Engels. Esperam reunir fragmentos para valorizar a temática em si. Mas se equivocam ao
supor isso, posto que tal temática só é relevante quando em ligação estreita com as demais
temáticas do pensamento marxista. Na prática, o trabalho que realizam demonstra essa
ligação. Os fios revoltos que unem não são exclusivamente de temática educacional. Às
formulações sobre o ensino propriamente dito agrupam-se formulações sobre o caráter
contraditório do trabalho (fonte de mutilação e de libertação do homem, como vemos
discutido em Manacorda), e sobre a divisão social do trabalho (como vemos em Nogueira).
Em ambos, acompanhamos o modo como trabalham com as categorias marxistas de
Estado, forças produtivas, trabalho, etc. A tese de “união do ensino com o trabalho
produtivo”, que aparace nesses estudos, ganha força, não propriamente em virtude da
sistematização das formulações “educacionais”, mas pelo modo como se liga à tais
categorias. Porque tal tese se vê incorporada à “malha” conceitual e através dela é
20 Manacorda, M. A. Marx e a Pedagogia Moderna, ed. cit., pg. 21. 21 Nogueira, M. A. Educação, Saber, Produção em Marx e Engels, ed. cit., 1990. Pg. 15.
21
compreendida, ganha autonomia, ganha estatuto de uma tese política fundamental na luta
da classe operária.
Parece-nos, de fato, impossível isolar a temática educacional em Marx e Engels do
conjunto de suas formulações teóricas. Assim como nos parece também desnecessário
hierarquizar as temáticas no interior da obra marxista, postulando o caráter secundário
dessa ou daquela. É mais fecundo admitir já de início que o perscrutar da temática
pedagógica nos pensadores alemães faz-se em consonância com o perscrutar dos milhares
de fios que ligam um conceito a outro, uma idéia a outra, sem dissociá-las, sem hierarquizá-
las. Entendemos que a obra marxista anseia à totalidade. Na dialética marxista, tal
totalidade não é soma arbitrária das partes22. Reconhece-se o estatuto autonômo de uma
temática somente em relação ao conjunto da obra, em referência a ela.
Com tudo o que apontamos, não queremos dizer que os estudos acerca da
“pedagogia” marxista são equivocados. Citamos, em particular, Manacorda e Nogueira, não
porque seus trabalhos sejam insuficientes, mas porque nos parecem os textos mais
elucidativos da questão educacional em Marx e Engels. Arriscaríamos a dizer que, no que
se refere às formulações ligadas exclusivamente ao ensino, os estudos de Manacorda e
Nogueira apresentam a melhor sistematização. Trata-se de estudos que evidenciam com a
maior clareza a centralidade de uma tese político-pedagógica nos textos dos dois
pensadores: a já mencionada tese da união do ensino com o trabalho produtivo. O que
poderia ser dito sobre a importância da tese no interior das formulações “educacionais” –
parece-nos – já foi dito por tais estudos. Talvez houvesse ainda aspectos a serem
destacados, contudo o essencial já foi escrito.
Como sabemos, as formulações propriamente “educacionais” são escassas na obra
marxista. Em nada contribuíriamos, se voltássemos ao Manifesto do Partido Comunista,
Trabalho Assalariado e Capital, Crítica ao Programa de Gotha, entre outras obras, para
reordenar os enunciados “pedagógicos” numa nova sistematização (talvez revelássemos
algum aspecto ainda não discutido), entretanto temos apontado que a contribuição de um
estudo dessa natureza só ocorreria se se vinculasse a uma interpretação das categorias
fundamentais do pensamento marxista. Em razão disso, tomando como ponto de partida a
tese supracitada, vamos, na próxima seção nos deter somente em um dos textos que a
22 Cf. Cheptulin, 1982, pg. 76 et seq.
22
apresenta de forma mais completa, mais abrangente e díriamos mais propriamente
“pedagógica”. Trata-se da reprodução do texto das Instruções aos Delegados do Conselho
Central Provisório que participariam do Congresso Internacional da Associação
Internacional do Trabalho (AIT), escrito em 1866.
1.1 A formulação da tese de união do ensino com o trabalho produtivo
Apesar de não contribuir para a fluência do presente texto, nos parece indispensável
reproduzir na íntegra a formulação da tese. Como já dissemos, partimos dela para a análise
e compreensão de conceitos fundamentais da obra de Marx e Engels; reproduzimo-la com o
objetivo, portanto, de que seja o ponto de partida para o entendimento da obra. Com uma
visão mais global desta, chegaremos ao final com uma percepção – esperamos – mais rica
dos termos dessa formulação inicial.
Nós consideramos que a tendência da indústria moderna, em fazer cooperar as
crianças e os adolescentes de ambos os sexos na grande obra da produção social
como um processo legítimo e saudável; qualquer que seja a forma em que se
realize sob o reino do capital, é simplesmente abominável.
Em uma sociedade racional, qualquer criança deve ser um trabalhador produtivo
a partir dos nove anos, da mesma forma que um adulto em posse de todos os
seus meios, não pode escapar da lei da natureza, segunda a qual aquele que quer
comer tem de trabalhar, não só com o seu cérebro, mas também com suas mãos.
Porém, por agora, vamos nos ocupar somente das crianças e dos jovens da classe
operária. Parece-nos útil fazer uma divisão em três categorias, que serão tratadas
de maneira diferente.
A primeira compreende as crianças dos nove aos doze anos; a segunda, dos treze
aos quinze; a terceira, dos dezesseis aos dezessete anos. Propomos que o
emprego da primeira categoria, em todo o trabalho, na fábrica ou no domicílio,
seja reduzido para duas horas; o da segunda, para quatro horas, e o da terceira,
para seis. Para a terceira categoria deve existir uma interrupção de, pelo menos,
uma hora para a comida e o descanso.
Seria ótimo que as escolas elementares iniciassem a instrução das crianças antes
dos nove anos. Porém, por agora, só nos preocupamos com antídotos
absolutamente indispensáveis para resistir aos efeitos de um sistema social que
23
degrada o operário até o ponto de transformá-lo em um simples instrumento de
acumulação de capital e que fatalmente converte os pais em mercadores de
escravos de seus próprios filhos. Os direitos das crianças e dos adultos terão de
ser defendidos, já que não podem fazê-los eles próprios. Daí o dever da
sociedade de combater em seu nome.
Se a burguesia e a aristocracia descuidam-se dos deveres com os seus
descendentes, isto é problema deles. A criança que desfruta os privilégios dessas
classes está condenada a sofrer seus próprios prejuízos.
O caso da classe operária é completamente diferente. O trabalhador individual
não atua livremente. Muitas vezes é demasiadamente ignorante para
compreender o verdadeiro interesse de seu filho nas condições normais do
desenvolvimento humano. No entanto, o setor mais culto da classe operária
compreende que o futuro de sua classe e, portanto, da humanidade, depende da
formação da classe operária que há de vir. Compreende, antes de tudo, que as
crianças e os adolescentes terão de ser preservados dos efeitos destrutivos do
atual sistema. Isto só será possível mediante a transformação da razão social em
força social e, nas atuais circunstâncias, só podemos fazê-lo através das leis
gerais impostas pelo poder do Estado. Impondo tais leis, a classe operária não
tornará mais forte o poder governamental. Ao contrário, fará do poder dirigido
contra elas, seu agente. O proletariado conseguirá então, com uma medida geral,
o que tentaria em vão com muitos esforços de caráter individual.
Partindo disto, afirmamos que a sociedade não pode permitir que pais e patrões
empreguem, no trabalho, crianças e adolescentes, a menos que se combine este
trabalho produtivo com a educação.
Por educação entendemos três coisas:
1. Educação intelectual.
2. Educação corporal, tal como a que se consegue com os exercícios de ginástica
e militares.
3. Educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de caráter científico
de todo o processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os
adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos
industriais.
À divisão das crianças e adolescentes em três categorias, de nove a dezoito anos,
deve corresponder um curso graduado e progressivo para sua educação
intelectual, corporal e politécnica. Os gastos com tais escolas politécnicas serão
parcialmente cobertos com a venda de seus próprios produtos.
24
Esta combinação de trabalho produtivo pago com a educação intelectual, os
exercícios corporais e a formação politécnica elevará a classe operária acima dos
níveis das classes burguesas e aristocrática.
O emprego de crianças e adolescentes de nove a dezoito anos em trabalhos
noturnos ou em indústrias, cujos efeitos sejam nocivos à saúde deve ser
severamente proibido por lei23 (grifos do autor).
Dissemos que tal texto é o mais propriamente “pedagógico”, no entanto, há de
considerá-lo apropriadamente como político-pedagógico. Político, porque seu objetivo
imediato era o controle, através da formulação de leis do Estado, do trabalho de crianças e
adolescentes: “só nos preocupamos com antídotos absolutamente indispensáveis para
resistir aos efeitos de um sistema social que degrada o operário”. Daí que Marx não se
preocupe em formular a reivindicação da escola elementar para crianças abaixo dos nove
anos. Por isso, também afirma que a ele não interessa discutir a situação e “prejuízos” em
geral de todas as crianças, mas somente as da classe operária, porque são estas que sofrem,
de forma imediata, os “efeitos” do sistema social.
Política também é a divisão em três faixas etárias das crianças e adolescentes.
Correspondia à situação concreta de emprego no século XIX. Como poderemos
acompanhar no próximo capítulo, que se apóia no livro A situação da classe trabalhadora
na Inglaterra, de Engels, é aproximadamente nessas faixas etárias que as crianças e
adolescentes são mais empregados nos diferentes ramos da indústria. Engels e Marx (como
fica claro em O Capital) conheciam tal realidade. Como é possível verificar no livro citado,
as crianças de 9 a 10 anos eram as mais freqüentemente utilizadas, por exemplo, nos
trabalho das minas; os adolescentes de 15 a 17 foram, por muito tempo, até que certas leis,
como a de 1833, buscaram barrar tal utilização, empregados nos trabalhos noturnos nas
tecelagens. Em linhas gerais, poderíamos supor que era na faixa dos 9 aos 17 anos que os
filhos dos operários mais estavam vulneráveis à ganância do capital, portanto, fazia-se
necessário estabelecer para essas faixas um limite legal que as “preservasse”.
Obviamente, tais aspectos políticos (determinados pela conjuntura do século XIX)
da formulação “envelheceram”. Nogueira vai afirmar – referindo-se à parte inicial desse
23 Marx, K. & Engels, F. Textos sobre Educação e Ensino. 2. Ed. São Paulo: Editora Moraes, 1992. Pgs. 59-61.
25
texto (no qual se considera a “tendência” da indústria moderna) – que Marx apresentou um
prognóstico equivocado24. Concordamos com a sua posição, porém, o que nos parece
essencial na formulação do texto e o que manteremos ao longo do presente estudo é a idéia
central da necessidade do ensino (da educação) e do trabalho.
De início, no texto, Marx vai afirmar que numa “sociedade racional”, isto é, não
regida pela “anarquia da divisão social do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira
do trabalho”25 todos os membros, em determinada idade devem trabalhar, não fugir da “lei
da natureza”, idéia que elucidaremos melhor no segundo capítulo, quando tratarmos do
trabalho e do que este significa para o ser natural, que é o homem.
Em seguida, afirma que “o futuro de sua classe e, portanto, da humanidade, depende
da formação da classe operária que há de vir”. A idéia de formação está associada à defesa
da educação e da combinação desta com o trabalho produtivo. Os termos dessa formulação
também serão melhor discutidos nos capítulos posteriores: a coincidência entre os
interesses da classe operária e da humanidade, bem como o significado dessa formação para
a futura humanidade. O que buscamos destacar é a importâcia que Marx dá à formação, à
educação, de modo a defini-la em três dimensões (a intelectual, a física e a técnica, ou
científica). Entende que a combinação dessas três elevará a classe operária acima das
demais classes.
Desse modo, supomos que os termos essenciais da formulação pedagógica de Marx
(e que Engels compartilhará) são esses dois: trabalho e educação; a “combinação” destes
dois. Nos próximos capítulos tentaremos revelar os desdobramentos que essa “combinação”
produz.
Utilizaremos, ao longo do estudo, a expressão “união do ensino com o trabalho
produtivo”, porque assim foi consagrada pelos textos que nos servem de apoio.
Desta maneira, a tese da “união do ensino com o trabalho produtivo”, segundo já
afirmamos, será o ponto de partida para que investiguemos as possíveis relações que ela
estabelece com outras temáticas na obra marxista, de modo que os fios que pretendamos
unir contribuam para tecer uma leitura mais rica do pensamento marxista na sua dimensão
política e pedagógica.
24 Cf. Nogueira, op. cit., pg. 29-31. 25 Marx, K. O Capital – Crítica da Economia Política. 8. ed. São Paulo: Difel, 1982. Pg. 408.
26
Capítulo 2
Da Crítica ao ensino e ao trabalho no Capitalismo
Se há, como demonstra Nogueira, uma tradição “pedagógica” que liga Marx e
Engels aos socialistas utópicos (principalmente a Owen), tal ligação só foi possível porque
ambos puderam analisar como tais idéias pedagógicas poderiam atingir as relações sócio-
econômicas em torno das quais militavam.
Consideramos que foi da crítica ao ensino e ao trabalho tal qual observavam no
século XIX que os autores puderam formular suas próprias idéias pedagógicas, as quais,
embora encontrem certo fundamento nas intuições e experiências práticas dos socialistas
utópicos, ganham um conteúdo completamente diferente das que circulavam nesse
momento histórico.
O tema da crítica ao ensino aparece em Nogueira como uma “história da infância
operária”. Em seu livro, com o apoio de textos de historiadores, são descritas as condições
gerais de vida no século XIX para as crianças trabalhadoras, destacando as condições de
ensino.
Pretendemos também apresentar as condições de ensino das crianças trabalhadoras,
no entanto nos deteremos nas descrições e relatos que Engels faz em A situação da classe
trabalhadora, alguns dos quais serviram a Marx na escrita de outros livros, como O
Capital, sobretudo nos capítulos 8 e 13 do livro I, no qual aparecem diversos trechos dessa
obra de Engels, de 1845.
Em seguida passaremos ao exame da crítica ao trabalho tal qual surge em Marx.
Como é fácil de compreender, tal tema é central na obra do autor, seu estudo poderia,
portanto, ocupar todo o nosso texto. Delinearemos somente os aspectos essenciais à crítica
do trabalho apoiando-nos principalmente em alguns livros, como os Manuscritos
Econômicos-Filosóficos, Trabalho Assalariado e Capital e A Ideologia Alemã.
A exposição dessa crítica fundamentará a oposição que a tese de união do ensino
com o trabalho produtivo apresenta em relação às condições gerais de vida da classe
27
trabalhadora, revelando assim sua dimensão histórica, que, em alguns aspectos, foi
superada pelo próprio desenvolvimento da sociedade capitalista e, em outros, mantém sua
atualidade.
2.1 Crítica do Ensino
A defesa da educação pública e gratuita para todas as crianças aparece já no
Manifesto do Partido Comunista como uma medida prática a ser contraposta a sociedade
burguesa do século XIX. Medida que denunciava a situação precária do ensino mesmo nos
“países mais adiantados”. A educação dispensada às crianças das classes mais pobres era
ultralimitada, seu oferecimento bastante reduzido.
Engels, estudando as condições de vida da classe operária na Inglaterra, vai ser
enfático ao afirmar que a instrução é totalmente desprezada, que os capitalistas e seus
governos pouco se preocupam com qualquer formação intelectual ou moral da população:
Se a burguesia só lhes deixa viver o estritamente necessário, não nos
espantaremos ao constatar que só lhes concede o grau de cultura que o seu
próprio interesse exige. E na verdade não é muito. Comparados com o número
da população os meios de instrução são inacreditavelmente reduzidos. Os raros
cursos dados durante a semana à disposição da classe trabalhadora só podem ser
freqüentados por uma minoria reduzidíssima de pessoas e, além do mais, não
valem nada. A maioria dos professores, operários aposentados e outras pessoas
incapazes de trabalhar que só se dedicam ao ensino para poderem sobreviver,
não possuem os conhecimentos suficientes para poder julgar, só suportam os
inconvenientes. Em parte alguma existe freqüência escolar obrigatória. (...) De
resto, muitas crianças trabalham durante toda a semana em casa ou nas fábricas
não podendo freqüentar a escola. Porque as escolas noturnas, onde devem ir os
que trabalham de dia, quase não têm alunos, estes não tiram delas proveito
algum. Na verdade, seria pedir demasiado aos jovens operários que se estafaram
durante doze horas, que ainda fossem à escola das 8 às 10 da noite. (...) É
verdade que se organizaram cursos aos domingos, mas têm falta de professores e
só podem ser úteis aos que já freqüentaram a escola durante a semana. O
intervalo que separa um domingo do seguinte é demasiado longo para que uma
28
criança inculta não tenha esquecido na segunda lição o que aprendera oito dias
antes no decurso da primeira. (…) No seu colossal orçamento de 55.000.000 de
libras esterlinas, o governo previu apenas um ínfimo crédito de 40.000 libras
esterlinas para a instrução pública; e se não fosse o fanatismo das seitas
religiosas, cujos inconvenientes são tão importantes como os melhoramentos que
introduz aqui e ali, os meios de instrução ainda seriam mais miseráveis26
Nesse longo trecho, estão os principais aspectos da crítica ao ensino que Engels
formula. Serão ao longo desse livro, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra,
exemplificados e enriquecidos com argumentos.
O primeiro aspecto é o econômico: “o grau de cultura” depende do “interesse” da
burguesia. De forma incipiente, há aí a condenação da maneira como o ensino é oferecido
às classes trabalhadoras: limitada aos imperativos do capital. Engels vai se referir mais à
frente a essa limitação ao falar de certas escolas noturnas, as “Mechanics´ Institutions”,
onde “ensinam aí as ciências da natureza que distraem os operários da luta contra a
burguesia, e dão-lhes talvez os meios de fazerem descobertas que tragam dinheiro aos
burgueses […]” 27. Na edição que utilizamos há uma nota que explica o que eram as tais
“Mechanics´ Institutions”:
Escolas noturnas onde se dava aos operários uma formação geral e por vezes
técnica. As primeiras foram fundadas em Glasgow (1823) e Londres (1824). No
princípio dos anos 40, contavam-se na Inglaterra mais de 200 estabelecimentos
deste gênero, principalmente nas cidades industriais do Lancashire e do
Yorkshire. Naturalmente, a burguesia servia-se destas escolas para formar os
operários qualificados de que necessitava e influenciá-los num sentido favorável
aos seus interesses”28.
Outro aspecto relevante é o ideológico, o modo pelo qual a instrução é utilizada
pelas seitas religiosas para inculcar nas crianças uma “formação dogmática”. Assim, Engels
afirma que os anglicanos fundaram diversas escolas, as “National Schools”:
A conseqüência disso é que a religião, e precisamente o aspecto mais estéril da
religião, a polêmica, se torna o ponto fundamental da instrução, e que a memória
das crianças é saturada de dogmas incompreensíveis e distinções teológicas: logo
que isso é possível, desperta-se a criança para o ódio sectário e para o espírito
26 Engels, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Global, 1985. Pgs. 130-131. 27 Ibidem, pg. 267. 28 Ibidem, pg. 271.
29
fanático, enquanto que toda a formação racional, intelectual e moral é
vergonhosamente negligenciada”29 (grifo nosso).
As próprias escolas dominicais que, no plano pedagógico, são ineficazes, conforme
afirma Engels, também constituíam extensão da pregação religiosa e não propiciavam
qualquer elevação cultural de seus alunos, muitos dos quais, como relata Engels em outra
parte do livro, mal sabiam ler a Bíblia.
Entretanto, ainda que no trecho escolhido a ideologia que se busca passar às
crianças seja a religiosa, ela pode ser vinculada aos interesses da burguesia e de seu Estado,
porque a religião também é um componente de sua dominação sobre a classe trabalhadora.
Nas palavras de Engels,
[…] os operários já exigiram muitas vezes do parlamento uma instrução pública
puramente laica, deixando a religião para os padres das diferentes seitas, mas
ainda não encontraram um ministério que lhes tivesses concedido semelhante
coisa. É normal! O ministro é o servo obediente da burguesia, e esta divide-se
numa infinidade de seitas; mas cada seita só consente em dar ao trabalhador essa
educação, que outro modo seria perigosa, se este, para além disso, for obrigado a
tomar o antídoto que constituem os dogmas específicos desta seita. E hoje,
enquanto estas seitas continuam a disputar a supremacia, a classe operária
permanece inculta” 30.
Essa função perniciosa da instrução oferecida aos trabalhadores reafirma-se no
mesmo parágrafo em que trata das “Mechanics´ Institutions”:
Ensina-se também economia política, cujo ídolo é a livre concorrência que
ensina para o operário que não pode fazer nada mais razoável do que morrer de
fome com uma calma resignação. Qualquer educação que aí ministrem tende a
torná-lo dócil, servil relativamente à política e à religião reinantes, de tal modo
que se transforma para o operário numa contínua exortação à obediência
tranqüila, à passividade e à submissão ao seu destino31.
Não nos deteremos aqui mais sobre esses dois aspectos (o ideológico e o
econômico) da escassa instrução fornecida aos trabalhadores, pois será objeto de análise do
quarto capítulo. Vamos nos deter agora em dois outros aspectos do trecho apresentado no
início. Um se refere à possibilidade de as crianças e trabalhadores em geral poderem
29 Ibidem, pg. 131. 30 Ibidem, pg. 131. 31 Ibidem, pg. 267.
30
freqüentar mesmo essas escassas escolas, e o outro, ao que podemos chamar de “qualidade”
desse ensino.
Quanto à possibilidade de os trabalhadores estudarem, ela se apresenta limitada.
Engels vai mostrar como o trabalho exaustivo e diário é um impeditivo ao ensino regular.
Não conseguem freqüentar as aulas diariamente, pois o cansaço físico e mental depois de
10 até 16 horas de trabalho é muito grande.
Nos distritos de cerâmica [da indústria de cerâmica], asseguram-me que há um
número importante de escolas que permitem que as crianças se instruam, mas
como estas crianças vão desde muito cedo para a fábrica e aí tem de trabalhar
muito tempo (freqüentemente doze horas ou mais), estão impossibilitadas de
utilizá-las32.
Vai também dar inúmeros relatos de crianças trabalhadoras que dormiam durante as
aulas que assistiam. Outro fator impeditivo é a retirada desde “a tenra idade” das crianças
da escola para que possam trabalhar nas fábricas e nas minas. Afirma em diferentes
passagens essa situação. Mostra como nos distritos carboníferos, onde o serviço é nas
minas, as crianças começam a trabalhar a partir dos 8 anos, portanto,
[…] sua formação intelectual é totalmente neglicenciada. Não podem freqüentar
as escolas abertas durante a semana, as escolas noturnas e dominicais são
ilusórias, os professores não têm qualquer valor. Só existe, portanto, um pequeno
número de mineiros que sabem ler, e menos ainda que sabem escrever33.
Nos distritos metalúrgicos, a situação não é muito diferente:
Ressalta o Children´s Employment Report que em Birmingham mais de metade
das crianças entre os cinco e os quinze anos não freqüentam nenhuma escola, e
os que vão à escola mudam de estabelecimento freqüentemente, de maneira que
é impossível dar-lhes uma sólida instrução, e que as crianças são retiradas muito
cedo da escola para irem trabalhar34.
Em outras cidades, relata os mesmos inconvenientes para o acesso das crianças à
educação:
Nesta região [Sedgeley e nos seus arredores], o grau de instrução é incrivelmente
baixo, metade das crianças nem sequer freqüenta a escola dominical e a outra
metade das crianças só o faz com muita irregularidade; em comparação com
outros distritos, muitos poucos sabem ler e escrevem pior ainda. Nada mais
32 Ibidem, pg. 234. 33 Ibidem, pg. 282. 34 Ibidem, pg. 227.
31
natural, visto que é entre sete e dez anos que as crianças começam a trabalhar,
precisamente no momento em que seriam capazes de freqüentar a escola com
aproveitamento, e os professores da escola de domingo – ferreiros ou mineiros –
muitas vezes mal sabem ler, não sendo capazes de escrever o próprio nome35.
Poderíamos ainda citar muitas outras passagens que expõem tal situação da
instrução das crianças trabalhadoras. Nogueira, como dissemos, realiza um estudo mais
aprofundado dessas condições de ensino no século XIX, no entanto, para os nossos
objetivos tais trechos demonstram a visão que o autor tinha de tal situação. Ressalta-se a
brutalização dos trabalhadores, os quais, submetidos às condições de existência, que eram
miseráveis, “escolhiam” o trabalho extenuante em vez da instrução de si e de seus filhos.
Marx, em O Capital, vai destacar como atua essa “escolha” dos trabalhadores:
Temos de confessar que nosso trabalhador sai do processo de produção de
maneira diferente daquela em que nele entrou. No mercado encontramo-lo como
possuidor da mercadoria chamada força de trabalho, em face de outros
possuidores de mercadorias, vendedor em face de outros vendedores. O contrato
pelo qual vendeu sua força de trabalho ao capitalista demonstra, por assim dizer,
preto no branco que ele dispõe livremente de si mesmo. Concluído o negócio
descobre-se que ele não é nenhum agente livre, que o tempo em que está livre
para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la e que
seu vampiro não o solta “enquanto houver um músculo, um nervo, uma gota de
sangue a explorar”. Para proteger-se contra “a serpe de seus tormentos” têm os
trabalhadores de se unir e como classe compelir a que se promulgue uma lei, que
seja uma barreira social intransponível capaz de impedi-los definitivamente de
venderem a si mesmos e sua descendência ao capital, mediante livre acordo que
os condena à morte e à escravatura 36.
O último aspecto daqueles apresentados em Engels sobre a situação da instrução
refere-se ao que modernamente chamamos de “qualidade” do ensino, isto é, as condições
gerais em que o ensino é ministrado. Nesse ponto, Engels indica que o grande culpado
pelas condições precárias das já reduzidas escolas é o Estado, que pouco tem feito para
investir na instrução.
O extrato, citado no início, indica que o montante de recursos destinados à educação
pública é escasso. Não há preocupação em oferecer uma “cultura” aos trabalhadores, pois,
35 Ibidem, 229. 36 Marx, K. O Capital – Crítica da Economia Política, ed. cit, pg. 344-345
32
na compreensão do autor, tal cultura poderia reverter contra o próprio Estado e a classe dos
exploradores. Fora essa falta de investimento, que é o primordial na questão, o Estado não
fez esforços para implementar leis que tornassem o ensino obrigatório e, quando o fez,
como quando aprovou uma Lei de 1833 (entre outras medidas, estabelecia freqüência
obrigatória de, no mínimo, duas horas diárias a todas as crianças com idade inferior a 14
anos), não criou os mecanismos para fazer com que fosse cumprida. Engels escreve então
em 1845, referindo-se a essa lei:
No que diz respeito à obrigatoriedade improvisada, pode-se dizer que ficou sem
efeito, porque simultaneamente o governo não se preocupou em abrir escolas em
boas condições. Os industriais contrataram operários aposentados aos quais
enviam as crianças duas horas por dia, cumprindo assim a letra da lei, mas as
crianças não aprendem nada37.
O autor vai repetir ao longo do livro que a maior parte dos professores não eram
qualificados para sua função, e que a própria atividade do magistério não era muito
“respeitável”: nela estavam os aposentados de diferentes profissões, senhoras viúvas, e até
“homens condenados por roubo”, todos eles com conhecimentos bastante duvidosos,
muitos dos quais, como apontavam os relatórios a que teve acesso Engels, mal sabiam ler
ou escrever.
Esses aspectos nos permitem identificar o modo como a crítica ao ensino constitui
parte das formulações de Marx e Engels no campo educacional e explicam, em parte, “a
origem da sua defesa – no quadro dos debates da Associação Internacional dos
Trabalhadores – das palavras de ordem por um escola pública, obrigatória, gratuita e
laica”38. Contudo, é bom destacar a diferença entre o significados das bandeiras,
reivindicações tais como aparecem nos textos dirigidos às organizações políticas das quais
Marx e Engels participaram (Liga dos Comunistas e a AIT) e as formulações mais teóricas
encontradas em outros livros.
Como Marx e Engels afirmam no Prefácio à edição Alemã de 1872 do Manifesto
Comunista, as reivindicações devem ser atualizadas39, as táticas de luta devem
37 Engels, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, ed. cit., pg. 195. 38 Nogueira, M. A. Educação, Saber, Produção em Marx e Engels, ed. cit., pg. 85. 39 “Apesar das condições terem se alterado consideralvemente nos últimos vinte e cinco anos, os princípios gerais desenvolvidos neste Manifesto conservam, grosso modo, ainda hoje toda a sua razão de ser (…) A aplicação prática desses princípios – o Manifesto deixa claro – dependerá sempre e em toda parte das circunstâncias históricas dadas”, in Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM, 2005, pg. 13.
33
corresponder ao movimento histórico concreto, as palavras de ordem devem se adequar às
condições da luta.
Queremos dizer, com isso, que o contexto histórico encontra-se presente na
elaboração das idéias pedagógicas, mas as formulações propriamente ditas não se prendem
a esse contexto (as décadas de 40 a 80 do século XIX), porque a gênese dessas formulações
deve ser buscada na crítica à sociedade de classes, em particular, a sociedade burguesa.
A crítica ao ensino tem sua materialidade exposta a partir da situação de ensino na
Inglaterra do século XIX. Evidencia-se aí que o acesso e a “qualidade” do ensino estão
intimamente ligados ao desenvolvimento da sociedade capitalista: é fato que os países mais
“adiantados” do capitalismo, hoje, tem um quadro muito diferente deste retratado por
Engels e Marx. Mas os outros aspectos destacados, o econômico e ideológico, não podem
ser reduzidos ao contexto de surgimento das formulações. A crítica transcende o contexto,
porque é uma crítica do próprio ensino nas sociedades de classe.
Assim Engels se expressa:
Vemos o que a burguesia e o Estado fizeram pela educação e instrução da classe
trabalhadora. Felizmente as condições em que esta classe vive proporcionam
uma cultura prática, que não só substitui a ineficiência escolar mas destrói
igualmente o efeito pernicioso das confusas idéias religiosas em que está
mergulhada, que coloca os trabalhadores na cabeça do movimento nacional da
Inglaterra. A necessidade ensina o homem a inventar e, o que é mais importante,
a pensar e a agir (...) Se não sabe escrever, sabe falar e falar em público; se não
sabe aritmética, sabe no entanto o suficiente para fazer, com base em noções de
economia política, os cálculos para desmascarar e refutar um burguês partidário
da abolição da lei dos cereais; se, apesar do esforço a que se entregam os padres,
as questões celestiais permanecem bastante obscuras para ele, não podia estar
mais esclarecido sobre as questões terrenas, políticas e sociais40.
Há aí a visão de que o ensino não necessariamente precisa estar vinculado à
instrução escolar, de que o ensino que interessa às classes trabalhadoras provém das
relações sociais, da “necessidade”; visão que encontra certa ressonância na tese central do
pensamento pedagógico dos autores: a tese da união do ensino com o trabalho produtivo,
porque já é parte da vida do proletariado, o trabalho produtivo.
40 Engels, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, ed. cit, pg. 134.
34
Engels chega a afirmar que a falta de instrução escolar tem certos benefícios à classe
trabalhadora:
A insuficiência da sua educação preserva-o dos preconceitos religiosos; não
compreende e não se preocupa com isso, ignora o fanatismo de que a burguesia
está prisioneira, e se professa alguma religião é apenas de um modo formal que
nem sequer é teórico – na prática só vive para este mundo e procura ganhar nele
direito de cidadania (…) E, tal como as condições de existência, a ausência de
educação religiosa e de outra instrução contribui para tornar os trabalhadores
mais desembaraçados, menos prisioneiros de princípios tradicionais e
conservadores e de opiniões preconcebidas que o burguês41.
A educação tal como a praticada na sociedade de classe carrega os preconceitos que
interessam à classe dominante, afastar-se, portanto, dessa educação tem certas vantagens,
ainda que se mergulhe na ignorância certos aspectos da cultura e do conhecimento.
Porém, a própria ignorância em assuntos da cultura pode ser combatida pela
organização da classe trabalhadora. É o que Engels afirma ao citar os chamados “institutos
socialistas”, nos quais há uma “educação verdadeiramente proletária” e para os quais a
“grande massa dos operários” dirige-se a fim de se educar nas
[…] discussões sobre as relações sociais, que a interessam diretamente (…).
Além disso, as numerosas e concorridas conferências sobre assuntos científicos,
estéticos e econômicos que se organizam muitas vezes em todos os institutos
proletários, sobretudo nos institutos socialistas, demonstram que os operários
também gostam de uma “educação séria”, desde que esta não esteja misturada
com os interesses da burguesia42.
Como se vê, o ponto de vista do autor ultrapassa os limites de um determinado
contexto histórico. Nesse sentido, a questão fundamental da crítica ao ensino é a
possibilidade ou não de servir aos interesses da classe trabalhadora. No século XIX, não
podia servir porque nem a ela a “massa proletária” podia ter acesso, mas também porque tal
ensino organizava-se em torno de interesses distintos aos dela. A “influência da classe
dominante” sobre a educação aparece no Manifesto do Partido Comunista, de 1848,
entretanto, conforme afirmamos, o aspecto ideológico será tema de outro capítulo, o que é
relevante apontar aqui, retomando a questão da diferença entre as reivindicações e
formulações no interior da obra marxista, é que o “problema do ensino” não é resolvido
41 Ibidem, pg. 145. 42 Ibidem, pg. 267.
35
com a superação do contexto histórico descrito por Engels. A reivindicação da “escola
pública, obrigatória, gratuita e laica”, assim como a formulação da “união do ensino com o
trabalho produtivo”, conquanto vinculadas à situação do ensino em determinado contexto
histórico, não podem ser compreendidas e, portanto, superadas apenas com a posterior
expansão do ensino, sua universalização nos países mais desenvolvidos, como a Inglaterra
ou França. Nos textos mais “agitativos”, de propaganda, dos autores, as bandeiras
vinculadas ao ensino serviam de denúncia do contexto vivenciado pela classe operária e
podem apresentar aspectos “envelhecidos”, mas, no conjunto da obra, as formulações
acerca do ensino redimensionam-se no interior da crítica à sociedade de classes e às suas
instituições. Característica que dá a tais formulações uma vitalidade, que não se perde ao
longo de mais de um século, mas adquire uma significação mais precisa e permite uma
interpretação contemporânea.
2.2 Crítica do Trabalho
Perseguir o conjunto de idéias acerca do trabalho em Marx e Engels já delongaria
todo um estudo. Concepção fundamental do pensamento marxista, o trabalho, como afirma
Manacorda, é dual, assume em algumas partes da obra uma “expressão negativa” e, em
outras, adquire o estatuto de “manifestação vital do ser”. Compreender tal “antinomia
lógica”, conforme denomina o autor citado, é salutar para avançar no entendimento da tese
pedagógica dos dois pensadores.
Para tanto, vamos subdividir o estudo dessa parte detalhando a forma pela qual o
trabalho aparece em alguns dos textos de Marx.
2.2.1 O trabalho em A Ideologia Alemã
36
Manacorda afirma que é em A Ideologia Alemã que o trabalho assume tão somente
uma expressão negativa. De fato, a concepção de trabalho é predominantemente negativa.
No entanto, há de se ressaltar que é nessa obra que um esboço do desenvolvimento
histórico da sociedade humana se apresenta, tendo como ponto de partida a diferenciação
do homem em relação ao animal. Diferenciação que se manifesta através da produção dos
próprios meios de existência, isto é, através do trabalho.
Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência pela religião ou por
tudo o que se queira. No entanto, eles próprios começam a se distinguir dos
animais logo que começam a produzir seus meios de existência, e esse salto é
condicionado por sua constituição corporal. Ao produzirem seus meios de
existência, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material43.
Alguns parágrafos depois, os autores explicam:
Da maneira como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles
são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem como com
o modo como produzem44.
Claramente definida, nessas linhas, está a concepção de que é o trabalho que forja o
homem enquanto “espécie humana”, como “ser genérico”, como diria nos Manuscritos
Econômicos-Filosóficos. Fundamento do humano, o trabalho é, ao longo da história,
aspecto constitutivo dos indivíduos. Esteve presente na origem e manifesta-se ainda hoje e
sempre. Não é algo de que o homem pode apartar-se, livrar-se, justamente porque qualquer
separação do trabalho é a separação com sua própria humanidade, e por conseqüência como
o seu “ser social”:
A produção da vida, seja da própria vida pelo trabalho, seja a de outros, pela
procriação, nos aparece a partir de agora como dupla relação: de um lado, como
relação natural, de outro, como relação social – social no sentido em que se
compreende por isso a cooperação de vários indivíduos, em quaisquer condições,
modo e finalidade45.
É evidente que, se o trabalho apresenta essa positividade para a História humana,
algo necessário no interior dessa própria História ocorreu para que o trabalho assumisse um
caráter negativo. A transformação do trabalho não é o autodesenvolvimento do conceito de
trabalho, como poderia aparecer numa filosofia hegeliana, mas o processo real pelo qual os
43 Marx, K. & Engels, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2004. Pg. 44. 44 Ibidem, pg. 45. 45 Ibidem, pg. 55.
37
homens tiveram que produzir os seus meios de existência, e adquiriram a consciência das
relações que mantinham com os demais membros da sociedade.
Esse início é tão animal quanto a própria vida social nessa fase: trata-se de
simples consciência gregária (…) Essa consciência gregária ou tribal
desenvolve-se e aperfeiçoa-se posteriormente em razão do crescimento da
produção, do aumento das necessidades e do aumento populacional, constituindo
este último a base dos dois primeiros. E desse modo se desenvolve a divisão do
trabalho (…) [que] só vai efetivamente se tornar divisão a partir do momento em
que surge uma divisão entre o trabalho material e o espiritual46.
Mais à frente, apoiando-se nessa formação histórica, os autores mostram a origem
da degradação do trabalho:
[...] com a divisão do trabalho, é dada a possibilidade, mas ainda, a realidade, de
que a atividade espiritual e a material (a fruição e o trabalho, a produção e o
consumo), acabam sendo destinados a indivíduos diferentes; e a possibilidade de
não entrarem esses elementos em conflito está unicamente no fato de que a
divisão do trabalho possa ser novamente suprimida47.
Reafirmam isso em outras palavras:
A divisão do trabalho […] envolve ao mesmo tempo a distribuição, e, com
efeito, a distribuição desigual, quantitativa e qualitativamente, do trabalho como
de seus produtos […] Além do que, divisão do trabalho assim como
propriedades privadas, são expressões idênticas: pois na primeira se enuncia em
relação à atividade aquilo que se enuncia na última em relação ao produto dessa
atividade48.
Vemos assim que o texto de A Ideologia Alemã é elucidativo do ponto de vista das
origens da degradação do trabalho, daí seu caráter predominantemente negativo. Posto que
essa expressão negativa do trabalho não tem sua gênese na vontade dos homens, ou no
modo como o apreendem, na sua subjetividade, a negatividade do trabalho não é caráter
exclusivo ou fundamental dele, mas nasce das condições históricas, nas quais predomina a
necessidade e os meios de existência são escassos.
A negatividade do trabalho provém, desse modo, do produto das necessidades
históricas, isto é, da divisão das atividades laboriosas do homem. A divisão do trabalho é
46 Ibidem, pg. 57. 47 Ibidem, pg. 58. 48 Ibidem, pg. 59.
38
essencialmente negativa, pois é o resultado das privações humanas, do modo como os
homens produziam seus meios de existência. A propriedade privada aparece assim como a
cristalização dessa divisão; a força estranha que aparece aos homens e os domina, quando
ela própria é a expressão de um tipo histórico de trabalho, o trabalho fragmentado, dividido
nas esferas intelectual e manual.
Tais considerações nos levam a crer que, antes de ser “sempre e somente expressão
negativa” (nas palavras de Manacorda), é, em A Ideologia Alemã, que o trabalho assume
integralmente o estatuto de “manifestação vital do ser”. Desloca-se essa negatividade da
constituição do “trabalho” para atribuí-la quase que exclusivamente à “divisão do trabalho”.
Tal ponto de vista nos parece patente no trecho a seguir:
Por isso, desde o momento em que o trabalho começa a ser dividido, cada um
dispõe de uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e
da qual não pode sair; o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico, e
aí permanecerá caso não queira perder seus meios de sobrevivência – já na
sociedade comunista, onde o indivíduo não tem uma única atividade, mas pode
aprimorar-se no ramo que o satisfaça, a produção geral é regulada pela que me
dá a possibilidade de hoje fazer determinada coisa, amanhã outra, caçar pela
manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar depois do jantar,
segundo meu desejo, sem jamais me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.
Essa fixação da atividade social, essa consolidação de nosso próprio produto em
um poder objetivo superior a nós mesmos, além do nosso controle, em
contradição com as nossas expectativas e que reduz a nada nossos cálculos, é um
dos momentos principais do desenvolvimento histórico que tivemos até aqui 49.
Fica claro que a condenação que os autores fazem não se dirige ao trabalho
propriamente dito, mas à sua divisão, à “fixação da atividade social”. Quando vêem a
sociedade comunista, não a vêem sem o trabalho, mas sem tal divisão.
Entendemos assim que as diferentes passagens do texto que indicam a necessidade
de suprimir o trabalho tem uma dupla característica: apontam, por um lado, para o poder
opressivo que a divisão do trabalho criou sobre os homens.
[A oposição entre a cidade e o campo] é a expressão mais explícita da
subordinação do indivíduo à divisão do trabalho, a uma determinada atividade
que lhe é imposta (...) O trabalho é igualmente aqui o dado fundamental, o poder
49 Ibidem, pgs. 59-60.
39
sobre os indíviduos, e enquanto existir esse poder existirá também propriedade
privada50.
O trecho esclarece que esse poder que deve ser destruído produz a propriedade
privada, e “enquanto existir esse poder existirá também propriedade privada”. Ora, não foi
o trabalho que criou as bases históricas da propriedade, mas a divisão do trabalho que o fez,
afinal, propriedade privada e divisão do trabalho são “expressões idênticas”.
Por outro lado, a idéia da supressão do trabalho, é a idéia da supressão do modo
como o trabalho se constituiu historicamente a partir da divisão. É a afirmação da
necessidade de suprimir o trabalho assalariado: “em vez deste lema conservador: ´Um
salário justo por uma jornada de trabalho justa!´, deverá inscrever na sua bandeira esta
divisa revolucionária: ´Abolição do sistema de trabalho assalariado´” 51, porque essa é a
forma histórica que o trabalho assumiu na sociedade capitalista. E também a afirmação de
suprimir o trabalho alienado, uma vez que esse trabalho alienado é a manifestação da
sociedade dividida em classes.
Da relação da propriedade privada com o trabalho alienado percebe-se ainda que
a emancipação da sociedade quanto à propriedade privada, à servidão, adquire a
forma política da emancipação dos trabalhadores; não na acepção de que
somente está implicada a emancipação dos últimos, mas porque tal emancipação
inclui a emancipação da humanidade como totalidade, uma vez que toda a
servidão humana se encontra envolvida na relação do trabalhador com a
produção e todos os tipos de servidão se manifestam exclusivamente como
alterações ou conseqüências da referida relação52.
Nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de onde extraímos esse último trecho, e
que também foi escrito no começo da década de 40 como A Ideologia Alemã, há uma
passagem na qual Marx expõe de forma clara que o trabalho não vai ser reduzido ou
suprimido, mas antes estendido ao conjunto da sociedade: “[Na sociedade comunista] o
papel do trabalhador não é eliminado, mas estende-se a todos os homens”53.
Resulta daí que a revolução comunista defendida por Marx e Engels busca
transformar a forma dessa atividade, que é o trabalho, restituindo-lhe seu estatuto de
50 Ibidem, pg. 83. 51 Marx, K. Salário, Preço e Lucro in: Trabalho Assalariado e Capital & Salário Preço e Lucro. São Paulo: Expressão Popular, 2006. Pg. 142. 52 Idem. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003. Pg. 121. 53 Ibidem, pg. 136.
40
manifestação vital do ser, por isso, destrói não propriamente o trabalho, mas o modo como
se constituiu a partir de sua divisão.
[…] nas revoluções do passado a forma de atividade se mantinha invariável, e
buscava-se somente obter uma outra forma de distribuição dessa atividade, uma
nova divisão do trabalho entre outras pessoas, ao passo que a revolução
comunista é conduzida em oposição ao modo anterior de atividade, pois suprime
o trabalho54.
As revoluções anteriores não puderam acabar com a divisão do trabalho,
mantiveram-na sob forma diferente, mais social e menos natural. É preciso, pois, destruir a
divisão do trabalho, o que significa suprimir o produto moderno dessa divisão, que é o
trabalho assalariado, alienado.
Aliás, a possibilidade de destruir a divisão do trabalho só é dada historicamente a
partir do trabalho moderno, do trabalho assalariado. Primeiro, enquanto fator objetivo,
revela que a divisão do trabalho perdeu todo o caráter natural, visto que o trabalho servil ou
escravo ainda está ligado fundamentalmente à terra:
O trabalho é ainda só uma alienação determinada, particular, do homem, da
mesma maneira que o seu produto se concebe também como uma determinada
riqueza – que se atribui mais à natureza do que ao próprio trabalho. A terra
contempla-se aqui como algo natural ainda independente do homem, não como
capital, isto é, como um momento do próprio trabalho. Pelo contrário, o trabalho
surge como um momento da natureza55.
Segundo, enquanto fator subjetivo, ou seja, fator que modifica a consciência que os
trabalhadores assalariados têm dessas relações de produção modernas em relação à
consciência dos trabalhadores das épocas anteriores.
[…] encontra-se ainda entre os artesãos da Idade Média um interesse por seu
trabalho particular e pela habilidade em exercê-lo, que podia atingir até um certo
sentido artístico. É também por isso que cada artesão, no feudalismo, se
entregava totalmente ao seu trabalho, ao qual mantinha uma agradável relação de
submissão e ao qual estava muito mais subordinado do que o trabalhador
moderno, que é indiferente em relação ao seu trabalho56.
54 Marx, K. & Engels, F. A ideologia alemã, ed. cit, pg. 106. 55 Marx, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos, edit. cit, pg. 133. 56 Marx, K. & Engels, F. , op. cit., pg. 86.
41
É assim que o trabalhador assalariado, produto da atual divisão do trabalho, pode
concluir que “as relações com o capitalista se fazem insuportáveis (...) mas igualmente o
seu próprio trabalho”57.
Para encerrar essa exposição da concepção de trabalho em A Ideologia Alemã,
vamos destacar o aspecto “positivo” do trabalho mesmo na sua forma histórica “negativa”,
contrapor dessa forma “a atividade em si” à sua expressão negativa.
À medida que a divisão do trabalho se desenvolve e a acumulação aumenta, mais
se torna aguda a fragmentação. O próprio trabalho só pode subsistir sob o
pressuposto desssa fragmentação.
Aqui, pois, surgem dois fatos. O primeiro é que as forças produtivas aparecem
como totalmente independentes e separadas dos indivíduos, como um mundo
apartado ao lado deles. O que se fundamenta no fato de que os indivíduos, dos
quais as forças produtivas se compõem, existem como indivíduos separados e
em oposição mútua, ao passo que, por outro lado, essas forças só são forças reais
no intercâmbio desses mesmos indivíduos. Por um lado, então, temos uma
totalidade de forças produtivas que adquiriram como que uma forma objetiva e
que, para os próprios indivíduos, não são mais suas próprias forças, mas as da
propriedade privada e, por isso mesmo, são apenas as forças dos indivíduos
enquanto proprietários privados. Em nenhum período anterior as forças
produtivas haviam tomado essa forma indiferente para as trocas dos indivíduos
enquanto indivíduos, porque suas próprias trocas eram ainda limitadas (...)
O trabalho, única conexão que os indivíduos ainda mantém com as forças
produtivas e com a sua própria existência, perdeu para eles toda a aparência de
atividade de si mesmos e só conserva sua vida atrofiando-a 58.
Fundamental nessa maneira de encarar o trabalho é que, na medida em que este se
torna a “única conexão” com as forças produtivas, e estas se compõem dos próprios
indivíduos vivos e só são “forças reais” quando estão em intercâmbio entre eles, o trabalho
torna-se também a conexão do indivíduo consigo mesmo e com os membros da sociedade.
Embora Marx e Engels afirmem que o trabalho, hoje, é “atividade de si negativa”, é pelo
trabalho que o indivíduo mantém a “atividade de si”, sua manifestação vital. Essa é uma
conclusão cara para nós porque significa que as transformações sociais originadas mesmo
por uma Revolução Socialista não podem de um só golpe transformar o trabalho, tal como
57 Ibidem, pg. 96. 58 Ibidem, pgs. 102-103.
42
se constituiu historicamente, mas podem retirar-lhe seu caráter mais degradante que é
constituir-se como trabalho não para si, mas para um outro estranho. O que significa dizer
que a Revolução deve destruir as amarras que prendem as forças produtivas: a propriedade
privada dos meios de produção. Entretanto, o trabalho manterá seu caráter de manifestação
vital do ser e, uma vez que a conexão com “as forças produtivas e com sua própria
existência” já está colocada, ele pode ser desenvolvido na sua positividade. Esse modo de
encarar o trabalho, mesmo no capitalismo, justifica o que posteriormente Marx afirmará ser
o aspecto progressivo do sistema de fábricas para a educação das crianças. Justifica assim o
que mais tarde, em outras obras, se definirá como a tese da união do ensino com o trabalho
produtivo.
Do sistema fabril, conforme expõe pormenorizadamente Robert Owen, brotou o
germe da educação do futuro que conjugará o trabalho produtivo de todas as
crianças além de uma certa idade com o ensino e a ginástica, constituindo-se em
método de elevar a produção social e de único meio de produzir seres humanos
plenamente desenvolvidos59.
2.2.2 O trabalho nos “Manuscritos Econômicos-Filosóficos”, no “Trabalho Assalariado e
Capital” e no “Salário, Preço e Lucro”
Como já nos detivemos em A Ideologia Alemã, não discorreremos sobre o conjunto
de reflexões que as obras dessa seção trazem à concepção de trabalho. Com efeito, apenas
ilustraremos alguns aspectos das idéias já apresentadas, reforçando alguns pontos só
mencionados.
É nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos e no Trabalho Assalariado e Capital
(bem como no Salário, Preço e Lucro) que o trabalho é apresentado em sua forma histórica
atual, isto é, como trabalho assalariado e trabalho alienado. Como já dissemos, o trabalho
alienado está associado à existência da propriedade privada dos meios de produção e à
divisão do trabalho, portanto, ele é um pressuposto do trabalho assalariado. O trabalho
59 Marx, K. O Capital – Crítica da Economia Política, t. 1, ed. cit., pg. 554.
43
escravo pode, a seu turno, ser considerado um trabalho alienado na medida em que o
produto não pertence ao produtor, mas a um não-produtor. O mesmo pode ser dito sobre o
trabalhador moderno, que têm parte da sua força de trabalho não paga pelo capitalista, que
é um não-trabalhador. Em ambos, já são pressupostos a divisão do trabalho e a propriedade
privada. Mas, como se pode perceber, a alienação do trabalho é um aspecto mais geral que
existe nas diferentes formas que assume o trabalho.
Analisamos o ato de alienação da atividade prática humana, o trabalho, segundo
dois aspectos: 1) A relação do trabalhador com o produto do trabalho como a um
objeto estranho que o domina. Tal relação é ao mesmo tempo a relação com o
mundo externo sensível, com os objetos naturais, assim como com um mundo
estranho e hostil; 2) A relação do trabalho com o ato da produção dentro do
trabalho. Tal relação é a relação do trabalhador com a própria atividade assim
como com alguma coisa estranha, que não lhe pertence, a atividade como
sofrimento (passividade), a força como impotência, a criação como emasculação,
a própria energia física e mental do trabalhador, a sua vida pessoal – e o que será
a vida senão atividade? – como uma atividade dirigida contra ele, independente
dele, que não lhe pertence. Essa é a auto-alienação, em contraposição com a
acima mencionada alienação da coisa60 (grifo do autor).
Ao lado dessas duas determinações, haveria uma terceira, ligada à especificidade do
homem enquanto ser genérico.
O animal identifica-se prontamente com a sua atividade vital. Não se diferencia
dela. É a sua própria atividade. Mas o homem faz da atividade vital o objeto da
vontade e da consciência. Possui uma atividade vital lúcida. Ela não é uma
deliberação com a qual ele imediatamente coincide. A atividade vital lúcida
diferencia o homem da atividade vital dos animais. Só por esse motivo é que ele
é um ser genérico. Ou então, só é um ser lúcido, ou melhor, a sua vida é para ele
um objeto, porque é um ser genérico. Exclusivamente por este motivo é que a
sua atividade surge como atividade livre. O trabalho alienado inverte a relação,
uma vez que o homem, enquanto ser lúcido, transforma a sua atividade vital, o
seu ser, em simples meio de sua existência61 (grifo do autor).
O trabalho aliena-se na medida em que: a) o resultado do trabalho não pertence ao
próprio trabalhador; b) quando o próprio ato de trabalhar é uma atividade estranha às
60 Idem. Manuscritos Econômico-Filosóficos, edit. cit, pg. 115. 61 Ibidem, pg. 116.
44
necessidades do homem; e c) quando o trabalho, manifestação da atividade vital do ser
genérico, transforma-se de fim consciente, “lúcido”, em meio (de existência).
Essas três determinações do trabalho alienado provocam no homem dois outros
tipos de alienação: a alienação de si mesmo e de si para com os outros homens.
[o trabalho alienado] aliena do homem o próprio corpo, assim como a
característica externa, a sua vida intelectual, a sua vida humana.
[…] Quando o homem se contrapõe a si mesmo, entra do mesmo modo em
oposição com os outros homens. O que se constata na relação do homem com o
seu trabalho, com o produto do seu trabalho e com si mesmo, constata-se
também com a relação do homem com os outros homens, bem como com o
trabalho e com o objeto do trabalho dos outros homens 62 (grifo do autor).
A possibilidade de se destruir o trabalho alienado é dado pela relação que este
mantém com a propriedade privada. Conforme dissemos no início da seção, o trabalho
alienado pressupõe a propriedade privada. Como afirma Marx, a apreensão do conceito de
“trabalho alienado” nasce da observação do desenvolvimento da propriedade privada, no
entanto esta seria a conseqüência e não a causa do próprio trabalho alienado:
[…] embora a propriedade privada apareça como o fundamento, a causa do
trabalho alienado, constitui antes a conseqüência deste último, da mesma
maneira que os deuses são essencialmente, não a causa, mas o produto dos
absurdos da inteligência humana. Entretanto, num estágio seguinte, há influência
mútua63.
Como se pode observar, a existência da propriedade privada é a negação de
qualquer outra forma de trabalho, porque constituiu ao longo da história o local apropriado
à sua alienação. A propriedade privada é assim “de uma lado, o produto do trabalho
alienado e, por outro, (…) o meio pelo qual o trabalho se aliena, a realização da
alienação”64 (grifo do autor).
Como, ao mesmo tempo, tornou-se produto e meio, é na luta contra a propriedade
privada que o trabalho pode se libertar. Porque a propriedade privada moderna contém uma
dupla relação: “relação da propriedade privada como trabalho” e “relação da propriedade
privada como capital”, essa dupla relação indica aos homens que a propriedade privada é a
manifestação pura e simples do trabalho humano, despojado de qualquer característica
62 Ibidem, pg. 118. 63 Ibidem, pg. 120. 64 Ibidem, loc. cit.
45
natural. Assim, a propriedade privada tornou-se uma relação econômica, de intercâmbio
entre os homens, não estando ligada diretamente à natureza (à terra) – pois é produto do
trabalho humano alienado –, nem a qualquer valorização social porque “o mesmo capital
continua a ser idêntico nas mais diversas condições naturais e sociais” 65.
Trata-se, portanto, na moderna propriedade privada, desvinculada dos seus laços
com o solo (com o modo de produção feudal), da manifestação direta de um tipo particular
de trabalho, o trabalho assalariado. O trabalho elevado à “indiferença”, sem um sentido
social, chegando “à plena existência para si mesmo”. Trabalho alienado em seu mais alto
grau, o trabalho assalariado é o verdadeiro responsável pela grande indústria:
Mas o indispensável desenvolvimento do trabalho é a indústria colocada em
marcha, constituída como tal para si, e o capital mobilizado.
(…)
Com a transformação do servo em trabalhador livre, ou seja, em assalariado,
também o proprietário agrário se converte em senhor da indústria, em
capitalista”66.
Como expressão do trabalho alienado em seu último estágio, a propriedade privada
moderna nasceu para não existir. Ao contrário dos modos de produção anteriores, ela não
traz em si mais nenhuma possibilidade de transformação, representa a “solução” da
contradição em que trabalho se enredou ao longo da história.
Das condições de superação do trabalho alienado em geral, ligadas à necessidade de
supressão da propriedade privada, bem como das teses políticas que decorrem dessas
concepções, vamos tratar mais detidamente no quinto capítulo, em que a idéia da revolução
comunista é melhor trabalhada.
Falta considerar em Trabalho Assalariado e Capital e no Salário, Preço e Lucro,
qual é o estatuto do trabalho moderno – a forma atualizada do trabalho alienado.
Por “uma série de processos históricos que resultaram na decomposição da unidade
original existente entre o homem trabalhador e seus instrumentos de trabalho”67, um grupo
de homens se encontra desprovido de qualquer meio de existência, a não ser a sua
capacidade física e mental de trabalhar. Porque precisa se alimentar, se vestir, e também em
65 Ibidem, pg. 125. 66 Ibidem, pg. 126. 67 Idem. Salário, Preço e Lucro in: Trabalho Assalariado e Capital & Salário Preço e Lucro, ed. cit., pg. 111.
46
determinada fase histórica, se educar, além de outras necessidades reais ou imaginárias,
vende essa sua capacidade de trabalho. Dispõe assim da sua força de trabalho por algumas
horas do dia a quem possa pagar-lhe um salário. Não recebe pela totalidade das horas
trabalhadas, ou pelo total de sua produção, mas por aquilo que foi acordado através do
“mercado de trabalho”. Contraditoriamente, aliena o seu trabalho, sem renunciar à sua
propriedade:
Tem sempre de manter sua força de trabalho como sua propriedade, sua própria
mercadoria, o que só consegue, se a ceder ao comprador apenas provisoriamente,
por determinado prazo, alienando-a sem renunciar a sua propriedade sobre ela68.
O vendedor da força de trabalho, o trabalhador, aliena uma parte de si ao
comprador, ao capitalista, ou melhor, ao capital. O capital precisa dessa parte alienada, que
é o trabalho vivo, para se constituir enquanto capital: “O capital pressupõe, portanto, o
trabalho assalariado; o trabalho assalariado pressupõe o capital. Um é condição do outro;
eles se criam mutuamente” 69.
Ao contrário do trabalho servil ou escravo, o trabalho assalariado pressupõe
relações “livres”, isto é, feitas de comum acordo entre as partes, pressupondo assim o
mercado e o intercâmbio das mercadorias. Mas o “voluntarismo” dessa relação entre
homens “livres” nasce de uma falsa aparência.
Essa falsa aparência distingue o trabalho assalariado das outras formas históricas
do trabalho. Dentro do sistema de trabalho assalariado, até o trabalho não
remunerado parece trabalho pago. Ao contrário, no trabalho escravo, parece ser
trabalho não remunerado até a parte do trabalho que se paga. Claro que, para
poder trabalhar, o escravo tem de viver, e uma parte de sua jornada de trabalho
serve para repor o valor de seu próprio sustento. Mas como entre ele e seu
senhor não houve trato algum, nem existe entre eles qualquer ato de compra e
venda, todo o seu trabalho parece ser gratuito.
Tomemos, por outro lado, o servo camponês, tal como existia – quase diríamos –
ainda ontem mesmo, em toda a Europa oriental. Esse camponês, por exemplo,
trabalhava 3 dias para si, na sua própria terra, ou na que lhe havia sido atribuída;
nos 3 dias seguintes, realizava um trabalho compulsório e gratuito na
propriedade de seu senhor. Como vemos, aqui as duas partes do trabalho – a
paga e a não paga – aparecem visivelmente separadas no tempo e no espaço; e os
68 Idem. O Capital – Crítica da Economia Política, t. 1, ed. cit., pg. 188. 69 Idem. Trabalho Assalariado e Capital in: Trabalho Assalariado e Capital & Salário Preço e Lucro, ed. cit., pg. 50.
47
nossos liberais indignavam-se moralmente ante a idéia vergonhosa de obrigar
um homem a trabalhar de graça70.
O capitalista não obriga ninguém a trabalhar para ele, por isso a aparência de
liberdade do mercado, mas, porque detém todos os meios de produção da sociedade em
suas mãos, não dá nenhuma outra escolha ao trabalhador. O capital aparece assim como
necessário ao trabalho, quando a realidade é oposta.
O capital não consiste no fato de o trabalho acumulado servir ao trabalho vivo
como meio para nova produção. Consiste no fato de o trabalho vivo servir ao
trabalho acumulado como meio para manter e aumentar o seu valor de troca71.
Diante dessa situação de opressão e exploração, o trabalho só pode se afigurar ao
trabalhador como um “martírio”. O trabalho assalariado reafirma a alienação do trabalho,
na medida em que o transforma em simples meio de satisfação de outras necessidades.
A força de trabalho em ação, o trabalho, é a própria atividade vital do operário, a
própria manifestação da sua vida. E é essa atividade vital que ele vende a um
terceiro para se assegurar dos meios de vida necessários. A sua atividade vital é
para ele, portanto, apenas um meio para poder existir. Trabalha para viver. Ele
nem sequer considera o trabalho como parte da sua vida, é antes um sacrifício da
sua vida (...) E o operário – que, durante 12 horas tece, fia, perfura, torneia,
constrói, cava, talha a pedra e a transporta etc. – valerão para ele essas 12 horas
de tecelagem, de fiação, de trabalho com arco de pua, ou com o torno, de
pedreiro, ou escavador, como manifestação da sua vida, como sua vida? Ao
contrário. A vida para ele, começa quando termina essa atividade, à mesa, no
bar, na cama72.
E ainda:
Assim, chega-se à conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente
livremente ativo nas suas funções animais – comer, beber e procriar, quando
muito, na habitação, no adorno, etc – enquanto nas funções humanas se vê
reduzido a animal. O elemento animal torna-se humano e o humano, animal73.
Já afirmamos que a superação do trabalho alienado está relacionada à propriedade
privada, à sua abolição na atual sociedade capitalista. O trabalho assalariado, que é a forma
superior e “repugnante” da alienação do trabalho, coloca a questão dessa superação como 70 Idem. Salário, Preço e Lucro in: Trabalho Assalariado e Capital & Salário Preço e Lucro, ed. cit., pg. 117. 71 Idem. Trabalho Assalariado e Capital in: Trabalho Assalariado e Capital & Salário Preço e Lucro, ed. cit., pg. 49. 72 Ibidem, pg. 36-37. 73 Idem, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, ed. cit, pg. 114-115.
48
possibilidade objetiva, porque, se ao trabalhador individual ele aparece como “meio de
existência”, ao conjunto da sociedade ele reaparece como um fim em si mesmo, um fim
humano. O trabalho, no interior do modo de produção capitalista, desenvolveu as forças
produtivas para além das necessidades imediatas da sociedade. Desenvolveu-as de tal modo
que as despojou de necessidades naturais. Se se conserva até hoje tais necessidades, e o
trabalho se mantém essencialmente como meio de existência, isso se deve às relações
sociais (de produção), nas quais o capital controla de forma artificial as forças produtivas já
constituídas, contendo-as e desenvolvendo-as apenas unilateralmente.
Disso decorre que, aliada à necessidade de romper tais relações de produção, o que
só se pode conseguir através da revolução, a reintegração das condições subjetivas e
objetivas do trabalho é a possibilidade real a partir da etapa histórica iniciada pelo trabalho
assalariado.
A partir dessa reflexão, retomamos aqui a tese da união do ensino com o trabalho
produtivo, porque supomos que nessa tarefa histórica de reintegração dessas condições, o
sentido mais profundo da tese revela-se.
Segundo afirmamos na seção anterior, mesmo no capitalismo, o trabalho, ainda que
na sua expressão negativa, é a manifestação vital do ser. Mesmo em sua forma alienada, o
trabalho é a conexão com o conjunto de forças que ele e a sociedade criaram. Na atual
sociedade burguesa, o capital, que aparece de forma onipotente diante do trabalho
assalariado, não pode, a não ser que recuse a sua própria existência, prescindir do trabalho,
do trabalho vivo dos homens.
Resulta daí que o trabalho já se afigura ao homem como uma condição objetiva de
sua existência material, é a objetivação de suas necessidades, expressão delas. A
transformação que precisa transcorrer no percurso das transformações revolucionárias é a
objetivação de sua liberdade. Tal objetivação se realiza na atividade do trabalho. O trabalho
tomado como manifestação de si, como um fim fixado pelo próprio indivíduo é a realização
e a objetivação desse indivíduo, como Marx dirá nos Grundisse74.
Essa “dupla” objetivação decorre do caráter do homem. Ele é um ser natural, mas
também o é humano, como afirmará o autor na Crítica da dialética e da filosofia de Hegel.
74 Cf. Marx, K. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economía Política (Grundisse) 1857-1858, volume 2, 12 Ed. Siglo Veintiuno Editores: México, 1989. Pg. 118-125
49
Mas o homem não é exclusivamente um ser natural; é um ser natural humano;
ou melhor, um ser para si mesmo, por conseqüência, um ser genérico, e como tal
tem de legitimar-se e expressar-se tanto no ser como no pensamento. Deste
modo, nem os objetos humanos são objetos naturais, como eles se apresentam
diretamente, nem o sentido humano, tal como é imediata e diretamente dado,
constitui a sensibilidade humana, a objetividade humana. Nem a natureza
objetiva, nem a natureza subjetiva se apresentam prontamente ao ser humano
numa forma adequada. E assim como tudo o que é natural deve ter a sua origem,
também o homem tem o seu processo de gênese, a história, que no entanto para
ele constitui um processo consciente e que assim, como ato de origem com
consciência, se transcende a si próprio75 (grifos do autor).
Como se vê, a reintegração das condições objetivas e subjetivas do trabalho não “se
apresenta prontamente ao ser humano numa forma adequada”, é preciso um processo
histórico, um processo histórico “com consciência”. Para que o trabalho assuma esse
caráter de fim em si mesmo (humano) é preciso que, superados os obstáculos das condições
materiais, isso se expresse em seu pensamento. Acreditamos que tal expressão e
“legitimação” é também o objetivo das diferentes formulações que Marx e Engels buscaram
dar à idéia da união do ensino com o trabalho produtivo.
A possibilidade de, no interior do próprio processo de trabalho, o homem
compreender teórica e praticamente a manifestação de si, foi entrevista através de tal idéia.
Porque compreender teórica e praticamente a sua “origem”, a sua atividade vital, é também
transcendê-la. O ensino aliado ao trabalho pode permitir esse salto na compreensão da
atividade humana. Aliás, daí compreendemos na sua significação mais profunda o que
Marx prenuncia como a educação do futuro, que permite elevar tanto a produção social,
como desenvolver plenamente os seres humanos.
A realização e objetivação do seres humanos ocorre na atividade do trabalho e essa
atividade só é expressão da liberdade humana quando é um objetivo humano, quando o
homem pode teórica e praticamente dispor das capacidades manuais e intelectuais que
constituem o trabalho e, portanto, o constituem enquanto “ser natural humano”. Enfim,
quando “o seu produto objetivo confirma apenas a sua atividade objetiva, a sua atividade
como atividade de um ser objetivo, natural”76.
75 Idem, Manuscritos Econômicos-Filosóficos, ed. cit, pg. 183. 76 Ibidem, pg. 182.
50
Capítulo 3
As forças intelectuais da produção
Na seção “O reino da Liberdade”, do segundo capítulo de Marx e a pedagogia
Moderna, Manacorda vai expor o modo como compreende a relação entre a educação e a
ciência e a possibilidade de superar a divisão social do trabalho, a divisão entre trabalho
manual e intelectual:
[…] a escola não pode configurar-se de outro modo senão como processo
educativo onde coincidem ciência e trabalho; uma ciência não só especulativa
mas também operativa porque em ser operativa se resume o que tem de
especificamente humano: a capacidade de domínio sobre a natureza; um trabalho
destinado não a adquirir uma habilidade parcial de tipo artesanal, mas a
coordená-lo, dentro do possível, pelo menos em perspectiva, com a tecnologia da
fábrica, quer dizer, da mais moderna forma de produção. Como traduzir isto em
opções e determinações pedagógicas concretas, tanto para a ciência como para o
trabalho (e ainda que no processo laboral, enquanto processo entre o homem e a
natureza, os elementos simples permaneçam idênticos), não foi esclarecido por
Marx, nem é questão para se levantar neste trabalho. Marx simplesmente
proporcionou uma indicação, ou melhor, constatou uma exigência objetiva; mas
com tais características que fundamenta a sua “pedagogia” em bases diferentes
de todas as outras, que também se referem ao trabalho77.
O que está dito aí e o que buscamos demonstrar no capítulo anterior evidencia que a
tese de união do ensino com o trabalho produtivo não é tão somente uma proposta
“alternativa”, em resposta às condições de trabalho e ensino tal qual as vivenciadas pelas
classes trabalhadoras no século XIX. Propostas pedagógicas alternativas vinculavam-se
mais estreitamente ao que Marx e Engels chamavam de “socialismo utópico” (ou
“socialismo e comunismo crítico-utópicos”). A proposta de união do ensino com o trabalho
nesses utópicos surge como uma resposta às mazelas do sistema econômico, no entanto,
não podem fazer uma crítica teórica e prática de modo radical do próprio sistema. Prendem-
77 Manacorda, M. A. Marx e a Pedagogia Moderna, ed. cit., pg. 86-87.
51
se aos efeitos e buscam “melhorar a situação de todos os membros da sociedade, mesmo a
dos mais favorecidos”, em virtude disso “rejeitam toda ação política, principalmente toda
ação revolucionária. Querem atingir seu objetivo mediante vias pacíficas e tentam, pela
força do exemplo, desbravar caminho para um novo evangelho social mediante
experiências em pequena escala, evidentemente fadadas ao fracasso”78.
Ao contrário dos utópicos, como Owen, na Inglaterra, e Fourier, na França, que
buscavam realizar “experiências em pequena escala”, Marx e Engels empenharam-se em
desenvolver o movimento revolucionário dos trabalhadores, apoiados na perspectiva do
materialismo histórico.
Obviamente, dessa perspectiva, a questão da ciência e da educação na sociedade
deve assumir para os autores um estatuto de objetividade, oposto às vontades “cristãs” de
uns reformadores do sistema, que tem “crença no milagre da democracia”79. Vejamos então
a maneira como Marx e Engels percebem a ciência como componente da vida social,
portanto, das forças sociais de produção. Ou seja, como é possível destacar dessas forças as
chamadas forças intelectuais da produção, conceituando-as e imprimindo-lhes um
significado para a emancipação real dos homens, submetidos a um conjunto de forças
estranhas.
Para tanto, vamos nas próximas seções expor a relação entre a ciência (ou
tecnologia, como se apresenta, freqüentemente, nos textos dos autores) e trabalho,
mostrando o significado dual que a ciência adquire para Marx e Engels, como esfera do
conhecimento teórico e como esfera de trabalho objetivado (força produtiva).
3.1 As forças produtivas
Oliveira, apoiando-se no Prefácio de Para crítica da economia política, de Marx,
define assim as forças produtivas:
78 Karl, M & Engels, F. Manifesto do Partido Comunista, ed. cit., pg. 78. 79 Karl, M. Gotha. Comentários à margem do Programa do Partido Operário Alemão. In: Manifesto do Partido Comunista, ed. cit, pg. 128.
52
As forças produtivas são, pois, em primeiro lugar, as forças produtivas de seu
trabalho, isto é, de sua capacidade de trabalho em ação, e, em segundo lugar, são
aquelas que o seu trabalho um dia criou (…)
Fica claro, então, excluindo mal-entendidos, que as forças produtivas não são
exteriores e estrangeiras ao ser humano; ao contrário, são criações de sua vida
social, manifestação dele, objetivação de si (…) Acrescente-se ainda que, dado
que as forças produtivas são, como foi dito, forças produtivas do trabalho ou da
capacidade de trabalho em ação (o que é a mesma coisa), sua existência depende
daquilo que compõe o processo de trabalho além do elemento subjetivo, isto é,
os meios de trabalho e o objeto de trabalho, tanto aqueles quanto este
primariamente provenientes da natureza80 (grifos do autor).
Depreende-se dessa colocação que as forças produtivas são forças sociais e naturais.
Representam o estágio atual de desenvolvimento da capacidade dos homens em dar conta
de suas próprias necessidades reais ou imaginárias.
Quando Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista, indicam que “em
apenas um século de sua dominação de classe, a burguesia criou forças de produção mais
imponentes e mais colossais que todas as gerações precedentes reunidas” 81, isso não quer
dizer que somente a burguesia participou da criação dessas forças, mas que elas nasceram
sob o domínio do capital e da propriedade privada capitalista, o que pressupõe um certo
grau de divisão do trabalho social. Contudo, só puderam nascer através deste trabalho
social, pois dizem em seguida:
O domínio das forças naturais, o maquinismo, as aplicações da química à
indústria e à agricultura, a navegação a vapor, as ferrovias, o telégrafo, o
desbravamento de continentes inteiros, a canalização de rios, o aparecimento
súbito de populações – em que século anterior se poderia prever que tais forças
produtivas cochilavam no seio do trabalho social?82
É bom ressaltar que o desenvolvimento original das forças produtivas (que leva ao
desenvolvimento das ciências) não é manifestação somente da vontade humana, mas da
necessidade natural, do ser objetivo natural que é o homem. Sobre a base natural, constitui-
se a base humana, social do homem. O trabalho, que é a manifestação vital do ser social,
também é expressão da sua condição natural.
80 Oliveira, J. F. Ethos e Politeia – Os fundamentos da concepção marxiana da economia. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004. Pg. 27. 81 Karl, M & Engels, F. Manifesto do Partido Comunista, ed. cit., pg. 31. 82 Ibidem, pg. 32.
53
O trabalho, como criador de valores-de-uso, como trabalho útil, é indispensável
à existência do homem, - quaisquer que sejam as formas de sociedade, - é
necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio entre o homem e a
natureza, e, portanto, de manter a vida humana83.
No interior das forças produtivas, estão todas as habilidades, conhecimentos e
capacidade de trabalho que o homem em sociedade produziu. Todavia, porque o
desenvolvimento das forças produtivas foi condicionado historicamente pela divisão do
trabalho84 (o que equivale a dizer, pela propriedade privada), essas forças produtivas
aparecem sempre aos trabalhadores como uma força estranha, “estrangeira e exterior”, e as
partes de que se compõe essas forças produtivas sociais aparecem como esferas separadas,
atuando todas como forças que o dominam.
No trabalho alienado, o trabalhador não pode ver sua condição objetiva nos meios
de produção. Tudo o que a indústria moderna produziu e que traduz o domínio do homem
sobre a natureza, bem como a sua real unidade85, lhe é negado pelas relações de produção.
A ciência comparece como uma atividade de outros homens, nunca como manifestação de
si mesmo, do seu ser objetivo. Na sociedade contemporânea, comparece como um
“segredo” destinado somente aos “cientistas”; no século XIX, Marx e Engels vão apontar
para essa mesma relação “misteriosa” (e fantasiosa) que a ciência estabelece com a vida dos
homens.
Feuerbach menciona em particular a concepção da ciência natural e fala de
segredos que se revelam somente aos olhos do físico e do químico. Mas o que
seria da ciência natural sem o comércio e a indústria? Até mesmo essa ciência
natural “pura” adquire tanto sua finalidade como seu material graças tão somente
ao comércio e à indústria, à atividade sensível dos homens. Essa atividade, esse
trabalho, essa criação material contínua dos homens, essa produção, é a base de
todo o mundo sensível tal como agora existe […]86.
83 Marx, K. O Capital – Crítica da Economia Política, t. 1, ed. cit, pg. 50. 84 “O quanto as forças produtivas de uma nação estão desenvolvidas se mostra objetivamente pelo grau de desenvolvimento atingido pela divisão do trabalho”, in: Ideologia Alemã, ed. cit., pg. 45. 85 “A presente questão, de onde surgiram todas as ‘obras de uma grandeza insondável’ sobre a ‘substância’ e a ‘consciência de si’, desaparece por si mesma diante da compreensão do fato de que a tão famosa ‘unidade do homem com a natureza’ sempre existiu na indústria e se apresentou de modo diferente, em cada época, conforme o desenvolvimento maior ou menor da indústria; e o mesmo no que se refere à ‘luta’ do homem com a natureza, até o desenvolvimento de suas forças produtivas sobre uma base adequada”, Ibidem, pg. 75. 86 Ibidem, loc. cit.
54
Assim, se as forças produtivas encerram em si a totalidade das capacidades humanas
já desenvolvidas, entre elas, a ciência objetivada nos instrumentos materiais de trabalho, é
preciso compreender no que consistem as atuais forças produtivas, no interior do modo de
produção capitalista e no que elas contêm de possibilidades para os trabalhadores
submetidos a ela. Para isso, vamos expor o que compreendemos pelo conceito de ciência
em Marx e Engels e, em seguida, a relação desta com os instrumentos de produção.
3.2 Sobre o conceito de ciência
Não iremos aqui fazer uma descrição exaustiva das formulações acerca da ciência
que se encontram num conjunto de textos de Marx e Engels. Nosso objetivo é demonstrar
em que medida a ciência pode ser apreendida em relação aos demais conceitos que viemos
apresentando. Trata-se então de dar uma visão geral sobre a idéia de ciência em nossos
autores, buscando mostrar que tais noções em torno da ciência não se tornaram anacrônicas,
ainda que não estejamos em condições de avaliar a validade de cada uma formulações
elaboradas por eles, sobretudo, por Engels87. Interessa ressaltar, a partir dessas formulações,
a concepção de ciência enquanto uma forma de conhecimento desenvolvida paralelamente
ao desenvolvimento do trabalho humano, de modo a evidenciar que a idéia de “educação
científica” (tal qual se afigura na ligação entre ensino e trabalho produtivo) não está
completamente ultrapassada, na medida em que visa a um desenvolvimento multilateral do
homem.
3.2.1 A ciência do século XIX
87 “A responsabilidade de levar avante a visão de Marx após a sua morte recaiu inicialmente sobre Engels. Foi Engels que ofereceu a conexão mais direta entre marxismo e a ciência” in: Foster, J. B. A ecologia de Marx – materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Pg. 315.
55
Engels, mais do que Marx, buscou dar um tratamento abrangente à questão das
ciências, visando sistematizar o conhecimento da época em relação às ciências naturais a
partir da concepção do materialismo dialético. Em A dialética da Natureza e Anti-Dühring
desenvolve a idéia segundo a qual certas leis que estariam na base dos “fenômenos
naturais” poderiam ser formuladas a partir das categorias do materialismo dialético, que
vinham sendo aplicadas no estudo e na crítica das relações histórico-sociais do modo de
produção capitalista.
Conforme Fataliev, Marx e Engels utilizaram-se do conhecimento do estado das
ciências do século XIX para desenvolver o próprio materialismo. Este autor, em um dos
capítulos de seu livro Materialismo Dialético e as Ciências da Natureza, pretende revelar
“o elo histórico entre o aparecimento do materialismo dialético e o desenvolvimento das
ciências da natureza”:
As obras de Marx e Engels, como A Santa Família, A Ideologia Alemã, Miséria
da Filosofia, Manifesto do Partido Comunista, aparecidas após 1840, e que
continham a primeira exposição de sua nova concepção do mundo, elaboraram a
base filosófica do comunismo científico, da teoria, da política e da tática do
proletariado na revolução. Não examinaram especialmente, nessas obras, os
problemas da Ciência da Natureza. Ora, ao fundarem o materialismo científico,
Marx e Engels se apoiaram, desde o começo, no progresso da Ciência. (…)
Foi um pouco mais tarde que Marx e Engels estudaram especialmente os
problemas teóricos da Ciência. A obra principal de Marx, O Capital, contém um
grande número de observações sobre as questões da Ciência. Esses problemas
ocupam um grande lugar na correspondência de Marx e Engels no decurso dos
anos de 1850-1860 e sobretudo nas obras de Engels, Anti-Duhring e Ludwig
Feuerbach. Foi ao escrever seu livro Dialética da Natureza, que Engels estudou
a fundo os problemas da Ciência da Natureza. Nessas obras, Marx e Engels não
deram apenas as bases do materialismo dialético no domínio social e econômico,
mas também no domínio das Ciências da Natureza, utilizando todas as novas
descobertas88.
O que naturalmente poderia se concluir disso é que se o desenvolvimento da teoria
marxista se fez paralelamente ao desenvolvimento das ciências do século XIX, as
transformações que esta sofreria ao longo do século XX tornaria aquela “ultrapassada”,
88 Fataliev, Kh. O materialismo dialético e as Ciências da Natureza. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966. pg. 58-59.
56
“anacrônica”. Entretanto tal conclusão só pode ser levantada quando não se compreende o
julgamento que nossos próprios autores fizeram dessa ciência.
Não nos é preciso contestar que Marx e Engels viam na ciência um aspecto
progressivo do desenvolvimento humano. Ainda hoje ninguém poderá afirmar que, na sua
totalidade, a ciência (seja a ciência “pura” ou “aplicada”) não representou um avanço para a
história humana. A ciência constitui hoje parte da vida em sociedade. As conseqüências
dessa presença nas relações histórico-sociais é que devem ser ponderadas. Mas também não
se poderá pensar nas conseqüências abstratamente, sem relacioná-las com a sua utilização
na sociedade capitalista, isto é, na sociedade em que o capital condiciona a existência das
relações materiais e “espirituais” dessa.
Nesse sentido, o que temos, nos textos dos autores, é uma crítica à ciência, tanto no
que se refere à ciência no capitalismo (sob o domínio do capital), quanto à ciência em geral,
na medida em que esta como outras esferas do conhecimento humano (nas quais concorrem
diversas concepções distintas e mesmo antagônicas) precisa ser apreendida dentro de sua
historicidade. Por isso, Engels, vai afirmar que os resultados da ciência do século XIX
poderiam perfeitamente ser superados pelo desenvolvimento ulterior.
Todavia, não se restringem à crítica, há uma defesa da ciência em relação à outras
instituições humanas, como a religião. Para Marx e Engels, o entendimento que a ciência
proporciona ao homem com relação à Natureza é superior ao que a religião proporcionou.
Daí que é na ciência e não na religião, por exemplo, que Engels vai estudar as categorias da
dialética, pois como forma de aquisição de conhecimento, a dialética, ao contrário da
metafísica, têm um campo mais fecundo nas ciências da natureza, compreendida como
forma de conhecimento também superior.
Para demonstrar tais afirmações nos parece importante começar por uma breve
exposição do que seria a compreensão, por parte de nossos autores, do estado das ciências
do século XIX. Para isso nos apoiaremos em Fataliev, que fez um levantamento mais
rigoroso dessas noções de ciência em Marx e Engels. O longo trecho a seguir é um resumo
desse autor em relação ao grau das diferentes ciências nesse período, quando das
formulações dos dois pensadores estudados:
Para resumir, a década de 40 do século XIX viu as seguintes transformações
sobrevindas no domínio das Ciências da Natureza:
57
a) Se, no decurso dos séculos XVII e XVIII, se havia estudado e estabelecido as
leis gerais de uma única forma de movimento, o movimento mecânico, o começo
do século XIX viu a descoberta de numerosas leis relativas a outras formas do
movimento: térmica e eletromagnética. Foram descobertos os elos entre as
diversas formas de movimento e as possibilidades de transição de uma a outra.
Além da descoberta de leis específicas nos diferentes domínios da natureza, foi
estabelecida experimentalmente a lei universal e fundamental dos fenômenos
físicos, a da conservação e da transformação da energia que, com a da
conservação da massa formulada anteriormente, permitiu considerar as leis que
regem os diferentes fenômenos do ponto de vista de sua independência e das
possibilidades de passagem de um para outro. Não se teve mais necessidade e
não foi mais possível conservar, em Física, a concepção metafísica dos
imponderáveis.
b) Os progressos da Química fizeram compreender cientificamente a natureza
dos fenômenos químicos como a combinação e a divisão dos átomos,
desencadeando toda uma série de leis. A importância dessas leis consistia,
primeiro, em que tinham mostrado que por ocasião das combinações ou das
divisões químicas se produz uma mudança qualitativa do corpo em conseqüência
de uma mudança quantitativa de seus elementos constitutivos, e, depois, em que
tinham mostrado a inexistência de um abismo intransponível entre a natureza
orgânica e inorgânica.
c) O progresso da Cosmogonia e da Geologia mostrou que a Terra, com seus
estados geológicos, geográficos e climáticos, assim como o sistema solar em seu
conjunto, eram o resultado de um devenir, que tinham sua história e que estavam
sujeitos a transformação. As idéias sobre a evolução adquiriram aqui uma forma
muito clara.
d) A teoria da evolução adquiriu uma forma mais nítida no estudo da Zoologia e
da Botânica. A elaboração da teoria da célula estabeleceu a base material da
unidade dos organismos animais e vegetais.
Em conseqüência dessas mudanças, nos anos 40 do século XIX, a Ciência
libertou as leis específicas dos diferentes domínios da natureza e a existência de
laços entre elas. De empírica tornou-se teórica89.
O que Fataliev expõe (partindo da própria exposição que Engels havia realizado em
A dialética da Natureza) é um entrelaçamento do desenvolvimento da ciência com as
categorias do materialismo dialético. Assim, vai reconhecer, por exemplo, que a passagem
89 Ibidem, pg. 53-54
58
de um estado a outro (as “transformações” de que tanto fala) evidenciam a categoria
explicativa de transformações qualitativas quando determinada quantidade de uma forma de
matéria assim o exige. Tal entrelaçamento é possível, na medida em que do ponto de vista
filosófico, o materialismo dialético pressupõe que as suas categorias são a expressão
subjetiva do movimento real, objetivo, da matéria, manifesta na Natureza.
A dialética, a chamada dialética objetiva, impera em toda a Natureza; e a
dialética chamada subjetiva (o pensamento dialético) é unicamente o reflexo do
movimento através de contradições que aparecem em todas as partes da
Natureza e que (num contínuo conflito entre os opostos e sua fusão final, formas
superiores), condiciona a vida da Natureza90 [grifo do autor].
Há uma implicação, que nossos autores reconhecem, nesse modo de compreensão
da realidade. Porque dizer que a dialética “impera em toda a Natureza” significa que existe
uma identidade entre a esfera puramente “natural” e a “social”, porque o homem,
responsável por essa esfera social, como já afirmamos no capítulo anterior é parte da
Natureza, e nunca deixará de sê-lo. Na realidade, desta implicação, que vê a “unidade real
do mundo” na forma de sua materialidade, como dirá Engels em Anti-Dühring91, nasce, não
a aceitação cega dos progressos da ciência, mas a sua crítica. Tal como no mundo da
produção propriamente dita, os homens representam para si concepções que estão em
contradição com a sua existência, no mundo das ciências naturais, os homens que a
realizam diretamente (os cientistas) também podem ser levados pelo mesmo movimento de
representar para si concepções opostas às que suas “descobertas” efetivamente evidenciam.
Porque o materialismo dialético não é forma dominante de se compreender a sociedade, as
concepções que sustentam os “avanços” da ciência não vão igualmente se apoiar nessa
matriz filosófica.
Dessa perspectiva, o objetivo de Engels ao sistematizar os conhecimentos das
ciências naturais do século XIX em A dialética da Natureza era evidenciar que a esse
conjunto de áreas (Física, Química, Biologia, etc.), nas quais essas ciências ganhavam
corpo, faltava uma forma de pensamento que lhes correspondesse de maneira mais
adequada do que a velha maneira de pensar da metafísica idealista que até então
90 Engels, Friedrich. A dialética da natureza. 3. Ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1979. Pg. 162. 91 “A unidade real do mundo consiste na sua materialidade, e esta prova-se não por algumas pantominices de prestidigitação, mas através de um longo e laborioso desenvolvimento da filosofia e da ciência da natureza” In: Anti-Dühring. Lisboa: Dinalivro, 1976. Pg. 58.
59
predominava. Faltava, em outras palavras, que a ciência adotasse não uma postura
“científica”, mas “filosófica”. Porque se os seus métodos eram rigorosos, o modo de avaliar
o conjunto de sua produção “científica” não o era. Desse modo, Engels vai criticar a
posição dos cientistas em relação ao pensamento filosófico.
Os homens de ciência acreditam que se libertam da filosofia, ignorando-a ou
insultando-a. No entanto, não podem fazer progresso algum sem pensar; e, para
pensar, necessitam de certas determinações mentais. Mas a verdade é que
recebem essas categorias sem refletir, da consciência comum das pessoas
chamadas cultas, aquelas justamente que estão dominadas por uns restos de
filosofia há muito tempo caduca; ou então por esse pouquinho de filosofia
escutada à força nas Universidades (filosofia não só fragmentária mas
constituída de uma miscelânea de opiniões de gente que pertence às mais
variadas e geralmente piores escolas); ou ainda através de leituras não
sistemáticas e acríticas, isto é, escritos filosóficos de toda a espécie. Por
conseguinte, não estão eles livres da filosofia; e aqueles que a insultam são na
sua maior parte denominados justamente pelos piores restos vulgarizados dos
piores filósofos92.
É evidente aí que não há uma exaltação da figura do “cientista” como portador de
uma “verdade absoluta”. Ele, como todos os indivíduos na sociedade, está à mercê de
concepções equivocadas que se referem não só à própria sociedade, como ao seu próprio
trabalho científico. Para os “homens da ciência”, como para todos os homens é preciso
assumir uma postura filosófica que assente seu modo de ver a realidade.
O que aparece aí em A dialética da Natureza como postura “filosófica”, já havia
surgido como postura “histórica” em A Ideologia Alemã.
Conhecemos somente uma única ciência, a ciência da história. A história pode
ser analisada sob duas maneiras: história da natureza e história dos homens. As
duas maneiras, porém, não são separáveis; enquanto existirem homens, a história
da natureza e a história dos homens estarão condicionadas mutuamente. A
história da natureza, conhecida como ciência natural, não nos interessa aqui; mas
teremos de analisar a história do homem, pois quase toda a ideologia se reduz ou
a uma concepção distorcida dessa história, ou a uma abstração completa desta93.
Esse primeiro aspecto da crítica à ciência, isto é, às concepções que os cientistas
têm dela, deriva do reconhecimento que a ciência da natureza, bem como a “ciência do
92 Engels, Friedrich. A dialética da natureza, ed. cit, pg. 147. 93 Marx. K. & Engels, Friedrich. A ideologia Alemã, ed. cit., pg. 41.
60
homem” (social), repousa sobre a História. Nesta, desenrolou-se um conjunto de idéias e
práticas que é preciso conhecer, estudar. Se se abstrai da História, perde-se o nexo entre
essas práticas e suas idéias correspondentes. Assim, além de perder “as leis reais do
desenvolvimento da natureza”, que seriam as “leis da dialética”94, perde-se a conexão entre
o desenvolvimento histórico das ciências e o desenvolvimento histórico da produção
material; logo, desaparece a crítica da ciência no capitalismo.
Como as ciências naturais apresentam uma “orientação idealista”, como afirmou
Marx em Manuscritos Econômicos-Filosóficos, elas não podem ver sua ligação com a
produção capitalista e com o domínio do capital sobre seus resultados. Engels expõe esta
relação da seguinte forma: o final da Idade Média proporcionou, a partir da indústria
nascente, os materiais e os meios para que a ciência irrompesse no interior da sociedade
com força nunca antes vista.
Se as ciências, depois da escura noite medieval, reaparecem subitamente e com
um força insuspeitada, desenvolvendo-se com uma velocidade quase milagrosa,
isso é devido novamente a essa maravilha que é a produção. Em primeiro lugar,
desde as Cruzadas, a indústria se havia desenvolvido enormemente, produzindo
uma quantidade de novas invenções mecânicas: a tecelagem, a relojoaria,
moinhos; químicas: tinturaria, metalurgia, álcool; e físicas, as lentes. Esses fatos,
não somente forneciam um volumoso material de observação, como também,
por si mesmos, proviam outros meios de experimentação inteiramente diferentes
dos que existiam até então, permitindo assim a construção de novos
instrumentos. Pode-se mesmo dizer que foi justamente nessa época que se
tornou possível o surgimento da ciência experimental propriamente dita. Em
segundo lugar, toda a Europa Ocidental e Central, inclusive a Polônia,
desenvolvia-se, de uma forma coordenada, muito embora a Itália continuasse à
testa desse movimento, em virtude da antiga civilização por ela herdada. Em
terceiro lugar, os descobrimentos geográficos (realizados exclusivamente com a
finalidade do lucro e, conseqüentemente, em última análise, visando à produção)
forneciam um material ilimitado, e até então inacessível, nos domínios da
meteorologia, na zoologia, da botânica e da fisiologia (do homem). Em quarto
lugar, estava colocada a imprensa95.
Essas condições exteriores à ciência permitiram que no seu interior se processassem
os grandes avanços do século XIX. Fataliev, vai considerar que esse intercâmbio entre
94 Engels, Friedrich. A dialética da natureza, ed. cit., pg. 35. 95 Engels, Friedrich. A dialética da natureza, ed. cit., pg. 167.
61
produção e ciência não é particular dos séculos anteriores, o século XX com todas as
transformações de que a ciência participou também mantém esta relação.
As necessidades da produção, da prática social, fixam tarefas à ciência e impõem
certo caráter ao seu desenvolvimento, aos problemas que elabora nas diversas
etapas da história. O desenvolvimento da produção cria as condições materiais e
as técnicas das descobertas científicas, põe entre as mãos dos pesquisadores os
meios de experiência necessários96.
É na base desse intercâmbio que se pode vislumbrar, de forma mais imediata, a
ciência como parte constitutiva das forças produtivas, e que será nas próximas seções
melhor detalhada. O que importa, nesse momento, é ressaltar que, na base da compreensão
desse intercâmbio, nasce a crítica da ciência dominada pelo capital.
Ao contrário do que é voz corrente, Marx e Engels não viam na ciência apenas a sua
faceta progressiva, ignorando o lado trágico desse progresso. Aliás, a própria idéia de
“progresso” ou “evolução” não é, vista pelos fundadores do materialismo dialético, como
uma linha com direção única. Todo progresso ou evolução conduz a um “retrocesso”, o que
é característico do modo de compreender dialético. Engels ao se referir à teoria da evolução
de Darwin dirá:
O principal é isto: que todo o progresso da evolução orgânica é, ao mesmo
tempo, um retrocesso, desde que seja fixada uma evolução unilateral, excluindo
a possibilidade de evolução em muitas outras direções97.
Ao se referir ao “progresso” das ciências, num texto intitulado “Humanização do
Macaco pelo Trabalho”, vai desferir um golpe contra as tendências positivistas (essas sim
que desprezavam os efeitos do “domínio do homem sobre a Natureza”) de acreditar que a
Natureza não responde à “tirania” do homem. Embora se trate de um longo trecho, é bom
reproduzi-lo na sua íntegra pela força incrivelmente atual que apresenta.
Resumindo: o animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo modificações
somente por sua presença; o homem a submete, pondo-a a serviço de seus fins
determinados, imprimindo-lhes as modificações que julga necessárias, isto é,
domina a Natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o homem e os
demais animais; e, por outro lado, é o trabalho que determina essa diferença.
Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas
sobre a Natureza. A cada uma dessas vitórias, ela exerce a sua vingança. Cada
96 Fataliev, Kh. O materialismo dialético e as Ciências da Natureza, ed. cit., pg. 35. 97 Engels, Friedrich. A dialética da natureza, ed. cit., pg. 181-182.
62
uma delas, na verdade, produz, em primeiro lugar, certas conseqüências com que
podemos contar; mas em segundo e terceiro lugares, produz outras muito
diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras
conseqüências. Os homens que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e
noutras partes destruíram os bosques, para obter terra arável, não podiam
imaginar que, dessa forma, estavam dando origem à atual desolação dessas terras
ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de captação e acumulação de
umidade (…) E assim, somos a cada passo advertidos de que não podemos
dominar a Natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como
alguém situado fora da Natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa
carne, nosso sangue, nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o
nosso domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais
seres de poder chegar a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente.
Na realidade, a cada dia que passa aprendemos a compreender mais
corretamente as suas leis e a conhecer os efeitos imediatos e remotos resultantes
de nossas intervenções no processo que a mesma leva a cabo. Principalmente em
virtude dos gigantescos progressos realizados pelas ciências naturais no século
atual, cada vez mais nos encontramos em condições de conhecer as
conseqüências mais remotas de nossas mais comuns atividades de produção;
pelo menos em condições de aprender a dominá-las. Mas, quanto mais se
verifica isso, tanto mais os homens se sentirão unificados com a Natureza e tanto
mais terão a consciência disso, tornando-se cada vez mais impossível sustentar
essa noção absurda e antinatural que estabelece a oposição entre espírito e
matéria, entre o homem e a Natureza, entre alma e corpo, concepção que surgiu
na Europa depois da decomposição da antiguidade clássica e que adquiriu sua
mais acentuada forma na doutrina do cristianismo98.
É de uma atualidade esse trecho que chega a nos assustar imaginando que, passado
mais de uma século desde que tais palavras foram escritas, o homem em vez de buscar
dominar não a Natureza, mas a sua “atividade de produção”, de modo a se “unificar” com
aquela, tem feito exatamente o oposto e sofrido, por seu turno, todos os efeitos desse
“domínio”.
Todos os modos de produção só tiveram por objetivo, até agora, o efeito útil,
mais imediato, do trabalho. As demais conseqüências, que só aparecem mais
tarde, tornando-se evidentes por sua repetição e acumulação gradual, foram
98 Engels, Friedrich. Humanização do Macaco pelo Trabalho In: A dialética da natureza, ed. cit, pg. 223-224.
63
completamente descuidadas. (…) Os capitalistas, que dominam a produção e seu
intercâmbio, não se podem preocupar, cada um deles, senão com o efeito útil e
mais imediato relativo às suas atividades. Até mesmo esse efeito útil (enquanto
se trata da utilidade do artigo produzido ou trocado) passa inteiramente a um
segundo plano: a única mola propulsora consiste no lucro a ser obtido através da
venda.
(…)
Em face da Natureza, como em face da Sociedade, o modo atual de produção só
leva em conta o êxito inicial e mais palpável; e, no entanto, muita gente se
surpreende ainda pelo fato de que as conseqüências remotas das atividades assim
orientadas sejam inteiramente diferentes e, quase sempre, contrárias ao objetivo
visado (…)99
Na concepção de nossos autores, se as ciências naturais devem servir de algum
paradigma para o “progresso”, ele só pode ser entendido como uma forma de controlar
racionalmente a produção e de estabelecer de forma mais equilibrada um intercâmbio com
a Natureza, da qual o homem é parte. Fora desse entendimento, o domínio da natureza seria
a manifestação continuada de sua alienação perante seu ser natural. Daí a afirmação de
Marx nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos de que “a ciência natural” pode vir a se
tornar a base da “ciência humana”100.
Não se trata obviamente de um programa de “unificação das ciências”,
desconhecendo as especificidades de cada “ciência”. Trata-se, na realidade, do
reconhecimento de que, na base de todas as ciências, há o intercâmbio do homem com a
Natureza, ou, em outras palavras, o intercâmbio da natureza consigo mesma. Quando Marx
fala de uma única ciência, o conteúdo dessa ciência é o reconhecimento dessa relação
fundamental, esse traço comum elevado à condição teórica de relação geral entre as
diferentes ciências.
99 Ibidem, pg. 225-227. 100 “A indústria é a relação histórica real da natureza e, por conseqüência, da ciência natural, ao homem, se ela se conceber como a manifestação esotérica das faculdades humanas essenciais, poderá igualmente compreender-se a essência humana da natureza ou a essência natural do homem; a ciência natural abandonará então a sua orientação abstrata materialista, ou antes, idealista, e se tornará a base da ciência humana, assim como ela já agora – se bem que de forma alienada – se tornou a base da vida humana real. Uma base para a vida e outra para a ciência constituem em princípio uma mentira. A natureza, assim como se desenvolve na história humana – no ato de gênese da sociedade humana – é a natureza real do homem; por conseguinte, a natureza, assim como se desenvolve na indústria, embora também em forma alienada, constitui a verdadeira natureza antropológica” In: Manuscritos Econômicos-Filosóficos, ed. cit, pg 145-146.
64
Na verdade, Fataliev, como um marxista, vai criticar a teoria da “unidade das
Ciências” como um programa filosófico que pode ser encontrado nos pensadores anteriores
a Marx e Engels, que adotavam posturas metafísicas ou idealistas. Tal teoria postula que é
possível reduzir a multiplicidade de conhecimentos a algum princípio estabelecido por uma
ciência em particular. Nas primeiras décadas do século XX, tal teoria se apoiava na Física,
mas ela está presente em outros momentos da história das ciências.
Engels também reconhece a multiplicidade dos conhecimentos e não busca reduzi-
los uns aos outros, porque isso significaria negar a diversidade das formas qualitativas da
matéria. Em Anti-Dühring, por exemplo, faz uma arrazoado das “três grandes seções” do
conhecimento. Haveria três tipos de ciências, as chamadas “exatas” (que englobariam pelo
menos a matemática, astronomia, mecânica, física e química), as que estudam os
“organismos vivos” e as ciências “históricas” (filosofia, religião, arte, direito, etc)101.
Mesmo que tal classificação tenha sido superada, o importante é que não existe em nossos
autores uma teoria que os ligue ao projeto de “unificação das ciências”, ainda que haja
neles uma concepção filosófica que sustente a unidade material do mundo.
Parece-nos que o que foi dito acerca dessa crítica à ciência como força produtiva no
capitalismo já é o suficiente para os nossos objetivos. Resta-nos, para elucidar o segundo
aspecto da crítica à ciência, mostrar como nossos autores vêem os resultados que a ciência
tem proporcionado ao homem, entendendo-a como um conhecimento historicamente
determinado pelas relações sociais.
Nesse ponto, Engels também é mais explicativo do que Marx, expõe de maneira
mais patente a relação entre os resultados da ciência e o seu estatuto de objetividade. Como
um conhecimento, a ciência é mediada tanto pelo desenvolvimento das relações produtivas
quanto por suas contradições e potencialidades internas.
Com efeito, se o conhecimento das ciências naturais não se constitui como “verdade
eterna”, a sistematização desse conhecimento também não pode ser objeto de uma crença
irracional, a-histórica. Engels refere-se ao seu próprio trabalho nas seguintes palavras:
(…)é possível que o progresso da ciência teórica da natureza torne o meu
trabalho supérfluo na maior parte ou na totalidade. É tal a revolução imposta à
ciência teórica da natureza pela simples necessidade de pôr em ordem as
101 Tal divisão aparece no capítulo sétimo da primeira parte: “A moral e o direito: verdades eternas”, in: Anti-Dühring, ed. cit., pg. 123-124.
65
descobertas puramente empíricas que se acumulam em massa, que obriga o
empirista mais recalcitrante a tomar cada vez mais consciência do caráter
dialético dos processos naturais102.
Assim, o seu trabalho de sistematização da ciência, como o que tenta levar a cabo
em A dialética da Natureza, pode tornar-se “supérfluo”, porque o conhecimento que é
objeto dessa sistematização pode igualmente tornar-se superado por desenvolvimentos
ulteriores. Mencionando a teoria da evolução mostra seu caráter relativo:
Mas a própria teoria da evolução é ainda muito jovem e não poderíamos pois
duvidar que a investigação futura não devesse modificar muito sensivelmente as
idéias atuais, até mesmo as idéias estritamente darwinianas, sobre o processo da
evolução das espécies103.
Em vez de acreditarem que estão em face do maior “progresso que a humanidade”
já viu, sacralizando tal progresso, Marx e Engels vão colocar as ciências no campo da
história, do desenvolvimento das inúmeras cadeias que ligam uma descoberta a outra (e por
conseqüência que ligam as condições sociais de surgimento de uma descoberta às
condições de surgimento de outra).
A ciência em geral, como uma forma de conhecimento, é susceptível de apresentar
avanços e recuos, progressos e retrocessos, não se faz em linha reta, numa única direção,
como já dissemos. Isso vale para o que afirmamos acerca das concepções filosóficas que os
cientistas modernamente vão sustentar. Não existe coincidência imediata entre o conteúdo
de uma descoberta e a representação que se faz dela. Postular tal coincidência seria negar as
contradições inerentes ao processo histórico e as múltiplas determinações de que a
realidade é portadora.
Por isso, Engels vai afirmar que a ciência moderna (do século XIX) torna-se
contraditoriamente “prisioneira” de velhas formas de se pensar a ciência. Disso resulta
como conseqüência uma cristalização dessa ciência moderna sob uma roupagem “velha”, a
qual não corresponde ao seu conteúdo objetivo. Por uma relação de interdependência entre
as diferentes formas de conhecimento, a ciência “contraditória” acaba por influenciar outras
áreas do conhecimento como a filosofia (embora, em determinada época de seu
desenvolvimento, esta também tenha influenciado a ciência).
102 Engels, Friedrich. Anti-Dühring, ed. cit., Prefácio à Segunda Edição (1885). Pg. 14-15. 103 Ibidem, pg. 102.
66
A decomposição da natureza nas suas partes singulares, a separação dos diversos
processos e objetos naturais em classes determinadas, o estudo da constituição
interna dos corpos organizados na variedade dos seus aspectos anatômicos, tais
eram as condições fundamentais dos progressos gigantescos que os quatro
últimos séculos nos trouxeram no conhecimento da natureza. Mas este método
legou-nos igualmente o hábito de apreender os objetos e os processos naturais no
seu isolamento, fora da grande conexão com o todo, por conseguinte não no seu
movimento, mas no seu repouso; como elementos são essencialmente variáveis
mas fixos; não na sua vida, mas na sua morte. E quando, graças a Bacon e a
Locke, esta maneira de ver passou da ciência da natureza para a filosofia, deu
origem à estreiteza de espírito dos últimos séculos, o modo de pensamento
metafísico104.
Essa concepção histórica da ciência não nega a objetividade da própria ciência, mas
repõe tal objetividade num quadro histórico-social e permite fazer uma crítica às noções
segundo as quais a ciência apresentaria valores ou “verdades eternas”. Possibilita também
defender nossos autores contra as críticas105 que apresentam o desenvolvimento ulterior das
ciências como uma realidade que invalida as suas formulações e propostas vinculadas de
alguma forma às ciências.
Entre essas propostas, estaríamos diante da tese da união do ensino com o trabalho
produtivo. Os críticos do marxismo vão alegar que se esta fundamentava-se, entre outras
coisas, num estado de desenvolvimento da ciência (o estágio atingido no século XIX), logo
a sua aplicação é improvável na sociedade contemporânea. No que poderemos refutar
mostrando que a vinculação de nossos autores à ciência novecentista não é de modo algum
presa, exclusivamente, aos resultados que essa oferecia então, mas que a superação desse
modo de se fazer e pensar a ciência então em voga estava pressuposta por nossos autores.
Dessa perspectiva, a transformação da ciência não era um obstáculo às suas formulações
acerca da ciência, mas era uma condição para que tais formulações adquirissem uma
validade objetiva.
104 Ibidem, pg. 26. 105 Foster em seu livro, A ecologia de Marx – materialismo e natureza, busca responder às críticas formuladas a Marx, no que tange sua relação com o tema da ciência e da natureza. Indica, na Introdução desse livro, seis “argumentos” contra Marx e Engels, vistos pelos críticos como defensores de uma visão antiecológica; pretende ao longo do livro mostrar como todos os argumentos são infundados e não levam em conta a profundidade do materialismo filosófico dos autores. Para conhecer as críticas e as respostas que Foster elabora, conferir a obra citada acima.
67
Para Marx e Engels, era preciso que as ciências naturais aperfeiçoassem seu laço
com a produção (a indústria moderna) e ampliassem seu domínio teórico sobre o conjunto
de fatos e objetos que as ciências dos séculos anteriores haviam colecionado. Só no
contexto histórico em que tais condições são reais que é possível ao homem dominar a sua
“atividade de produção”, bem como fazer coincidir seus objetivos humanos com as suas
necessidades naturais:
(…) é importante salientar como, através de um raciocínio lógico-dialético,
Marx demonstra que o desenvolvimento das forças produtivas alcançando um
estágio superior, o da automação, cria as condições materiais indispensáveis para
uma organização radicalmente nova e superior do aparelho produtivo (onde não
impera mais a lei do valor), e da vida social em geral, para o comunismo.
Obviamente, a automação não é por si mesma uma condição suficiente – pois
nesse caso o passo ao comunismo seria mecânico – mas sim absolutamente
necessária106.
A relação, mesmo alienada, da ciência com a produção, bem como da ciência,
enquanto conhecimento, com a natureza real do homem é a condição para que a formação
do indíviduo ganhe o caráter de onilateralidade. Porque já existe a conexão real do homem
com uma produção potenciada pela ciência, e com um conhecimento mais objetivo da
natureza do ser humano (do seu ser natural), é possível pensar numa formação integral, daí
a importância de um elevado aprendizado.
Aprender com os resultados das ciências naturais (sejam resultados aplicados ou não
à produção), seja com a história de desenvolvimento do conhecimento humano, que supõe
uma multiplicidade de ramos – diante dessa tarefa que nossos autores, respondiam com a
consigna de “educação e trabalho”: a tese da união do ensino com o trabalho produtivo
responde à altura das exigências desse aprendizado, pois busca combinar a educação
intelectual, física e tecnológica, indo na contramão da ultra-especialização científica que
dominou o século XX.
3.3 Instrumentos de produção e a ciência no capitalismo
106 Bambirra, Vania. A teoria marxista da transição e a prática socialista. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993. Pg. 27.
68
Não se trata aqui de levantar todos os aspectos e desdobramentos que o enunciado
dessa seção suscita, mas de apresentar a maneira pela qual essas duas expressões:
“instrumentos de produção” (ou intrumentos do trabalho, ou instrumentos materiais do
trabalho) e “ciência” (ou tecnologia) se relacionam nos textos de Marx e Engels.
Em relação aos instrumentos, Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, vão distinguir
os modernos instrumentos de trabalho (próprios do capitalismo) dos anteriores (isto é, das
formações sócio-econômicas anteriores).
Assim, aparece aqui a diferença entre os instrumentos de produção naturais e os
daqueles criados pela civilização. O campo (a água, etc.) pode ser considerado
como um instrumento de produção natural. No primeiro caso, quando se trata de
um instrumento de produção natural, os indivíduos encontram-se submetidos à
natureza; no segundo caso, estão subordinados a um produto do trabalho. No
primeiro caso, a propriedade (da terra) aparece como uma dominação imediata e
natural; no segundo, como dominação do trabalho, em especial do trabalho
acumulado, do capital (…) No primeiro caso, o intercâmbio é essencialmente um
intercâmbio entre os homens e a natureza, um intercâmbio entre os homens no
qual o trabalho dos primeiros é comutado pelos produtos da natureza; no
segundo caso, é predominantemente um intercâmbio entre os homens. No
primeiro caso, o senso comum é suficiente – a atividade corporal ainda não está
de modo algum separada da atividade intelectual; no segundo, a divisão entre
trabalho corporal e intelectual já deve estar praticamente realizada (…) No
primeiro caso, existe a pequena indústria, todavia subordinada à utilização do
instrumento de produção natural, e por essa razão, sem distribuição do trabalho
entre diferentes indivíduos; no segundo, a indústria existe apenas por essa
divisão do trabalho107.
Fica claro aí que os instrumentos de trabalho e a natureza mantinham uma relação
mais estreita, que o primeiro termo era dependente do segundo. Com o capital, tal
dependência deixa de existir, posto que os instrumentos do trabalho são o resultado da
produção humana. Perdem o caráter natural, assumem o estatuto de capacidade humana
objetivada. Capacidade que expressa o domínio do homem sobre a natureza, mas que só
aparece no interior da divisão do trabalho e com a existência da propriedade privada
burguesa. Portanto, o que os próprios instrumentos de produção manifestam é a contradição
107 Ibidem, pg. 101.
69
entre sua existência e a existência da propriedade privada. Como os autores afirmarão em
seguida:
Até agora, partimos dos instrumentos de produção e já aqui se mostra a
necessidade da propriedade privada para algumas etapas industriais. Na indústria
extrativista, a propriedade privada coincide ainda inteiramente com o trabalho;
na pequena indústria e em toda a agricultura anterior a propriedade é a
conseqüência necessária dos instrumentos de produção existentes; na grande
indústria, a contradição entre o instrumentos de produção e a propriedade
privada é o produto da grande indústria, que deve estar bastante desenvolvida
para criá-la. A supressão da propriedade privada, portanto, só é possível com a
grande indústria108.
A reintegração do trabalhador com os meios de seu trabalho só é alcançada pela
grande indústria capitalista, pois esta – manifestação contemporânea da propriedade
privada dos meios de produção – já é desnecessária para que o homem controle o conjunto
de suas forças produtivas. Na verdade, ela é contraditória com o modo de existência dessas
forças, que adquirem uma potencialidade universal.
Interessante perceber nesse movimento, em que a propriedade privada, de
necessidade material, transforma-se em seu oposto, como não se trata de uma dialética
vulgar, mas da história natural do homem, isto é, como afirma Marx, nos Manuscritos
Econômico-Filosóficos, da história da sua relação com a natureza. Contraditoriamente, é o
afastamento com as necessidades puramentes “naturais” que possibilita o “desenvolvimento
da natureza a caminho do homem”109. A divisão do trabalho, bem como a propriedade
privada, que é o seu produto, são termos dessa relação entre o homem e a natureza.
A ciência participa dessa relação na medida em que é um dos fundamentos da
emancipação humana, entendida aqui como o fim da propriedade privada110.
A própria historiografia só incidentalmente se refere à ciência natural, como
fator de esclarecimento, de utilidade prática, de grandes descobertas individuais.
Mas a ciência natural penetrou de forma mais prática na vida humana por meio
da indústria, transformou-a e preparou a emancipação da humanidade, muito
embora o seu efeito imediato tenha consistido em acentuar a desumanização do
108 Ibidem, loc. cit. 109 Marx, K. Manuscritos Econômicos-Filosóficos, ed. cit., pg. 146. 110 “A supressão da propriedade privada constitui, deste modo, a emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas (…) A necessidade ou o prazer perderam portanto o caráter egoísta e a natureza perdeu a sua mera utilidade, na medida em que a sua utilização se tornou utilização humana” in Manuscritos Econômicos-Filosóficos, ed. cit., pg. 142.
70
homem. A indústria é a relação histórica real da natureza e, por conseqüência, da
ciência natural, ao homem […] 111.
Esse caráter da ciência (de emancipação e desumanização do homem) está ligado
diretamente ao desenvolvimento histórico da indústria moderna:
O instrumental de trabalho, ao converter-se em maquinaria, exige a substituição
da força humana por forças naturais e da rotina empírica pela aplicação
consciente da ciência. Na manufatura, a organização do processo de trabalho
social é puramente subjetiva, uma combinação de trabalhadores parciais. No
sistema de máquinas, tem a indústria moderna o organismo de produção
inteiramente objetivo que o trabalhador encontra pronto e acabado como
condição material da produção. Na cooperação simples e mesmo na cooperação
fundada na divisão do trabalho, a supressão do trabalhador individualizado pelo
trabalhador coletivizado parece ainda ser algo mais ou menos contingente. A
maquinaria, com exceções a mencionar mais tarde, só funciona por meio de
trabalho diretamente coletivado ou comum. O caráter cooperativo do processo
de trabalho torna-se uma necessidade técnica imposta pela natureza do próprio
instrumental de trabalho112.
Determinam-se mutuamente a utilização da ciência e o desenvolvimento do
instrumentos da produção. Por um lado, a “aplicação consciente” da ciência é uma
necessidade do estágio atual do instrumental de trabalho; por outro, esse próprio
instrumental representa o estágio que a “ciência natural” alcançou.
Na manufatura, cada operação parcial tem de ser executável manualmente pelos
operários, trabalhando isolados ou em grupos, com suas ferramentas. Se o
trabalhador é incorporado a determinado processo foi este antes ajustado ao
trabalhador. Na produção mecanizada desaparece esse princípio subjetivo da
divisão do trabalho. Nela, o processo por inteiro é examinado objetivamente em
si mesmo, em suas fases componentes e o problema de levar a cabo cada um dos
processos parciais e de entrelaçá-los é resolvido com a aplicação técnica da
mecânica, da química etc., embora a teoria tenha sempre de ser aperfeiçoada
pela experiência acumulada em grande escala113.
Se, na indústria moderna, a aplicação técnica da mecânica, da química, etc.
“resolvem” e “entrelaçam” os processos parciais do trabalho, ao passo que, na manufatura,
isso ainda está relacionado às habilidades de cada trabalhador, temos como resultado que a
111 Ibidem, pg. 145. 112 Idem. O Capital – Crítica da Economia Política, ed. cit., pg. 439-440. 113 Ibidem, pg. 433.
71
ciência, de fato, é uma das forças de “desumanização” do homem. Mas somente o é na
medida em que é apropriada pelo capital. E, mesmo sendo apropriada por ele, não perde seu
caráter de manifestação do ser humano, de sua atividade objetiva com a natureza.
Somente por meio da indústria desenvolvida, ou seja, por meio da mediação da
propriedade privada, é que surge a essência ontológica das paixões humanas, na
sua totalidade e na sua humanidade; a ciência do homem constitui também um
produto da auto-realização do homem através da atividade prática114.
Instrumentos de produção e ciência estão em relação direta com a propriedade
privada e com a divisão do trabalho, pois estas conformaram-se historicamente como
condições (mediações) para que os primeiros pudessem atingir o estágio que alcançaram.
Se é necessário que os meios de produção retornem aos trabalhadores produtivos, isso
implica que a ciência objetivada nesses meios surgirá como “auto-realização do homem
através da atividade prática”. Ou seja, de força estranha, a ciência natural, seja na sua
forma “pura” seja na “aplicada”, transformar-se-á em manifestação do ser.
3.4 A força viva do trabalho
Marx utiliza em O Capital uma imagem para designar o trabalho acumulado. Diz
que o capital é um trabalho morto, que se mantém através do trabalho vivo. Uma espécie de
“vampiro” que só pode existir alimentando-se na força viva que representa a força de
trabalho. Referimo-nos, portanto, à força de trabalho humana como uma força viva, no
entanto, qual é a condição de existência dessa força viva que compõe o conjunto das forças
produtivas?
Já descrevemos, com o auxílio dos textos de Engels, a condição de brutalização que
a divisão do trabalho impunha aos trabalhadores no século XIX. Há de se considerar que,
contemporaneamente, as condições gerais de vida da classe trabalhadora nos países mais
desenvolvidos modificaram-se em relação ao que existia, contudo, se se compreende o
conjunto das forças produtivas como forças mundiais, poderíamos refletir se o que nossos
114 Idem. Manuscritos Econômico-Filosóficos, ed. cit., pg. 163.
72
autores expõem não expressa ainda as condições gerais de existência de uma boa parte da
força viva do trabalho (para não dizer da “maior parte” dessa força).
Para o trabalhador, até mesmo a necessidade de ar puro deixa de ser necessidade.
O homem regressa à moradia nas cavernas, mas agora se encontra intoxicada
pela exalação maléfica da civilização. O trabalhador tem apenas um direito
precário a nela morar, porque se tornou um poder estranho, que lhe diminui
todos os dias, do qual pode ser desalojado, se não pagar a renda. Tem de pagar
este cemitério […] A luz, o ar e a mais elementar limpeza animal deixam de
existir para o homem como necessidades. A sujeira, a corrupção e a degradação
do homem, os esgotos da civilização (deve-se entender o termo no seu
significado exato), tornam-se o seu elemento vital. Nenhum dos seus sentidos já
não existe mais, seja em configuração humana, seja até numa configuração não-
humana, numa configuração animal […] Não foi o bastante que o homem tivesse
perdido as necessidades humanas; também as necessidades animais
desaparecem115.
O que significa a degradação da força viva do trabalho? Significa que o
desenvolvimento das forças produtivas mundiais retrocedem, que o desenvolvimento destas
não é somente unilateral, mas é também destrutivo. Na medida em que toda força viva de
trabalho não pode ser incorporada ao conjunto das forças produtivas mundiais (dada as
atuais relações de produção), uma e outra tendem a se destruir mutuamente.
De um lado, uma parcela dos que estão à margem do processo produtivo tornam-se
os chamados “criminosos”, como indica Engels em A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra; de outro, as riquezas que o trabalho produz servem para subjugar ainda mais os
trabalhadores. O aperfeiçoamente progressivo das forças sociais a partir do aumento da
divisão do trabalho, da maquinaria e dos “demais inventos pelos quais a ciência coloca as
forças naturais a serviço do trabalho”116 esmagam ainda mais o trabalhador, que vê seu
salário reduzido ao mínimo possível, suas necessidades humanas destruídas, suas
necessidades “animais” limitadas.
Tal quadro manifesta a estreiteza das relações de produção burguesas que retiram do
trabalhador a sua única fonte de existência. O chamado “aniquilamento forçado de um
115 Ibidem, pg. 150. 116 Marx, K. Salário, Preço e Lucro in: Trabalho Assalariado e Capital & Salário Preço e Lucro, ed. cit., pg. 105.
73
enorme contingente de forças produtivas”, como aparece no Manifesto Comunista117, nada
mais é do que a destruição da força viva do trabalho, uma vez que a ciência e tecnologia
incorporadas aos instrumentos de trabalho não se perdem na sua forma histórica, mesmo
que esses instrumentos sejam destruídos, porque já estão conservados pela história da
“ciência natural”, podendo, a qualquer momento, serem recompostas, o que se perde com
tal “aniquilamento” é a força viva, a vida humana do trabalhador.
Se, como dissemos no capítulo anterior, o trabalho é “a única conexão que os
indivíduos ainda mantém com as forças produtivas e com a sua própria existência”118,
quando lhe é retirada essa “conexão” (mesmo que seja com o trabalho alienado), ele perde
toda a possibilidade de resgaste de sua condição humana e perde os meios de manutenção
de suas necessidades naturais.
O processo de sujeição do trabalhador moderno às modernas relações de produção
decorre do aperfeiçoamento da divisão do trabalho, que mutilou o indivíduo, quebrou sua
capacidade de opor-se, individualmente, à tirania do capital.
Enquanto a cooperação simples, em geral, não modifica o modo de trabalhar do
indivíduo, a manufatura o revoluciona inteiramente e se apodera da força
individual do trabalho em suas raízes. Deforma o trabalhador monstruosamente,
levando-o artificialmente a desenvolver uma habilidade especial, à custa da
repressão de um mundo de instintos e capacidades produtivas, lembrando aquela
prática das regiões platinas onde se mata um animal apenas para tirar-lhe a pele
ou o sebo. Não só o trabalho é dividido e suas diferentes frações distribuídas
entre os indivíduos, mas o próprio indivíduo é mutilado e transformado no
aparelho automático de um trabalhador parcial (…) Originalmente, o trabalhador
vendia sua força de trabalho ao capital por lhe faltarem os meios materias para
produzir uma mercadoria. Agora, sua força individual de trabalho não funciona
se não estiver vendida ao capital. Ela só opera dentro de uma conexão que só
existe depois da venda, no interior da oficina do capitalista119.
Nesse sentido, reconfigura-se a questão da separação dos meios de produção do
trabalhador na indústria moderna. Não se trata mais de restituir ao trabalhador a totalidade
de seus meios de existência, porque a mutilação que lhe foi imposta impede que
individualmente possa utilizá-los. Transformado num “apêndice da máquina”, não pode
117 Marx, Karl. Manifesto do Partido Comunista, ed. cit, pg. 34. 118 Marx, K. & Engels, F. A Ideologia Alemã, ed. cit., pg 103. 119 Marx, K. O Capital – Crítica da Economia Política, t. 1, ed. cit., pg. 413.
74
restar ao trabalhador qualquer ilusão de se tornar, ele próprio, um produtor de mercadorias;
ele não pode existir mais enquanto “força individual de trabalho”, mas tão somente “força
coletiva de trabalho” posta em marcha no interior da fábrica. Marx vai descrever esse
processo de total dependência da força viva ao capital. Primeiro, indica a diferença entre a
divisão social do trabalho em geral e a divisão do trabalho no sistema capitalista:
Enquanto a divisão social do trabalho, que se processe ou não através da troca de
mercadorias, é inerente às mais diversas formações econômicas da sociedade, a
divisão do trabalho na manufatura é uma criação específica do modo de
produção capitalista120.
Em seguida, apresenta as conseqüências desse modo particular de divisão do
trabalho:
Certa deformação física e espiritual é inseparável mesmo da divisão do trabalho
na sociedade. Mas, como o período manufatureiro leva muito mais longe a
divisão social do trabalho e também, com sua divisão peculiar, ataca o indivíduo
em suas raízes vitais, é ele que primeiro fornece o material e o impulso para a
patologia industrial121.
E denuncia tal modo particular de divisão como um nova forma para a já conhecida
exploração do trabalho:
Ela [a divisão manufatureira do trabalho] desenvolve a força produtiva do
trabalho coletivo para o capitalista e não para o trabalhador e, além disso,
deforma o trabalhador individual. Produz novas condições de domínio do capital
sobre o trabalho. Revela-se, de um lado, progresso histórico e fator necessário do
desenvolvimento econômico da sociedade, e, do outro, meio civilizado e
refinado de exploração122.
Como se vê, há pelo menos três aspectos a serem considerados em relação à força
viva do trabalho: o primeiro diz respeito às condições de existência da classe trabalhadora e
da restrição de suas necessidades; o segundo refere-se à própria destruição dessa força viva,
que se vê impedida de se manifestar através do trabalho; o terceiro indica a mutilação das
suas capacidades físicas e intelectuais no próprio processo de trabalho, o seu parcelamento
enquanto indivíduo.
120 Ibidem, pg. 411. 121 Ibidem, pg. 416. 122 Ibidem, pg. 418.
75
Esse último condiciona os dois primeiros: o esfacelamento das capacidades
individuais do trabalhador, despoja-o de qualquer poder, “mantendo-o sob a ameaça
constante de perder os meios de subsistência ao ser-lhe tirado das mãos o instrumental de
trabalho, de tornar-se supérfluo, ao ser impedido de exercer sua função parcial” 123.
Faz-se necessário libertar as forças produtivas das relações de produção burguesas
não tanto porque é preciso libertar as “capacidades humanas” abstratamente, mas porque é
necessário, de imediato, defender a vida do trabalhador, defender a integridade do conjunto
das forças vivas do trabalho, as quais se encontram represadas pelo capital.
3.5 O ensino científico como fundamento da tese pedagógica
Nas escolas elementares – e, mais ainda, nas superiores – não se deve aceitar
disciplinas que admitam uma interpretação de partido ou de classe. Nas escolas
só se deve ensinar gramática, ciências naturais... As regras gramaticais não
mudam, seja um conservador clerical ou um livre pensador que as ensine. As
matérias que admitem conclusões diversas não devem ser ensinadas nas escolas;
os adultos podem ocupar-se dela sob a direção de professores que, como a
senhora Law, façam conferências sobre religião124.
Tentamos mostrar em uma seção anterior qual era a visão que Marx e Engels tinham
de ciência. Diante da multiplicidade de aspectos com que esse termo aparece nos textos de
nossos autores, elegemos os aspectos que nos pareciam mais gerais e mais adequados às
nossas interpretações.
Agora, quando buscamos explicitamente relacionar “ensino” e “ciência”
transcrevemos a passagem que expõe o modo pelo qual não trataremos desse assunto. Não
nos interessa entrar na polêmica da existência ou não de uma suposta postura “neutra” de
Marx e Engels em relação à ciência. Esperamos já ter demonstrado a partir dos extratos de
suas obras, bem como de nossa argumentação nas seções anteriores que os autores não têm
uma visão ingênua do desenvolvimento das ciências, apontando já no século XIX para a
123 Ibidem, pg. 558. 124 Marx, K. & Engels, F. Textos sobre Educação e Ensino, ed. cit., pg. 98.
76
crítica que tão fortemente vai aparecer no século XX. Como afirma Foster, “o pensamento
social de Marx (…) está inextricavelmente atrelado a uma visão de mundo ecológica”125,
portanto, os efeitos perniciosos da ciência, na sociedade capitalista, eram vislumbrados por
nossos autores muito antes de que o movimento ecológico despontasse com suas crítica ao
“poder” da ciência. No que tange à educação, reafirmamos que ambos não eram pedagogos,
portanto, não penetraram a fundo nas questões de organização das instituições escolares.
Reafirmando nossa posição de início, apontamos que as suas formulações pedagógicas
devem estar sempre em “relação a”, nunca isoladas, “em si”. Em resposta à passagem
acima, extraída de um discurso de Marx numa reunião do Conselho Geral da Associação
Internacional do Trabalho, reproduziremos o que Nogueira compreendeu:
Na verdade, não se poderia acusar Marx de ter tido uma visão neutra da escola
do ponto de vista do seu recrutamento e da sua freqüência, visto que, por diveras
vezes, ele se monstrou consciente das disparidades sociais existentes a esse
nível. Contudo, quanto ao funcionamento interno da instituição escolar
(conteúdos, práticas, etc.), parece-nos que seu caráter de classe passava-lhe
despercebido; o que, de resto, constituía uma característica própria da época, de
que o próprio movimento operário esteve marcado126.
Diferente de Manacorda e Nogueira, não nos interessa revelar os possíveis
conteúdos do ensino pretendido por Marx e Engels, mas compreender as relações que
estavam na base da formulação de suas teses pedagógicas.
Desse modo, utilizamos a noção de “ensino científico” não como uma vontade
nossa ou de nossos autores de preencher os conteúdos escolares com “disciplinas
científicas”. Nos termos em que a utilizamos não se tratará de um problema de “didática”,
ou de “organização dos currículos”; pensamos mais propriamente, ao utilizá-la, na relação
real que a ciência estabeleceu com a atividade produtiva, e a maneira pela qual tal relação
deveria participar da formação dos indivíduos, da sua formação integral.
A ciência a que nos referimos é a que identificamos com as “forças intelectuais da
produção”, ou seja, com o conjunto de capacidades e conhecimentos que se encontram
objetivados nos instrumentos de trabalho, e com os quais o homem mantém vínculo prático
125 Foster, J. B. A ecologia de Marx – materialismo e natureza, ed. cit., pg. 38. 126 Nogueira, M. A. Educação, Saber, Produção em Marx e Engels, ed. cit., pg. 161.
77
direto, ainda que não o perceba assim, já que os instrumentos, bem como o produto de seu
trabalho, encontram-se alienados.
Dessa perspectiva, o grau de desenvolvimento das ciências do século XIX em
relação a ciência do século XXI não constitui ponto fundamental para o que chamamos
“objetivação da ciência” nos meios do trabalho. O princípio é que há, mesmo nos
primórdios da indústria moderna, certas capacidades intelectuais incorporadas aos objetos,
instrumentos de trabalho. No momento em que o trabalhador relaciona-se com os
instrumentos de produção, vincula-se a essas capacidades intelectuais, incorporadas nestes,
ainda que de forma indireta.
Entretanto, o desenvolvimento livre tanto das forças manuais, quanto das forças
intelectuais depende da supressão da propriedade privada, que é a expressão histórica da
forma como essas forças se desenvolveram.
O camponês e o artesão independentes desenvolvem, embora modestamente, os
conhecimentos, a sagacidade e a vontade, como o selvagem que exerce as artes
de guerra apurando sua astúcia pessoal. No período manufatureiro, essas
faculdades passam a ser exigidas apenas pela oficina em seu conjunto. As forças
intelectuais da produção só se desenvolvem num sentido, por ficarem inibidas
em relação a tudo que não se enquadre em sua unilateralidade. O que perdem os
trabalhadores parciais, concentra-se no capital que se confronta com eles. A
divisão manufatureira do trabalho opõe-lhes as forças intelectuais do processo
material de produção como propriedade de outrem e como poder que os domina.
Esse processo de dissociação começa com a cooperação simples em que o
capitalista representa diante do trabalhador isolado a unidade e a vontade do
trabalhador coletivo. Esse processo desenvolve-se na manufatura, que mutila o
trabalhador, reproduzindo-o a uma fração de si mesmo, e completa-se na
indústria moderna, que faz da ciência uma força produtiva independente de
trabalho, recrutando-a para servir ao capital.
Na manufatura, o enriquecimento do trabalhador coletivo e, por isso, do capital,
em forças produtivas sociais, realiza-se às custas do empobrecimento do
trabalhador em forças produtivas individuais127.
O desenvolvimento é unilateral tanto nas forças intelectuais de produção, quanto nas
capacidades individuais do trabalhador, mas, apesar disso, apesar das mutilações que o
capital impõe às forças intelectuais e manuais, há enriquecimento das forças produtivas
127 Marx, K. O Capital – Crítica da Economia Política, ed. cit, pg. 413-414.
78
sociais. As partes constitutivas destas forças produzem somente o que o capital permite,
não o que potencialmente poderiam produzir.
Reivindicar um ensino científico, na perspectiva que demos aqui, é reconhecer a
unidade real que ciência e trabalho constituem, propondo que as partes dessa unidade
encontrem-se não mais sob a forma de alienação (da força viva em relação à força
intelectual) ou dominação (da força intelectual em relação à força viva).
Com efeito, tal unidade é possível porque “a história da indústria e a existência
objetivada da indústria é o livro aberto das faculdades humanas, a psicologia humana
sensivelmente entendida (grifos do autor)” 128. O ensino científico desvenda aos homens o
que são as forças produtivas na sua totalidade, como se constituiram até a indústria
moderna. As forças intelectuais e manuais revelam-se como as faculdades humanas
“escritas” na história da indústria, na história do modo como os próprios homens foram
produzindo suas condições de existência.
A tese de união do ensino com o trabalho produtivo é a formulação teórica dessa
ligação prática entre ciência e trabalho, ou antes, é a maneira pela qual tal ligação pode
deixar de ser puramente prática para se tornar teórica. Tal vinculação entre teoria e prática
Marx afirmava já existir na base da indústria moderna, ainda que de forma limitada.
As escolas politécnicas e agronômicas são fatores desse processo de
transformação, que se desenvolveram espontaneamente na base da indústria
moderna; constituem também fatores dessa metamorfose as escolas de ensino
profissional onde os filhos dos operários recebem algum ensino tecnológico e
são iniciados no manejo prático dos diferentes instrumentos de produção. A
legislação fabril arrancou ao capital a primeira e insuficiente concessão de
conjugar a instrução primária com o trabalho na fábrica. Mas, não há dúvida de
que a conquista inevitável do poder político pela classe trabalhadora trará a
adoção do ensino tecnólogico, teórico e prático, nas escolas dos trabalhadores.
Também não há dúvida de que a forma capitalista de produção e as
correspondentes condições econômicas dos trabalhadores se opõem
diametralmente a esses fermentos de transformação e ao seu objetivo, a
eliminação da velha divisão do trabalho129.
128 Idem. Manuscritos Economicos-Filosóficos, ed. cit, pg. 144. 129 Idem. O Capital – Crítica da Economia Política, ed. cit, pg. 559.
79
Como expressão teórica, a tese pedagógica de Marx e Engels traz em si a
possibilidade de transcender a própria limitação que essa ligação prática contém (e a
limitação que essas experiências “espontâneas” demonstraram). Transcendência que se
origina do fato de ser “um ato com consciência”, portanto, passível de desenvolver as
forças sociais produtivas (o que inclui as capacidades e faculdades humanas) para além do
estreitos limites em que se apresentam atualmente, rompendo de forma definitiva130 com “a
anarquia da divisão social do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira do
trabalho”131, possibilitando que a chamada “sociedade racional” de que Marx falava surja,
enfim.
130 Não estamos afirmando que a tese em si proporcionará tal desenvolvimento. A conditio sine qua non dessa “libertação” das forças produtivas é a própria revolução comunista (a “conquista do poder pela classe trabalhadora”). O papel das reivindicações, nas quais incluimos a tese pedagógica de união do ensino com o trabalho produtivo, será tema do capítulo 4. 131 Ibidem, pg. 409.
80
Capítulo 4
A manutenção da velha escola e seu fundamento
Quando, ainda no segundo capítulo, reproduzimos as análises de Engels da situação
do ensino dos trabalhadores na Inglaterra, apontamos para o “envelhecimento” de algumas
de suas descrições: o papel do Estado no sustento da educação, bem como as condições de
acesso e estruturação da escola pública. Todavia, ressaltamos lá que o caráter “ideológico”
e “econômico” mantinham certa atualidade, pois a escola reproduzia ideológica e
economicamente interesses vinculados ao capital e não à classe trabalhadora. Buscaremos,
nesse último capítulo, desenvolver essa idéia de reprodução, evidenciando como a
compreendemos.
De início, temos que apresentar a perspectiva pela qual trataremos desse tema: não
faremos um reexame da problemática “educação, trabalho e ideologia”, nem nos filiaremos
explicitamente a essa ou aquela corrente interpretativa. Assim, não pretendemos nos filiar
ao estruturalismo althusseriano de “Aparelhos ideológicos de Estado”132, bem como outras
variantes “crítico-reprodutivistas”, como denomina Saviani (2000). Tampouco faremos
elogio da versão “crítica crítica” de “Escola e trabalho” de Claudio Salm (1980).
Nem o fatalismo de uma ligação que obscurece as mediações entre a educação e o
imperativos do capital, nem a formulação de que este prescinde completamente da escola.
Enguita (1993) e Frigotto (2001) puderam de forma mais organizada apresentar um
conjunto de aspectos que envolvem a relação da educação com a sociedade capitalista.
Demonstraram que os vínculos entre a escola e o capital são complexos, porque, mesmo
onde há o vínculo direto, imediato, como na formação de um mínimo de qualificação da
força de trabalho, assim como na inculcação de valores morais necessários à manutenção
do capitalismo, subsistem outras funções que não atuam diretamente no processo de
valorização do capital, nem estão diretamente vinculadas às suas necessidades. Que, para
além de funcionar como um “aparelho ideológico” do Estado, a escola pública, tal como se
132 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
81
constituiu, apresenta contradições133 com o processo de dominação política, não havendo
uma coincidência imediata entre os pressupostos adotados pelas políticas burguesas e a sua
realização prática.
Importa-nos aqui, mais do que revisar tais questões amplamente discutidas há, pelo
menos, vinte anos, evidenciar a oposição entre a escola capitalista, isto é, a escola que se
universalizou a partir do modo de produção capitalista, e a escola politécnica, surgida
também no interior da sociedade capitalista e desenvolvida localmente pelos países de
socialismo “real”. Oposição que deve ir aos fundamentos de uma e de outra escola,
reforçando a noção de que essa escola de classe, capitalista, é uma escola velha sob o ponto
de vista das forças sociais engendradas pela sociedade moderna.
4.1 A escola politécnica
Quanto à escola politécnica, a que realiza a união do ensino com o trabalho
produtivo, desde o primeiro capítulo temos buscado interpretar os seus princípios. Ela se
fundamenta, primeiro, num estágio de desenvolvimento da sociedade que permitiu "a
indiferença em relação a um gênero determinado de trabalho [o qual] pressupõe a
existência de uma totalidade muito desenvolvida de gêneros de trabalhos reais, dos quais
nenhum é absolutamente predominante (...) A indiferença em relação a esse trabalho
determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos mudam com
facilidade de um trabalho para outro, e na qual o gênero preciso de trabalho é para eles
fortuito, logo indiferente"134, portanto, o trabalho perde em singularidade e o que ganha em
universalidade. Por ser um trabalho "em geral", permite que cada indivíduo desenvolva
habilidades para qualquer tipo de trabalho em que venha a se envolver. Como resultado
histórico de um desenvolvimento universal de forças produtivas, o tipo de trabalho surgido
133 Contradições como as que se expressam concretamente, na escola, através da organização sindical e estudantil, que se opõem, uma vez ou outra, contra as políticas governamentais; expressam-se também nas manifestações de violência, rebeldia, indisciplina de uma parcela considerável dos estudantes, os quais não são “assimilados” completamente ao disciplinamento imposto, etc. 134 Marx, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pg. 252-253.
82
com a sociedade capitalista transforma-se em alavanca para o desenvolvimento de um
ensino multifário e de uma escola politécnica.
O surgimento espontâneo de escolas politécnicas "na base da indústria moderna",
bem como de escolas profissionais "onde os filhos dos operários recebem algum ensino
tecnológico e são iniciados no manejo prático dos diferentes instrumentos de produção" são
indícios de que a conjugação da instrução com o trabalho ocorre no interior da sociedade
capitalista, mas, por ela própria, é limitada, uma vez que os objetivos de tal conjugação é "a
eliminação da velha divisão do trabalho"135.
O segundo fundamento de tal escola está vinculado a ostensiva utilização da ciência
na produção. O papel que as forças intelectuais adquiriram a partir do capitalismo
impuseram, como nunca na história, a ampliação da instrução formal e sua ligação, até
certa medida, com as necessidades de desenvolvimento do trabalho.
Apesar de a escola pública universal burguesa manifestar a continuidade dos
princípios da escola de classe (separação com o trabalho manual) que existira antes mesmo
do modo de produção capitalista, ela nasce dependente do trabalho na grande indústria. Se
avança para um caminho que, progressivamente, vai se afastando desse vínculo original,
assumindo, por sua vez, outras facetas e funções, isso não tende a negar a aproximação
entre a escola e o trabalho, pois tal ligação é reposta continuadamente, em diferentes fases
do capitalismo.
Compreensão semelhante a essa apresenta Enguita ao afirmar que:
"(...) o problema de uma pedagogia do trabalho, de uma educação formal (...)
assim como o problema das escolas técnicas ou profissionais, não surge com
força até a segunda metade do século XIX. A razão desse surgimento tardio não
está em nenhum esquecimento dos educadores, mas em algo muito mais
prosaico: em que só nesse momento aparece a necessidade. Até então, as bases
materiais da pequena produção, muitas vezes familiar, tinha permitido sempre a
aprendizagem no próprio local de trabalho (...) A pequena produção agrícola,
artesanal ou mercantil não exige nenhum tipo de formação profissional
institucionalizada na escola. Ademais, as primeiras manufaturas podem se
arranjar com o modo anterior de formação da mão de obra. Para que se coloque
como problema específico, o da educação para o trabalho, é necessário que
ocorra a transformação da indústria manufatureira em grande indústria baseada
135 Karl, M. O Capital – Crítica da Economia Política. 8. ed. São Paulo: Difel, 1982, pg. 559.
83
na maquinaria que, de um lado, elimina progressivamente da face da terra a
antiga pequena produção, e com ela o antigo modelo de aprendizagem do
trabalho, e, por outro, exige conhecimentos transformados e de novo tipo, que
não poderiam ser adquiridos sob esse antigo modelo sem que se oferecesse, em
contrapartida, outra forma suficiente de aprendizagem no próprio local de
trabalho. É então que a demanda de formação dos trabalhadores, tanto por parte
deles próprios, como por parte dos novos patrões, se volta para uma terceira
instituição, a escola"136 .
Em outras palavras, o segundo fundamento da escola que realiza a união do ensino
com o trabalho encontra-se na própria universalização da instrução formal com o
surgimento de demandas específicas do modo de produção capitalista. A escola politécnica,
nesse sentido, corresponde à etapa "superior" da educação formal, sua existência explica-se
pela transformação na base produtiva da sociedade: a incorporação da ciência, da
maquinaria, exige um aprendizado à sua altura.
Daí que a escola capitalista ser essencialmente contraditória, pois encerra uma
dualidade: contém, por um lado, a tradição, herdada das sociedades de classe, de separar as
atividades intelectuais e manuais, e de, no discurso pedagógico, privilegiar a transmissão de
idéias em detrimento de aprendizagem de ofícios, expressando dessa forma a divisão social
do trabalho, o seu reflexo idealista; por outro, nasce a partir de necessidades proeminentes
de contribuir para a aprendizagem do trabalho. Esse afastamento e aproximação com o
trabalho manual é característico, portanto, da escola implantada após a segunda metade do
século XIX - reflete os limites de sua universalização num sistema permeado de profundas
contradições.
Por fim, o terceiro fundamento conclui-se desses dois anteriores: o sistema
capitalista engendra, em seu seio, formas superiores de sociedade. A transformação do
trabalho e a incorporação da ciência na produção criam as bases para a eliminação
progressiva da divisão do trabalho. Primeiro, porque extraem do trabalho a sua
"naturalidade" e sua "singularidade" e, segundo, porque concentram na ciência o monopólio
dos conhecimentos intelectuais. Esses dois fatores (transformação e incorporação) refletem
136 ENGUITA, Mariano Fernández. Trabalho, escola e ideologia: Marx e a crítica da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, pg. 20-22.
84
o mais alto grau da divisão entre atividades manuais e intelectuais, ao mesmo tempo, em
que possibilitam pela conjugação de ambos a eliminação progressiva dessa divisão.
Por essa perspectiva, a escola que emerge desse movimento que repõe
continuadamente a divisão e também as condições de superá-la é uma escola que restitui à
sociedade o seu papel de educadora. Expliquemo-nos.
A escola que une instrução e trabalho, teoria e prática, é a escola que vai
"definhando" enquanto uma instituição à parte da sociedade, enquanto detentora do
monopólio do conhecimento. É a escola cujo fundamento é reposto sistematicamente pela
sociedade capitalista e, por ela, negado dada as atuais relações de produção.
"A educação ou formação apresenta-se em Marx, para empregar a expressão de
A. Santoni Rugiu, como um 'componente inseparável de toda a vida do homem'.
Reduzir esse componente à educação que se ministra no âmbito escolar seria
apenas agarrar-se à concepção burguesa da educação, ao reflexo ideológico do
estágio atual da divisão do trabalho, que converteu a educação num ramo
separado. E o mesmo se pode dizer de sua eventual redução a uma relação
pedagógica entre mestre e aluno, entre educador e educando"137
Se os dois primeiros fundamentos dessa escola de que tratamos são forjados pelo
próprio modo de produção capitalista e, apesar de apontarem para o fim da divisão do
trabalho, podem com ele conviver de forma contraditória, esse terceiro princípio é a própria
semente de destruição da divisão do trabalho, pois uma educação à altura do
desenvolvimento capitalista da produção é incompatível com a divisão técnica do trabalho,
com a divisão entre atividades manuais e intelectuais, com a divisão entre cidade e campo,
etc. O terceiro fundamento, portanto, é o caráter "revolucionário" desse modo de produção,
que, como afirmaram Marx e Engels, necessitava transformar ininterruptamente as suas
próprias bases. Dessa maneira, como se transformar "ininterruptamente" se a formação de
homens aptos a essa transformação da base produtiva é limitada por uma educação
fragmentada entre as esferas do pensar e do fazer?
"Descobrimos aqui a tendência universal do capital, tendência que o distingue de
todas as formas de produção anteriores. Ainda que esteja limitado por sua
natureza, o capital tende a um desenvolvimento universal das forças produtivas e
chega a ser a premissa de uma força de produção nova que não está baseada em
um desenvolvimento das forças produtivas tendente simplesmente a reproduzir
137 Ibidem, pg. 99.
85
ou a ampliar a base existente, senão cujo desenvolvimento livre, sem obstáculos,
progressivo e universal das forças produtivas será a condição da sociedade e,
portanto, de sua reprodução, e onde a única premissa será a superação do ponto
de partida.
A tendência universal do capital está, no entanto, em franca contradição com sua
forma limitada de produção que a impulsiona a dissolver-se: aparece, como uma
forma puramente transitória(...)"138
Além disso, uma educação que responda a esse desenvolvimento revolucionário não
pode, como diz Enguita no extrato acima, ser monopólio do ensino escolar. Uma educação
de caráter universalizante - para esse tipo de produção - pressupõe que a formação dos
indivíduos esta a cargo de toda a sociedade. Se a escola foi necessária à produção
capitalista, esta, assumindo um estatuto potencialmente universal, exige, para continuar se
revolucionando, uma educação para além dos muros da escola. Até porque, como alerta
Engels, é preciso controlar essas forças universais e não deixá-las existir enquanto forças
cegas de destruição.
Sem que estejamos pregando o "fim da escola", supomos que, com a sociedade
comunista, ela deixaria de ter o monopólio da formação dos indivíduos, além de que
perderia essa caraterística de ser mais um ramo separado da vida dos homens.
4.2 A escola capitalista
Da exposição da seção anterior, deduz-se os fundamentos da escola capitalista. Ela,
como produto da sociedade de classes, cristaliza a divisão do trabalho intelectual e manual,
independente dos esforços que as mais diferentes pedagogias possam ter para conjugar
"teoria e prática"; trata-se fundamentalmente da base material da escola capitalista: a
divisão social em que repousa e na qual se desenvolveu ao longo de mais de um século.
A partir desse fundamento, podemos falar acerca da noção que utilizamos de
"reprodução" ideológica e econômica dos interesses do capital pela escola.
138 Marx, K. & Engels, F. Textos sobre Educação e Ensino, ed. cit., pg. 46.
86
4.2.1 Reprodução ideológica
Como já dissemos, não estamos pensando naquelas tradições de inspiração marxista
que buscaram destrinchar o modus operandi da escola. Não nos perguntamos que função a
escola desempenha na inculcação de valores morais úteis à sociedade capitalista ou o grau
de formação que ela oferece aos trabalhadores para que sirvam às demandas do capital.
Partimos do pressuposto que toda escola de classe é uma escola que carrega a
ideologia dominante em seu seio. Isto porque entendemos como "ideológica toda a
representação que contribui mediata ou imediatamente para a reprodução das relações de
produção. A ideologia não se separa pois da prática, mas nem toda a prática é a aplicação
desta ou daquela ideologia"139.
Enquanto a escola for um produto da sociedade de classes, da divisão social do
trabalho, ela contribuirá na manutenção da sociedade capitalista. Todavia, como nos ensina
Lefebvre, isso não quer dizer que toda prática no interior da escola seja ideológica e que
não exista espaço para a luta de classes em torno de sua existência concreta.
Esse nos parece ser o caminho mais fértil para levar a frente a crítica da reprodução
ideológica pela escola dos interesses do capital. Entendê-la não somente como o "depósito"
das velhas idéias, da inculcação ativa sobre as mentes passivas dos educandos, mas como o
local onde também, e não exclusivamente, reproduz-se as relações de produção, sobretudo,
a divisão social do trabalho tão necessária à existência do modo de produção capitalista.
Lefebvre aponta para a crítica que se tem desenvolvido desse aspecto "reprodutivo" da
escola:
"O espaço pedagógico é repressivo mas esta 'estrutura' tem um significado mais
vasto do que a repressão local: o saber imposto, 'engolido' pelos alunos,
'vomitado' nos exames, corresponde à divisão do trabalho na sociedade
burguesa, serve-lhe, portanto, de suporte (...)
A escola perdeu assim seu prestígio, ganho no século XIX. Ela já não aparece
apenas como instrumento de "cultura" ou como "escola", com funções
139 Lefebvre, H. A re-produção das relações de produção. Porto: Publicações Escorpião: 1973, pg. 31.
87
oficializadas de educação e de instrução; a crítica pedagógica fá-la mostrar-se
como local de reprodução das relações sociais de produção (...)"140
Com efeito, apesar de ser conhecida tal crítica da reprodução ideológica pela escola,
tornou-se mais comum a crítica dos conteúdos ministrados em sala de aula. Não duvidamos
que é possível fazer a crítica dos conteúdos, tal como fazia Engels, por exemplo, da
educação das crianças trabalhadoras, as quais freqüentavam escolas com forte influência
religiosa. Não obstante tal crítica ser válida, ela não pode secundarizar o fundamento no
qual repousa a escola capitalista, pois essa é a sua essência: encontrar-se separada do
trabalho, fixando assim a divisão social.
Isso é importante porque, desse fundamento, pode-se partir para a crítica a todas as
variantes de pedagogias liberais, que defendendo idéias de "igualdade" e "oportunidade a
todos" buscam tornar a educação formal a panacéia das desigualdades e exclusões que
marcam tão fortemente o modo de produção capitalista.
Com efeito, característico da pedagogia liberal é "reinterpretar e transverter as
origens, o funcionamento e as metas do processo educativo real, marcando a separação
entre a teoria e a realidade social; abordando os problemas da educação como autônomos,
a-históricos, sem vínculo com o contexto social e tematizados num sistema ideal, que
dissimula as diferenças sociais presentes na divisão do trabalho, pela apropriação do capital
e das forças produtivas (...) Responde, assim, às necessidades de reprodução econômica e
política do capitalismo, constituindo-se num sistema mediador das contradições de classe,
ao transferir para o próprio indivíduo a responsabilidade pela sua situação na escala
social"141.
A escola de classe, capitalista, ainda que ofereça conteúdos e saberes que perteçam
à história da cultura humana e não somente a valores "burgueses" será sempre uma escola
ideológica, posto que separada da produção e do trabalho manual em geral. Escola
ideológica porque "compreendida como expressão de relações sociais concretas e
determinadas e não como uma abstração"142.
140 Ibidem, pg. 59. 141 ALEGRO, Márcia Maria. Educação e trabalho: um conflito sócio-econômico. Dissertação de Mestrado, 1997. (USP - inédita), pg. 87. 142 NORONHA, Olinda Maria. Ideologia, Trabalho e Educação. Campinas: Editora Alínea, 2004.
88
4.2.2 Reprodução econômica
A perpectiva que adotamos para pensar a reprodução ideológica pela escola da
sociedade capitalista serve para refletirmos acerca de sua reprodução "econômica".
Obviamente que, quando destacamos as esferas "econômica" e "ideológica", não se
trata de realidades opostas ou mesmo diferentes; efetivamente, tratamos de como a escola
contribui na "re-produção" das relações de produção, como insistia Lefebvre (1973). Tal
reprodução não se dá por uma "função" ou um aspecto particular da escola, como a
inculcação de valores morais ou qualificação da força de trabalho, mas pelas relações
sociais que a escola ajuda a criar, reforçar, institucionalizar. Ao tratarmos do aspecto
"ideológico", indicamos que a escola é produto de uma "cristalização" da divisão das
atividades manuais e intelectuais, contribuindo para consolidar representações que
valorizam tal divisão, independente dos conteúdos que ela venha a ensinar, porque sua
realidade material é encontrar-se separada do trabalho, da produção social. Agora, ao nos
referirmos ao aspecto "econômico", temos igualmente que apontar para o papel que a
escola desempenha na reprodução do modo de produção capitalista, sem nos preocuparmos
com o amplo debate em torno do vínculo mais ou menos direto da escola em relação à
qualificação da força de trabalho.
Com efeito, adotando o ponto de vista que Enguita desenvolve em seu livro, temos
que ressaltar que o vínculo fundamental entre escola e a produção se dá em termos de
relações sociais.
"O ajuste entre escola e produção tem sido comumente em termos de qualificação
do trabalho. No entanto, existem razões históricas e sociológicas suficientes para
nos fazer duvidar de que a ênfase deva ser posta aí. Marx já colocou que o modo
de produção capitalita supunha uma permanente desqualificação dos
trabalhadores, ao substituir reiteradamente o trabalho dos operários qualificados
por máquinas manejadas por mão de obra não-qualificada (...) Mas é um fato que
a degradação do trabalho (a desqualificação dos postos de trabalho) veio
acompanhada ao longo de décadas por um aumento massivo da escolarização em
amplitude e duração. Isto levou à busca de interpretações alternativas da relação
entre educação e emprego (...).
89
A escola pode crescer e sua estrutura mudar, em função da forma como a
sociedade entende as necessidades de produção, por imperativo da legitimação
meritocrática, pela crescente demanda popular de educação, por uma tentativa de
disfarçar o desemprego, em nome da conciliação de classes dentro de um estado
ou por outras razões, mas, quaisquer que sejam as causas primeiras e/ou
aparentes, sempre há um processo ao longo do qual tende a se produzir um ajuste
entre o que a escola dá e o que a produção pede. Nosso problema continua sendo
mostrar que esse ajuste se dá sobretudo em termos de relações sociais, que na
escola o futuro trabalhador é introduzido nas relações sociais de produção
capitalistas"143 (grifo nosso).
A reprodução "econômica" da sociedade capitalista pela escola se dá
fundamentalmente, portanto, no interior das relações (sociais) produtivas. Esse aspecto
essencial que lhe permite adequar-se às demandas do capital: ora pode funcionar
impulsionando a formação de quadros técnicos, gestores que atuam diretamente na
produção, ora pode servir ao processo de valorização do capital, como parte de serviços e
demandas sociais "improdutivas" (do ponto de vista de extração da mais-valia) mas que
entram na esfera da circulação144.
Em oposição à escola politécnica que tem, entre seus objetivos, o desenvolvimento
das forças produtivas, isto é, o desenvolvimento das capacidades intelectuais e manuais dos
trabalhadores, objetivada nos instrumentos de produção, a escola capitalista não pode
desenvolver seu aspecto propriamente econômico. A formação incessante de uma mão de
obra cada vez mais qualificada não se coaduna com os interesses do "mercado". Ou melhor:
embora tenha havido um aumento da qualificação geral do trabalhador, seu preço de
mercado raramente corresponde ao seu valor, portanto, o valor da força de trabalho
altamente qualificada não se realiza145.
143 ENGUITA, M. F. Trabalho, escola e ideologia: Marx e a crítica da educação, ed. cit., pg. 230-231. 144 Isso é o que nos demonstra Frigotto ao analisar a questão dos gastos com educação: "(...) a ampliação do acesso à escola, o alargamento do investimento público na área educacional e o próprio processo de privatização do ensino devem ser entendidos dentro da ótica do movimento do capital, de circulação e realização da produção. A ampliação do investimento na educação cumpre, pois, uma função, não de queima de excedente, mas primordialmente como inserção deste investimento dentro da estratégia do circuito do capital em geral na sustentação dos seus interesses; cumpre, igualmente, uma função de gastos e despesas, que constituem a demanda agregada dentro do ciclo econômico; finalmente, pode, em determinadas circunstâncias, se constituir em gastos que mantêm funções parasitárias, funções estas que se tornam necessárias, como assinala Gramsci, para salvaguardar o funcionamento do modo capitalista de produção(...)" In: A produtividade da escola improdutiva, ed. cit., pg. 159. 145 "A progressiva substituição do padrão taylorista-fordista de produção pelo padrão de produção flexível, principalmente nos países centrais do capitalismo, tem produzido a redução drástica dos postos de trabalho, o
90
Essa situação da educação, na fase do capitalismo monopolista, impõe, inclusive,
um retrocesso na "insuficiente" (nos termos de Marx) combinação de "ensino com o
trabalho produtivo" a partir das escolas profissionais. Pois, conforme apontam recentes
estudos na área146, o modelo de formação profissional que se desenvolveu, em nosso país,
por exemplo, mostra-se cada vez mais inadequado ao processo produtivo que dá destaque à
flexibilização e destruição de postos de trabalho.
Na realidade, como mostra Frigotto (2001), a "inadequação"147 mesmo das escolas
profissionais, como SENAI e SENAC, em relação à produção capitalista, é constitutiva do
modo de inserção da escola nas relações produtivas.
Parece-nos que essa característica, presente mesmo nas escolas profissionais,
"técnicas", pertence a esse fundamento mais geral da escola no interior do capitalismo:
estar isolada do trabalho, da produção, ser o produto dessa separação histórica, comum a
todas as sociedades de classe.
Desse modo, a reprodução "econômica" das relações de produção deriva tanto do
seu caráter de classe, o qual expressa a divisão social do trabalho, quanto das características
que assume propriamente do modo de produção capitalista, isto é, a maneira como na sua
"improdutividade" singular apresenta funções "produtivas" à valorização do capital,
conforme sustenta Frigotto (2001).
que ocasiona que trabalhadores com alta qualificação estejam exercendo tarefas simples, que exigem menos qualificação. Isso resulta em queda dos salários e do status social desse segmento da classe trabalhadora(...)", in: A produção capitalista, trabalho e educação: um balanço da discussão nos anos 1980 e 1990 In: A formação do cidadão produtivo, pg 101. 146 Ver, por exemplo, a série de textos que se encontram em FRIGOTTO, G. & CIAVATTA, M. A formação do cidadão produtivo: a cultura de mercado no ensino médio técnico. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2006. 147 Inadequação que se caracterizaria por um descompasso entre o ensino nessas escolas e a moderna tecnologia aplicada à grande indústria capitalista do século XX.
91
Capítulo 5
As tarefas políticas de uma tese pedagógica
5.1 Sobre a revolução
Vínhamos, desde a Introdução, anunciando que os dois últimos capítulos dariam um
arremate nos fios que foram ficando soltos aqui e e ali. Na verdade, há questões, como fios
revoltos, que não se encerram em esquemas abstratos e perfeitos. Ainda que teçamos com o
maior cuidado, não são somente conclusões lógicas que darão ao texto uma verdade
“inabalável”. O problema fundamental é que adotamos desde o início um pressuposto
(estreitamente vinculado ao objeto de nosso estudo), que extrapola os limites desse texto e
os limites do meio em que ele é forjado. Este pressuposto é o da dimensão “revolucionária”
das teses educacionais de Marx e Engels.
Acreditamos já ter demonstrado, apoiados na leitura de nossos autores, que a
propriedade privada, a divisão social do trabalho, e o modo como essas se desenvolveram
na sociedade capitalista são entraves ao desenvolvimento da humanidade em geral, e da
classe trabalhadora, em particular. Não só se opõem a esse desenvolvimento como, na sua
fase atual, representam a destruição das forças produtivas, destacando-se delas sobretudo a
força viva do trabalho (o homem) e a natureza.
Desses apontamentos, chegaríamos, como chegaram - com maior argúcia - os
nossos autores, à defesa da revolução social. Entretanto, passados mais de 150 anos desde o
aparecimento de O Manifesto do Partido Comunista, o qual anunciava “a queda da
burguesia”, e 90 anos da Revolução Russa, primeira revolução proletária vitoriosa, dirigida
por um partido comunista, vivemos hoje ainda sob o jugo do capital e das relações
produtivas burguesas.
Sem dúvida, é uma fase de reação, em que o capital vê-se relativamente confortável
para retirar os poucos direitos sociais conquistados ao longo de décadas pela classe
92
operária, sem enfrentar grandes resistências. Nesse contexto histórico, defender a revolução
socialista, além de anacrônico, parece utópico. Uns dirão que o agente histórico da
revolução, o proletariado, não mais existe ou está em vias de extinção; outros afirmarão que
se trata, na atual fase, de inventar novas formas de luta, mais “libertárias” e mais
democráticas.
Fugiria de nosso estudo discorrer sobre esses e outros pontos. Levantar a história
das revoluções do século XX, mostrar os avanços e recuos, seria um trabalho de pesquisa
de outra natureza. Faremos apenas pequenas considerações acerca do tema, que tocam, de
alguma forma, aspectos já tratamos aqui.
Desse modo, quanto à primeira objeção, relativa ao “fim do proletariado”, temos
que opor o conhecimento que nossos autores tinham dessa tendência da indústria moderna
em empregar cada vez menos operários. Engels, por exemplo, escreve em o Anti-Dühring:
“o modo de produção é impotente para transformar esta massa de meios de produção em
capital; ficam inativos e é por esta razão que o exército de reserva industrial permanece
também na inatividade”148. Ou seja, não é conjuntural o processo de eliminação de postos
de trabalho, de trabalho “formal”, etc., é parte integrante da lógica de acumulação e
valorização do capital jogar massas de trabalhadores na informalidade. Conjunturalmente,
tal processo pode se agudizar, como nas épocas de crise, de recessão generalizada.
Se o aparecimento e incremento da maquinaria significa a substituição de
milhares de trabalhadores manuais por um pequeno número de trabalhadores de
máquina, os aperfeiçoamentos na maquinaria significam a eliminação de um
número de trabalhadores disponíveis que excedem as necessidades médias do
capital, de um completo exército industrial de reserva, segundo a designação já
usada em 1845, exército esse disponível para as épocas em que a indústria
trabalha sob pressão, e que é posto na rua durante a quebra que,
necessariamente, se segue, grilhão que a classe operária arrasta aos pés todo o
tempo, na sua luta pela existência, contra o capital, regulador que conserva os
salários ao baixo nível que serve os interesses capitalistas149
Aliás, o atual desenvolvimento científico-tecnológico, conhecido como “terceira
revolução industrial” em vez de demonstrar cabalmente o caráter “arcaico” das elaborações
de Marx, tem evidenciado a sua força. Como afirma Romero, Marx nos Manuscritos de
148 Engels, F. Anti-Dühring. Lisboa: Dinalivro, 1976. Pg. 376 149 Ibidem, 373.
93
1861-1863 teria apontado que a vantagem mais importante para os capitalistas da
maquinaria e do desenvolvimento tecnológico estaria na “diminuição relativa de
trabalhadores ocupados. Quando se desenvolve uma força produtiva, descobre-se uma
forma de produzir a mercadoria em menos tempo do que antes. Isso também quer dizer que
se pode produzir a mesma coisa com menos gente do que antes(…)”150.
A questão é: diante desse processo, que parece irreversível, sob o ponto de vista dos
economistas burgueses contemporâneos, de “flexibilização do trabalho”, desemprego em
massa de trabalhadores, destruição das condições de existências da força viva do trabalho,
em nível mundial, o que é possível defender?
Quanto à segunda objeção que se refere aos métodos de luta, é preciso retomar o
movimento histórico tal como os nossos autores o entendiam. Marx, em O dezoito
Brumário de Luis Bonaparte, redigiu a famigerada passagem: “os homens fazem sua
própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas
e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime o cérebro dos
vivos como um pesadelo”151 e é como se nossos contemporâneos buscassem fugir do
pesadelo que significou as ditaduras burocráticas estalinistas com a elaboração de “formas
novas” que não encontram ressonância na História. Pretendem inventar o “novo” como os
socialistas utópicos do século XIX, desconhecendo a não-linearidade do processo histórico.
Para Marx e Engels, a revolução não era um desejo, uma “vontade”, era o “movimento
real” e a “ruptura mais radical com as relações tradicionais de propriedade”152. Era o
movimento real porque expressava uma tendência que as revoluções burguesas
evidenciaram. É bom lembrar que entre a Revolução Inglesa do século XVII e a Revolução
Alemã no XIX, consideradas, respectivamente, como a primeira e a última grande
revoluções políticas burguesas, houve uma época de encarniçada luta para derrubar a então
classe dominante. Se considerarmos que as revoluções burguesas eram ainda revoluções no
interesses de minorias e que não alteravam o “ser” da sociedade153, há de se perceber que a
150 Romero, D. Marx e a técnica – Um estudo dos manuscritos de 1861-1863, ed. cit, pg. 139. 151 Marx, K. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2006, pg. 15. 152 Idem. Manifesto do Partido Comunista, ed. cit, pg. 59. 153 “A revolução burguesa é a realização imediata do ser social da burguesia; as barreiras a esta realização são puramente exteriores; ela não supõe nenhuma “autotransformação” da classe: esse processo “automático”, alienado, necessário, pode facilmente tomar a forma mitológica de um Libertador pessoal exterior. A
94
experiência da Revolução Russa, bem como das revoluções proletárias que se seguiram a
ela, não encerra essa etapa histórica da “guerra civil aberta” nas sociedades de classe.
Logo, a experiência das revoluções do século XX deve servir como um aprendizado
histórico a ser utilizado nas lutas atuais e futuras; virar às costas a essa experiência,
desprezando a sua totalidade em nome de um “novo” – fruto mais de elocubrações teóricas
do que de movimentos sociais reais – parece-nos um erro, que objetivamente só contribui
para a manutenção da ordem vigente.
A compreensão que retiramos dos estudos dos clássicos do marxismo é que uma das
características fundamentais da revolução proletária é ser eminentemente democrática154.
Como dirá Marx, no Manifesto, ela é feita pela maioria no interesse da maioria, ao contrário
das revoluções burguesas, cujo conteúdo estava dado pelo caráter também minoritário da
classe que aspirava ao poder. Se se trata de uma ditadura155, ela o será contra aqueles que
durante séculos tem imposto a sua própria ditadura – com a condição de que tal “ditadura
da maioria contra a minoria” busque dissolver “minoria e maioria” e assim destruir as
divisões de classe – esse sempre foi o objetivo de Marx e Engels ao defenderem a
Revolução Socialista, conforme demonstra Lênin em O Estado e a Revolução.
Põe-se novamente uma questão: diante da barbárie generalizada – guerras, crime
organizado, opressão sobre os países atrasados, disputa por mercados e por fontes de
matéria-prima, ou seja, a fase de crise e decomposição capitalistas, em que as grandes
revolução proletária, ao contrário, deve ser a primeira transformação consciente da sociedade, o primeiro passo no “reino da liberdade”, o instante histórico em que os indivíduos, até então objetos e produtos da História, se põem como sujeitos e produtores: ela não realiza o estado imediato do proletariado, implica para ele, inversamente, uma “superação de si” pela tomada de consciência e pela ação revolucionária” in: Löwy, M. A teoria da revolução no hovem Marx, ed. cit, pg. 49-50. 154 “O único direito histórico real, dirá Engels, é o direito à revolução. Talvez possamos arriscar-nos a adiantar que a legitimidade do princípio democrático decorre, para Marx e Engels, do fato de que ele depende e resulta historicamente do princípio revolucionário, que prevalece em qualquer circunstância. E é assim porque todos os Estados modernos, com suas instituições úteis ao proletariado, foram instaurados pelas revoluções que estão na origem do mundo moderno” in: Texier, J. Revolução e democracia em Marx e Engels. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. Pg. 135. 155 “O Estado que a classe operária constitui após a tomada do poder é, para Marx, uma ditadura, a ditadura do proletariado. Não nos enganemos quanto aos termos: ele entende que todo Estado é uma ditadura, na medida em que ele é a forma política de dominação de uma classe. Assim, um Estado pode ser “democrático”, isto é, ele pode admitir um certo grau de liberdades públicas, o parlamento e o sufrágio unversal, e nem por isso deixar de ser uma ditadura, porque o poder político continua a ser exercido pela classe dominante. Ao contrário da ditadura burguesa – que é a ditadura de uma minoria, em favor de uma minoria –, a ditadura do proletariado é uma ditadura exercida pela maioria, pelos trabalhadores, contra a antiga classe dominante.” In: Naves, M. B. Marx – ciência e revolução, ed. cit, pg. 94.
95
corporações e um meia dúzia de países determinam a vida de toda a humanidade, o que é
necessário defender?
Parece-nos que, nesse movimento de avanços e retrocessos rumo à sociedade
socialista, marxistas das mais diferentes matizes têm reacendido a consigna da Revolução e
começam a formular a réplica ao discurso dominante de fim da história. Bambirra, por
exemplo, argumenta no sentido que supomos ser o mais adequado contemporaneamente:
mostra como os defensores do capitalismo não têm resposta às mazelas de seu sistema e
que ainda não se elaborou com profundidade uma explicação para o retrocesso das
revoluções proletárias.
Lenin sempre contemplou a possibilidade de fracasso de uma experiência
histórica de socialismo. (…) Contudo, que procedência têm as afirmações
absurdas e tão corriqueiras na imprensa de nossos dias sobre ‘o fim do
comunismo’, ‘o mundo pós-socialista’, ‘a morte do marxismo’ , etc.? Nenhuma,
exceto para aqueles que crêem que o capitalismo é o fim da história! Exceto para
os pessimistas que pensam que a humanidade não tem alternativa melhor para a
maioria, senão a miséria e seus subprodutos tais como a marginalidade, a
enfermidade e a violência! Ou para os ingênuos que crêem que esse sistema
pode evoluir para uma distribuição mais eqüitativa da renda e da riqueza gerando
níveis progressivos de bem-estar. (…)
Por tudo isso penso que a proposta socialista, tal como foi concebida pelos
clássicos marxistas, mantém inalterada a sua validez. Tal convicção provém não
apenas de uma visão humanista mas, sobretudo, de um aprendizado científico
que obtive com os autores estudados. Que eu saiba, ainda não foi feita uam
análise da derrota do socialismo na URSS e da crise atual do marxismo dela
decorrente. Em todo caso, penso que só através do marxismo será possível
explicar a ambas156.
Que o agente histórico da contemporânea revolução social encontra-se enfraquecido
pelas derrotas que sofreu, e que as “circunstâncias” históricas que as gerações atuais
encontram não são aquelas que desejariam ter para construir a sociedade socialista, não
altera a necessidade de destruir as atuais relações sociais burguesas e tal destruição não virá
de um “céu sereno” (utilizando uma expressão de Marx). Ainda que voltemos hoje, começo
do século XXI, à fase “de propaganda” da revolução, uma vez que são pouquíssimos os
movimentos pelo mundo que coloquem, de forma prática, a destruição do poder capitalista,
156 Bambirra, Vania. A teoria marxista da transição e a prática socialista, ed. cit., pg. 14-15.
96
isso não diminui a nossa tarefa enquanto pesquisadores, professores, militantes; pelo
contrário, aumenta nossa responsabilidade, pois é, em momentos como esses, que as “armas
da crítica” adquirem um valor “prático” e devemos utilizá-las amplamente.
É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder
material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em
força material quando penetra nas massas. A teoria é capaz de se apossar das
massas ao demonstrar-se ad hominem, e demonstra-se ad hominem logo que se
torna radical (…)157.
5.2 O político e o pedagógico da tese
Feito esse pequeno arrazoado acerca da revolução (indispensável para prosseguir na
exegese e defesa da tese de união do ensino com o trabalho produtivo), vamos passar à
discussão “interna” do aspecto político de nossa tese.
Com efeito, argumentamos que a tese deveria ser entendida em duas dimensões: a
política e a pedagógica. Dedicamos os três primeiros capítulos à dimensão pedagógica, ou
mais apropriadamente filosófico-pedagógica, posto que não tratamos do processo educativo
em si, ou da organização dos currículos, mas de uma orientação, de uma proposta, enfim,
de uma tese cujo valor estaria em transformar a educação escolar existente, tomando como
ponto de partida a sociedade capitalista e tendo como horizonte a superação dessa
sociedade por uma outra.
Fomos levados à apresentá-la assim para tornar mais clara a sua interpretação,
contudo, apesar da unidade entre o político e o pedagógico a que já nos referimos na
Introdução, é preciso aqui lembrar o primado do político sobre o educacional, conforme
sustenta Saviani(1997).
Não podemos relegar a segundo plano o aspecto “propositivo” de nossa tese, porém
faz-se necessário advertir que não se trata de um novo “evangelho social” (educacional, no
caso). A aplicação da tese em pequena escala não redundará na formação do “homem
novo”. Aí o “político” se impõe – sem a transformação das relações sociais gerais através
157 Idem. Introdução In: Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005, pg. 151.
97
de uma práxis revolucionária – nenhuma proposta, nenhum método educacional pode forjar
a “nova escola”. Sem a revolução política, não há a revolução educacional.
Daí que iniciamos o capítulo destacando a questão da revolução. Vamos nessa
seção, delinear o caráter imediato e mediato da tese, no que tange à questão política,
entendida a partir de agora como política revolucionária, isto é, política cuja estratégia é a
derrocada de um modo de produção e sua substituição por um outro.
5.2.1 O objetivo imediato
A finalidade política imediata da tese está em ser uma das mediações na luta dos
trabalhadores contra o capital.
Tal objetivo não retiramos de nossa “vontade”. Como no século XIX, em que Marx
justifica a tese de união do ensino com o trabalho produtivo como um “antídoto” para
“resistir aos efeitos de um sistema social que degrada o operário” – a defesa hoje da tese
vincula-se à necessidade premente de proteção às crianças e aos adolescentes.
Não são necessários muitos números para comprovar como, no Brasil (e na maior
parte do mundo), o trabalho infantil persiste. Cerca de 5,5 milhões de crianças entre 5 e 17
anos fazem algum tipo de trabalho no Brasil, segundo o último relatório do Pnad (Pesquisa
Nacional por Amostras de Domicílios), referente ao ano de 2001158. Contraditoriamente, o
desemprego entre a juventude tem aumentado159. Como no século XIX, descrito por Marx e
Engels, crianças são amplamente utilizadas até quando interessa à sociedade do capital,
depois são descartadas. Quando conseguem um emprego, trata-se, na verdade, de um
subemprego, que impede a combinação com os estudos.
Conforme dissemos no capítulo terceiro, há uma destruição da força viva de
trabalho. Atualmente, tal destruição se processa pela impossibilidade de o trabalhador ter os
mínimos meios de existência, ou seja, um emprego, com o qual possa sustentar a si e a sua
família.
158 Cf. os dados do site www.bbc.co.uk/portuguese/especial/1911_numeros/index.shtml . 159 Cf. www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/03/04/materia.2007-03-04.0528329323/view .
98
O caráter da tese do ensino com o trabalho produtivo é, na atual fase, reivindicativo.
É levantado por alguns setores organizados do magistério público como forma de permitir o
acesso e a permanência de estudantes nas escolas de Ensino Fundamental e Médio,
sobretudo.
Nesse sentido, pudemos acompanhar as discussões do último Congresso dos
professores da rede estadual de São Paulo160; tivemos acesso ao caderno de teses e nele,
diferentes textos levantam a necessidade de combinar ensino e trabalho; citemos, a título de
ilustração, trechos de dois textos diferentes:
Para muitos filhos de trabalhadores, a escola não pode ser prioridade em suas
vidas. Combinar os estudos com o trabalho é quase impossível – as jornadas são
estafantes, o que se aprende nas escolas nada tem a ver com o trabalho e o medo
de perder o emprego obriga ao abandono da vaga escolar. O trabalho nessas
condições esgota as capacidades físico-mentais dos jovens e não permite uma
freqüência regular às escolas(…).
O vínculo da escola com o trabalho produtivo (…) é uma reivindicação do
presente, mas que os capitalistas e seus governos não poderão implantar (…)161
E:
O fato de, no capitalismo, o estudo e a teoria estarem separadas da prática
determina o aspecto memorístico e repetitivo a que está condenada a escola. Sob
este sistema os trabalhadores estão limitados à condição de operar e impedidos
de estudarem a produção material e social vivida; estarão impedidos de
elaborarem a partir de suas ações práticas no processo produtivo (…)
No caso da juventude, os alunos devem ter uma parte do tempo ligado à
produção prática e outra parte na escola (…)162
Por conseguinte, a tese que estamos estudando aqui tem uma história no interior dos
movimentos sociais. Imediatamente ligada à denúncia das condições de trabalho e ensino
das crianças e jovens e de suas famílias, e à defesa do controle, através de leis, do modo
como esse dois aspectos da vida social têm historicamente se combinado e afetado as
classes trabalhadoras.
Conseqüência desse caráter reivindicativo, imediato, da tese, é que não se “espera”
somente a sociedade socialista para exigir a transformação da escola. Essa é uma exigência
160 Trata-se do XXI Congresso Estadual da APEOESP, realizado nos dias 06 a 08 de dezembro de 2006 em Sumaré, São Paulo. 161 Texto da Tese 2 “Quebrar a conciliação de classe, por uma Apeoesp de combate”, pg. 31. 162 Texto da Tese 8 “Unidade da Ação Direta e Democracia operária, contra a burocracia”, pg 131.
99
dos educadores das redes públicas espalhadas em todo país, os quais, reconhecendo de
forma prática e não teórica, as dificuldades por que passam seus educandos, lutam por
mudanças na educação. Poderíamos também concluir desse caráter reivindicativo que a tese
se vincula também à defesa da escola pública, gratuita e para todos, na medida em que a
universalização do ensino é pré-requisito para um sistema que adota o trabalho como eixo
organizador da educação. Se se exige controle do trabalho, é necessário igualmente exigir o
direito de acesso à educação para todos.
Colocado dessa forma, apesar do caráter socialista da proposta, ela se articula às
tarefas “democrático-burguesas” – demandando para sua efetivação, a realização plena
dessas.
5.2.2. O objetivo mediato
Atualmente, vivemos uma ofensiva do capital, o qual procura reverter sua crise
de valorização e legitimação evidenciada desde o fim da década de 1960. No
aspecto ideológico, essa ofensiva já tomou uma forma bem definida por meio do
ideário neoliberal. O mesmo não se pode dizer, contudo, no campo da produção,
onde o capital ainda faz apostas163.
Aparentemente, criamos uma pequena contradição na seção acima, afirmamos que o
objetivo imediato da tese era ser uma mediação. Ora, algo imediato dispensa mediações,
isso é óbvio. Todavia, “vivemos uma ofensiva do capital”, questões que apareceriam como
óbvias, adquirem um caráter questionável. O que seria imediato, como pensar o melhor tipo
de organização do ensino escolar no começo do século XXI, torna-se uma tarefa repleta de
obstáculos, pois o direito à educação ainda não é universal. Em outras palavras, a sociedade
contemporânea, regida sob a lógica do capital, interpõe barreiras que impedem que
avancemos nas questões educacionais.
Conquanto sejamos taxados de “anacrônicos”, por defendermos idéias nascidas em
séculos passados, são as relações sociais (produtivas) burguesas que nos mantém presos a
problemas do século XIX, acrescentando a estes outras dificuldades, como a questão do
163 Romero, D. Marx e a técnica, ed. cit, pg. 09.
100
analfabetismo funcional, que é o reflexo do descaso como se pretendeu, aqui no Brasil, por
exemplo, responder a esses problemas.
Dito isso, podemos compreender que a natureza mediata da tese determina-se pelo
seu conteúdo socialista.
Desenvolvemos nos capítulos anteriores, a análise de Marx e Engels segundo a qual
o sistema capitalista aprofundava a divisão social do trabalho e criava mecanismos mais
eficazes e poderosos para subsumir o trabalho ao capital. Ao lado da divisão social, cresce a
divisão técnica do trabalho: o parcelamento das atividades, o ritmo imposto pela
maquinaria, o papel da ciência como força produtiva a articular as fases da produção,
independente dos conhecimentos do trabalhador, etc. Como afirma Romero (2005), a
subsunção formal do trabalho ao capital é substituída pela subsunção real. Em determinada
fase de desenvolvimento capitalista, não serão somente burguesas as relações de produção,
mas também as forças produtivas, aperfeiçoadas a partir do domínio dessas relações
(Naves, 2003).
Essa configuração do modo de produção capitalista evidencia que não é somente a
transformação das relações de produção que determinará o caminho rumo à sociedade
comunista, em que a divisão social, assim como as classes, deixarão de existir. Faz-se
necessário uma revolução das próprias forças produtivas.
Se as relações de produção capitalistas repousam na constituição desse “núcleo
duro” de existência do capital – a organização do processo de trabalho sob a base
técnica das forças produtivas especificamente capitalistas –, o socialismo deve
necessariamente ser o período no qual essas relações de produção são destruídas.
Como o processo capitalista de trabalho é organizado de modo a possibilitar a
expropriação objetiva e subjetiva do operário pelo capital, o socialismo deve
implicar um processo de reapropriação das condições objetivas e subjetivas da
produção por parte dos trabalhadores (grifos do autor)164.
Ora, a revolução socialista destrói as relações de propriedade até então vigentes, isto
é, recompõe as “condições objetivas da produção por parte dos trabalhadores”, porque
permite uma reapropriação dos instrumentos de trabalho pela força de trabalho – a
separação histórica entre os meios e os fins do trabalho se reconfiguram. Põe-se como
empreitada seguinte: recompor as condições subjetivas ao trabalhador, o que significa
164 Naves, M. B. Marx – ciência e revolução, ed. cit., pg. 87.
101
concretamente permitir que ele volte a controlar o processo produtivo, e não o inverso,
como ocorre hoje.
Nessa tarefa, indicamos anteriormente, a tese de união do ensino com o trabalho
produtivo assume o seu estatuto pleno. A reapropriação das condições subjetivas da
produção pelo trabalhador depende de uma formação teórica e prática, de uma combinação
entre a esfera produtiva e a esfera educacional.
Essa combinação não resultará na formação de um trabalhador cujo conhecimento é
ilimitado – tal concepção só a teria um educador liberal, que compreende o conhecimento
como mais uma propriedade egoísta – mas de um trabalhador que não se limitará a uma
única esfera de atividades teóricas ou práticas durante toda a vida, tendo a liberdade de
alterá-la conforme a sua própria vontade pessoal, ou conforme a vontade social, já que
ambas – social e individual – não mais se oporão como ocorre hoje.
O trecho a seguir de Bambirra demonstra bem o sentido dessa “reapropriação das
condições subjetivas da produção” pelo trabalhador.
A supressão da cisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual,
preconizada por Marx e Engels, deve ser entendida nesse sentido, ou seja, que
todos os homens terão oportunidade de acesso a múltiplas e diversificadas
formas de conhecimento, eliminando dessa forma as experiências vitais
limitadas, que são condicionadas pela sociedade de classes. Desta maneira, o
desenvolvimento do indivíduo poderá romper as barreiras de uma
‘especialização’, que outra coisa não é senão sinônimo de restrição. Isso não
significa propriamente uma posição contrária ao conhecimento especializado,
pois, no seu sentido mais amplo, este pressupõe um domínio muito mais vasto
do conhecimento, de formas diversificadas de criação, a partir das quais o
indivíduo então pode especializar-se em algum tipo de atividade. Os marxistas,
muito mais, voltam-se contra a ‘especialização’ compulsiva que o sistema de
dominação de modo geral impõe à grande maioria dos homens. Sem preconizar
que todo homem chegue a adquirir um domínio sobre todos os ramos do saber e
da produção, o que Marx sugere é que cada pessoa deve ter o direito de
desenvolver sua compreensão mais ampla possível da sociedade, através do
acesso aberto ao ensino científico, tecnológico e cultural de sua época. Dessa
forma, o homem do futuro poderá contribuir para a coletividade com uma
dimensão muito mais plena do significado da sua participação e da sua obra165.
165 Bambirra, V. A teoria marxista da transição e a prática socialista, ed. cit., pg. 58.
102
Como uma tese socialista, ela se vincula ao processo revolucionário de
transformação das relações sociais; atua, portanto, como uma força material a se contrapor
aos escombros do “velho mundo”; objetiva, por um lado, ser um salto qualitativo sobre a
educação atual e, por outro, ser um dos passos para a construção de uma sociedade superior
a que temos hoje.
103
Conclusão
Da exposição
De certa forma, iniciamos a Conclusão de nosso texto a partir do capítulo anterior,
ao destacarmos o caráter "incompleto" de uma elaboração teórica no campo das idéias
marxistas. Não por acreditarmos que a dimensão teórica seja fundamentalmente
inclonclusa, mas, sobretudo, por haver uma dimensão prática, uma urgência de ação
militante, exigida pela obra de Marx e Engels, sem a qual as elaborações teóricas perdem
sua força.
Pois, ainda que insuficiências marquem o produto de nosso trabalho, gostaríamos
que o texto que produzimos evocasse a décima primeira tese sobre Feuerbach: "os filosófos
se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-
lo", isto é, que a retomada das formulações de dois pensadores revolucionários do século
XIX impusesse uma reflexão sobre a práxis educativa contemporânea.
Refletir sobre a práxis, para nós, já indica um caminho para a ação. A escola que
temos não serve ao livre desenvolvimento humano, porque "ser livre" significaria vincular-
se à necessidades sentidas pelos homens. Ao contrário, a escola de classe mantém a
separação, para a maior parte da humanidade, entre o gozo da liberdade e a satisfação das
necessidades. Cultura e trabalho mantém-se dissociados. Quando a escola,
conjunturalmente, liga-se ao trabalho é de modo a atender a imperativos do capital, não a
interesses dos trabalhadores.
Dessa maneira, se se pensa no que tem significado a práxis educativa na sociedade
capitalista, temos que nos opor a ela. Alicerçar nossa ação numa oposição radical.
Conseqüentes com esse tipo de oposição que o pensamento marxista inspira,
buscamos ao longo do texto destacar quais eram as "raízes" da sociedade de classe, cuja
destruição é necessária para que se construa uma educação superior a que temos hoje.
Assim, mostramos que a universalização da escola pública enfrentou e enfrenta
ainda dificuldades de implantação, pois essa, como outras tarefas democrático-burguesas
não puderam ser concluídas, pois se basearam no desenvolvimento desigual do capitalismo
104
mundial.
Expusemos também que o trabalho executado, nos marcos das sociedades de classe,
têm servido para mutilar os trabalhadores fisica e intelectualmente. No entanto, mesmo no
interior dessas sociedades, surge como a única conexão do homem com as forças
produtivas (isto é, com a natureza, com a ciência e com o trabalho vivo de outros homens),
portanto, ainda que fonte de embrutecimento, pode tornar-se, com o fim da propriedade
privada, em horizonte para o desenvolvimento humano.
Demonstramos o caráter contraditório das ciências naturais no capitalismo,
evidenciando que, ao mesmo tempo, em que se constituiram em mais uma força a
"esmagar" os trabalhadores, tornaram-se a expressão objetiva do desenvolvimento da
sociedade, apresentando um vínculo direto, prático, com o trabalho manual na grande
indústria, reaparecendo, dessa maneira, mesmo que na sua forma alienada, a conexão entre
a força viva do trabalho e as forças intelectuais da produção.
Também pudemos reforçar a crítica da reprodução ideológica e econômica por parte
da escola do modo de produção capitalista. Com efeito, tal reprodução, apareceu em nossa
explanação, não como resultado de "inculcação ideológica" ou "qualificação do trabalho",
mas como aspecto constitutivo da escola de classe. Escola que é a manifestação, de um
lado, da divisão social do trabalho e, de outro, de necessidades históricas das relações de
produção capitalistas.
A partir dessa exposição, apresentamos nossa compreensão do caráter político das
elaborações de Marx e Engels, buscando aproximá-las das tarefas colocadas a todos os
pesquisadores, professores, militantes interessados na transformação da educação e da
sociedade, tendo como horizonte o comunismo.
Das dimensões da tese de união do ensino com o trabalho produtivo
Ao longo dos capítulos, tentamos delinear quais eram as dimensões que a tese
ganhava ao se relacionar com cada um dos pontos discutidos. Ao final desse trabalho,
podemos sistematizá-las, agrupando-as pela característica que nos ficou mais ressaltada.
105
Assim, podemos dizer que há uma dimensão propriamente política: o ensino deve
interessar às classes trabalhadoras, no sentido que deve se ligar às relações sociais nas quais
estas já estão imersas, portanto, o trabalho produtivo, parte das relações dessa classe, deve
fundamentar a educação de que ela necessita, pois a educação, no sentido lato, provém
também das relações sociais e o ensino, como ensino formal, deve apresentar esse caráter
concreto em oposição ao ensino abstrato, desvinculado do "ser" da classe trabalhadora.
Como parte dessa dimensão política, a tese serve como denúncia das condições
atuais em que ensino e trabalho vinculam-se no capitalismo atual, e como forma de impor
medidas de proteção a crianças e adolescentes, forçadas, pela condição de miséria de suas
famílias, a trabalharem desde cedo. A combinação legal de um jornada de trabalho e estudo
a crianças e jovens permite frear a ganância de pequenos, médios e grandes capitalistas.
Há também uma dimensão mais propriamente filosófica da tese: o estatuto que o
trabalho assume no interior da obra marxista. Se se assume que é pelo trabalho, entendido
como expressão das capacidades humanas objetivadas, que o homem "humaniza-se",
qualquer tipo de educação, escolar ou não, adquire a função de valorizar o trabalho,
restituindo-lhe a característica de "manifestação vital do ser". Dado que, historicamente, a
escola dissociou-se do trabalho, a tarefa de qualquer pedagogia "humanista" é defender a
união de ensino e trabalho, uma vez que, como afirmamos, para que o trabalho volte a
assumir o caráter de fim em si mesmo, em oposição a simples meio de existência, é preciso
que isso se reflita no pensamento, seja um objetivo humano. A degradação do trabalho, em
virtude de sua divisão, de seu parcelamento em ramos cada vez mais cristalizados, é
resultado de um processo histórico, a possibilidade da reintegração das condições objetivas
e subjetivas do trabalho necessariamente deve ser o produto da ação histórica dos homens,
do modo como os próprios homens fazem sua história. Tal ação histórica, parece-nos,
também é um dos objetivos das diferentes formulações que Marx e Engels deram à idéia da
união do ensino com o trabalho produtivo.
Desse modo, em decorrência dessa dimensão filosófica, o ensino aliado ao trabalho
pode permitir um salto na compreensão dessa atividade humana vital, fazendo com que ela
seja a expressão consciente do ser objetivo, que é o homem.
Por fim, existe uma dimensão científica da tese. Defendendo a idéia de que há a
possibilidade concreta de uma educação científica, visto os laços existentes entre ciência e
106
trabalho, precisamos o entendimento do que seria uma educação com esse caráter. Antes de
ser uma "vontade", configura-se como uma necessidade - não de exaltar as ciências, mas de
superar a ultra-especialização que dominou o século XX, ou seja: é preciso haver um
desenvolvimento multilateral do homem. Multilateralidade que deve acompanhar o amplo
domínio das forças intelectuais da produção, as quais modificaram completamente a face
do planeta, sem que o conjunto da humanidade pudesse compreendê-lo; assim, um dos
objetivos dessa educação científica é fazer com que elas não continuem servindo à
destruição do homem e da natureza.
Como afirmamos no terceiro capítulo, "reivindicar um ensino científico é
reconhecer a unidade real que ciência e trabalho constituem, propondo que as partes dessa
unidade encontrem-se não mais sob a forma de alienação (da força viva em relação à força
intelectual) ou dominação (da força intelectual em relação à força viva)".
Essas dimensões são uma forma de sistematizar o modo como apresentamos a tese
de união do ensino com o trabalho produtivo aqui; não comparecem, na obra de Marx e
Engels, de forma estanque, mas se comunicam ao longo dos textos estudados.
Esperamos que o presente texto reflita, mesmo que minimanente, essa
"comunicação" das diferentes dimensões da tradição marxista, evidenciando que, mesmo
numa sociedade dominada pela fragmentação, especialização e divisão dos conhecimentos,
é possível vislumbrar e estudar uma obra de caráter onilateral.
107
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