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Marxismo e Antropologia
Mauro W. B. de Almeida*
[Em Armando Boito Jr. e Caio N. de Toledo (orgs.)Marxismo e Cincias Humanas. SoPaulo, Xam/FAPESP/CEMARX, 2003, pp. 75-85.]
Origens da antropologia marxista: Marx, Engels
As relaes entre marxismo e o estudo das sociedades sem classe remontam s sees da
Ideologia Alem, escrita de 1845 a 1846, em que as teses da concepo materialista dahistria so ilustradas com um esboo da sucesso histrica de modos de produo,
comeando pela comunidade primitiva organizada com base nos laos de sangue e
terminando com a sociedade feudal.1 Esse esboo, que Marx e Engels retomam no
Manifesto do Partido Comunista de 1848, foi amplamente desenvolvido no primeiro
manuscrito preparatrio para O Capital, escrito de 1857 a 1958, conhecido como as
Formas que Precedem a Produo Capitalista.2 Notemos porm que no texto final do
Capital, cujo primeiro volume apareceu em 1867, Marx no retoma a histria das formas
que precedem a produo capitalista. No lugar dela, no final do mesmo primeiro volume,
logo aps tratar da lei geral da acumulao capitalista, aparece a anlise brilhante da
acumulao originria do capital, ou seja, a constituio dos pressupostos da produo
capitalista atravs da separao violenta e brutal do trabalhador das condies do
trabalho3. Contudo, esses dois temas o da histria das formas que precedem a
* Departamento de Antropologia da Unicamp.1 Karl Marx e Friedrich Engels.A Ideologia Alem. Marx-Engels Werke (MEW), vol. 3.Berlim, Dietz Verlag, 1969, pp.13-20.2 Karl Marx, Formas que precedem a produo capitalista(MEW, vol. 42, pp. 383-421).
3 Mais precisamente, Marx trata aqui da transio da estrutura econmica da sociedade feudalpara a estrutura econmica da sociedade capitalista. Karl Marx, O Capital, vol. I, cap. 24(MEW 23, pp. 742-743).
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produo capitalista e o da acumulao originria do capital sero os fios condutores
da futura antropologia inspirada no marxismo. O primeiro relacionava-se diretamente ao
foco da antropologia evolucionista nascente na segunda metade do sculo XIX; o
segundo tema corresponde ao interesse da antropologia ps-colonial pela constituio da
sociedade capitalista, j na segunda metade do sculo XX, com foco na desagregao
violenta das formas no-capitalistas de sociedade e no processo de constituio histrica
do prprio capitalismo e da subordinao de trabalhadores ao capital em escala mundial.
Lewis Morgan e a antropologia evolucionista norte-americana
Marx e Engels viram na obraA Sociedade Antiga,publicada por Lewis Morgan em 1877,
a redescoberta independente das teses que eles haviam formulado na Ideologia Alem, e
uma continuao, portanto, da pesquisa sobre a histria das sociedades pr-capitalistas.
Mas em lugar de estabelecer prioridade intelectual, saudaram generosamente Lewis
Morgan como co-fundador da cincia materialista da histria. Havia afinidade ideolgica.
Em 1851, Lewis Morgan havia valorizado o comunismo e a democracia da sociedade
norte-americana nativa, colocando-os acima do individualismo competitivo dos ianques
da Nova Inglaterra; e na Sociedade Antiga, de 1871, Morgan criticava a idia da
propriedade privada como o principal agente do progresso.4 Havia tambm afinidade
terica: Morgan adotou como fio condutor de sua exposio da histria no-escrita odesenvolvimento das invenes, ou seja, das tcnicas de produo material, assim como
Marx e Engels o haviam feito j naIdeologia Alem. Nada mais natural portanto do que
acolher Lewis Morgan na linha de frente da cincia da histria na qual Marx e Engels
incluam tambm Charles Darwin, j que no traavam um fosso rgido entre a histria
natural e a histria humana.5
4 Sobre Lewis Morgan e seus seguidores, ver Joan Vincent. Anthropology and Politics: Visions,Traditions, and Trends. Tucson e Londres, The University of Arizona Press, 1990.
5 Engels deu uma importante contribuio para a explicao do papel do trabalho na evoluohumana (Friedrich Engels, O Papel do Trabalho na Hominizao do Macaco, emDialtica daNatureza, MEW, vol. 20, p. 444).
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A contribuio principal de Morgan para essa cincia, ainda conforme os fundadores do
materialismo histrico, foi a descoberta do papel das relaes de parentesco como o
principal meio de articulao social de sociedades baseadas na caa, coleta e na
agricultura. Ele aclarou assim a formulao simplificada de Marx sobre o papel da
comunidade natural (literalmente, de crescimento natural, naturwchsig), ou
comunidade de sangue, na histria humana. E renovou o estudo do papel poltico e
social da gens na sociedade antiga, luz da etnografia das sociedades sem estado do
presente, mostrando como as linhagens constitudas por relaes de descendncia atuam
enquanto unidades corporativas e polticas na sociedade sem classes, ocupando nestas o
papel que nas sociedades com histria escrita representado pelo Estado. Os Iroqueses
eram assim, para Morgan, um modelo de constituio poltica sem Estado.6
O acordo de Engels com essa teoria atestado por sua polmica nota de rodap ao
primeiro pargrafo doManifesto do Partido Comunista, na qual assinala o contraste entre
as sociedades com histria escrita, cuja histria a histria das lutas de classes, e as
sociedades sem histria escrita, cuja histria seria a histria das relaes de parentesco e
de cls, de gens, de Stmme.7 Nas primeiras, dominariam os conflitos relacionados
produo de coisas. Nas segundas, ressaltam as relaes de reproduo das pessoas. 8
6 Sobre o funcionamento poltico das linhagens em sociedades sem estado, ver entre outras obrasda antropologia funcionalista inglesa, ver: E. Evans-Pritchard. Os Nuer. So Paulo, EditoraPerspectiva, 1978 .7 A histria de toda sociedade at hoje a histria da luta de classes, diz o Manifesto na versode 1848. Nas edies alem e inglesa de 1888 e 1890, Engels acrescenta: Mais exatamente, issose refere histria escrita. Em 1847 a pr-histria da sociedade, a organizao social queantecede toda a histria transmitida pela escrita, era praticamente desconhecida. Engels inclui,
entre os autores de novas contribuies ao assunto, Haxthausen sobre a propriedade comunal dosolo na Rssia, Maurer sobre a histria dos Stmme alemes e a propriedade comunal alde, eMorgan sobre a sociedade comunista primitiva e sobre a verdadeira natureza da gens, semdeixar de lembrar sua prpria obra sobre A origem da famlia, da propriedade privada e doEstado (Karl Marx e Friedrich Engels,Manifesto do Partido Comunista, MEW, vol. 4, pg. 462,nota 2).8 Entre os antroplogos que retomam essa distino formulada por Engels, ver, entre outros,Claude Meillassoux (Femme, Greniers & Capitaux, Paris, Franois Maspero, 1977) e ChrisGregory (Gifts and Commodities. Cambridge, Cambridge University Press, 1981).
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Os mtodos e temas de Morgan poderiam ter sido um ponto de partida para o
desenvolvimento da antropologia apoiada no mtodo etnogrfico e articulada histria.
De fato, as obras de Morgan foram incorporadas aos clssicos da literatura socialista
mundial durante a primeira metade do sculo XX. Mas, por outro lado, foram por outro
lado virtualmente banidas da literatura antropolgica acadmica durante toda a primeira
metade do sculo XX, precisamente o perodo em que se desenvolve a antropologia
moderna.
Nos Estados Unidos, ptria de Lewis Morgan, a exceo foi o antroplogo Leslie White,
que visitou a Unio Sovitica em 1929, quando iniciava sua carreira universitria.
Segundo os organizadores de um livro pstumo de ensaios, Leslie White leu o Capital
em 1930 pela primeira vez, e a partir da converteu-se concepo materialista da
cultura:
... a obra impressionou-o muito, particularmente o primeiro captulo que ele leumuitas vezes nos anos subsequentes. Se White j no era um materialistacultural antes de encontrar as obras de Marx e Engels, ele certamente se tornoumaterialista depois disso. Passou a considerar as sociedades como tendo umabase tecnolgica e econmica sobre a qual se ergue uma superestrutura. Asuperestrutura social, por sua vez, encimada por um nvel ideolgico que dexpresso aos pensamentos, sentimentos e relaes engendrados pelos nveissubjacentes9
Leslie White fez uma interpretao global da viso materialista da histria. Em
vez da anlise detalhada e etnogrfica de sociedades particulares, enfatizou a idia do
desenvolvimento das fras produtivas como fora motriz da mudana social em larga
escala. Contudo, formulou essa idia de maneira bem idiossincrtica. Na obra intitulada
The Evolution of Culture, Leslie White representa as foras produtivas como uma
grandeza operacionalmente mensurvel pela quantidade de energia disponvel per capita.
Note-se que essa quantidade, uma espcie de produto nacional bruto per capita, no
medida em valor-trabalho, em sim em unidades de energia tais como kilowatts ou
calorias. Trata-se da energia fsica disponvel para realizar trabalho a servio da
9 Em Leslie White, Ethnological Essays, organizado e prefaciado por Beth Dillingham e RobertL. Carneiro. Albuquerque, University of New Mexico Press, 1987, pg. 7.
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sociedade; assim energia com com baixa entropia. conveniente notar que Leslie
White combinou essa viso da histria humana guiada pelo desenvolvimento da
capacidade produtiva com uma viso culturalista da sociedade como uma imensa
acumulao de artefatos-smbolos, incluindo-se aqui instrumentos de trabalho, regras
sociais e obras literrias. Nesse sentido, Leslie White era culturalista como Franz Boas,
mas, ao contrrio deste, distinguia na esfera dos artefatos humanos aqueles situados na
infra-estrutura daqueles situados na superestrutura. 10
Nos livros do prprio Leslie White, h um imenso silncio sobre Marx e sobre
outros autores que Leslie White deve ter lido, como Bukhrin e Plekhnov, e que
provavelmente influenciaram sua viso do materialismo.11
Qual a causa do silncio sobre Marx? Possivelmente a cerrada cultura antropolgica
anti-Morgan que se formou nos Estados Unidos sob a liderana de Franz Boas tenha sido
um fator: isso pode ter levado White a dissociar sua verso do materialismo de Marx para
torn-la mais aceitvel no meio acadmico. Mas, segundo tornou-se mais claro
recentemente, o cripto-marxismo de Leslie White foi provocado principalmente pelo
clima de guerra fria que teria levado White a esconder tambm sua filiao poltica ao
Socialist Labor Party (SLP), bem como a ocultar cuidadosamente sua participao em
vrias organizaes pr-soviticas, e a escrever trabalhos militantes sob o pseudnimo deJohn Steel.12 Agindo como cripto-marxista, foi mrito de White ter, em paralelo com
10 Sobre o culturalismo materialista de Leslie White, ver a recente introduo de Marshall Sahlinsem Culture in Practice,New York, Zone Books, 2000, pp. 9-34.11 Leslie White, The Evolution of Culture.The Development of Civilization to the Fall of Rome.New York, McGraw-Hill, 1959, pp. 256 e 295. Talvez estivesse presente aqui a busca de ummarxismo alternativo ao marxismo sovitico. Nesse sentido, foi importante para os alunos de
Leslie White, como Marshall Sahlins, a influncia de Jean-Paul Sartre (Questo de Mtodo), bemcomo a publicao dos Manuscritos Econmico-Filosficos de Marx, publicados nos EstadosUnidos em 1956 (ver Marshal Berman. Aventuras no Marxismo. So Paulo, Companhia dasLetras, 2001), e Marshal Sahlins, Culture in Practice, New York, Zone Books, 2000 (ecomunicao pessoal, 2000).12 Nos anos recentes foram abertas, graas a processos judiciais, as fichas que o FBI mantinhasobre Leslie White. Esses arquivos mostram, contudo, que o FBI ignorava a filiao de White aoSLP e suas publicaes ativistas. Sobre isso, ver os artigos The FBI File of Leslie A. White, dePaul Shaniman e Angela Theiman Dino, e The Cold War Context of the FBIs Investigation of
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Julian Steward, formado uma gerao de antroplogos simpatizantes do marxismo e que
comearam a atuar na dcada de 1950: Elman Service, Marshall Sahlins, Eric Wolf, e
outros. 13
Cabe uma breve meno antropologia funcionalista inglesa. Durante a primeirametade do sculo, seguindo a orientao de Bronislaw Malinowski e de Radcliffe-Brown,
a nova antropologia inglesa era anti-historicista. Mas ela era tambm, em certo sentido,
materialista as monografias que seguiam o mtodo de pesquisa de campo e os preceitos
funcionalistas davam prioridade, nessa ordem, vida econmica (incluindo aqui ecologia
e tcnicas produtivas) e estrutura social (incluindo-se aqui os sistemas de linhagem e de
parentesco, bem como os sistemas polticos neles baseados), tratando dos mitos e
representaes como se formassem uma superestrutura ideolgica. Nisso, os seguidores
de Malinowski seguiam os preceitos da Ideologia Alem.14 E na dcada de 1950 os
membros da chamada escola de Manchester liderados por Max Gluckman, s no
citavam abertamente Marx mas analisavam suas descobertas etnogrficas em termos
emprestados anlise da luta de classes: conflitos, contradies estruturais, reformismo e
revoluo.15
Leslie A. White, por William J. Peace e David H. Price, publicados emAmerican Anthropologist,vol. 103 (1), pp. 161-167, bem como as publicaes de Laura Nader, William Peace e David HPrice l citadas.13 Da extensa srie organizada por Marshall Sahlins, foram publicados no Brasil, alm de outros:Elman R. Service, Os Caadores, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1970; Marshall Sahlins,Sociedades Tribais, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1970; Eric R. Wolf, Sociedades Camponesas,Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1970, alm de outros. Ver nota 16, infra, sobre E. R. Wolf.14 O representante destacado desse enfoque Edmund Leach, particularmente antes de suaconverso ao estruturalismo. Ver Edmund Leach, Sistemas Polticos da Alta Birmnia: Um
Estudo da Estrutura Social Kachin. Sao Paulo, EDUSP, 1998; Edmund Leach, Pul Elya, aVillage in Ceylon: A Study of Land Tenure & Kinship. Cambridge, Cambridge University Press,1961.15 Como exemplo do mtodo de Malinowski aplicado anlise de processos de trabalho agrcolaem sua relao com a magia, ver Bronislaw Malinowski, Coral Gardens and their Magic, NewYork, American Book Company, 1935. Ver ainda, de sua discpula Audrey Richards: Hungerand work in a savage tribe: a functional study of nutrition among the southern Bantu. Londres,Routledge, 1932; eLand, labour and diet in Northern Rhodesia: an economic study of the Bembatribe. Londres, Oxford University Press, 1939.
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O quase-marxismo da antropologia acadmica inglesa da Escola de Manchester
era dialtico e sincrnico, enquanto o cripto-marxismo dos norte-americanos era
mecnico e diacrnico o que ambos tinham em comum era o carter crptico da
influncia marxista, bem como a ausncia do tema da acumulao primitiva e
contempornea do capital, substitudo sempre pelo foco na etnografia de sociedades
indgenas.16 Esse quadro seria abalado com o impacto da Guerra do Vietn na vida
acadmica dos EUA, marcado por movimentos de sit-in (ocupao de campi) e pela
politizao intelectual refletida na incluso de revolues contemporneas como tema de
estudo antropolgico, conforme comentaremos adiante a propsito de Eric Wolf.
Por que falar de Leslie White no Brasil e em silncios? Uma razo que no Brasil,
tivemos um ilustre continuador da tradio materialista-evolucionista de Leslie White e
de Julian Steward, que foi Darcy Ribeiro. Talvez a contribuio principal de Darcy
Ribeiro tenha sido seu estudo pioneiro e original do impacto das frentes de expanso do
capitalismo sobre as sociedades indgenas no Brasil impacto esse cuja intensidade ele
relacionou s diferentes formas de atividade econmica da frente capitalista. Pode-se
dizer que Darcy Ribeiro esboou assim um estudo mundialmente pioneiro sobre os
efeitos da acumulao primitiva do capital sobre sociedades indgenas.17 Mas o prprio
Darcy Ribeiro no formulou nesses termos a sua teoria. Em vez disso, esforou-se para
situar a sua anlise histrica no quadro de uma teoria geral da evoluo sociocultural
inspirada em White e Steward,18 isso na dcada de 1970, quando esses autores no eram
lidos no Brasil (ainda no o so), e quando os argumentos que Lwie havia usado contra
16 Uma das poucas excees so os trabalhos de Eric Wolf, nos EUA, e de Peter Worsley, naInglaterra. Ver Eric R. Wolf, Peasant Wars of the Twentieth Century, Nova York, HarperTorchbooks, 1973, e Eric R. Wolf: Europe and the People Without History, Berkeley, Universityof California Press, 1982.17 Darcy Ribeiro, Os ndios e a Civilizao. Rio de Janeiro, Vozes, 1972. Esse trabalho,que cronologicamente tem origem em um relatrio de 1959, aparece como ltimo volumena srie Estudos da Antropologia da Civilizao (ver nota seguinte). .18 Darcy Ribeiro. Estudos da Antropologia da Civilizao. I. O Processo Civilizatrio. Etapas daEvoluo Sociocultural. So Paulo, Civilizao Brasileira, 1972 (segunda edio). Trata-se doprimeiro volume de uma srie de quatro. Ver tambm a verso brasileira de um artigo de sntese
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o evolucionismo na dcada de 1920 eram amplamente difundidos, em parte atravs de
Lvi-Strauss.19 O fato de Darcy Ribeiro nunca ter sido um acadmico, e de ser exilado
poltico sob a ditadura militar, sem dvida contribuiram para a excluso de suas idias do
cenrio da antropologia brasileira.
Marxismo Estruturalista
Os franceses j haviam tido sua Guerra do Vietn na Arglia, e no viviam em
guerra fria. verdade que tambm na Frana, nos anos 1950, repercutiram a represso
sovitica revolta hngara, e as revelaes de Kruschev sobre os crimes de Stlin. Mas
l, pertencer ao Partido Comunista Francs do ps-guerra era motivo de orgulho. L no
houve problemas com o surgimento de uma antropologia abertamenta marxista.
Mas na Frana a antropologia marxista tornou-se marcada pelo anti-historicismo
de Louis Althusser, o representante acadmico do PC francs. Althusser atacou em
particular as verses do marxismo que, como a de Jean-Paul Sartre, tinham uma viso da
histria que enfatizava o papel da liberdade e de projetos humanos. Para o ataque viso
historicista do marxismo contribuiu, na Frana, a crescente influncia do estruturalismo
de Claude Lvi-Strauss. Nesse contexto, desenvolveu-se na Frana ao mesmo tempo uma
antropologia estruturalista e uma antropologia marxista. Em alguns casos, como o de
Lucien Sebag, e, mais recentemente, de Philippe Descola, buscou-se uma sntese entre o
estruturalismo e o materialismo marxista, para o qual, segundo a clebre formulao de
publicado originalmente em Current Anthropology: Darcy Ribeiro, Configuraes Histrico-Culturais dos Povos Americanos. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1975.19 Cf. Claude Lvi-Strauss,Raa e Histria, So Paulo, Abril Cultural (Coleo Os Pensadores,vol. 50), 1976. Note-se que h no fundo do pensamento de Lvi-Strauss uma viso histricacombinada a um quadro difusionista. Mas nessa viso a histria no longo prazo no umprocesso de evoluo, e sim, na maior parte dos casos, de desestruturao ou perda de ordem.
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Lvi-Strauss, o estruturalismo traria como contribuio uma teoria das
superestruturas.20
Cabem algumas palavras sobre o esforo de dissociar o enfoque antropolgico
marxista da histria, sob a influncia do estruturalismo. Maurice Godelier foi talvez quemexpressou essa posio mais explicitamente. Ele definiu como meta da antropologia
marxista como reconstruir os modos de produo, e no a histria dos modos de
produo. A razo para essa distino seria que, ainda segundo Godelier,
...se h leis das transformaes estruturais, no se trata de leis histricas.21
Essa posio ilustra uma caracterstica da antropologia marxista francesa que ela
tem em comum tanto com o funcionalismo ingls como com o culturalismo norte-americano: a rejeio ao evolucionismo de Lewis Morgan e ao enfoque histrico de
modo geral, sob os mesmos argumentos utilizados por Franz Boas e por Lwie nos
Estados Unidos. Assim, diz Godelier em um artigo biogrfico sobre Lewis Morgan:
Compreende-se porque razo funcionalista, estruturalistas e marxistas, emborarejeitando todos o evolucionismo de Morgan, reivindicam sua filiao a ele sobttulos diversos e amide opostos 22
Essa posio com relao histria pode ser vista luz do debate que ops Jean-
Paul Sartre a Lvi-Strauss no final da dcada de 1950. Para Sartre, a histria seria uma
totalizao em processo a atualizao de projetos humanos no interior de um campo de
possveis dado pela histria anterior. Para Lvi-Strauss, a histria seria antes a irrupo
de eventos aleatrios sobre estruturas inconscientes a irrupo do acaso resultaria na
20 claro que havia casos como o dos discpulos de Georges Balandier e outros
historicistas que estudavam a frica, mas tratava-se de certo modo de uma oposiominoritria ao estruturalismo.
21 Maurice Godelier. Horizon, trajets marxistes en anthropologie. Paris, Maspero, 1973. Vertambm o livro anterior, Rationalit & Irrationalit en conomie, I. Paris, Franois Maspero,1969. E em seguida,La Production des Grands Hommes, Paris, Fayard, 1982.
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seleo de um curso de eventos entre outros combinatriamente possveis ou
estruturalmente determinados. A conscincia apenas acreditaria, ilusriamente, ser autora
dessas resultantes de possibilidades estruturais e do acaso.. Hoje, porm, a dialtica entre
a ao humana e as estruturas (chamadas por Sartre de prtico-inertes), bem como o
papel dos projetos na histria, tem sido enfatizada por antroplogos que buscam conciliar
o enfoque nas estruturas e relaes com um papel para a ao humana como agente de
mudanas histricas.23
Voltando antropologis estruturalista francesa, ela resultou na prtica em estudos
sincrnicos de modos de produo pr-capitalistas, articulados no presente ao modo
de produo capitalista. Essa abordagem ilustrada na importante obra de Claude
Meillassoux, que vamos comentar com um pouco mais de detalhe.
J no seu primeiro trabalho, a Antropologia Econmica dos Gouro da Costa do
Marfim, publicado em 1964, Meillassoux investigou dois temas clssicos: a conexo
entre relaes de linhagem e as relaes de produo (o tema do papel do parentesco na
organizao social), e a conexo entre explorao colonial e a dissoluo da sociedade
tradicional atravs da mercantilizao da terra (o tema da acumulao primitiva). Mas
Meillassoux tambm realizou uma anlise da acumulao de riqueza no interior da
sociedade primitiva, tratando da conexo entre a acumulao de bens, casamento e aguerra.24 Todos esses temas foram desenvolvidos com maior nfase terica no segundo
livro de Meillassoux, publicado em 1975, e cuja inovao mais importante caracterizar
22Horizon, p. 182. O grifo meu, e ilustra o fato de que, assim como os brasileiros, os francesesno liam nem Leslie White nem Julian Steward, e tampouco os seguidores destes.23 Cf. Pierre Bourdieu, Pierre Bourdieu. Esquisse dune Theorie de la Pratique. Genve,Droz, 1972 ; Pierre Bourdieu. Le Sens Pratique. Paris, ditions de Minuit, 1980. Ver
tambm Marshall Sahlins. Islands of History. Chicago, University of Chicago Press,1985; Marshall Sahlins. Culture in Practice: Selected Essays. New York, Zone Books,2000. Para o enfoque histrico, ver tambm as obras de John Comaroff e Jean Comaroff(orgs).Modernity and its Malcontents. Ritual and Power in Postcolonial Africa. Chicagoe Londres, The University of Chicago Press, 1993, e outras.
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as relaes de parentesco como relaes de reproduo isto , como relaes sociais
para a produo de pessoas, utilizando mulheres como meios de produo.
Talvez valha a pena citar aqui Meillassoux sobre as implicaes desse enfoque:
O papel social da mulher comea na puberdade, com a apario de suascapacidades potenciais de reprodutora. Mas esta qualidade de fato lhe institucionalmente negada (...) A mulher pbere ... controlada, submetida,orientada rumo a alianas definidas pelas obrigaes de sua comunidade, demaneira que a procriao se realize no quadro das relaes de filiaomasculina. / Casada, isto , potencialmente fecunda, sua condio subordinadas regras de devoluo de sua progenitura. Menopausada e av, por outro lado,ela fica liberada dessas coeres, desenvolve-se socialmente, e adquire umaautoridade que lhe era negada enquanto esposa e me. Viva e incapaz deprocriar, sua condio se aproxima daquela do homem (Femmes, greniers &
capitaux,p. 119).
Em suma, conclui Meillassoux,
Marx tinha pois razo de considerar que as mulheres constituam sem dvida aprimeira classe explorada (p. 120).
Dessa maneira, Meillassoux retornava ao foco feminista que fora um dos grandes
temas de Friedrich Engels na Origem da Famlia, da Propriedade Privada e do Estado.
Essa linha de anlise, que implicitamente rejeitava o relativismo cultural -- que trata das
sociedades sem classe como se elas no tivessem conflitos internos -- foi retomadas por
antroplogos que passaram a se interessar pela economia poltica do casamento, da
guerra e do ritual no contexto das sociedades indgenas sul-americanas. Assim, segundo
Peter Rivire na regio compreendida pelas Guianas e pelo alto Rio Negro, homens
acumulam poder atravs de um circuito que comea com a aquisio de mulheres (e de
genros e filhos), continua com a transformao desses recursos em grandes roados de
mandioca que permitem ampliar alianas polticas, e se fecha com a obteno de mais
mulheres. A efetivao desse circuito seria acompanhada por um regime de prolongadajornada de trabalho feminino, de apropriao dos rendimentos do trabalho pelos homens,
24 Claude Meillassoux. Anthropologie conomique des Gouro de Cte Divoire. De lconomiede subsistance lagriculture commerciale. Paris e La Haye, Mouton, 1964. E tambm Femmes,Greniers & Capitaux. Paris, Franois Maspero, 1977.
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de isolamento poltico e social das mulheres (separadas de seus grupos clnicos e lnguas
originais), e de disputas guerreiras e violentas em torno desse bem escasso. Lembremos
que Terence Turner, antroplogo marxista norte-americano, realizou uma interessante
anlise das sociedades indgenas do Brasil central em que o foco central a idia de
acumulao , permeada pela hierarquia entre classes de idade.
Outra contribuio de Claude Meillassoux foi sua teoria do imperialismo como modo de
reproduo de mo-de-obra barata atravs da explorao da comunidade domstica.
Nessa contribuio de Claude Meillassoux, datada de 1972, vemos aflorar um tema que
estava sendo discutido independentemente no Brasil na mesma poca o da articulao
entre o processo contemporneo de acumulao capitalista e a expanso e recriao de
modos de produzir no capitalistas. O modo especfico desse fenmeno tratado por
Meillassoux foi o da reproduo de populaes rurais como reservas de mo-de-obra
excedente como exrcito de reserva industrial em setores no capitalistas da
economia, articuladas por migrao temporria, sazonal ou permanente ao mercado de
trabalho capitalista. O antroplogo ingls Keith Hart, ao analisar o lado urbano desse
fenmeno na frica, cunhou o conceito de economia informal para caracterizar esse
emprego flutuante caracterstico da ausncia de subordinao formal do trabalho ao
capital, poderamos dizer de populaes que esto com um p no emprego urbano
transitrio e com outro p em formas de produo de subsistncia. Antroplogos como
Meillassoux na Frana mas tambm Keith Hart na Inglaterra, e Eric Wolf nos Estados
Unidos estavam se defrontando assim com o fenmeno da acumulao primitiva em
escala mundial.
De fato, tratava-se da formao de uma periferia capitalista, criando trabalho servil,
escravo, por dvida, e tambm economias informais e migratrias. Tudo isso indicando,
porm, que no havia propriamente um processo linear e homogneo de subordinao
formal e real do trabalho ao capital, e sim o desenvolvimento desigual e combinado de
subordinaoe de independncia formal do trabalho, no contexto de subordinao
real que tambm era acompanhada de vastas zonas de independncia real do trabalho
em relao ao capital.
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Embora no seja possvel continuar a tratar da influncia da antropologia marxista
francesa, torna-se claro que ela estabeleceu a legitimidade do enfoque marxista como
abordagem acadmica. Ela exerceu uma grande influncia, sobretudo na antropologia
inglesa, presente em autores que se debruaram sobre os modos de produo
precapitalistas, entre os quais Joel Kahn e Maurice Bloch.
Retorno ao Capital: o tema da forma social da riqueza na antropologia
No absurdo afirmar que o socialista Marcel Mauss escreveu um dos grandes clssicos
da antropologia, o Ensaio sobre a Ddiva, como uma reflexo acadmica sobre a crise
social de desemprego e pobreza entre a primeira e a segunda guerra mundial. O ambiente
de perda da auto-confiana do capitalista em que ele vivia tem semelhanas com o atual,
aps quase um sculo de progresso. E isso ajuda a compreender por que que
assistimos hoje a um retorno das ideologias da ddiva que foram estudadas por Marcel
Mauss na forma organizaes de trabalho voluntrio e de doaes a todo tipo de
organizao no-lucrativa.
Lembremos que a crtica da propriedade no sentido capitalista uma das principais
concluses do Ensaio Sobre a Ddiva. Que significa falar empropriedade? Uma relao
de propriedade de uma pessoa sobre uma coisa a aparncia do poder de uma pessoa
sobre outras pessoas mascarada sob a forma de uma relao entre pessoas e coisas.
uma relao entre pessoas que, ao expressar-se na forma de relao entre pessoa e coisa,
apaga os vnculos entre pessoas. Sociedades cuja forma elementar de riqueza a
mercadoria e onde portanto todo agente essencialmente um proprietrio so
sociedades onde as relaes entre pessoas aparecem como relaes entre pessoas e coisas.
Marcel Mauss elaborou uma teoria da forma-ddiva de riqueza, distinguindo-a
implicitamente da forma-mercadoria. A forma-mercadoria no tem memria social: o
comprador pode esquecer o vendedor to logo pague com dinheiro pela coisa que
comprou. A forma-ddiva da riqueza, ao contrrio, nunca esquece: ela deve ser retribuda
no futuro, mas tal retribuio apenas recriar uma nova obrigao de retribuio em
sentido inverso: a ddiva tem memria. Em sntese, enquanto sob o capitalismo as
pessoas so meio para obter coisas (ou, na formulao de Marx: as relaes entre pessoas
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tomam a forma de relaes entre coisas), nas sociedades onde vigora a forma-ddiva as
coisas so meio para acumular relaes sociais isto , visam diretamente criar vnculos
permanentes entre pessoas. relaes sociais.
Esse ponto o pano de fundo, nos captulos conclusivos do Ensaio sobre a Ddiva, dacrtica de Mauss forma-mercadoria, e que veladamente inspirada em Marx.
Consideremos a fora de trabalho como mercadoria. O pagamento da fora de trabalho
se esgota, sob a forma-mercadoria, com o ato de compra e venda. Ora, o ato de compra e
venda da fora de trabalho como mercadoria, diz Mauss, isenta a sociedade a
beneficirio de fato do produto de cada um e de todos de qualquer responsabilidade
pela reproduo do trabalhador. Numa sociedade regida pela forma-ddiva, ao contrrio,
o que o trabalhador doa aos outros e ao chefe em particular cria uma dvida permanente e
inextingvel da sociedade e dos demais em relao a ele.
Mauss utiliza-se assim do contraste entre a forma-mercadoria capitalista e a forma-ddiva
pr-capitalista para recomendar reformas sociais. Isto : para que a sociedade reconhea a
obrigao em que se encontra para com o trabalhador enquanto pessoa durante a
totalidade da durao de sua vida, em particular nos perodos de desemprego e na velhice.
Essa a moral da ddiva-troca que se ope assim moral da mercadoria-comrcio.
Essa crtica forma-mercadoria, do ponto de vista de um socialismo reformista, seriasubscrita e desenvolvida por outros socialistas no-marxista, em particular pelos no-
acadmicos George Bataille e Karl Polnyi.25
Hoje, h uma ampla galeria de estudos das interfaces entre regimes de ddiva e
regimes de mercadoria, refletindo a busca de categorias de anlise no primeiro volume
do Capital, incluindo como Chris Gregory na Inglaterra,26 Nancy Munn (inspirada na
25 Georges Bataille. Lconomie e La Part Maudite. Em Ouvres Compltes, vol. VII.Paris, Gallimard, 1976. Karl Polnyi, A Grande Transformao. Rio de Janeiro, EditoraCampus, 1980.
26 Christopher Gregory. Gifts and Commodities. Cambridge, Cambridge University Press,1982. Ver tambm C. A. Gregory. Savage Money. The Anthropology and Politics ofCommodity Exchange. Australia, Harwood Academic Publishers, 2000.
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aproximao de marxismo e fenomenologia)27, Michael Taussig (no esprito da escola de
Walter Benjamin)28, June Nash29, Terry Turner30 e outros. A anlise etnogrfica da
forma da riqueza e a crtica do fetichismo da mercadoria em particular tornaram-se
assim uma das frentes de pesquisa de marxistas, em um nova retomada de idias de
Marx.
Todos os temas que Marx colocou na ordem do dia no sculo passado continuam
assim surpreendentemente vivos. Parte dessa vitalidade est ligada ao fato de que foram
tratados de modo independente, desigual e combinado, dentro e fora da academia, e
beneficiando-se de diferentes contextos histricos e tradies intelectuais.
27 Nancy Munn. The Fama of Gawa.A Symbolic Study of Value Transformation in a Massim(Papua New Guinea) Society. Durham e Londres, Duke University Press, 1986.
28 Michael Taussig. The Devil and Commodity Fetishism in South America. Chapel Hill, TheUniversity of North Carolina Press, 1980.29 June Nash. We Eat the Mines and the Mines Eat Us: Dependency and Exploitation in BolivianTin Mines.New York, Columbia University Press, 1979.30 Terence Turner. The Ge and Bororo societies as dialectical systems: a general model. Em D.Maybury-Lewis org.). Dialectical societies: the G and Bororo of Central Brazil. Cambridge,Massachussets; Harvard University Press, pp. 147-178. H um importante artigo do autor sobre ateoria marxista do valor e sua aplicao s sociedades indgenas, indito.
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Title: Teoria do Valor e AntropologiaSubject:Author: Mauro AlmeidaKeywords:Comments:Creation Date: 5/12/2004 8:55 AMChange Number: 7Last Saved On: 5/12/2004 9:00 AMLast Saved By: Mauro W B AlmeidaTotal Editing Time: 6 MinutesLast Printed On: 12/27/2005 1:15 PM
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