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AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA OU DE

GARANTIA

Inspirado no Projeto de Lei 554/2011, de autoria do Senador

Antônio Carlos Valadares, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou o

projeto "Audiência de Custódia" em todo país, que visa assegurar a toda

pessoa presa em flagrante delito a apresentação ao juiz em 24 (vinte e

quatro) horas, oportunidade em que este analisará a legalidade e necessidade

da prisão cautelar, podendo impor medidas alternativas ao cárcere, e, assim,

inibir ou fazer cessar eventuais atos de tortura.

A esse respeito, não desconheço que o Judiciário tem o dever

de salvaguardar a liberdade e a integridade física da pessoa presa, assim

como de toda a sociedade, devendo receber e dar a devida atenção a

qualquer alegação de lesão ou violação de direitos. Contudo, não é correta a

ideia generalizada difundida por referido projeto de que os juízes não fazem

o controle de legalidade e necessidade das prisões cautelares, conforme

exigência da Lei 12.403/2011, e de que as prisões em flagrante são, em

regra, ilegais, e que as polícias, inclusive os Delegados de Polícia, praticam

ou toleram a tortura.

Já se manifestaram desfavoráveis à "Audiência de Custódia" a

Associação dos Delegados de Polícia Federal -ADPF; a Federação Nacional

dos Delegados de Polícia Federal – FENADEPOL; Associação dos

Delegados de Polícia do Brasil -ADEPOL/BR; o Ministério Público do

Estado de São Paulo e a Associação dos Juízes Federais do Brasil-AJUFE.

Manifestou-se favorável apenas a Defensoria Pública1.  

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A ADEPOL/BR, aliás, ajuizou ação direta de

inconstitucionalidade (ADI 5.240) no Supremo Tribunal Federal contra o

provimento conjunto do Tribunal de Justiça e Corregedoria Geral de Justiça

de São Paulo que instituiu a "Audiência de Custódia" naquele Estado, ao

argumento de que houve invasão de competência federal para legislar sobre

direito processual penal e violação aos princípios constitucionais da

legalidade e da separação dos poderes. Sustentou, ainda, que não há lei,

alterando o Código de Processo Penal, e, consequentemente, prevendo a

realização dessa audiência.

No última dia 25 (25/04/2015), na sede da ASMEGO

(Associação dos Magistrados do Estado de Goiás), cerca de 60 (sessenta)

juízes criminais2 reuniram-se para discutir a matéria, e, na oportunidade,

manifestaram-se contrários à implantação desse projeto no Estado.

A aludida "Audiência de Custódia ou Audiência de Garantias",

na realidade, tem como objetivo primordial reduzir o número de presos

provisórios (cautelares) e, via de consequência, desobrigar o Poder

Executivo da obrigação de criar novas vagas e, igualmente, de realizar

investimentos no sistema de Segurança Pública.

Alimenta uma falsa expectativa na população de que a rápida

apresentação do preso ao juiz tem por propósito coletar provas a fim de

evitar prisões injustas, e acelerar os julgamentos. Ao contrário, visa apenas a

colocação do preso, o mais rápido possível, em liberdade.

Trata-se, portanto, de procedimento que não apresentará o

resultado prático pretendido, tal como aconteceu com a reforma de 2011,

que introduziu na legislação processual penal as medidas cautelares diversas

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da prisão, e também tinha por desiderato o desencarceramento.

Além disso, induz à equivocada expectativa de que o contato

pessoal do preso com o juiz, fará com que o magistrado, analisando somente

aspectos físicos do detido (cor de pele, sexo, crença e origem), ou

simplesmente se baseando em relatos de possível tortura, relaxe a prisão em

flagrante ou aplique medidas cautelares diversas do cárcere, sem

observância dos balizamentos legais.

Para maior garantia do cidadão, a legislação já obriga o juiz a se

pronunciar imediatamente, assim que recebe o comunicado de prisão em

flagrante, remetido pela autoridade policial em 24 horas3, se a prisão é legal

e necessária, cumprindo o Brasil, assim, as obrigações assumidas em pactos

e tratados internacionais, notadamente no Pacto de São José da Costa Rica.

Outro ponto relevante que merece ser destacado é que os juízes

não possuem formação técnica para detectar lesões corporais internas, muito

menos para perceber atos de tortura psicológica, que podem melhor ser

detectados por especialistas da área médica, pertencentes ao Instituto

Médico legal, senão pela autoridade policial respectiva4, que

tradicionalmente mantém o primeiro contato com o preso.

Além desse aspecto, importante considerar que o controle da

atividade policial, por lei, é do Ministério Público, instituição que detém

legitimidade para apurar e denunciar eventuais ofensas à integridade física e

mental das pessoas encarceradas.

E mais, não visa supracitada audiência reduzir os alarmantes

indíces de criminalidade do país. Conforme ressabido, o Brasil possui a

terceira maior população carcerária do mundo (mais de 600 mil presos, 40%

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deles provisórios – dados do CNJ) não porque os juízes mantêm prisões

ilegais ou desnecessárias, mas porque se trata de um país populoso, o 5º

(quinto) do planeta, e que convive com altos índices de criminalidade,

possuindo 11 (onze) das 30 (trinta) cidades mais violentas do mundo, e

registrando o maior número de homicídios do planeta (Goiânia é a 23ª mais

violenta)5.

De acordo com dados coletados na Diretoria de Informática do

TJGO, somente na capital goiana são distribuídos mensalmente cerca de 500

(quinhentos) comunicados de prisão em flagrante, para cerca de 23 (vinte e

três) juízes6, de modo que mencionada audiência irá engessar as unidades

judiciárias criminais da capital e também as do interior, nas quais a falta de

estrutura não é nem um pouco diferente.

Não há preocupação com a sobrecarga de trabalho que

representará para o Judiciário, com um acréscimo de quase 50% do número

de audiências nas varas criminais7, e da absoluta falta de estrutura

operacional e de pessoal para sua implementação, situação que tornará ainda

mais morosa a prestação jurisdicional.

O Conselho Nacional de Justiça, ao invés dessa audiência,

deveria, para assegurar um contato mais rápido do réu com o juiz, exigir a

estruturação dos Tribunais, bem como das Varas Criminais, com vistas a

acelerar a tramitação dos feitos no âmbito do Judiciário, com a finalização

da instrução processual e do julgamento em prazo menor8.

De igual forma, deveria o Poder Executivo investir em

Segurança Pública, em políticas de prevenção, em educação, saúde e

aumento da renda da população.  

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Caso os idealizadores desse projeto realmente pretendam a

melhoria do sistema, em substituição a essa audiência, deveriam: 1) Exigir a

gravação do interrogatório policial do investigado, com o encaminhamento

da mídia para ser apreciada pelo juiz quando da análise do comunicado de

prisão em flagrante; 2) Exigir a presença obrigatória de um defensor público

ou de um Promotor de Justiça nas Delegacias de Polícia responsáveis pela

lavratura do auto de prisão em flagrante; 3) Aguardar requerimento pessoal

do preso, ou do advogado particular, da Defensoria Pública ou Ministério

Público, senão, dos órgãos de defesa da População Carcerária e ou de

Direitos Humanos, noticiando de suposta violação de direitos, para

realização de audiência para análise das condições físicas do preso em prazo

exíguo, e; 4) Criar a figura do "Juiz de Garantias", diferente do juiz que irá

proferir o julgamento, para que o magistrado não possa ser influenciado na

sua decisão final pelo que ouvir e ver durante referida audiência, e também

para que não haja vulneração ao sistema acusatório, adotado pelo

ordenamento jurídico pátrio.

Assim, por entender que a "Audiência de Custódia ou de

Garantias" não trará nenhuma contribuição para a melhoria dos serviços

prestados pela Justiça Criminal à população, tratando-se de providência

inócua, que somente sacrificará as unidades judiciárias, com o consequente

retardamento da prestação jurisdicional, e nítida contribuição para a

prescrição e impunidade, sou contra sua implementação.

Placidina Pires- Juíza de Direito da 10ª Vara Criminal de Goiânia.

 


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