8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 1/19
CYRUtCOPYC O P IA i lO R A , L A N H O U S E E L A N C H O N ET E
Producao de
um campo
estetico
Arte olidal
Van-
guardaSEGUNDA PARTE
FIGURASE MODOS DE
ARTECONTEMPoRANEAroducao
de obrasConsumo
Esquema 1.A arte e urn campo especffico, com atores individuais.
Uma l in ha a tr av es sa a e sq uem a, d a p ro du di o a o c on sumo, p er co rr en do
o caminho 40s a iore s-mediadores.
Sodedade de cornunkacao
Esquema 2. 0 esquema ecircular. Entre os produtores estao todos
os agentes da comunicacao de signos.
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 2/19
".
·CAPfruLOI
os EMBREANTES
Hal de fato, ruptura entre os dois modelos apresenta-
dos, 0da arte modema, pertencente ao regime de consumo,
e 0da arte contemporanea, pertencenfe 8.0de comunicacao.
Contudo, mesmo em meio ao 'modemo', diversos indicios
permitiam antever a chegada do novo estado decoisas. Real-
mente; 'se no dominio social·e politico as teortas.algumas
vezes se adiantam as praticas, no dominio da arte, em con-
tri3.partida,.ornovirm~nto de-ruptura-esta-a.cargo.o maisdas
vezes de figuras singulares, de praticas, de'fazeres', que pri-
meirarnente desarmonizam, mas que anunciam, de longe,uma nova realldade. Essas figuras que revelaJJ.1osmdicio~se~
rao por nos chamadas de 'embfea.ntes'.
· c - · · · · · · · · O · · •eriii.o.·.·/eIIlbreante~••designarem1irtgliisticCl;UIlidCt<i~s ••••.
que tern dupla fun<_:;ao duplo regime, que remetem ao enun-
ciado (amensagem,recebida no presente) e ao enunciador
---------- . . queaanunciou:-(anteriormel1i_~)_,_ Os pro:lJgme§. E~_~~gcti~_s_~() _
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 3/19
88
ANNE CAUQDELIN
considerados embreantes, pols ocupam urn lu dno en . d gar eterminad
.~cla 0, onde sao tornados como elementos d ~ _ ogo, alem de mant 0codi-
erern urna relaC;aoexistendal com ur n Imento extralin ..~ . e e-
gwStico: 0de fazer ato da palavra'.
Aoreferencia a esses dois modos temp .. .
b. . orais: uma mensag
rece Ida no presente e seu enun . d . _ em
d CIa or - que foi seu autoe esse modo nos referim';'_ r -,
os a conexao que se operou entrpassado e presente mas tambem . d . ed ao jogo uplo dessas .ades colocadas no limite do obt ti ( uru-
Je vo a mensagem e . d )e do subjetivo (a singularidad d . nvia alocamos n . e e quem anuncIa). Se nos co-
o ponto de VIsta do contemporaneo 0 fato dmensagem .d ,e a
e ' .- OUVI a no presente - voltar a seu autor anti 0p rtence a figura de pensamento dita 'an.ifora' (ou . gto que leva ~ ) mOVImen-
.c d para tras , e faz surgir elementos do passado naesrera a atual idade.
Mas parece, tanto pela frequencia com que sao citadasquanto pelo movimento dd h . e pensamento que provocam ain-a 0Je, que duas ou tres fi .. itu . guras - asqums a cronica pode-na SI ar na arte mode - -d -_--, b -- rna - po em ser caracterizadas comoem reantes' do novo re . ~di gime, e nos as colocaremos, porcau-
sa sso, na arte contemporanea.Dessa otica, citaremos e . .
Marcel D h .. m pnmerro lugar dois artistas·
h -uc a~p e Andy Warhol, e, em segundo lug~ urnmarc and-galensta-colecionador: Leo Castelli E " '
. . sses tres per-
1.Roman Jakobs; - E . dn, seats e l ingu ist ique genera le (Le Seuil, 1963).
3-
ARTE CONTEMPORA.NEA: UMA INTRODUc;AO 89
_sonagens tern em comum 0 exerdcio de uma atividade que
- responde aos axiomas-chave do regime de consumo.
I.0 EMBREANfE MARCELDUCHAMP (1887-1968)
o fenomeno Duchamp tem de interessante 0 fato de
sua influencia sobre a arte contemporanea crescer a medi-
da que passam os anos. De um lado, 0 ruimero de trabaThos
que Ih~ sao dedicados e cada vez maisimportante', de outro,
ele e a referenda, explicita ou nao, de numerosos artistas
atuais. Por que? Porque esse artista - que declarava nao se-lo
- parece expressar 0 modelo de comportamento singular que
corresponde as expectativas contemporaneas,
E nao tanto por causa do conteiido 'estetico' de sua obra
quanto pela maneira pela qual encarava a relacao de seu tra-
balho com 0 regime da arte e tambem a divulgacao dele.
Em outras palavras, sao as posicoes seguintes que fun-
cionam como 0 atrativo de Duchamp e que 0 colocam no
topo da lista dos 'embreantes':
2. Andre Breton, 'Apres Breton'iLe phare de la mariee', em L e s ur -r eal ism e e t l a p e i nt ur e (Gallimard, 1965); Entrevistas com Marcel Duchamp,
de Pierre Cabanne, sob 0 titulo Ma rc el D uc hamp , i ng en ie ur d u t em ps p er du
(Belfond, 1967, reeditado em 1977); Jean Clair , Duc hamp o u l e g r an d f ic ti f(Galilee, 1975); [ean-Francois Lyotard, Les tran s fo rmateurs Duchamp (Galilee,
1980); Um col6quio de Cerisysobre Duchamp, UGE,//10/18// , 1979. De Thierryde Duve, Le nomina li sme p ictu ra l (Minuit, 1984); R es on an ce s d u r ea dy m ad e(jacqueline Chambon, 1989); Cousus d e f il s d 'o r (Art edition, 1990); Jean Su-
quet, L e g r an d ve rr e r ev e (Aubier, 1991) . Os textos de Duchamp estao reuni-
dos sob 0 titulo Duc hamp d u s ig ne (Flammarion, 1975).
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 4/19
90
1Adi '-. ~. stin<;;aoentre a esfera da arte e da estetica
-Estetica designando . ~d .. 0conteu 0das obras, 0valor d . b
em si. a arte se d '. I a 0 ra1 n 0Slffip esmente uma esfera de ativid d
~otr a~~u as, sem que seu conteudo. pam.icul . .
.ar seJa prec1sado.
2. Na esfera da art id:'. . e, conS1 erando-a nao mais d
dente de uma estetica: os papeis dos agentes nao saoe:~-
estabelecidos como anteriormente. '. a1S
. Prod~:o. res, intermedianos e consumidores nao podmais ser distin .d 'Ii emnh de .' gill os. odos ospapeis podem ser desempe-
nido ao mesmo tempo. 0ercurso de uma obra ate 0con-surru or presumido nao e mais lin . .'
ear, mas CIrcular.
3. Essa esfera nao est ~ .... '.a mms em CO",£I:t'"._. ._. . ... . .. .. ... .. . .f d " 1.UU0com as outras
es eras e atiVldades, mas, ao contrano, integra-sea elas.
. Aban~ono dos movimentos de vanguarda e do rom _tismo da figura 'artista'. . an
4. Como a arte e' urn sistema de si .. .ilid d -.d········..•....•...••..•..................gno? ~ntreoutros a
.rea . a .e esvelada por meio delesecofisffUIdapeIa " H i 1 ~guagem, seu motor determinante. .
ImportanA
cia .dost .. .' os Jogos de Iingu ae' ':.' "d ., .......da realid de: .......~ ..". g me. a co..nstrucao. 1 a e, a arte nao e mai . - . . ~
....... ... . .'....$emo<;;ao, ela e pensada, 0ob-servador e 0observad' . _ . .... 1
d·•· ...• .. 0estao .unidos por essa construrao. eentro dela. '. '5
-=4-
ANTECONTEMPORA.NEA: UMA INIRODU<;AO 91
o regime 'moderno' dominante e traziam em si uma carga de
oposi<;;ao pesada demais nao somente para serem admiti-
dos como percebidos. Ou melhor, eles eram admitidos como
a ponta extrema da arte moderna. De urn lado, com efeito, as
obras de Duchamp nao apresentavam urn carater estetico que
. suscitasse urn julgamento de gosto; de outro, elas eram, com
frequencia, materialmente imperceptiveis, consistindo em uma
afirmacao pura e em um i roni smo a fi rma ti oo ' da existencia de
uma esfera de arte.
Para fazer justica a novidade delas, devemos, pois, pro-
ceder, nao a analise termo a termo das'obras, 0 queseria
apropriado a urna hist6riada arte, mas ao posicionamento
global da atitude de Duchamp,
1. Primeira proposicao: a distincao estetica/ arte
Continuidade, filia<;;6es,rupturas: os pintores estao
geralmeIl.tepresOsem:uma·re·de. de' rereteneias
a seus predecessores. Os movimentos artisticos se desen-
.volvem eresceme morrerrf-- para' reviver sobma, como se fossem arvores enxertadas. Duchamp, quan-
do jovem, pinta 'como' ou em'oposi<;;a.oa'. De 19Q'?a.J~~O,., . . . . .
re~~.a . ..lIIlclseriede .t~lasa maneira. dos iIIlpressiolList~s;
d~P;i~eapr~~-~'d~ 'az~e,~ri;:T9i1,-~om ~ c . J r t i t i t d ' a i r - : = = : ' : = · · ~ ·
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 5/19
92
ANNE CAUQUELIN
sur un pommier du [apon; e passa pelo cubismo corn Jeune
homme triste dans un train; por fun, poe termo a picturali-
dade corn Nu descendo uma escada, que data de 19124.Nes-
sa epcca ele esta cercado de pintores, de poetas ou escritores.
Seus dois irmaos,
lon, sao pintores e escultores. Participa do movimento sur-
realisra e do cubismo, ao menos das discussoes e por meio
do convivio corn Breton e Apollinaire; afasta -se de Cezan-
ne,evita-o, mas mesmo assirn vai ate ele, nao tanto por sua
maneira de ser, mas por sua conduta intelectual. Uma pas-
sagem por Munique, na Alemanha, ern 1912, e pelo movi-
mento dada isolararn-nd. Ducharnp rompe corn a pratica
estetica da pintura: ele se declara 'antiartista'. E ai corneca a
aventura.
Essa ruptura nao e uma oposicao, que estaria ligada a
sua antitese seguindo uma cadeia causal, mas, sim, urn des-
locarnento de dominio. A arte nao e mais para ele urna ques-
tao de conteudos (formas, cores, visoes, interpretac;;oes da
realidade, maneira ou estilo), mas de continente. E assirn que
Marshall McLuhan dira, cinqiienta anos mais tarde: "0 meio
e a mensagem", apagando a distinC;;aoclassioa entre mensa-
gem (conteiido intencional) e canal de transmissao (neutro
e objetivo) para estabelecer a unicidade da comunicacao atra-
4.Contudo, ele pinrara uma Ultima tela, Tum', para Katherine Dreier,em 1918, col.Yale University Art Gallery.
. 5. "Dada foi muito titil como purgativo", Marcel Duchamp, Duchampdu signe, p. 173.
ARTE CONTEMPORANEA: UMA IN1RODUc;AO 93
.ves do meio", E 0mesmo apagarnento feito porDucharnp
do conteiido intencional da obra diante do continente, bas-
tando este Ultimo para afirrnar que se trata dearte.
Atitude antinomica a de Walter Benjamin que,~m urn
lora-a-perda da-auradaobra.de. arte, que,
de unica e nao-reproduzivel, tornou-se pec;;ade urn jogo me-
cariico de reproducao tecnica. Antig~ente .unidaao local
onde e para 0qual tinha sido concebida, a obra esta agora
exposta a todos, ern locais que nao sao feitos para ela'. Para
Benjamin, a 'exposiC;;aoe a marc a, modema, da inautentici-
dade das obras.
B) Os ready-mades
Ern 1913, Ducharnp apresenta os prirneiros ready-mades,
Roda de bicicleta; anos depois, ern 1917, Fonte, no Salao dos
Independentes de Nova York. Ele deixou 0 terreno estetico
propriarnente dito, 0 'feito a mao'. Nao mais a habilidade,
nao mais 0estilo - apenas 'signos', ou seja, urn sistema de
indicadores que delirnitarn os locais. Expondo objetos 'pron-
tos', ja existentes e ern geral utilizados na vida cotidiana,
como a bicicleta ou 0mict6rio batizado de fontaine [fonte], elefaz notar que apenas 0lugar de exposicao torna esses obje-
6 . P our c omp re nd re l es medi as , de Marshall McLuhan, e de 1964. Suasproposicoes, precedidas de muito pelas de Duchamp, eram consenso en-
tre os artistas dos anos 1960. . .. ,7.Walter Benjamin, 'Lceuvre d'art a l 'ere de sa reproductibil ite tech-
nique', em CEuvres~ II: Potsi e e t r evo lut ion (Denoel, 1971).
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 6/19
94ANNE CAUQUELIN
tos obras de arte. E ele que da o valor estetico de urn objeto,
por menos estetico que seja. Ejustamenre 0continente que
concede 0peso artistico: galeria, salao, museu. Ou, ainda, tex- .
tos, jornais, notas, publicacoss, ate anota<;5es escondidas, que
~Duchamp transporta consigo em seu museu portatil, as 'va-
lises' e as 'caixas ( cai xa de 1914, c ai xa v er de , c ai xa s em val is e) 8.
. 0 proprio termo 'caixas' mostra bern qual funcao Ducharnp
atribuia aocontinente. 0 museu portatil po de nunca ser aber-
to, ou mesmo urna caixa pode estar selada e nao conter nada:
"Fazer urn ready-made com uma caixa encerrando alguma
coisa irreconhecfvel pelo som e colar a caixa'",
Em relacao a obra, ela pode entao ser q ua lq ue r c oi sa ,
m as n um a h or a d eter min ad a. 0valor mudou de lugar: esta
agora relacionado ao lugar e ao tempo, desertou 0proprio
objeto. A divisao entre estetica e arte se faz em beneficio de
urna esfera delimitada como palco, on?e()q~eest~selldo
mostrado e arte. Nesse caso, 0autor desaparece com~ artlsta-
pintor, ele e apenas aquele que mostra. Basta -lhe apontar,
(3_ssirlalgr.A gssinafutaque acomparihaqoo]etojapr():rlto
e a iinica marc a de sua existencia, marca por sinal com fre-
qiiencia disfar<;ada:como R.Mutt*assinando o.'.·;·· ...•..•......•......... ... .... file
ono,Rrose Selavy''>, ouainda algtlns:a<:rescimos'(osready-mades.
8.Entrevistas cornPierre Cabanne, Marcel Duchamp, ingenieur du temps
ARTE CONTEMPORA.NEA: UMA INTRODU<;:AO
.acrescentados, como Barulho secre ta (1916)).Uma bola de bar-
bante e apertada entre duas placas de latao. No interior da
bola, Duchamp pede a Arensberg* para inserir urn objeto a
respeito do qual Duchamp - e, portanto, 0 espectador - igno-
ra tudo, a nao ser que faz urn barulho quando 0ready-made e
sacudido. As informacoes ( inserir in formar;oes) que acompa-
nham 0 objeto sao tambem ·marcas que disfarcam ironica-
mente, desta vez nao mais 0nome do autor, mas 0proprio ob-
jeto: como 0pente de aco que traz, gravado em sua borda, a
seguinte fraseit'trois ouquatre gouttes de hauteur n'ont rien avoir avec la sauvagerie" **.0 mesmo pente podetambern es-
tar acompanhado da expressao "impossibilite du fer". 0 jogo
de palavras e evidente: trata-se claramente de marcar a rupturacom 0feito a mao', a picturalidade entendida como estetica.
C) 0a ca so e a e sc olh a
Se 0 fazer e impossfvel, resta a escolha, a qual estare-
duzida a-parte do artista. Com efeito, ja que 0continente es-
pacial e importante-o continentetemporal,omomento,o e
.:* Louise Arensberg: uma dasmaiores colecionadoras de Marcel
Ducharnp. (N.deT.)· '..**A frase de Ducharnp beneficia-sa de variaspossfbilidades de jogos
de palavras, com a palavra hauteur, que pode significar altura,altivez, no-
breza, arrogancia, coragem, valor. Se adotada 'altivez', teremos 'tres ou
quatrogotas de altivez nada tern a ver corn a selvageria '. Ha ainda a brin-
d'auteur-
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 7/19
96
ANNE CAUQUELIN
da mesma maneira, pois a escolha do objeto pertence ao aca-
so, ao encontro, a ocasiao. Duchamp chamara esse exercfcio
temporal de acaso em conserva.
Provavelmente este e 0Ultimo signo refer~nte a uma
figura do passado: a marca de uma presenc;a inventiva, de
__1l!TIa_jntuic;aQGriacl0ra/quea:ihcia~tena efeito na ati-
vidade artfstica. E no encontro desse acaso encenado que se
. refugia 0savoir-faire, ou seja, 0saber-escolher do artista, con-
siderado como antiartista, como nao-pintor.
o ready-made, encontrado por acaso, escolhido e reser-
vado, indica 0estado da arte em urn momento determinado. Ele
esta em uma relacao de fragmento com a totalidade dos aeon-
tecimentos da arte. Em nenhum caso e uma obra a parte,
uma obra em si dotada de valor estetico; e urn indicador,
urn signo dentro de urn sistema sintatico. Ele manifesta essa
sintaxe apenas por seu posicionamento.
2. Segunda proposic;ao: a indistinc;ao dos papeis
Se a estetica, 0savoir-faire manual foram, assim, deixados
de lado, seo artista e aquele que mostra, se produz sign os,
toda a distribuic;ao de papeis dentro do dominio daarte deve
ser reconsiderada. Duchamp dedica -se a isso.
A) 0 artista como produtor
o artista e, nesse novo jogo, aquele que produz, ou seja,
que coloca a frente, que exibe urn objeto. Ele arranja 0ob-
7-
ARTE CONTEMPORANEA: UMA IN1RODUc;AO
ieto e dispoe dele.Assim fazendo, identifica-se com 0gale-
~sta-marchand, que tambem 'produz' artistas no palcoda
arte. Ele os ordeha e tambem dispoe deles de alguma ma-
neira. Identifica-se, alern disso, com 0 fabric ante do objeto
Num ~,..,.,,.,......
97
ta e, ern resumo, minima. Ele 'acrescenta' algumas vezes ao
ready-made ou ao signo, mas a materialidade do objeto con-
tinua fora dele. A atividade daquele que mostra, organizador
da representacao, e exercida per meio do deslocamento do
objeto: muda-o de lugar, de temporalidade. Assim, esta rejei-
tada ou afastada qualquer pretensao a criacao de formas e
cores. 0art ista nao cria mais, ele utiliza material.
Fazer alguma coisa e escolher urn tuba do azul, um
tuba de vermelho (...). Esse tuba foi comprado por voce, nao
foi feito por voce. Voce 0comprou como um ready-made: to-
das as telas do mundo sao ready-mades'acrescentados' e tra-
balhos de montagem.
o que Duchamp mostra e simplesmente a condicao de
. . " a l " Wtoda obra, de toda pintura, mesmo norm .
Oprimeiro produtor da obra e 0 industrial; 0segundo,
. e 0 artista que escolheu utilizar urn objeto fabric ado. 0ar-
tista identifica-se com urna etapa da producao industrial, con-
tribui com urn simples 'coeficiente dearte'. Ele fazurn apor-
te ao, ready-made mas tambem ao fabricante.
10. Entrevistas com Georges Charbonnier , RTF, 1961, e com K~the-
rine Kuh, ci tada por Thierry de Duve, Reso na n ce s d u r ea d y made ,. op. Cit.
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 8/19
98
B)0 p ro du to r c omo obs er oa do r
Segundo deslocamento de papeis. A famosa Proposi~
~ao de Duchamp li E 0observador que faz 0quadro" e para
ser tomada ao pe .da letra. Ela nao se refere - como se crecom muita frequencia - a alguma metafisica do olhar, aurn
idealismo do sujeito que enxerga, mascorresponde a uma
lei bern conhecida da cibernetica, retomada pelas teorias da
comunica~ao:o observador faz parte do sistema que observa;
ao obseryar, ele produz as concli~6es de suaobserva~ao e.
. transforma 0objeto observado. Ve-se que nao se trata mais
de separar ()aitista de seu consumidor virtual, mas de uni-los
em urna mesma produ~ao. 0ugar do artista se encontra en-
tao identificado, de urn lado com 0fabricante, de outro comoobservador.
Na obra 0g ra nd e v id ro , a placa de vidro extrafino ofe-
rece aoobservador seu proprio reflexo, misturado as insert-
~6es gravadas sobre ela. 0espectadbT faz-parte da obra ....
C ). 0arti s ta 'cOrnoconseroadpr
Aqui, uma. v(;!zmais o~pa.peis estaoembaralhados: 0
.interm~diario --,-conservador, galerista ovmarchand _ eo
proprio artista. Nao s()ITlente Duchamp Iconserva' 0acaso
posto em. conserva, como p;reserva notas; textos eobjetos
fotocopiados nessas nessas caixas em valises ._._.._
outro lado, para perfazer
ARTE CONTEM POR .A . NE .A : UMA I NTRODU< ;A . O
'pn'as obras. E tambem membro de urn juri, inter-suas pro
tando dois papeis ao mesmo tempo: 0 de artista que
pre trabalho e 0de membro do juri ... que recusapresenta seu
If tel Em abril de 1917, na Sociedade dos Indepen-ua on .dentes, ele apresenta urn mict6rio feito de louca esmaltada,
assinado IR .Mutt'.
99
Eu estava no juri, mas os organizadores nao sabiam que
m 0tinha enviado: eu inscrevera 0nome de Muttraeuque ,
ara evitar referencias a quest6es pessoais (...) Mas mesmop ( )1 1assim era bastante provocador ...
A demonstracao e perfeita:o artista nao e urn elementoa parte, separado do sistema global; nao ha autor, nao ha re~
ceptor, ha apenas urna cadeia de Icomunicacao' encerrada em
simesma.
3.Terceira proposicao: 0 sistema da arte
. ~ ~ ~~c:tl1 .~~~~~Tc~~de
As duas~rimeiras proposicoesconduzem drretamente'
aterceira. C:9m efei to, a relacaoda arte com 0sisteIIla ~eral
(social. polit ico, economico) e uma relacao "de integracao
- de nflito. Atuahdo em particoes simultaneas, Ducham. pao e co . .
.desmonta a antiga ideologia do artista exilado, recusado, con ~
-, dominie que tern -leis-dif",erentes.. ___-'~"'---"~-"---'"_~.. .• =-: ••- -testaderr a-estetica-nao-e-um .OrrunJ.· '.. •••. .' _. .•.. _~_:_-r
. . : · : 8 -
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 9/19
100
ANNE CAUQUELIN
do sistema geral. E uma simples peca dentro de urn jogo de
comunica~ao, cuja entrada, assim como a saida, nao pode ser
encontrada. Nao ha origem nem tim e urn circulo As '_ I. opera-
coes que se desenrolam no interior de uma rede tern a ver com
propriedades da rede, nao com a vontade do artista. Cada'
~n,~""'V aos outros, cada intervenientepode es-
tar em toda parte ao mesmo tempo.
Nesse caso, nao existe vanguarda propriamente dita; nao
existem manifesta~6es anti-sociedade ouantimarchands. Mui-
to ao contrario, 0jogo da arte consiste em especular a respeito
do valor da simples exposicao de urn objeto manufaturado. A
exposi~ao, a colccacso no circuito por si so institui 0valor do
signo, valor especulado que pertence de pleno direito, de urn
direito teoricamente axiomatizado,ao dorninio da arte.
A singularidade de Duchamp - com a incompreensao
que ele freqiientemente suscita - e ter posto a nu urn funcio-
namento, ter esvaziado do artista e da obra seu conteudo
intencional, ernocional. 0 grande vidro ou A noiva despida
p or s eu s c el ib a id ri oe , m e smo , e a propria arte, desembcirac;ada
d~ seus falsos brilhos esteticos, Por meio de 0 grande vidro,
frio, e de seusmecanismos trituradores, e 0regime novo da
arte contemporanea, sua logica impecavs], que se delineia.
Logica da rede anonima: a Sociedade anonima, batizada
por ~~ Ray e fundada por Katherine Dreier e Duchamp,
constitui uma colecao intemacional permanente que devia
ser legada a urn museu, especificamente para aYale Univer-
sity Gallery; e uma l6gica internacionat engendrada entre
Nova York, Paris e Buenos Aires.
ARTECONTEMPoRANEA: UMA INIRODUc;:AO 101
4.Quarta proposicao: a arte pensa com palavras
Ultimo efeito dentro da ordem axiomatica: a importan-
cia dalinguagem. Em urn jogo de designacao e demonstra-
que consiste em escolher urn objeto ja existente no usocomume urn
'acrescimo') pode vir de urna nova montagem, mas tambem,
e mais necessariamente, dos titulos que 0acompanham. Ex-
por urn objeto e intitula-lo. 0 mict6rio e fonte, 0porta-casaco
colocado no chao e alcapiio; quando oobjeto e reconhecivel
como objeto estetico (como a Monalisa), 0 titulo 'acrescen-
tado' desloca 0valor estetico: LHOOQ 0dessacraliza.
No entanto, as notas e os textos que se encontram no
museu portatil, encerrados nas caixas, sao obras da mesma
natureza que os objetos prontos. Sao tambem formulacoes
'ja prontas', quase impenetraveis. Ready-made em palavras.
A sintaxe delas e perfeita, e 0sentido escapa. A diferenca
dos jogos surrealistas, nao se busca nenhum efeito poetico
em particular; e 0 exercicio puro da lingua remetendo-se a
ela mesma. Nao se sente de modo algum 0 'estilo' do artis-
ta, e como se as proposicoes estivessem congeladas em sua
pureza definitiva. Dai decorre sua admiracao por Roussel e
por Brisset. "Eu achava que, naqualidade de pintor, era me-
lhor ser influenciado por urn escritor do que por outro pin-
tor. Ja estou farto da expressao 'idiota como urn pintor'."
Como 0 conteiido fisico da pintura - cores e formas -
e rejeitado, e a arte nao e mais retiniana, e nao-optica, en-
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 10/19
ANNE CAUQUELIN
tao deve utilizar outro suporte. Mas as palavras sao signos
impalpaveis, pouco pesados, que a cadeia de comunicacao
pode fazer circular dentro dessa leveza. Elas servem simulta-
neamente de lugar e de tempo aos objetos aos quais dao ti-tulo, e substituem a materia: a titulo e umacor.
Alem disso, como acabamos de destacar em relacao as
f6rmulas, a lingua e algo que ja esta ai , urn ready-made, pron-
to para 0 emprego. as usuaries cia lingua nao a inventam;
eles a transformam ou mudam de lugar seus elementos.
Portanto, assim como os jogos de linguagem de Witt-
genstein esclarecemnao a mensagem,mas 0 sistema da
l ingua e seu usa, as proposicoes de Duchamp que 'acrescen-
tam' aos ready-mades (ou sao utilizadas como ready-mades)
esc1arecem nao tanto os pr6prios objetos "":cujC>ignificado ha-
bitual tendem antes a obscurecer - e sim 0 funcionamento
da arte.
5.0 transformador Duchamp
Duchampcomo obra c:01}temem-gerrneos d e s e n v o Y " : . . .vimentos que os artistas que virao depois deleimpulsiona-
rao, em urn sentido ou em outTo:aa:rtecC>nceitiial;8 mini-
malismo, a.pop art, as instalacoes, ate mesmoos happenings
que ele tanto apreciava. Mas nao e nessa sequendahist6ric~,
nessa continuidade de desenvolvimento de urn conteiido
AR TE CON TEM Po RAN E A : UMA I NT RODUc ;:A O103
. poranea que seu trabalho e verdadeiramente transforma-
dor. E nesse ponto que a esfera da arte se articula com a era
da comunica~ao todo-poderosa.
Vejamos urn resumo breve dessas articulacoes:
_ Passagem da mensagem intencional, com emissor e
receptor, ao signo produzido pela rede e dentro da rede e sus-
cetivel de nela circular (anonimato ou disfarce da assinatura,
banalidade do objeto, inexistencia dequalquer emo~ao de
origem n~tiniana).
_ Paralelamente,desaparecimento do autor como sujei-
to livre e voluntario- A descoberta ao acaso, a escolha, subs-
tituem 0 fazer: "Qualquer coisa, mas na hora determinada" .
Aq1li, Duchamp prefigura '0 movimento de retirada do su-[eito, seu lugar como elemento determinado pelo sistema.
Prenuncia Michel Foucault e Roland Barthes.
_ Importancia da linguagem, nao como expressao de
urn pensamento, mas como fundoradical delepr6p~0.A -
lingua pensa sobre si, como a arteo fazpor meiodela. E toda
a escola pragtTlaticaanglo-saxa e o.trabalhodeWittgensie-iIl
que e~tao aqui prenun.ciados. E comurn entre os artistas nor-
te-americanos dos anosJ9,60 citarWittgenstein12.Na F.ran~Cl,
Duchamp citad~ epmo referenda (Ben e urn de seus grandes· .
admiradores) .
_ .Desaparecimento das vanguardas e cia mensagem
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 11/19
10 4 ANNE CAUQUELIN
Doisefeitos interligados: de fato, para oscriticos de arte
tradicionais, a vanguarda e urn fenomeno que pertence ahistoria da arte. Eo motor do desenvolvimento da arte em
sua busca da novidade, em suas provocacoes, Se nos si tua-
mos com
mais tomada de posicao que tenha valor por sua novidade
formal e, conseqiientemente, nao ha mais vanguarda (nem,
alias, retaguarday, Outro fenomeno e a recuperacao quase
instantanea do que poderia ter passado por vanguarda. Como
tudo e admitido, recebido e reconhecido como atual, a van-
guarda nao pode mais se destacar do pelotao.
Por outro lado, a mensagem politica e social das van-
guardas era abertamente critica a sociedade mercantil ista ese colocava como deruincia ou recusa dos valores do capital.
Ao integrar arte a sociedade como uma esfera dentre ou-
tras, essa mensagem se ve bloqueada. Como se trata, na so-
ciedade de comunicacao, menos de dinheiro do que de in-
formacao - a informacao e sua circulacao sao a verdadeira
riqueza -,0conflito desaparecepor si mesmo.
- Busca das condicoes mfnimas de transmissao de urn
signo: a assinatura se torna a garantia da arte, seu coeficiente
de valor artistico: a obra pertence ao genero do cheque.
Duchamp faz urn cheque falso e 0entrega a seuden-
tista Tzanck como pagamento por seus services. S6 0fato de
ter acrescentado sua assinatura de artista dara valor ao che-
que, vinte anos mais tarde. Lembremo-nos da encenacao
de Yves Klein: Vender uma 'zona de sensibilidade pid:6rica'
ARTE CQNTEMPOAANEA: UMA IN1RODUc;AO10 5
remete ao que 0 comprador pagaem ouro: ele obtem. em
troca, urn recibo que deve queimar, enquantoo artista joga a
metade do ouro no rio (no caso, 0 Sena).
Alem disso, ecoam os neg6cios de Warhol, que se inti-
_ Apresentacao do continente espacial-que coloca 0
objeto em situacao de obra. (0 desenvolvimento de museus,
galerias, fundac;:6es e fundos regionais hoje em dia repercute
e real iza plenamente esse axioma.)
_ Esboco de urn desnudamento da rede formada pelos
profissionais da arte. (Apesar da ignorancia ou incompreen-
sao e da recusa do publico, apesar das poucas obras visiveis, os
profissionais - urn pequeno micleo de elite - fazem a cotacao.)o modelo Duchamp, tao discreto que s6 alguns inicia-
dos tomaram conhecimento dele, oferece nao tanto 'novas
imagens'. mas a iinica imagem possivel de urn exercicio da
Arte em urn sistema que ja comeca a ser instaurado, 0da co-
municacao. a qual sua obra serve de analisador.
A part ir desse memento. 0dominio da arte nao e mais
o da retirada e do desentendimento, do conflito com a so-
ciedade. mas de urn aclaramento, circunstanciado, dos me-
• • 13
carusmos que a arumarn .
13. Segundo Amy Goldin e Robert Kushner, 'Con~eptu,al art as opera',
Art News (abril de 1970): "Acontribuicao da arte conceitual e provavelmen-
te araflexao sobre 0 significado da arte, e nao sobre seu aspecto. f~:mal
(.. .). Nos mal comec;amos anos perguntar. CO?;O a_ar; ;e absorve as ideias e
de que forma estas contribuempara sua slgni ficac;ao .
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 12/19
A N NE C A UQ UE LIN
. Exibindo esses mesmosmecanismosnos quais el 'mserem J • • ' es se.." . I o~ ~tiartistas' se aproveitarn enormemente dessa
iroruca coruvencia. Como sera 0caso do' segundo embreante
de que trataremos, Andy Warhol.
II. 0 EMBREANTEAND ...' I)'WARHOL (1928-1987)
Se a obra de Duchamp e de cliff il ..'id c acesso, quase man-
~ . a secreta, a ponto de tomar opaca sua relacao com a so-
ciedade de seu tempo f d .'uma ~ .' ' r azen 0com que haja necessidadede
. analise para encontrar nela os princfpios gerais do re-
gune da comunicacao, a obra de Warh 1 ~. . ' -~ . 0 e, em compensac;ao
tao publica, e toma emprestado demaneiratao notoria ." r
e
. d' as vias
os meios a publicid d .. . _ a e mercantil, que toma tambem di-
ffcil a avaliacaode sua contemporaneidade. .
1. Urn falso mod '. . . ..... . ..' .erno, urn verdadeiro contemporaneo
Certamente os term .... - •....... .''.' ..: !.. . Qsquesao ~m.geraladotadosaseu
. respeito sao aquelesque caracte . . ....-. .. . . ..'. . nzam uma sociedade de
consu r n ( ) 'moderna' m ~ . . 1: ..' .'.' > ,aquma"'lerramenta.fsistemadepubli~
cidade, maquina de co . S ~ ~. nsumo .. uas senes, spas repeticoes
es.tereotipadas de produtos de consumo s .'.' r ua empresa (a
.Lactory14) concebida como um . .: c t : .. :::::: :.=: ::=. / 1 ' £ 1nn:m1IDCio sO:de l e; .de :pa redes :cobe r t a s :<i-= : fQJhas<if :3 ::P I i~~r~: :p(: r \ lg_Gl .9-_<: :>.: :==:: : :: :=· ·· ·.
de celebr id ades, de su peresnobes inad aptados" (Sand ler , op . cit., P: 189).
N f ai s t ar d e, Factory se m udar a para 0nomero 860 d a B r o adw ay .
15..C::g ly i r11 ' ot11 l<i r ls , c i t ado p()r lr:\ringSandler~Letriamphe de l'artles cit., 113.' ." .
A ,R TE C O N TEM PO RA N 'E A : U M A I NT RO DU <; A O107
, clarac;6es que as acompanham, em forma de sloganspubli-
citarios, rudo parece mdicar que ele e 0porta-voz hicido e
satfrico dessa sociedade deconsurno. A arte sera regida pelas
leis de mercado dos produtos, sera urn produto como qual-
quer outro.Essa constata<;ao que Warhol- longe de desmentir, afir-
rna com insolencia fomece muniC;ao aos criticoe- Se Warhol
e urn 'artista'- e nao se pode ignora-lo como tal- e porque
suaobra sera dupla: de um lado. ela ira se situar no sistema
mercantit mas de outro. ao exibir notoriamente esse siste-
ma, ela 0 criticara - Warhol faz neg6cios e nao os esconde,
o que deixa muito pouco a vontade aqueles que comentam
a arte 'modema'. 0ulgamento esteticO: Warhol tem talen-
to, tem fum bom olho' (J 1ele tinha urn verdadeiro dom", diz
Greenberg), e e recoberto por urn julgamento moral: Warhol
quer que falem dele. "Tao logo chegou a Nova York, em 1949,
Warhol perseguiu a celebrida.de cortla. obsi::iilci~§_oe urn sal":
mao na epoca da desova15./I
A) A cr it ica envergonhada
para evitar esse julgamento moral eo descbnforto queele suscita, e preciso que os criticos se entreguem ao contor-
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 13/19
:/,)
r"I
.1
108
cionismo. Falarao do desej0de Warhol de se ideritifi' car com
. urna maquina, de urna participacao-deruincia da vida norte-
americana, do kitsch, da delacao publica do banal do m "eca-
nico, da seriacao pela reduplicacao da propria serie, de u rnespelho de dupla face cue exibe a realidade d '. .
...........~~ ,_ ~__ -L ,............. .. O.vaZlO.soelaL
"Onde esta a realidade quando dois espelhos estao £rente a
frente?", De uma obsessao tragica pela rnorte, instalada na
repeticao, do carater duplo da tecnica, simultaneamente per-
da e salvacao, segundo a analise de Martin Heidegger; em
surna, tentarao juntar a imagem tradicional do artista, cr itico
da sociedade, a de 'homem de negocios' em busca de dinhei-
ro e de poder. Salvam 0que e possfvel daArte (e portanto do
artista Warhol), apelando para a intencao, para a profundi-
dade etc. Assim fazendo, adotam uma atitude contraditoria
que pensam corresponder perfeitamente a seu trabalho, re-
tribuindo-o na mesma moeda. Contraditoria, duplice ou du-
pla, por vezes tripla - teria havido tres Warhol: 0 primeiro,
simples desenhista de publicidade; 0segundo, artista pop re-
conh:cido; 0 terceiro, empreendedor de negocios".
E verdade que Warhol 'pertence', na historia da arte, a
pop art, aos anos 1960 - anos do triunfo norte-americano '- e
portanto a arte modema. Mas, se ele esta rio mesmo myel de
16: Sobre as contr~dic;6es da critica, imitando as contradic;6es deWarhol
~ o~ artig?S em Artstudio, n~ 8 (1988): Special Warhol, enos Cahiers du Muse~
~tzonal d'Art Moderne, r : ~3 ~1990)(War:hoIiana). Entre outros, cf. Jean Bau-
:mard falando ,sobre ma~~ma, Bruno Paradis sobre tecnica de dupla face,
ebmardMarca~: sobre fruic;aoretardada e insercao, e Demosthenes Davvetasso re contradicao. '
3-
109ARTECONTEMPoRA .NEA : UMA INTRODU<; AO
. James Rosenquist Roy 9~~tenstein eOaes Oldenburg_ dis-
tingue-se deles, contudo, pela forma como ve de que modo
a arte se articu1a a sociedade e, em particular, ao mundo dos
negocios. E sobre essa articu1a<;ao que convem refletir, e e ela
nea. na qualidade de embreante da sociedade de comunica-
<;aO.Se fosse necessario, poderiamos tambem alegar a refe-
rencia a Duchamp, por Intermedio de sua devocao a Jaspers
Johns e de sua proximidade com as ideias de arte conceitual.
E essa ref lexao que permite considerar a obra de Warhol
em sua complexidade sem ter de tomar partido em relacao
a moral de seus 'negocios', ou entao considerar essa atitude
resultado de uma filosofia da comunica<_;;aoe nao uma perver-
sao dnica do sistema de consumo.
2.Warhol's system
Retomemos, entao. os pontos que servem de principios
a arte em regime de comunica<_;;ao:
A) 0 abandono da esietica
Como Duchamp, Warhol abandona a estetica, deixa seu
offcio de desenhista, renuncia ao estilo, a habilidade manual,
e se dedica a Arte - esfera que se dissocia das questoes de
gosto. de belo e de urnco. Os objetos quemostrara serao ba-
nais, kitsch, de mau gosto. Serao objetosde consumo usual:
garrafas de Coca-Cola, fotas publicadas em jornais e rear-
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 14/19
110 .ANNE CAUQUELIN
'. ranjadas. Em suma, duplicatas, remade. Exatamente como
Duchamp, trata-se demostrar 0que fa existe, mas, ao ready-
made. 'acrescentado' de Duchamp, que pertnanece linico e
q~ase im;~ssivel de ser encontrado, Warhol opoe a repeti-
gao em sene, a saturacao das imagens e o paradoxo de uma .
.despersonalizas;ao hiperpersonalizada. ~'Seria fant<istico se
mais gente empregasse a serigrafia, ninguem jamais saberia
se meu quadroe de fato meu ou se e de outro." Ou seja, to-
dos os qml.dros·poderiam perfeitamente ser seus.
Entao, se Duchamp havia concedido ao local a incum-
bencia de anunciar a.rnensagem"Isto e arte", renunciando
~ssim.a habilidade e a estetica do gosto, afastando-se por as-
SlID dizer da cena e se preservando, Warhot ao colocar empratica seu conhecimento das redes,abandona esse Ultimo
r~~gio e essa Ultima marca da arte, que e 0local de expo-
sicao, para se estabelecer no espas;o inteiro das comunicas;6es.
Passa de urn lugar (tapas) determinado, marcadocomurn
rotuloiarte', ao conjunto de urn circuitoque ele ocupara intei~
IC:llllente.A.despersonalizagao visada Vail 'portanto, transfor _;'
mar-sa em personalizagao desmesurada por meio da invasao
do nome 'Warhol' sobre todos os Suportes.
. Serigrafia e fotografia,ampliagao de imagens ja conhe-
clda~ cores fortes,' fidelidade aomotivo, apagamento da in-
.. .tenga~, ~s~aeciIne~to doa.utor, antiexpressionismo: se e ve~=-:'-::c-claae-q~~os.arBStaspop=-cr6s-anosl~bO trci5afu~1t~hriag~hs;:······
do COtidlano_ da mesma forma, tehdot6dos eles·operado
uma separagaoelltreaesfetica.das f0ITriasedci .
ARTECONfEMPORANEA: UMAINTRODU<;:AO 111
_manual', nao chegaram contudo a explorar nem a levar as
Ultimas consequencias os outros conceitos que regem a co-
munica.gao17: a rede, com a redundancia e a saturacao: 0pa-
radoxo, com 0bloqueio em torno de si mesmo; a autopro-
clamac;ao com 0nomina.lismo; a circulacao dos signos dentro
da rede sem autor nem receptor, e finalmente 0totalitarismo,
com a internacionalizacao do sistema de comunicacao. Pois
bern, sao esses preceitos ou princfpios que Warhol vai utilizar
da melhor maneira possivel.
B) A rede de camunicaf iio
Warhol compreende muito cedo 0sistema publicitario.
Quando, em 1960, abandona a me comercial, ele sabe Icomoaquilo funciona'.Essa experiencia e· fUndamental porque
lhe serve para construir sua propria imagem e utilizar me-
canismos da publicidade para torna-Ia conhecida. (Em suma,
ele eo-fabricante deum produto chamado Wa.tholeopu:-
blicitario que transforma 0produto em imagem eo vende.)
Assim. sabe que epreciso entrar na.rede no lugar~sp~d=
fico on de h~mais chance~ de estar irr lediatarrlentec6nec': '
tado com o.mundo a que elevisa: a galena de Leo Castelli,
onde Warhol vai entrar em 1964. I
17. Eis por que Oldenburg ou.Rosenquist t iveram seu momentode
g16ria,lnasnaoc0nlleceram 0efeito Warhol: .de fato, 0 que.os consome ain-
::aa:eCflugar'lia:sformas;do:·.conteudodesuas-:mensagensi=a"IDSE:!rfjaQ::.4§tla§=.·.'c::·
na hi st6ria da arte de sua epoca. Warhol, por sua vez , s6 falara de inscricao
social e de dupliccl<;ao, evitando cuidadosamente qualquerideia.de origi-
nal idade ou de profundidade, Ele falara de si ,nao como sujei to-p.utor , mas
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 15/19
112
C) A repeticiio
A segunda 'lei' da rede de comunicacao e a repeticao ou
tautologia. Ao contrario da obra iinica e original, que e uma
das exigencies da estetica tradicional, trata-se de duplicar 0rnffiSral~IQ.O€!Colm'rr,aiornurnE~roPOSsrv~Qeenttaaru3amE;s=----2
rna mensagem. A publicidade lhe mostra 0caminho. Admi-
tindo que 0trabalho do artista da pop art consiste nao em
'fazer' mas em escolher a imagem que mostrara, sera ne-
cessario selecionar a imagem que causara sensacao ou 0meio
de tomar qualquer imagem sensacional.
No primeiro caso, as fotos de catastrofes publicadas na
imprensa servirao ao proposito, E a serie Disasters: Tunafish
disaster (1963), Five death ou Saturday disaster.
Em Tunafish disaster, sao imagens de latas de atum se-
gundo 0principio das garrafas de Coca-Cola ou das sopas
Campbell's, mas suspeitara-se que essas latas tinham pro-
vocado a morte de diversas pessoas. As fotografias das viti-
mas estao colocadas sob as latas mortiferas. A proximidade
desses rostos anonimos e sorridentes e de sua morte em latas
de atum causa justamente 0 choque. A morte ocupa as pa-
ginasdos jomais, e e a essa morte cotidiana em seus aspectosmais corriqueiros que Warhol da destaque.
o terna da morte, que aparece com freqiiencia na obra
de Warhol, nao esta ligado a uma intencao tragica nem a
qualquer tipo de gosto morbido - interpretacao psicologi-
zante exibida tradicionalmente, mas que deve serconside-
113A R TE C ON fE MP oR A .N EA : U MA IN TR OD Uc;A O
dde.ntro da otica da rede: 0efeito satura<;ao-repeti<;aotraz
.ra aem si seu proprio tim, soa como uma queixa obsessiva.
No segundo caso, e urn objeto qualquer, sem absoluta-
mente nada de sensactonal. que sera escolhido. Um objeto
seunomeao objeto em serie, conhecido de todos, Warhol se toma tao
conhecido quanto a imagem que assina. Sera 0caso da sopa
Campbell's, da Coca-Cola, de estrelas e fdolos do publico
como Marilyn Monroe ou Liz Taylor, ou, melhor ainda, da
nota de um d6lar. Bastara tomar esses objetos sensacionais,
sejapelo tamanho - as cem Marilyns tern 205,5 ~ 567,5cm; ~s
Liz, 211 x 564 em: od61ar, 228 x 177,5em = » seja pela repeti-
_ . Marilyns.112 garrafas· Green Coca-Cola bottles (1962).cao: cem , . ,.
E 0impacto sobre 0publico que importa; e precIso co-
brir as paredes, repetir incessantemente, sarurar. PorquAea
comunica<;ao funciona como tautologia, como redundan-
cia."Uma lata de sopa Campbell 's e urna lata de sopa Camp-
bell's e uma lata de sopa Campbell's'." Os McDonald's sao
McDonald's que sao McDonald's: "0que ha de mais bonito
em Toquio eo McDonald's, 0que ha de mais bonito em Es-
tocolmo e 0McDonald's, 0que ha de mais bonito em Floren-
ca e 0McDonald's. Pequim e Moscou ainda nao tern nada debonito".
Como ele diz ainda: "Todas as Coca-Colas sao parecidas.
Sao todas boas. Liz Taylor sabe disso, 0Presidente sabe, 0
mendigo sabe enos tambem sabemos disso". E comosabe-
riamos senao pela publicidade?
I
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 16/19
114
E preciso, portanto, saturaras redes e fazer usa de todos .
os suportes possfveis. Paraisso, e necessario que seu nome
.e suas imagens ocup·em ao mesmo tempo todas as :posi<;6es
possfveis dentro da cadeia de comunica<;ao e que 0grupo reu-
nido na Factory tan'lbem colabore.
Em 1965, Wathol monta 0Velvet Undergr()und, grupo
de rock que eleproduz em NovaYork, em 1966. Filmes: Sleep
(que dura seis horas, pois 0 tempo tambem pode ser repe-
tic;;aoe saturacao), Chelsea Girl s, Dracu la.
Entrevistas, acontecimentos que envolvamo astro, como .
o atentado por ele sofrido em 2 de junho de 1968, fudo isso
circula na imprensa, na televisao, no mundo das redes in-
temacionais, como para a estrela de cinema ou de rock.
"Ser tao conhecido quanto a lata de sopa Campbell'spall
D)0 paradoxa
o paradoxo e ulna. <1asleis eieri,.eIltares cia rede. Trata-se
do bloqueioe~tre ~,,;ut?~cle~'; meI)Sa9"me apropria
mensagem19
• Em u r n sIstema de comUJ:lica~~~, ~ nOrrteea
obra saoidenticos.o nome de Warhol n.ao eumn~me que
assina uma ou divers as obras: e 1.l1I1aob~a, 0 resultadode
urn circuito de produ<;aode nuiltiplas entradas (como 'fri-
ARTE CONTEMPORA.NEA: UMA INTRODU<;AO
id . e' e urn nome generico para qualquer refrigerador na.gtrur ~.
Fran<;a). Nesse objetivo, 0signoWarholmarca uma sene de
produ<;;6es em rede: pinturas, filmes, fotografias, exposi<;6~s,
textos, "0 autorWarhol identifica-se com a rede que faz CIT-cula:r os produtos Warhol./I
Como os astros que sao produtode uma cadeia de rea-
l izacoes cinematograficas e avalizam essas realizacoes com
suas presencescelebres, a obra de Warhol esta numa rela<;a~
de destaque diante do sistema de producao, que a coloca a
fr te Ou se quisermos, e como ele mesmo faz questao,en. r ..
Warhol produz a si como sua propria obra, como seu pro-
prio astro (pois nao existe astro desconhecido, assim como
nao existem 'marcas; desconhecidas). Urn astro e , em sua
personalidade visfvel, impessoal como um objeto. Ele nao
envelhece ("Memorex impede as estrelas de envelhecer").
Pertence a rede antes de pertencer asi mesmo, e se multi-
plica .identicamente.
o paradoxo - eo bloqueio proprio do.eIIl~!~C3J:l!eVva- .
rhol= e 0fato de ele ser ao mesrriO temp()oproduf6rde nma=:'
imagemde astro, a qual se dedicaa fazer Circularpelasc~-L
deias de comunicacao, e 0astro emsi, que ele produz como .
obra e que e simplesmente ele mesmo.O objetoque apresen-
ta - a lata, a garrafa ou 0 astro -traz sua rrtarca,e WarhoPo.
115
. 20 "0objeto nao passadosuportedo I1ome,pr~paga<;ao compulsiva
de umaass inatura" (Luc:l,ang_ 'TreI1teWarhol valent mieux qu'un', Artstu-
16-
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 17/19
116 ANNE CAUQUELIN
Assim, a separacao existente entre 0nome que designa
um autor singular e a assinatura que promove esse nome
como signo, valendo como nome, encontra-se aqui esmae-
cida. Nome, assinatura e obra se veern confundidos. Nesse
caso diferentemente de Duchamp, que protegia seu nome
ao de uma
assinatura disfarcada, preservando assim seu carater reser-
vado, discreto, secreto.
Outro nivel do paradoxo: 0no formado pela impessoa-
lidade exibida por meio do r e-m ad e - nao ha engenho, nao
ha toque pessoal, nemtransformacao do objeto mostrado,
ele e reproduzido tal como e - e a hiperpersonalizacao do
nome-assinatura. Ademais, e esse nome-assinatura que sera
idolatrado pelos adolescentes", como 0 de urn astro cuja fi-
gura aparecera estampada nos jeans, nos bones, nas camise-
tas, e cujos posteres serao pregados em paredes - p in -u p - , e
nao os objetos mostrados.
A interpretacao sociologica que consiste ern explicar 0su-
cesso deWarhol junto ao publico jovem norte-americano pela
apresentacao de objetos do cotidiano, geralmente deixados de
lade pelos artistas 'artesaos'rnao da conta da especificidade do
efeito Warhol, urna vez que os outros artistas da pop art que
trabalhavam os mesmos temas estao longe de ter conhecido
a mesma sorte. E preciso deixarbem claro que a diferenca se
deve a exploracao por Warhol da redee de seus prindpios.
21. Em 1965, uma horda enlouquecida de adolescentes invadiu a ex-
posicao no Inst itute of Contemporary Art of Philadelphia. Foi preciso ret i-rar os quadros. .
7-
ARTE CONTEMPOR.ANEA: UMA INTRODU<;AO117
3. A arte dosneg6cios
Comecei minha carreira como artista comercial e quero
termina-la como 'business-artist' (...) Eu queria ser urn ho-
mem de neg6cios da arte ou urn. artista-homem de neg6cios
arte
bons neg6cios e a melhor das Artes".
Essa declaracao de Warhol. deu 0que falar. Pode pare-
cer provocativa, e e, mas provavelmente nao pelas razoes
que em gerallhe atribuem. Seria provocativa para urn autor
inserido na tradicao ideol6gica do artista, produzindo afas-
tado do mundo uma obra genial, consciente de um valor
unico e incomparavel. Mas, como vimos, essa exigencia de
pureza, essa recusa do comercio e da arte comercial desa-pareceram com 0 abandono da estetica. Com seu aspecto
anticomercial, as vanguardas cederam lugar aos artistas ab-
solutamente deterrninados a se tomar ricos e c~lebres e a
fazer usa, para isso. de todos os trunfos mundanos. Se um
deles nao alcanca, como Warhol, seu objetivo determinado,
e talvez por nao possuir 0dominio do processo.
A) Uma emp re sa : F a cto ry
/IN 0mundo dos neg6cios, nao e 0tarnanho que conta,
eo tamanho que voce dese ja t er ."
Para se tomar rico e celebre, para ter 0tamanho que voce
deseja, e preciso frequenter celebridades, e, melhor ainda,
22..Andy Warhol, The ph il os oph y o f A nd y Warho l (Harcourt, 1977), p. 92.
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 18/19
ANNE CAUQUELIN18
fabrica-las, tornar-se 0 centro da vida in . Foi 0 que se tornou
a Factory 23. Ela chegou ao tamanho que Warhol queria. De
1963 a 1965, la se encontravam todas as especies de subcul-
turas, a contracultura, 0 pop, superstars, todo 0 je t se t e as es-
trelas fabric ad as pela Factory. Em 1968, antes do atentado de
que foi vitima, Warhol tinha aurnentado seu publico, a Factory
tornara-se urna inst ituicao. Warhol podia entao realizar a se-
gunda parte de sua proposicao: tornar-se urn homem de ne-
gociosde arte.
Lembrerno-nos: a arte para Duchamp naotinhamai. . mrus
conteiido intencional, ela so existia em relacao ao local onde
~~tava sendo exibida a obra, esta por si so urn objeto banal,
Ja presente no mundo, ja fabricado. A intervencao do artistaconsistia em exibi-Ia - primeirodeslocamento - e em assi-
na -Ia :acrescentando' alguma coisa - segundo deslocamento.
De posse dessa definicao minima, Warhol tambem .. . .. '. . . . . . . vru
mostrarobjetoscomuns nao em sua materialidadeem tres
.dimens5es, masreproduzidos (serigrafias, fotografias) sem
nenhuma irlterven<;;ao~es,u~ p?:rtepar-Cl .d.eslocar- ou poeti__ ..
zar 0 motivo. A unica a<;;aopela qual entao seu trabalho se"
define consiste ern tomar publica essa.exposicao, torna-la
de algurna maneira obsedante, im~vitavel .Ma~ esse 'tomar
.publico' e impensavel fora de lli I1a rede decomunicacao cujo
processo e preciso dominar, e esse processo pertence, em sua
.........':JJa.se,.:§,:E:!sfE:!1:'C3.:do.omerGio;·dos.:'negociost;",,:,:·::i::··' ""':"::;.
ARTE CONTEMPORA.NEA: UMA INTRODU<;AO119
B) Uma 'd efin ifa o: a a rte e neg6cio
Eis portanto a arte situada e definida pelo mundo dos
negocios: espa<;;osempre em extensao. ondeo jogo consis-
te ern tomar crivel a publicidade, ern fidelizar a clientela,ern estabelecer 0 valor do que lhe e proposto. Urn jogo de
ilus5esou verdadeiramente 0 objeto e 0 que se quer que
seja. 0mesmo corn a arte: uma ilusao credibilizada, ou seja,
que atrai 0 credito e que vive desse credito. Transforrrlemos
a primeira formula tomando 'contar' ao pe .da letra e tere-
mos entao: "Nao e 0 valor do objeto que conta, e 0 valorque
voce deseja que ele tenha". Nao somente 0 objeto de Arte
nao e diferente de qualquer outro que ele reproduz, como
rambem segue as mesmas leis de propaga<;;ao e de procla-
macae do valor.
Nesse momento, 0 artista e aquele que leva adiante 0
procef35.0cl..eSSC3_ropaga<;;ao. Ele e 'artistade neg6cios', pois, . . ,," . _ " . , . u " • . . "_ :""-< ' •. ' _ ' .'~ . . , .. _ .' ' ,' , . . '. - . ' - , _ ., - , ., , . _. d . , __ ' " _ : " ' . c , . , _ , , : ." _ .. " _ " " : , : - • . . . ; ' : " " " 0 , .
osnegocios sao de arte e.por outro lado, aarte e uma ques-
tao de negocios._ .- :: '. ,; '; , _ . ." C •. .. ' '' .' - . .• • ~ -- ' - . • . . . -. -. ,.
OriegociO e garantido'pelo Nome;' que·se .autoprocla~
rna, pela ubiqilidade (intemacionaliza<;;ao) go proguto,pelo
tamanho d~ empresa edesuas mllitiplas filiais, pelos papeis.
desempenhados sirnultaneamente pelosagentee da empre-
sa. Sao esses elementos que tomam verossimil, ern outras pa-
8/4/2019 CAUQUELIN Arte Contemporanea (CAP 1 E 2)
http://slidepdf.com/reader/full/cauquelin-arte-contemporanea-cap-1-e-2 19/19
. ; i j~II,
120
4. 0 transformador Warhol
Tomar crfvel uma ilusao nao tern sido a grande questao
da arte desde a Antiguidade? Mas essa busca da ilusao nao e
exercida da mesma maneira nem a respeito dos mesmosob-
ou 0processo como
o da luz ou da construcao do visivel, coloca 0artista ern urna
situacao de ter de responder a urn destino imposto de fora.
'Irata-se agora de construir esse destino, comandando e ge-
rindo ele mesmo a empresa ilusoria.
A definicao de arte como neg6cio e do artista como
homem de neg6cios da arte e urna proposicao terrninante,
que da seguimento as proposicoes de Duchamp. Ela nao
parece cinica a nao ser aos olhos daqueles para quem a arte
tern ainda algurna coisa a ver corn a estetica: 0gosto, 0bela e
o iinico. De fato, ela e nao so coerente corn 0Warhol's system
(0 sistema de Warhol), comas proposicoes da pop art, da arte
conceitual e do minimalismo, como portadora de uma des-
mistificacao fundamental na qual residem justamente os en-
cantos da arte contemporanea, orient ada segundo os prin-
cipios da comunicacao.
o percurso sonhado por Andy Warhol-:- passar do status
de artista comercial ao de artista de neg6cios - esta comple-
to. No caminho, fechou-se tambem a definicao de arte con-
temporanea - fora da subjetividade, fora da expressividade -
na qualidade de sistema de signos circulando dentro de redes.
Defini<;ao estrita, quase insuportavel ern seu rigor.
- 9-
ARTECON fEMP oRA .NEA : UMA INTRODU< ;AO121
A essesdois 'embreantes que sao Duchamp e Warhol
convem acrescentar'urn terceiro elemento de transforrna<;ao:
Leo Castelli, agente.
Figura emblematica do mercado intemacional, como 0
chama Moulin24, 0 galerista-marchand Leo Castelli se deu
conta, comoWarhol, do partido a tirar das redes de comuni-
ca<;ao.Muito cede, ao longo dos anos 1960, desempenhou
o papel de lider de outras galerias, participou diretamente
da constru<_;;aode artist as reconhecidos, lancou artistas da
pop art, da arte conceitual e do minirnalismo.Os artistas que ele apoiou foram Robert Rauschenberg,
Jaspers Johns, Frank Stella, Warhol, Lichtenstein. 0 sucesso
de sua galeria se deve a explora<_;;aoos seguintes prindpios:
A) A i nf ormar ;; ao
E a pedra angular do sucesso. Manter-se inforrnado so-
bre.o que se passa no meio da arte, nao somente nos Estados
Unidos mas tambem na Europa. Castelli fala seis idiomas,
rnarttern contatos corn museus europeus, marchands e cole-
cionadores dos Estados Unidos e do Canada. Esses contatos
24. Raymonde Moulin, 'Le marche et le m,: ,"see, l a c?ns~tution des
valeurs artistiques contemporaines', Revue Frant;alSe d e S o cw l og ze, XXVII-3
(1986).