7/29/2019 contribuioes de canguilhem e foucault para as praticas de saude
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Entre a normatividade e a normalidade: contribuies de G.Canguilhem e M. Foucault para as prticas de sade
Between the normativity and the normality: contributionsof G. Canguilhem and M. Foucault for the health practices.
Tatiana Ramminger
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Resumo:
Nesse artigo discutimos a operacionalidade dos conceitos de normatizao e
normalizao para pensar as prticas de sade no contexto da SadeColetiva. A Sade Coletiva pretende ser uma ruptura com a Sade Pblica,
ao negar o monoplio do discurso cientfico e biolgico, incluindo as
dimenses simblica, tica e poltica na discusso sobre as condies de
sade da populao. Sendo assim, na primeira parte do artigo
acompanhamos o nascimento da Sade Pblica, bem como a
problematizao desse modelo pela Sade Coletiva. Em seguida,
apresentamos duas importantes contribuies para essa desconstruo: asconsideraes em torno do normal e do patolgico, realizadas por G.
Canguilhem e os estudos de M. Foucault sobre a disciplinarizao da
sociedade moderna. Ao final, relacionamos diferentes concepes de sade
com o pensamento de Canguilhem, no intuito de refletirmos sobre como a
Sade Coletiva pode constituir prticas de ao coletivas que sejam tambm
normativas e no apenas normalizadoras.
Palavras-chave: Normatividade; Normalidade; Sade Coletiva_________________________________________________________
Abstract:
In this paper we discuss the uses of the concepts of normatization and
normalization in order to think about the health practices in the context of
the Collective Health. The Collective Health intends to be a break with the
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para as prticas de sade.
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Public Health, while denying the monopoly of the scientific and biological
speech, including the symbolic, ethic and politics dimensions in the
discussion on the health conditions of population. Being so, in the first part of
the paper we accompany the birth of the Public Health, as well as the
exposing of the problems of this model by the Collective Health. Next, we
present two important contributions for this deconstruction: the
considerations around the normal and the pathological, carried out for G.
Canguilhem and the studies of M. Foucault on the disciplinarization of the
modern society. At the end, we connect different conceptions of health with
the thought of Canguilhem, in the intention of thinking about how the
Collective Health can appoint practices of collective action that are also
normativing and not only normalising.
Key-words: Normativity; Normality; Collective Health.
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Sade Coletiva: uma ruptura?
Apesar da idia naturalizada de que a Sade Pblica e a Sade Coletiva
so sinnimos, dado que ambas remetem impossibilidade de se pensar em
uma sade individual sem considerar as condies sanitrias do espao
social, temos boas razes para acreditar que essas expresses no se
superpem, pois dizem respeito a diferentes modalidades de discurso, com
fundamentos epistemolgicos diversos e com origens histricas particulares
(BIRMAN, 2005:11)
O movimento de luta pela reforma sanitria no Brasil caracterizou-se,
sobretudo, por uma crtica s prticas consagradas da Sade Pblica e pela
reivindicao de um outro conceito de sade que, para alm do biolgico,
inclusse tambm a dimenso social na anlise do processo sade-doena.
No entanto, para compreender o que esse movimento vislumbrava
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transformar, comecemos delimitando o campo aqui designado como Sade
Pblica.
A Sade Pblica nasce junto com o Estado Moderno, como parte de uma
nova racionalidade governamental. Ao contrrio das formas de governo do
Feudalismo e do Absolutismo, o Estado na modernidade no uma casa,
nem uma igreja, nem um imprio (FOUCAULT, 2007:20), mas uma
realidade especfica e autnoma, independente da obedincia que deva a
outros sistemas, como a natureza ou Deus. Da mesma forma, o governante
no algum diferente dos demais (como o senhor feudal ou o rei), sendo a
lei dos homens e no mais a lei divina que regula essa nova ordem. A
poltica externa, que antes baseava-se na defesa e ampliao ilimitada do
territrio, agora vale-se de todo um aparato diplomtico que respeita a
pluralidade dos Estados, margem de qualquer tentativa de unificao do
tipo imperial. Ao contrrio, a poltica interna no tem limites quando se trata
do controle da populao, por ora valorizada como principal fonte de riqueza
(FOUCAULT, 2006). Segundo essa razo do Estado, a limitao das relaes
internacionais tem por correlato o ilimitado exerccio do Estado de polcia
(FOUCAULT, 2007:23).
Temos, assim, algumas condies de possibilidade para a emergncia da
polcia mdica, ou da medicina social ou, finalmente, da sade pblica, que
consolidou a medicina como discurso cientfico e verdadeiro sobre a sade
das populaes. Rosen (1983) afirma que na Antigidade a relao entre as
condies de sade e os fatores sociais no foi priorizada. Ao contrrio, na
Renascena, essa relao toma importncia, marcando o incio, tanto para
Rosen (1983), como para Foucault (1999), da medicina social, que tomou
rumos diferentes, conforme o pas1.
O contexto scio-poltico-econmico que afirmou a necessidade do
estudo das relaes entre o estado de sade de uma populao e suas
condies de vida foi o do mercantilismo2 e cameralismo3, cujo fim supremo
era colocar a vida social e econmica a servio dos poderes polticos do
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Estado. Para Foucault (1999), na Frana e na Inglaterra, o principal objetivo
foi o controle em relao natalidade e morbi-mortalidade, somado
preocupao em aumentar a populao, sem nenhuma interveno inicial
efetiva ou organizada para elevar o seu nvel de sade. na Alemanha que
se desenvolver, pela primeira vez, uma prtica mdica centrada na
melhoria da sade da populao. Dentro do esquema cameralista, um
conceito-chave em relao aos problemas de sade e doena a idia de
police, derivada da palavra grega politeia. Caracteristicamente, a teoria e
prtica da administrao pblica veio a ser conhecida como
Polizeiwissenschaft (a science of police), e o ramo que trata com a
administrao da sade recebeu o nome de Medizinalpolizei(medical police)
(ROSEN, 1986:33).
Com o tempo, a idia de polcia transformou-se cada vez mais em uma
teoria e prtica da administrao pblica, que ganhou fora, sobretudo, na
Alemanha. Ao final do sculo XVIII, os estados alemes, tanto no sistema de
pensamento como no comportamento administrativo, j haviam incorporado
como norma que ao Estado Absoluto cabiam todas as atividades para o bem-
estar da populao. W.T. Rau, o primeiro a utilizar o termo polcia mdica,
considerava que o mdico no deve se ocupar apenas do doente, mas
tambm supervisionar a sade da populao. Por isso era importante
regulamentar a polcia mdica, com a funo de regulamentar a educao
mdica, supervisionar as farmcias e hospitais, prevenir epidemias,
combater o charlatanismo e esclarecer o pblico(ROSEN, 1986:37). Assim,
com a organizao de um saber mdico estatal, a normalizao da profisso
mdica, a subordinao dos mdicos a uma administrao central e,
finalmente, a integrao de vrios mdicos em uma organizao mdica
estatal, tem-se uma srie de fenmenos inteiramente novos que
caracterizam o que pode ser chamada a medicina de Estado (FOUCAULT,
1999:84).
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Para Rosen (1986), essa foi uma tentativa pioneira de considerar as
questes de sade da vida comunitria, estimulando estudos futuros da
relao entre as questes sociais, a sade e a doena. A Frana teve papel
fundamental nessa teorizao, cunhando o termo medicina social4, que
no parece ter por suporte a estrutura do Estado, como na Alemanha, mas
um fenmeno inteiramente diferente: a urbanizao(FOUCAULT, 1999:85).
A necessidade de constituir a cidade como unidade responde a
interesses polticos e econmicos, na medida em que a cidade se torna um
lugar importante para o mercado e para a produo, ao mesmo tempo em
que o aparecimento de uma classe operria pobre (o proletariado) aumenta
a tenso poltica entre os diferentes grupos que integram a cidade. a
necessidade de controlar esta concentrao de uma grande populao em
um s lugar que leva escolha de um modelo de interveno, que Foucault
(1999) denomina o modelo da peste. Ele considera a existncia de dois
grandes modelos de organizao mdica na histria europia: o modelo
suscitado pela lepra e o modelo suscitado pela peste. No primeiro, o doente
excludo fisicamente, mandado para fora da cidade, em uma tentativa de
purificao do espao urbano. No segundo, as pessoas permanecem em suas
casas, mas so meticulosamente observadas e vigiadas, em um
esquadrinhamento e controle permanente dos indivduos, em um modelo
mais prximo revista militar do que purificao religiosa. Enquanto a
lepra pede distncia, a peste implica uma espcie de aproximao cada vez
mais sutil do poder aos indivduos, correspondendo a uma inveno das
tecnologias positivas de poder (FOUCAULT, 2002:58-9).
Para Foucault (1999), a medicina social francesa do sculo XIX nada
mais que uma variao sofisticada deste modelo da peste. E suas
preocupaes, que tambm chegaram ao Brasil republicano, dizem respeito,
sobretudo, s noes de salubridade e insalubridade, que esto relacionadas
s condies do meio em que se vive e ao quanto este meio afeta a sade.
Por isso a importncia das obras de saneamento, a abertura de avenidas
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largas, a condenao de zonas de amontoamento. A medicina urbana no
verdadeiramente uma medicina dos homens, corpos e organismos, mas uma
medicina das coisas: ar, gua, decomposies, fermentos; uma medicina das
condies de vida e do meio de existncia (FOUCAULT, 1999:92).
Finalmente, na Inglaterra, o conceito de polcia mdica ou de medicina
social, do modo como se desenvolveu na Alemanha ou na Frana,
dificilmente poderia florescer, j que o liberalismo econmico era a doutrina
prevalecente. Essa filosofia, ao pensar a harmonia perfeita entre o homem e
a natureza, dificilmente considerava os aspectos sociais em suas anlises. No
entanto, as conseqncias da Revoluo Industrial e da situao de vida
precria dos trabalhadores, com excessiva mortalidade e morbidade, no
tinham como passar despercebidas (ROSEN, 1986).
Foucault (1999) chama ateno para o fato de que na Inglaterra, pas
em que o desenvolvimento industrial e do proletariado foi o mais rpido e
importante, que temos uma nova forma de medicina social e, no por acaso,
aquela que prevaleceu na atualidade. Um cordo sanitrio autoritrio
separa ricos e pobres nas cidades, onde a interveno mdica tanto uma
maneira de auxiliar nas necessidades de sade dos pobres, quanto um
controle que assegura a proteo das classes mais abastadas de possveis
doenas e epidemias.
Diferente da medicina urbana francesa ou da medicina de estado alem
aparece, na Inglaterra, uma medicina que essencialmente um controle da
sade e do corpo das classes mais pobres para torn-las mais aptas ao
trabalho e menos perigosas s classes ricas (FOUCAULT, 1999:97). Essa
frmula foi a que teve futuro, ligando a assistncia mdica ao pobre,
controle da sade da fora de trabalho e esquadrinhamento geral da sade
pblica (idem), com igualmente trs sistemas mdicos superpostos: uma
medicina assistencial para os pobres e trabalhadores; uma medicina
administrativa encarregada de problemas mais gerais e, finalmente, uma
medicina privada que beneficia quem pode pagar. Mesmo que articulados de
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maneira diferente, tratava-se (e trata-se!) de fazer funcionar esses trs
sistemas.
No Brasil, por exemplo (e em vrios pases da Amrica Latina, com
poucas variaes), o atendimento em sade de responsabilidade do Estado
esteve ligado carteira de trabalho (INAMPS), enquanto a sade pblica
responsabilizava-se pelas grandes campanhas de vacinao, ao mesmo
tempo em que o Estado financiava o setor privado da sade com suspeitos
convnios. At mesmo o SUS Sistema nico de Sade , que se props a
romper com esse modelo, preconizando o atendimento universal e integral,
co-existe com os planos privados de sade, de certa forma tambm
financiados pelo Estado5.
Cabe destacar que esse tipo de interveno da sade pblica - mais do
que um cuidado, um controle mdico da populao sempre suscitou
resistncias. No Brasil, por exemplo, esse modelo, implantado com mais
fora a partir da Primeira Repblica, com Oswaldo Cruz, resultou em
importantes revoltas populares, como a revolta da vacina6. Como nos
alerta Birman (2005), em nome da cincia tivemos a marginalizao de
diferentes segmentos sociais, com a consolidao de prticas asspticas que,
ao silenciarem consideraes de ordem simblica e histrica na leitura das
condies de vida e sade das populaes, fazem crer que no existe uma
escolha poltica, ideolgica e tica nas prticas sanitrias.
Foi justamente tentando romper com esse discurso naturalista e
pretensamente neutro da Sade Pblica que o movimento da reforma
sanitria brasileiro e latino-americano props um outro campo que se
ocupasse da sade no mais da massa informe da populao, mas dos
sujeitos que compem um coletivo , a Sade Coletiva. Essa passagem do
pblico para o coletivo descentra o lugar do Estado como espao
hegemnico para a regulao da vida e da morte na sociedade, sendo que
este no mais o plo nico na gesto do poder e dos valores,
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reconhecendo-se o poder instituinte da vida social, nos seus vrios planos e
instituies (BIRMAN, 2005:14).
Desde a dcada de 1920, as cincias humanas introduzem, no territrio
da sade, a problematizao de categorias como normal, anormal e
patolgico, demonstrando o quanto esses conceitos esto encharcados de
valores morais. Comea a ganhar fora o entendimento de que a sade
marcada num corpo que simblico, onde est inscrita uma regulao
cultural sobre o prazer e a dor, bem como ideais estticos e religiosos
(BIRMAN, 2005:13). Assim, o campo terico da Sade Coletiva pretende ser
uma ruptura com a concepo de Sade Pblica, ao negar o monoplio dos
discursos biolgicos e incluir as dimenses simblica, tica e poltica na
discusso sobre as condies de sade da populao, sendo a
transdisciplinariedade sua marca constituinte (BIRMAN, 2005).
Certamente duas importantes contribuies para essa passagem foram
as consideraes em torno do normal e do patolgico, realizadas por G.
Canguilhem, e os estudos de M. Foucault sobre a disciplinarizao da
sociedade moderna. A seguir, apresentamos as principais idias desses
autores em torno desses temas, buscando melhor compreender os conceitos
de normatizao e normalizao (muitas vezes utilizados como sinnimos e
superficialmente discutidos) e explorar como estes podem nos auxiliar na
construo de outras prticas de sade.
Georges Canguilhem: a sade como verdade do corpo
Georges Canguilhem (1904-1995) insere-se na tradio da
epistemologia francesa, que props um contraponto filosofia da cincia,
criticando seu objetivo de determinar o conjunto de regras e tcnicas que
devem nortear as pesquisas que se pretendem cientficas. Seu argumento
que a filosofia no deveria se preocupar com o mtodo cientfico, mas sim
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com a reflexo sobre as condies de possibilidade histricas para a
produo de conhecimento (MACHADO, 1981). Por isso seria importante que
o filsofo no se limitasse ao estudo de uma cincia enquanto objeto,
simplesmente, mas que se aproximasse dos problemas humanos
concretos, com a aprendizagem de uma matria exterior filosofia uma
matria estrangeira , como foi, no caso de Canguilhem, o estudo da
medicina (SCHWARTZ, 2003a): "A filosofia uma reflexo para a qual
qualquer matria estranha serve, ou diramos mesmo para a qual s serve a
matria que lhe for estranha" (CANGUILHEM, 2006:6). E ainda: "No
necessariamente para conhecer melhor as doenas mentais que um
professor de filosofia pode se interessar pela medicina. No , tambm,
necessariamente para praticar uma disciplina cientfica. Espervamos da
medicina justamente uma introduo a problemas humanos concretos"
(idem).
Sua obra mais conhecida, O normal e o patolgico, baseada em sua
tese de doutoramento em medicina, concluda em 19437. A tese divide-se
em duas partes, cada uma iniciada com uma pergunta, que o autor utiliza
como fio condutor um fio de Ariadne que nos guia pelos labirintos do
pensamento do filsofo. Por isso no nos perdemos em meio erudio de
Canguilhem; ao contrrio, ele nos convida a acompanh-lo na desconstruo
de conceitos essenciais da medicina, mostrando como muitos deles esto
encharcados de valores morais.
O primeiro fio que ele nos lana o seguinte: Seria o patolgico
apenas uma modificao quantitativa do estado normal? Essa concepo,
explica ele, considerando o patolgico uma mera variao quantitativa do
normal, como que uma lente de aumento do normal, esteve no centro do
nascimento da medicina moderna. Ele escolhe analisar as obras de um
filsofo Augusto Comte e um cientista Claude Bernard porque esses
autores desempenharam, semi-voluntariamente, o papel de porta-bandeira
dessa forma de pensamento (CANGUILHEM, 2006:15).
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Enquanto Comte definia o patolgico como simples prolongamento mais
ou menos extenso dos limites de variao, quer superiores, quer inferiores,
prprios de cada fenmeno do organismo normal (COMTE apud
CANGUILHEM, 2006:23), Bernard concluiu que a sade e a doena no so
dois modos que diferem essencialmente, sendo que entre as duas h
apenas diferenas de grau: a exagerao, a desproporo, a desarmonia dos
fenmenos normais constituem o estado doentio (BERNARD apud
CANGUILHEM, 2006:38). Esse modo de compreender a relao entre sade
e doena, embora tenha sido hegemnico no sculo XIX, permanece atual.
comum, por exemplo, referir-se a idosos com algum grau de demncia ou a
deficientes mentais adultos como se fossem crianas: Ele tem 25 anos, mas
igual a uma criana!; ou vov agora como um beb! A forma de
tratamento tambm inclui palavras no diminutivo, outra entonao de voz e
negociaes semelhantes quelas que so utilizadas com crianas. Laudos
mdicos valem-se de expresses como idade mental de 12 anos para
descrever um adulto com deficincia. Da mesma forma, a loucura tambm
costuma ser percebida como uma variao de grau do estado normal, desta
vez no como uma diminuio, mas como uma exagerao de modos de
pensar e sentir normais.
No entanto, como coloca Canguilhem (2006:53), temerrio deduzir
que a vida sempre idntica a si mesma na sade e na doena, pois a
doena no apenas uma soma de sintomas, mas um outro modo de ser da
totalidade do organismo. Uma criana de 12 anos, em fase de crescimento,
totalmente diferente de um adulto com idade mental de 12 anos. Ambos
podem ter um desenvolvimento mental semelhante, mas as situaes e
expectativas que vivenciam so totalmente distintas e, enquanto a criana
est em constante mudana, o doente tende a manter de modo obsessivo e
s vezes exaustivo, as nicas normas de vida dentro das quais ele se sente
relativamente normal (CANGUILHEM, 2006:141).
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Por outro lado, esse outro modo de ser patolgico no porque o
mdico o diz, mas porque o prprio sujeito que sofre percebe que vive um
tipo de vida diferente do normal, algo que o incomoda e sentido como
uma espcie de mal. Sendo assim, um fato s pode ser considerado
patolgico em relao totalidade do organismo e levando em conta a
experincia daquele que se sente doente, sendo que o estado patolgico
no um simples prolongamento, quantitativamente variado, do estado
fisiolgico, mas totalmente diferente (CANGUILHEM, 2006:56).
Em que pesem as diferenas entre os dois autores analisados por
Canguilhem Comte e Bernard -, ambos tm em comum, alm da
concepo do patolgico como variao quantitativa do estado normal, a
idia positivista fundamental de que o saber (ou a cincia) vem antes do agir
(ou da tcnica), ou seja, a idia de que uma tcnica deve ser normalmente
a aplicao de uma cincia (CANGUILHEM, 2006:64). Canguilhem, ao
contrrio, vai defender no s uma concepo qualitativa de sade e doena,
mas tambm que a medicina mais uma tcnica (a clnica) do que uma
cincia (fisiologia)8. a clnica que deve informar os estudos tericos, e no
o contrrio. E para auxili-lo nessa desconstruo, Canguilhem inclui nesse
debate entre cientistas, um tcnico: o mdico Ren Leriche.
Canguilhem considera que o maior valor da teoria de Leriche,
independente de contradies ou crticas que se possam apontar, o fato
de ser a teoria de uma tcnica, uma teoria para a qual a tcnica existe, no
como uma serva dcil aplicando ordens intangveis, mas como conselheira e
incentivadora, chamando a ateno para os problemas concretos (...)
(CANGUILHEM, 2006:66). Diz Leriche (apud CANGUILHEM, 2006:57): A
sade a vida no silncio dos rgos e, inversamente, a doena aquilo
que perturba os homens no exerccio normal de sua vida e em suas
ocupaes e, sobretudo, aquilo que os faz sofrer.
Canguilhem concorda com Leriche, relacionando a sade inconscincia
do prprio corpo, e a conscincia sensao dos limites, das ameaas, dos
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obstculos sade (CANGUILHEM, 2006:57). Em escritos mais recentes9,
Canguilhem reitera esse entendimento, comentando que vrios autores
tambm estabeleceram essa ligao entre a sade, o silncio e a
inconscincia: alm do j citado Leriche (dcada 1930), Valry (dcada
1940), Michaux (dcada 1960) e, antes deles, Descartes (1649) o
conhecimento da verdade como a sade da alma: quando a possumos,
no pensamos mais nela; e Kant (1798) podemos nos sentir bem de
sade, mas nunca podemos saber se estamos bem de sade (apud
CANGUILHEM, 2005:37; 2006:205).
Sendo assim, analisando a maneira com que importantes filsofos
pensaram a questo da sade, Canguilhem (2005) conclui que no se pode
saber, mas apenas sentir o que sade. Na medida em que est fora do
campo do saber, relacionada experincia, a sade no pode ser um
conceito cientfico, e por isso um conceito vulgar, o que no quer dizer
trivial, mas simplesmente comum, ao alcance de todos (CANGUILHEM,
2005:37). Concordando com Nietzsche, Canguilhem considera que a verdade
no pode referir-se apenas a um valor lgico, fruto do juzo. A verdade
habita a experincia, sendo a sade a verdade do corpo. H mais razo em
teu corpo do que em tua melhor sabedoria (NIETZSCHE apud CANGUILHEM,
2005:39).
Guardemos essa idia de que a sade refere-se experincia de um
corpo singular, e retomemos a leitura da mais importante obra de
Canguilhem. A segunda parte de seu livro inicia com a seguinte pergunta:
Existem cincias do normal e do patolgico?. Para respond-la, o filsofo
empreende uma anlise semntica do termo normal, demonstrando que
ele pode ser utilizado tanto para designar aquilo que encontrado mais
frequentemente (fato), como aquilo que se deve ser (valor). Essas duas
designaes, apesar de to diferentes, confundem-se e misturam-se,
levando a que um carter comum adquira um valor de tipo ideal
(CANGUILHEM, 2006:85). No caso da medicina, por exemplo, o que
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considerado normal aquilo que tem maior freqncia estatstica, ou seja,
um estado habitual dos rgos confundido com seu estado ideal.
A cincia esfora-se em medir e quantificar modos de funcionamento do
organismo, sendo que aqueles mais freqentes ou mais prximos da mdia
so considerados normais. No entanto, para Canguilhem, essa equao
est invertida, pois se determinados comportamentos so mais observados
que outros, porque funcionaram melhor em determinado modo de vida.
Assim, no a medicina, com suas freqncias estatsticas, que julga o que
o normal; mas a vida em si mesma, em sua capacidade de instituir
normas, de ser normativa. Ou seja: um trao humano no seria normal por
ser freqente, mas seria freqente por ser normal, isto , normativo num
determinado gnero de vida (CANGUILHEM, 2006:116).
O normal no como mdia estatstica, generalizada por uma cincia;
mas como normatividade, ancorada na experincia singular esta uma
idia central na obra de Canguilhem e, por isso, importante destacar o que
ele entende por normatividade. Literalmente, que a vida no indiferente
s condies nas quais ela possvel, que a vida polaridade e, por isso
mesmo, posio inconsciente de valor, em resumo, que a vida , de fato,
uma atividade normativa. Em filosofia, entende-se por normativo qualquer
julgamento que aprecie ou qualifique um fato em relao a uma norma, mas
essa forma de julgamento est subordinada, no fundo, quele que institui as
normas. No pleno sentido da palavra, normativo o que institui as normas. E
nesse sentido que nos propomos a falar sobre uma normatividade
biolgica10 (CANGUILHEM, 2006:86).
Como esclarece MASSON (2004), Canguilhem define como polaridade
dinmica da vida a necessidade permanente, para qualquer ser vivente, de
fazer escolhas, o que inclui um julgamento de valor, considerando
determinados modos de funcionamento como positivos e outros como
negativos: viver , mesmo para uma ameba, preferir e excluir
(CANGUILHEM, 2006:95). Nessa concepo, viver um debate entre
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diferentes normas, em um processo dinmico e nunca previsvel, onde a vida
no apenas submisso ao meio, mas tambm instituio de seu prprio
meio, estabelecendo valores, no apenas no meio, mas tambm no prprio
organismo. (CANGUILHEM, 2006:175).
Seguindo essa lgica, Canguilhem vai discutir a confuso entre os
termos anmalo e anormal, sendo o primeiro um termo descritivo aquilo
que desigual e o segundo um termo valorativo aquilo que no segue a
norma. A anomalia est relacionada a um desvio estatstico, algo inslito e
no habitual, mas no necessariamente patolgico. A diversidade no
doena (...). Patolgico implica pathos, sentimento direto e concreto de
sofrimento e impotncia, sentimento de vida contrariada (CANGUILHEM,
2006:96). A anomalia s ser patolgica se for sentida como um obstculo
ou perturbao vida, ou seja, o que determina o patolgico no o desvio
estatstico, mas o desvio normativo. A doena no est relacionada com o
fato de ser diferente (anomalia) ou de uma ausncia de normas, mas com a
incapacidade ou dificuldade de instituir normas que expandam a vida. E
conclui: No existe fato que seja normal ou patolgico em si. A anomalia e a
mutao no so, em si mesmas, patolgicas. Elas exprimem outras normas
de vida possveis.Se essas normas forem inferiores - quanto estabilidade,
fecundidade e variabilidade da vida - s normas especficas anteriores,
sero chamadas patolgicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes
no mesmo meio ou superiores em outro meio sero chamadas
normais. Sua normalidade advir de sua normatividade.O patolgico no a
ausncia de norma biolgica, uma norma diferente, mas comparativamente
repelida pela vida (CANGUILHEM, 2006:103).
Para Canguilhem, essa norma repelida e considerada inferior por no
tolerar desvio, ser incapaz de se transformar frente dinmica da vida, pois
o normal viver num meio em que flutuaes e novos acontecimentos so
possveis (CANGUILHEM, 2006:136). Aquilo que normal, por ser
normativo em determinada situao, pode se tornar patolgico, em outro
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contexto, se no puder se alterar. Sendo assim, o doente no anormal por
uma ausncia de norma, mas por uma incapacidade de ser normativo
(CANGUILHEM, 2006:138), ou seja, pela dificuldade em criar outras normas
que dem conta de novos acontecimentos, insistindo em conservar uma
norma que j no funciona mais.
Agora podemos tentar ensaiar uma definio de sade e doena,
seguindo o que prope Canguilhem, colocando suas reflexes em dilogo
com outros conceitos e autores.
Entre a Normatividade e a Normalidade: dilogo entre Canguilhem eFoucault
Valendo-se das contribuies de Goldstein11, Canguilhem alerta que a
doena no pode ser colocada apenas no lugar da negatividade, como aquilo
que nada cria e transforma. A doena, embora seja uma reduo do
potencial criativo, no deixa de ser uma vida nova, caracterizada por novas
constantes fisiolgicas (CANGUILHEM, 2006:141). Sendo assim, elatambm no pode ser deduzida do normal, como um resduo do normal ou
aquilo que sobreviveu destruio. Ao contrrio, em um primeiro momento,
a doena aparece como uma necessidade de criao de outras normas frente
s variabilidades da vida, mas esta necessidade experimentada de forma
negativa (SERPA JR, 2001). A doena , assim, uma experincia de
inovao positiva do ser vivo, e no apenas um fato diminutivo ou
multiplicativo, no uma variao da dimenso da sade, mas uma novadimenso da vida (CANGUILHEM, 2006:138).
A cura, para Canguilhem, acontece quando se consegue restabelecer a
normatividade, ou seja, criar para si novas normas, por vezes superiores s
antigas, no sentido de que tenham maior plasticidade frente
imprevisibilidade da vida. No entanto, no se pode confundir restaurao da
normatividade com um retorno ao que se era antes: a vida no conhece a
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reversibilidade, mas admite reparaes que so inovaes fisiolgicas
(CANGUILHEM, 2006:147).
Assim, a sade, mais que um estado de equilbrio ou ausncia de
enfermidade, poder ficar doente e recuperar-se, e ao superar as
enfermidades converter-se em um corpo mais vlido(CAPONI, 1997:294).
A sade uma margem de tolerncia s infidelidades do meio, e ser
saudvel no apenas ser normal, mas ser normativo; no apenas possuir
algo que valorizado, mas ser capaz de criar valor; no apenas ser portador,
mas instaurador de normas vitais. O que caracteriza a sade a
possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal no momento, a
possibilidade de tolerar infraes norma habitual e de instituir normas
novas em situaes novas (CANGUILHEM, 2006:148).
A sade est relacionada, ainda, com um sentimento de seguridade,
em um duplo sentido: segurana no presente, e seguros para prevenir o
futuro. E, ao contrrio do que algumas correntes filosficas e cientficas
defendem, essa seguridade no est ligada a um instinto de conservao,
onde o organismo evita confrontar-se com novas situaes esse instinto,
segundo GOLDSTEIN (apud CANGUILHEM, 2006:150), no a lei geral da
vida, e sim a lei de uma vida limitada. O organismo sadio, antes da
conservao, procura realizar sua natureza em expanso, enfrentando os
riscos que isso comporta. Sade , pois, possuir uma capacidade de
tolerncia ou de seguridade que mais do que adaptativa (CAPONI, 1997:
294).
Em um primeiro momento, todos esses conceitos aparecem juntos
(CANGUILHEM, 2006). Posteriormente, CANGUILHEM (2005) vai refinar essa
concepo, a partir da distino entre sade comoestadodo corpo dado e
sade comoexpressodo corpo produzido. O corpo dado est relacionado
com o patrimnio gentico, o gentipo; enquanto o corpo produzido diz
respeito aos modos de vida de cada um, seja por escolha ou imposio, ou
ainda, ao fentipo.
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Ao falar da sade como estado do corpo dado, o autor parece se referir
capacidade do corpo adoecer, recuperar-se e, assim, tornar-se um corpo
mais potente (CAPONI, 1997). O exemplo, citado por ele, o da vacina - o
artifcio de uma infeco justamente calculada para permitir que o organismo
se oponha, doravante, infeco selvagem (CANGUILHEM, 2005:43). Essa
concepo, alerta Canguilhem, j era anunciada por Descartes12 - bem
antes, portanto, das primeiras hipteses de Pasteur. A sade deficiente
desse corpo dado, ao contrrio, seria uma limitao do poder de tolerncia
e de compensao das agresses do meio ambiente, por alguma m
formao orgnica, por exemplo (idem).
J a sade como expresso do corpo produzido uma garantia
vivenciada duplamente como uma garantia contra o risco e audcia para
corr-lo. o sentimento de poder, sempre mais, ultrapassar capacidades
iniciais. Canguilhem (2005) d o exemplo dos atletas, mas Caponi (1997)
complementa que esse sentimento de superao tambm pode dizer da
experincia de transformar um meio social adverso. A autora chama ateno
de que, da mesma forma que certas patologias orgnicas contribuem para
diminuir essa margem de tolerncia, existem vrias condies desfavorveis
de existncia que devem ser consideradas na predisposio a doenas
futuras, tais como condies precrias de moradia, alimentao, educao e
trabalho.
Aqui h de se considerar a relao entre sade e sociedade. As
condies de vida impostas (falta de saneamento, alimentao etc.)
remetem ao mbito pblico e nesse mbito que deveriam delinear-se
estratgias de interveno - polticas de transformao dessas desigualdades
que se definem como causas para diversas doenas. Por outro lado, os
estilos de vida escolhidos por cada um remetem ao mbito do privado. Desde
que a vida tornou-se preocupao poltica do Estado, no entanto, parece que
o acento esteve mais na normalizao de condutas e estilos de vida, com a
culpabilizao do indivduo, do que na transformao dessas limitaes
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sociais de vida. Parece ser mais simples normalizar condutas do que
transformar condies perversas de existncia (CAPONI, 1997:294).
importante destacar, aqui, a diferena entre normatizao e
normalizao. Em ambos os casos a norma est ligada a um julgamento de
valor, de algo considerado como positivo ou negativo. Em um primeiro
momento, Canguilhem toma o conceito de norma enquanto norma biolgica,
entendendo a normatizao enquanto possibilidade de criao de normas
que, mais que adaptao, permita a expanso da vida.
Posteriormente, em um texto intitulado Do social ao vital, que integra
a edio de 1966 de O normal e o patolgico, Canguilhem (2006) versar
sobre o uso popular do termo normal. Normal o termo pelo qual o sculo
XIX vai designar o prottipo escolar e o estado de sade orgnica, que
exprime uma exigncia de racionalizao que se manifesta tambm na
poltica e na economia e que levar, enfim, ao que se chamou, desde ento,
de normalizao. A norma aqui social, externa, e est ligada a uma
exigncia de unificar a variedade, uniformizar a disparidade. A normalizao,
define ele, a expresso de exigncias coletivas cujo conjunto define, em
determinada sociedade histrica, seu modo de relacionar sua estrutura, ou
talvez suas estruturas, com aquilo que ela considera como sendo seu bem
particular, mesmo que no haja uma tomada de conscincia por parte dos
indivduos (CANGUILHEM, 2006:199-200).
Ao longo desse artigo, Canguilhem (2006:206-08) considera que a
normalizao uma experincia especificamente antropolgica ou cultural,
citando vrios exemplos, tais como: a normalizao da lngua, na gramtica;
a normalizao do trabalho; e a normalizao da sade das populaes,
onde a norma aquilo que fixa o normal a partir de uma deciso
normativa.
Ao final, ele faz uma relao entre as normas vitais e as normas sociais,
considerando a tendncia corrente de se comparar organismo e organizao.
A primeira diferena diz respeito s regras de ajustamento, que na
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organizao so exteriores ao complexo ajustado, e devem ser
representadas e aprendidas. J no organismo vivo, essas regras de
ajustamento das partes entre si so imanentes, presentes sem ser
representadas, atuando sem deliberao nem clculo (CANGUILHEM, 2006:
212). Conclui, assim, que embora a regulao social possa inspirar-se na
regulao orgnica, est longe de ser como ela. Isso porque a regulao
social o resultado de um antagonismo, um embate de solues paralelas e
interesses distintos; ao passo que a regulao orgnica diz de uma
integrao cada vez mais sofisticada do organismo com o meio.
Segundo Roudinesco (2007), essa ampliao do conceito de norma e
normal foi efeito da leitura do livro de Michel Foucault, O nascimento da
clnica. Canguilhem conhecera Foucault em 1960, quando foi convidado para
ser seu orientador em sua tese de doutoramento (Loucura e desrazo:
histria da loucura na idade clssica). Diz Canguilhem (1996): Nunca neguei
que fui conquistado de imediato. Aprendi a conhecer, melhor que antes,
outra figura do anormal, distinta do patolgico orgnico. E Foucault me
obrigou a reconhecer a existncia histrica de um poder mdico equvoco.
(ROUDINESCO apud MASSON, 2004: 41). E agrega a prpria Roudinesco:
Foucault substitua a concepo canguilheniana de uma norma produzida
pela vida por uma noo de norma construda pela ordem social e portadora
de normalizao. Ou seja, opunha uma normatividade social normatividade
biolgica, uma arqueologia fenomenologia (ROUDINESCO, 2007:45).
Por outro lado, ao definir o termo normalizao, em 1975, seja no
curso que ministrava poca Os anormais seja no livro que lanou
naquele mesmo ano Vigiar e Punir, FOUCAULT (1995; 2002) refere-se,
explicitamente, a esse texto de Canguilhem (Do Social ao Vital).
Resumindo as contribuies de Canguilhem, Foucault destaca trs delas: a
referncia a um processo geral de normalizao social, poltica e tcnica no
decorrer do sculo XVIII; a idia de que a norma no se define como uma lei
natural, mas como uma pretenso de poder, que exige sua obedincia sob
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mecanismos de coero; e o entendimento de que a norma tambm est
ligada a uma tcnica positiva de interveno e de transformao, a uma
espcie de poder normativo. E conclui: esse conjunto de idias que eu
gostaria de tentar aplicar historicamente, essa concepo ao mesmo tempo
positiva, tcnica e poltica de normalizao (FOUCAULT, 2002:62).
Revel (2005:65) esclarece que a noo de norma, para Foucault,
corresponde ao aparecimento da sociedade disciplinar e do bio-poder,
diretamente relacionado ao nascimento da medicina social13, tal como j aqui
explicitado. A emergncia desse aparelho de medicalizao coletiva (...)
permite aplicar sociedade toda uma distino permanente entre o normal e
o patolgico e impor um sistema de normalizao dos comportamentos e das
existncias, dos trabalhos e dos afetos. No um sistema de punio, como
na sociedade soberana, mas um sistema de correo, de transformao dos
indivduos, atravs de tcnicas de normalizao, do qual fazem parte as
escolas, as prises, as fbricas, os hospitais, entre outras organizaes.
Aqui devemos destacar, ainda, a admirao mtua entre ambos os
pensadores. Como aponta Roudinesco (2007:48), raro assistir um mestre
remanejar sua teoria luz daquele que escolheu tornar-se seu aluno. Em
1991, Canguilhem comenta que j se passaram trinta anos desde de seu
primeiro contato com Foucault, mas que 1961 permanece e permanecer
para mim o ano em que se descobriu um grande filsofo (CANGUILHEM
apud ROUDINESCO, 2007:48). Por sua vez, o ltimo artigo de Foucault
autorizado para publicao, dois meses antes de sua morte, justamente
uma homenagem a Canguilhem e ao lugar que ele ocupa na histria do
pensamento francs: em todo o debate de idias que precedeu ou sucedeu
o movimento de 1968, fcil reencontrar o lugar daqueles que, direta ou
indiretamente, haviam sido formados por Canguilhem (FOUCAULT,
2005:353). Para Foucault (2005:364-5), Canguilhem um filsofo do erro,
pois a partir do erro que ele coloca os problemas filosficos, os problemas
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da verdade e da vida. Ou ainda: No limite, a vida da seu carter radical
o que capaz de erro.
Problematizando as prticas de sade: algumas contribuies deCanguilhem e Foucault
Retomando nosso tema, uma grande contribuio de Canguilhem, como
destacam alguns comentadores de sua obra (SERPA JR, 2001; CAPONI,
1997), colocar a experincia singular e subjetiva do sujeito no centro da
determinao das fronteiras entre o que normal e o que patolgico. Se asmais variadas prticas da rea da sade visam restabelecer o estado normal
do organismo, no porque os cientistas o tenham determinado, mas
porque ele visado pelo doente. So os doentes que deveriam julgar se no
so mais normais ou se voltaram a ser. O essencial para o doente sair de
um abismo de impotncia ou de sofrimento, onde voltar a ser normal
significa retornar a uma atividade interrompida (ou equivalente), mesmo que
essa atividade seja reduzida ou os comportamentos menos variados. A vidade qualquer ser vivo no reconhece as categorias de sade e doena, a no
ser no plano da experincia provao no sentido afetivo do termo, e no no
plano da cincia. A cincia explica a experincia, mas, nem por isso, a anula
(CANGUILHEM, 2006: 149).
J Foucault demonstra, de forma mais enftica, como se constroem
discursos e prticas em torno daquilo que valorado como mais ou menos
normal, em determinada sociedade; e como o nascimento das polticas deateno sade das populaes, mais que seu cuidado, visavam seu bom
controle; mais do que a expanso da vida, objetivavam a adaptao a um
determinado modelo de sociedade.
Tambm poderamos compreender o trabalho de ambos os autores
como modos de compreender a produo de sujeitos. Se para Canguilhem o
acento est nas respostas normativas dos seres humanos, em um
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entendimento de que o sujeito se constitui inventando e criando normas,
para Foucault o interesse recai sobre a eficcia das normas sociais e em
como os sujeitos so produzidos nas relaes de poder que, ao mesmo
tempo em que o assujeitam, trazem em si a possibilidade de resistncia e
transformao das normas. No entanto, alguns autores, como Le Blanc
(2002), consideram que para Foucault a possibilidade de inveno de si ou
a criao de modos mais belos e ticos de existncia parece ser uma
situao rara e singular, ao passo que, para Canguilhem, a inveno um
dado da vida ordinria. A inveno no prerrogativa do artista, mas
condio de qualquer ser vivente - imprescindvel, alis, para a manuteno
e expanso da vida.
Le Blanc (2002:221) tambm chama ateno para o fato de que no se
pode separar o social do vital, como se existisse uma normalizao externa
adaptativa e uma normatizao interna expansiva. Sendo assim, a
normalidade no se ope normatividade. Assim como a normalidade diz
respeito tanto racionalizao das normas da sociedade como maneira
especfica de cada sociedade se posicionar como sujeito de suas normas, a
normatividade entendida como a capacidade no s subjetiva, mas
tambm social, de incorporao de novas normas.
Alm disso, a norma no pode ser pensada como autnoma,
emancipada do sujeito, pois depende sempre de como valorada e
interpretada. Toda norma dependente de uma perspectiva, que a razo
mesma de sua apreciao e avaliao, onde cada sujeito seja individual
ou coletivo afirma-se em relao s normas que institui ou contesta.
Assim, a normalizao social instituda no priva a sociedade, grupo ou
indivduo de sua capacidade normativa.
Em que pesem esses apontamentos, consideramos que tanto para
Canguilhem como para Foucault o limite entre o normal e o patolgico se
torna impreciso, e s quem deveria determin-lo aquele que vive a
experincia de uma vida diferente. Algum se torna doente somente em
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relao a si mesmo, e no em relao a uma mdia ou a alguma freqncia
estatstica, ou a algum comportamento esperado socialmente. O doente
sente sua potncia diminuda em relao a si mesmo, e isto que deveria
ser o ponto de ancoragem das prticas de sade (CANGUILHEM, 2006).
No entanto, o que percebemos que o parmetro de sade est cada
vez mais ligado ao que valorizado socialmente, e no experincia
subjetiva e singular. Um corpo feminino, mesmo que saudvel em suas
curvas, pode ser um problema, quando o modelo a ser seguido cada dia
mais enxuto, esguio e andrgino. As frustraes e tristezas inerentes vida
devem ser liquidadas do campo subjetivo, quando o ideal um corpo sempre
bem disposto e feliz... E as crianas devem ser sempre, e cada vez mais
cedo, acompanhadas e avaliadas, para que suas estripulias no impeam que
realizem todas as (hiper)atividades que incluem, alm da escola, aulas de
ingls, informtica, natao, bal - necessrias sua formao como futuro
profissional de sucesso. E, claro, para todos esses desvios, temos no s
um novo diagnstico, mas tambm uma medicao de ltima gerao: um
pouco de anfetamina aqui, outro tanto de ritalina ali, e muita fluoxetina
acol.
Ao mesmo tempo, e tambm de forma crescente, a sade aparece
relacionada ao auto-cuidado. Expresses como comportamento de risco,
comuns ao campo da sade pblica, remetem culpabilizao e
responsabilizao exclusiva dos indivduos por suas condies de vida, sade
e adoecimento.
Por outro lado, tanto Canguilhem como Foucault podem ser
erroneamente interpretados em suas consideraes, como se ao falarem da
importncia da experincia subjetiva, das infidelidades do meio, ou ainda ao
criticarem a forma como o Estado tomou para si o papel do cuidado da sade
das populaes, estivessem em defesa de prticas de sade voltadas apenas
para o indivduo, pleiteando uma desejada omisso do Estado nesse campo.
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Da mesma forma, como efeito desse dilogo, poderamos cair aqui na
simples dicotomia entre normalizao social e normatividade biolgica,
perguntando-nos se a sade, afinal, uma expresso da capacidade
normativa de cada organismo ou um efeito das normas sociais. No entanto,
como j vimos, o caminho mais complexo e no passa nem pelo
paralelismo vertical nem pela causalidade horizontal, mas pela diagonal, ou
ainda, pela transversal (SILVA, 2005).
Caponi (1997) traz uma contribuio importante, relacionando diferentes
concepes de sade com o pensamento de Canguilhem. O primeiro conceito
que analisa aquele mais clssico, o qual considera a sade como um
equilbrio. Esse conceito acaba se confundindo com a normalidade, no
sentido descritivo, ou seja, como proximidade de uma mdia estatstica,
perdendo-se o carter de normatividade e reduzindo o fenmeno da sade a
um mecanismo adaptativo. um conceito restrito e negativo, na medida em
que a sade entendida como ausncia de doena.
Visando ampliar esse conceito de sade, a Organizao Mundial da
Sade estabeleceu que a sade um completo estado de bem estar fsico,
mental e social, e no mera ausncia de doena.Esse conceito, duramente
criticado por diversos autores, entre eles Canguilhem (2005) e Dejours
(1986), tambm se confunde com o conceito de normal, mas em seu
sentido valorativo, j que a idia de bem-estar pode ser traduzida como
aquilo que desejvel em determinado contexto. No momento em que se
afirma que o bem-estar um valor (fsico, psquico e social), se reconhece
como parte do mbito da sade tudo aquilo que em uma sociedade e em
um momento histrico preciso, qualificamos de modo positivo (CAPONI,
1997:299), julgando tudo que escapa disso como perigoso, indesejado e
passvel de interveno. Alm disso, o conceito parece negar o conflito e a
instabilidadeo (DEJOURS, 1986).
Sendo assim, alm de valorizar a mera adaptao a modos de vida
socialmente valorizados, esse conceito tende a condenar erros, fracassos ou
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infidelidades, desconsiderando que a sade no pode ser pensada como
ausncia de perturbaes, e sim como a possibilidade de enfrent-las. O
conceito de bem-estar, tal como o conceito de equilbrio, limita o alcance da
sade a esse mbito que prprio do conceito de normalidade, seja em
termos de meios estatsticos e constantes funcionais, seja como valores que
so sociais e historicamente construdos (CAPONI, 1997:301).
Finalmente, o conceito cunhado pela reforma sanitria foi o de que a
sade resultantes das condies de alimentao, habitao, educao,
renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade,
acesso e posse de terra, e acesso aos servios de sade. Tambm no um
conceito abstrato, que deve ser definido de acordo com o contexto histrico,
devendo ser conquistada pela populao em suas lutas cotidianas
(Relatrio da VIII Conferncia Nacional de Sade).
Para Caponi (1997), nessa conceitualizao o que acaba se perdendo
justamente a referncia singularidade biolgica ou subjetiva da doena, na
medida em que so considerados apenas os valores sociais o bios no
mencionado, nem sequer como um, entre todos os outros fatores, que
podem influenciar na sade ou na doena. Embora o objetivo seja intervir
em condies e ambientes perversos de vida, muitas vezes a ao do Estado
corre o risco, como nas demais concepes, de funcionar como mera
normalizao de comportamentos.
Para a autora, em Canguilhem que podemos nos apoiar para pensar
um outro conceito de sade, que no se restrinja nem ao inalcanvel
equilbrio nem ao indeterminado bem estar e, tampouco, s injustas
diferenas sociais. Se o conceito de sade se define por essa capacidade de
tolerncia para com as infidelidades do meio e se se trata de um conceito
relativo, no sentido de que existem pessoas mais ou menos saudveis em
situaes concretas, ento podemos concluir que o mesmo deve ser
estendido no s capacidade de auto-cuidado, assinalada por Canguilhem
como elemento central, mas tambm deve contemplar, e de modo
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privilegiado, todos esses determinantes sociais definidos na VIII Conferencia
Nacional de Sade (CAPONI, 1997:304).
Assim, na medida em que a sade implica no somente uma seguridade
e tolerncia s infidelidades do meio, mas tambm a possibilidade de ampli-
las, esta se torna uma tarefa ao mesmo tempo individual e coletiva, que
inclui a transformao das condies sociais e singulares de vida (CAPONI,
1997). Poderamos avanar considerando que a potncia normatizadora do
corpo prejudicada (ou seja, a sade) nem tanto por ter que lidar com o
erro ou acaso, mas principalmente por condies de vida adversas
perfeitamente evitveis.
Finalmente, o que gostaramos de destacar (embora parea bvio) que
a mudana no conceito de sade no garante a transformao das prticas
de sade. Fica o convite para que possamos questionar, em nossas aes
cotidianas como trabalhadores/as de sade: como podemos constituir
prticas de ao coletivas que sejam tambm normativas, e no apenas
normalizadoras?; como uma poltica de Estado pode ir alm da
individualizao culpabilizadora da populao que, ao mesmo tempo,
desresponsabiliza o Estado de suas funes?; como apostar mais na potncia
normatizadora da vida do que no poder normalizador sobre a vida?
Tatiana RammingerDoutoranda Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca,
Fundao Oswaldo [email protected]
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1 Nunca fcil escolher um jeito de contar uma histria, ou parte dela, ou elegerinterpretaes. Segundo Hochman et alli (2004), a produo histrica sobre a sade pblicana Amrica Latina um mosaico de estudos, mas pode ser organizada em trs estilosnarrativos que buscam romper com a tradicional histria da medicina: uma histriabiomdica que procura compreender a relao entre a doena e o social; uma histria dasade pblica que focaliza o Estado e as relaes entre as instituies de sade e estruturaseconmicas, sociais e polticas, com forte perspectiva estruturalista, com ou sem vismarxista (Rosen, por exemplo); e, finalmente, uma histria sociocultural da doena e dasrelaes entre medicina, conhecimento e poder, muito influenciadas pelo marcointerpretativo de Foucault.2 A poltica mercantilista consiste essencialmente em aumentar a quantidade de populaoativa, a produo de cada indivduo, estabelecendo fluxos comerciais que possibilitem aentrada no Estado da maior quantidade possvel de moeda, permitindo o pagamento dosexrcitos e de tudo que assegure a fora real de um Estado em relao aos outros(aumentar a riqueza e os poderes nacionais) (FOUCAULT, 1999c).3 O termo cameralismo tem duas conotaes. De um lado, designa as idias que aparecempara explicar, justificar e orientar as tendncias e prticas centralizadoras em polticaadministrativa e econmica de uma monarquia absolutista. De outro lado, refere-se svrias tentativas, do mesmo perodo, para efetuar, em termos da emergente cincia polticae social, uma estimativa sistemtica do funcionamento dos vrios servios administrativos,como uma base para o treinamento de funcionrios pblicos (ROSEN, 1986:33).4 Conceito introduzido por J. Gurin, em 1848: Tnhamos tido j ocasio de indicar asnumerosas relaes que existem entre a medicina e os assuntos pblicos... Apesar destasabordagens parciais e no coordenadas que tnhamos tentado incluir sob rubricas tais como
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Tatiana Ramminger
Clio-Psych Programa de Estudos e Pesquisas em Histria da Psicologia.
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polcia mdica, sade pblica e medicina legal, com o tempo estas partes separadas vierama se juntar em um todo organizado e atingir seu mais alto potencial sob a designao de
medicina social, que melhor expressa seus propsitos (GURIN apud ROSEN, 1986:49).5 Exemplos desse financiamento indireto: procedimentos mais complexos e caros que noso cobertos pelos planos de sade privados e acabam sendo realizados pelo SUS; despesasmdicas que podem ser deduzidas do Imposto de Renda; hospitais filantrpicos querecebem financiamento pblico e no pagam impostos como os privados, mas escolhemclientela e procedimentos, chegando a manter estabelecimentos separados, um privado eoutro para o SUS.6 Reao da populao Lei da Vacina Obrigatria, promulgada em 31 de outubro de 1904,que permitia que brigadas sanitrias, acompanhadas de policiais, entrassem nas casas eaplicassem a vacina contra a varola, mesmo que contra a vontade, em todos daquelaresidncia. Foram duas semanas de intenso conflito nas ruas cariocas, at o governodeclarar estado de stio e suspender a obrigatoriedade da vacina. No entanto, omovimento foi contido logo em seguida e a vacinao macia e obrigatria da populao(pobre) teve prosseguimento.7 Roudinesco (2007:44) chama ateno para o fato de que a principal obra de Canguilhemteve quatro edies sucessivas: 1943, 1950 (aumentada com um prefcio), 1966 (com umaadvertncia e um novo captulo, que introduzia importantes modificaes obra) e 1972(um adendo com retificaes e notas complementares). Em outras palavras, durante trintaanos, nunca parou de modificar sua obra inaugural, como se, a cada novo acontecimento,buscasse torn-la conforme essa tica da inverso de norma que tanto marcara seunascimento.8 Embora a fisiologia seja um fundamento cientfico da disciplina mdica, apenas a clnica suscetvel de pr a fisiologia em contato com os indivduos concretos (ROUDINESCO,2007:37).9 Trata-se do artigo Do social ao vital, que integra a terceira parte da edio de 1966 de O
normal e o Patolgico (CANGUILHEM, 2006), bem como do artigo A sade: conceito vulgare questo filosfica, originalmente publicado em 1990 (CANGUILHEM, 2005).10 PUTTINI & PEREIRA JUNIOR (2007:457) destacam que ao propor falar de umanormatividade biolgica, Canguilhem se pergunta se assim empresta s normas vitais umconceito humano; ou procura saber como a normatividade essencial se explica conscinciahumana. Sendo assim, o conceito de normatividade da vida se apresenta como sendotambm bivalente: seria um princpio ontolgico, intrnseco prpria vida, e tambm umprincpio epistemolgico, atribudo vida pelo ser humano. Para os autores, com o mesmoconceito (normatividade da vida), Canguilhem teria apontado para uma superao daoposio entre mecanicismo e vitalismo.11 Como nos explica Roudinesco (2007:36), Kurt Goldstein era psiquiatra e neurologista,tendo trabalhado nos campos da Primeira Guerra Mundial com os feridos da razo. Destaexperincia, ele concluiu que toda teoria deve apoiar-se em uma clnica, resultante daobservao direta do doente.12 Canguilhem (2005:43) cita uma entrevista de Descartes, em 1648, em Amsterd, ondeele diz confiar na retido do corpo e em seu objetivo de prolongar a vida, sendo que anatureza parece lanar o homem nas doenas apenas para que ele possa, ao super-las,tornar-se mais vlido.13
Cabe explicitar que O Nascimento da Medicina Social, datado de 1975, foi o texto emque Foucault apresentou a idia de biopoltica, posterirmente melhor desenvolvida emHistria da Sexualidade I. Posteriormente, Foucault (2006) abandonar a noo de bio-poder, como um tipo de poder que se ocupou da vida dos indivduos e das populaes,preferindo o termo governamentalidade para definir um modelo que combina,astuciosamente, tcnicas de governo (a biopoltica, por exemplo) e tcnicas de si. No
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binmio saber-poder, Foucault inclui a subjetividade, demonstrando como as polticas degoverno se estendem s formas de auto-regulao subjetiva.