De Leste a Lorosae: a década da mudança em Timor
Timor-Leste ficará na história como o primeiro Estado-nação a ser constituído no século XXI,
mais especificamente em Maio de 2002. No entanto, o caminho percorrido até à
independência e autodeterminação foi longo e penoso. Durante muitos anos, a parte oriental
da ilha de Timor pertencente ao vasto arquipélago indonésio foi o palco de um dos mais
antigos e persistentes casos de violações dos direitos humanos na história mundial
contemporânea. Timor-Leste foi invadido em 1975 e anexado no ano seguinte como a 27ª
província da Indonésia, Desde então e até bem recentemente, apesar de Resoluções das
Nações Unidas l}ne determinavam a retirada imediata das tropas indonésias e das frequentes
acusações de abusos dos direitos e liberdades básicas, a ocupação da ilha beneficiou do
reconhecimento de facto de alguns dos parceiros estratégicos ocidentais: os EUA, a Grã-
Bretanha e a França, só para mencionar alguns.
Foi somente no final da década de 1990 que as principais potências ocidentais inverteram o
seu posicionamento relativamente a Timor-Leste e romperam com o passado. O
redireccionamento político dessas potências e a subsequente atenção devotada às questões
dos direitos humanos, aliados às alterações internas na Indonésia, criaram uma janela de
oportunidade para a mudança. Até essa altura e por mais de 25 anos, Timor-Leste esteve à
mercê das reviravoltas da tealpotitík; até se tornar num Estado-nação .
. Muito antes disso, em Novembro de 1991, soldados indonésios dispararam sobre uma
multidão durante uma demonstração no cemitério de Díli matando 273 pessoas (Taylor, 1999;
Pinto, 1997). O Massacre de Díli pode ser considerado o ponto de viragem tanto na história
como na cobertura noticiosa da luta timorense, catapultando a pequena ilha do sudoeste
asiático para as páginas dos principais jornais mundiais. Pela primeira vez o mundo
apercebeu-se dos gritos de independência de Timor-Leste. Mais ainda, o episódio do cemitério
de Santa Cruz em Díli, deslocou a questão timorense da periferia para o epicentro da política
externa portuguesa.
Este capítulo apresenta uma resenha do contexto histórico contemporâneo de Timor-Leste.
Primeiro, delineia o posicionamento dos principais actores políticos relativamente à questão
timorense antes do Massacre de Novembro de 1991. Segundo, este episódio marcante na
história da antiga colónia portuguesa em particular é enquadrado e descrito em detalhe.
Terceiro, os aspectos contextuais e conjunturais à volta do Massacre são considerados em
minúcia, constituindo elementos explicativos do ponto de viragem da exposição mediática de
Timor-Leste e de como o episódio foi noticiado pela imprensa internacional. Por fim, o
presente capítulo analisa como a ocorrência simultânea de determinadas contingências de
natureza política e económica no cenário internacional, em geral, e na Indonésia e em
Portugal, em particular, facilitaram a mudança em Timor-Leste.
1 Contexto Histórico do Timor Português
Durante 450 anos Timor-Leste beneficiou de uma coabitação pacífica com a potência
dominante portuguesa. Esse relacionamento remonta a 1520, muito embora aquele território
só se tenha tornado numa província ultramarina a partir de 1896, e formalmente reconhecida
como tal desde 1926. O fim do Estado Novo em Portugal em 1974 conduziu a uma mudança
dramática na orientação política do país, com consequências também ao nível das políticas
coloniais. A postura do «orgulhosamente sós» que caracterizava o orientação da política
externa dos regimes de Salazar e Caetano, traduzia uma recusa de aceitar o inevitável
processo de descolonização, mesmo que a custo do isolamento internacional. Este foi um
aspecto primordial que impulsionou a revolução dos cravos.
Os conflitos nas colónias africanas, muito mais violentos e preocupantes, constituíram na
época a prioridade da metrópole. No caso de Timor-Leste, no entanto, as autoridades em
Lisboa preferiram uma espécie de solução de compromisso capaz de conciliar as pretensões
timorenses de autodeterminação com as intenções indonésias. Aliás, o futuro do território
timorense não era de forma nenhuma consensual no seio da classe política portuguesa.
Alguns, entre os quais Mário Soares, eram inicialmente favoráveis à integração na Indonésia
desde que essa fosse a legítima vontade dos timorenses. Outros, tais como Almeida Santos,
preconizavam que o território deveria fazer parte integrante de Portugal. A possibilidade da
independência da colónia do sudoeste asiático era considerada, na altura, como inviável. No
processo, Timor-Leste acabou por ser abandonada à sua sorte e à mercê das autoridades
indonésias.
Curiosamente, a Indonésia não tinha demonstrado anteriormente qualquer interesse notório
em Timor-Leste dado que as suas pretensões territoriais incidiam sobre as Índias Holandesas,
das quais Timor-Leste não fazia parte integrante. Bruno Beijer da embaixada da Suécia em
Jacarta admitiu que até seis meses antes da invasão não havia qualquer pretensão
integracionista por parte da Indonésia (entrevista, 1998). No mesmo sentido, um artigo de
imprensa britânico noticiava que até dois dias antes da invasão as autoridades indonésias
«reiteraram o seu apoio à descolonização pacífica e ordeira portuguesa» (The Times,
09.12.75). Não só Timor-Leste não fazia parte do território indonésio, como também não
representava o mesmo potencial em termos de riqueza e de recursos naturais como Aceh e
Irian Jaya.
Não obstante, a vitória da Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN),
um movimento de esquerda, nas eleições de Julho de 1975 com 55% dos votos e o
discurso marxista dos demais partidos locais causou receios de que Timor-Leste se
transformasse uma nova Cuba. Nesse contexto, tanto as autoridades indonésias como
os aliados ocidentais consideraram indesejável a possibilidade da independência de
Timor-Leste, dado que o surgimento de um governo de esquerda constituiria um risco de
segurança acrescido naquela região. As potências ocidentais induziram a Indonésia a agir,
pelo que Timor-Leste se converteunum alvo militar de Jacarta.
Cinco meses depois das eleições e no rescaldo de uma guerra civil provocada pelo golpe
de Estado liderado pela União Democrática Timorense (UDT) 1, e já apreensiva com a
possibilidade de uma invasão indonésia, a Fretilin declarou unilateralmente a
independência da República Democrática de Timor-Leste. Tal declaração de
independência de acordo com o diário britânico Tlie Times forneceu à Indonésia «o
pretexto formal para intervir contra a ameaça do comunismo» e levou a Jacarta a
persuadir «Portugal e a ONU a manterem-se longe do conflito» (04.11.75). Para alguns
especialistas, tais como Michael Leifer, a acção da Fretilin provocou e convidou os
indonésios a invadirem o território (entrevista, 1998).
Aproveitando o momento ele convulsão civil na antiga colónia portuguesa e incentivado
pelas potências ocidentais, a Indonésia invadiu Timor-Leste em 7 ele Dezembro de 1975.
Aquando da invasão, o governador português deixou Timor-Leste para se instalar na ilha
de Ataúro, também sob domínio de Lisboa. Tal mudança, no entanto, deve ser entendida
não como a metrópole abdicando do seu direito de potência administrante no território,
mas como uma deslocação da administração forçada pelas circunstâncias. Na verdade
Ataúro fazia parte elo território de Timor-Leste junto com o ilhéu de Jaco e o enclave de
Oecussi.
O objectivo de Jacarta consistia em alegadamente libertar o território da opressão
perpetrada pela Fretilin a pedido dos «irmãos» timorenses. A versão indonésia foi
veiculada nos comunicados de imprensa difundidos pelas agências noticiosas (France
Press, Associated Press e Reuters), quando noticiaram que Jacarta tinha enviado tropas
para «restabelecer a ordem» e «resgatar a capital de Timor-Leste do domínio da Fretilin»,
a pedido de quatro partidos pro-indonésios. Por entre outros testemunhos e versões,
constava o comunicado oficial do governo indonésio que declarava «não poder impedir
voluntários indonésios de ajudar os irmãos timorenses na luta pela libertação da opressão
da Fretilin» (The Times, 08.12.75). No entanto, a versão indonésia ocultou o facto de que
«desde Setembro desse ano se tinha dedicado ao intenso patrulhamento naval da costa
timorense de forma impedir a chegada de suprimentos para a Fretilin, enquanto treinava e
armava guerrilheiros no território» (The Times, 04.11.75 and 09.12.75). Os laços ancestrais
sanguíneos, em contra ponto com a histórica falta de interesse na antiga colónia portuguesa,
agora serviram de leitmotf para invadir Timor-Leste e como justificação para a anexação
indonésia.
Contudo, conforme aludido anteriormente, a Indonésia não agiu de sua única e exclusiva
iniciativa, antes recebeu o apoio tácito das potências ocidentais para invadir Timor-Leste. Tal
constatação é compartilhada por figuras de renome como John Taylor que sustenta que os
governos um pouco por todo o mundo estavam na disposição de anuir a ocupação indonésia
por motivos estratégicos, políticos e económicos (1999). Noam Chomsky denomina a tais
países de «cúmplices do crime», especificando o caso elos EUA e da Austrália como os
exemplos mais destacados, mas sem esquecer a inclusão «nos Estados pá rias da Grã-Bretanha
(especialmente no período de governação de Margareth Thatcher e John Major), da França, do
Japão e de muitos outros países» (1996: 171). Scott Burchill advoga mesmo que «a invasão de
Timor-Leste e a subsequente repressão ela população nativa não teriam sido possíveis sem a
cumplicidade ocidental. Os Estados Unidos da América e a Grã-Bretanha forneceram de bom
grado as armas que Jacarta necessitava para perseguir a resistência armada e matar a
população civil timorense» (2000: 169). Afinando pelo mesmo diapasão, Paul Monk assinala
que a Austrália foi avisada e aprovou a concepção e implementação ele as operações
clandestinas encetadas pela Indonésia, «Muito cedo foi informado que se a manipulação
camuflada não funcionasse, a Indonésia fomentaria a desordem no território como pretexto
para a intervenção militar. A Austrália consentiu com base numa abordagem de realpolitik do
problema, sob pena de ser exposta e denunciada (2001: 19-20). Estes países, são designados
no âmbito deste capítulo de «coligação ou aliança dos indisponíveis». Tal expressão é
empregue por contraposição à mais recente disposição internacional de agir de forma
concertada e (alegadamente) por razões humanitárias a favor de Timor-Leste. Curiosamente,
foram os mesmos actores que suscitariam a intervenção no território após a realização do
referendo de 1999, os que durante anos declinaram a resolução do problema. E não terá sido
certamente por falta de mecanismos e de capacidade para fazê-lo, dado que quando a
Indonésia submeteu à ONU uma resolução solicitando o parecer do Tribunal Internacional
acerca da legitimidade do uso de armas nucleares, em Novembro de 1993, os EUA, a França e
a Grã-Bretanha ameaçaram Jacarta com sanções e com o fim da ajuda. Tal ameaça foi decisiva
e suficiente para que a Indonésia retirasse a resolução (Chomsky, 1996: 175).
Na verdade, esta coligação preferia manter Timor-Lestc integrado no país vizinho e, em
simultâneo, conservar o relacionamento estreito com o regime de Jacarta (Burchill 200: 169;
Monk, 2001: 19-20). O motivo de tal posicionamento pro-indonésio generalizado parecia óbvio
e facilmente explicável. A postura anti-comunista da Indonésia, a mão-de-obra barata e
flexível, bem como os recursos naturais abundantes converteram-na num parceiro atraente
para as maiores potências ocidentais. Como se tal não bastasse, a disposição privilegiada do
arquipélago indonésio potenciava ainda mais a sua já considerável importância geoestratégica.
De facto o território Indonésio prolongava-se pelas principais linhas de ligação marítimas entre
a Asia Oriental, a Europa e o Médio Oriente. Na extremidade sul, localiza-se o curso de água
mais importante da região: o mar do Sul da China (Dupont, 1996: 278).
Além dos recursos naturais abundantes (tais como, o gás, o café, e as costas petrolíferas), a
metade oriental de Timor também tinha uma considerável relevância geoestratégica. A norte
da ilha, situam-se os estreitos de Ombai-Wetar, consistindo uma série de canais profundo que
permitem a passagem discreta (submersa) de submarinos nucleares entre os oceanos Pacífico
e Indico, o que a não verificar-se significaria mais oito dias para completar tal viagem de
ligação (Taylor, 1995: 26-29). As condições naturais e geográficas de Timor-Leste, ao contrário
da Indonésia, não favoreceram a ambição maubere de independência dado que o
estabelecimento de um regime comunista era tanto indesejável quanto intolerável pelos
países ocidentais num cenário de plena Guerra Fria.
O exemplo de um país em particular, um membro da coligação dos indisponíveis, é elucidativo
do posicionamento ocidental relativamente à questão maubere. Além da proximidade
geográfica, Camberra tinha uma dívida de gratidão relativamente aos timorenses que haviam
lutado junto com os australianos a fim de impedirem a invasão japonesa durante a II Guerra
Mundial (Kingsbury, 2000). No entanto, isso não foi impeditivo do apoio australiano à tomada
da ex-colónia portuguesa pela Indonésia em 1975, conforme documentos recentemente
divulgados (ainda que outros que contêm detalhes mais devastadores se mantenham em
segredo) que confirmam o erro histórico australiano (Monk, 2001: 21). A mesma dívida de
gratidão, não constituiu tampouco entrave ao reconhecimento de facto da anexação do
território timorense, três anos mais tarde (ao votar contra a resolução da Assembleia Geral da
ONU sobre Timor-Leste), bem como a sua aquiescência de jure em 1979(2).
Surpreendentemente Camberra assumiu tal reconhecimento antes de qualquer outro país e,
mais do que isso, foi o único a fazê-lo.
Uma prioridade de defesa e segurança (isto é, o receio elo poderoso vizinho indonésio) pode
ter motivado esta traição australiana, mas um outro argumento também parece ser plausível.
Um factor preponderante - secretamente enfatizado em Agosto de 1975 pelo embaixador da
Austrália em Jacarta, Richard Woolcott- consistia no facto do seu país poder «fazer um melhor
negócio de exploração das reservas de petróleo com a Indonésia do que com Portugal ou do
que com o Timor-Leste independente» (Chomsky, 1996: 200). De facto, o reconhecimento de
jure por parte da Austrália da soberania indonésia sobre Timor-Leste permitir-lhe-ia encetar as
negociações com Jacarta que conduziriam à assinatura do Tratado de Timor Gap relativo aos
recursos de petróleo e gás timorenses dez anos mais tarde (Gunn, 1997: 57-68). A promoção
do interesse nacional australiano, portanto, prevaleceu sobre valores éticos e morais, tais
como, a autodeterminação e outros direitos humanos. Scott Burchill constata que «desde a
invasão indonésia, os sucessivos governos australianos constantemente colocaram os laços
comerciais e de defesa precederam as preocupações com os direitos humanos, algo que
possibilitou o estreitamente das relações com o regime de Jacarta» (2001: 170).
O mesmo se poderia dizer de outros membros da «coligação dos indisponíveis», e da
Grã-Bretanha em particular (3). A influência dessa coligação teve ramificações no raio de acção
da ONU, bem como na falta de capacidade de iniciativa da mesma. Refém da vontade dos
membros permanentes do Conselho de Segurança (China, Rússia, Grã-Bretanha, França e EUA)
- que historicamente só tomaram uma posição por povos como o timorense quando coincidia
com os interesses ideológicos, económicos ou estratégicos - a ONU foi incapaz de prevenir ou
de pôr cobro à invasão e subsequente anexação por parte da Indonésia, Depois da tomada
pela força do território, os EUA votaram contra a resolução 389/76 o que se consubstanciaria
num veto efectivo da questão de Timor-Leste no Conselho de Segurança nos 23 anos
subsequentes (Monteiro, 2001). A ONU não pôde fazer muito mais do que repetidamente
condenar as acções indonésias nas suas resoluções da Assembleia Geral. Em Dezembro de
1976, deplorou a invasão e exigiu a retirada imediata do território português de Timor-Leste
(The Times, 23.12.76). Tal resolução, no entanto, nunca foi implementada - uma situação que
terá contribuído para a descredibilização da autoridade e da reputação ela ONU (Robinson,
1994). Desde 1982, Timor-Leste permaneceu na agenda daquela organização como uma
questão do foro dos direitos humanos, ao invés da negação do direito de autodeterminação e
do uso ilegal da força (Chinkin, 1993: 210).
Um posicionamento de alguma forma distinto seria expectável de um outro importante actor
nas relações internacionais, com envolvimento directo em Timor-Leste: o Vaticano, Os
timorenses não esperariam a negação dos valores morais e éticos (liberdade e
autodeterminação, respeito pelos direitos humanos e pela dignidade espiritual) a favor dos
interesses seculares da Igreja Católica. A diplomacia silenciosa e paliativa do Vaticano,
conjugada com a determinação de não condenar abertamente a Indonésia - algo que poderia
pôr em risco os interesses da influente comunidade católica na Indonésia - não foi benigna
para a causa timorense. Tal posicionamento assume contornos mais incompreensíveis do que
o da generalidade dos países da «coligação dos indisponíveis». No sentido em que os
interesses estratégicos da Santa Sé parecem menos inteligíveis e desculpáveis do que os
interesses económicos e geopolíticos que caracterizam normalmente a realpolitic: dos
principais países ocidentais. No caso de Timor-Leste, contudo, as semelhanças eram
indisfarçáveis. Apesar do interesse relativamente às questões dos direitos humanos e mesmo
conscientes da necessidade de ser a voz dos oprimidos, a política externa do Vaticano é
pautada pela promoção dos seus melhores interesses. Em casos como a Indonésia (à
semelhança do Chile de Pinochet), o Vaticano optou pela via do diálogo para não afectar os
interesses da comunidade católica naquele país. A situação de Timor-Leste pode ser
sintetizada da seguinte forma: foi abandonada aos esforços integracionistas do regime
indonésio; ficou dependente da benevolência de Portugal e da Igreja Católica; foi um capítulo
esquecido nas páginas dos assuntos internacionais; e, por arrastamento, transformou-se num
dos menos noticiados assuntos para a generalidade da imprensa ocidental. Em face deste
generalizado esquecimento mediático e diplomático, Timor-Leste constituía uma pedra no
sapato de toda a gente (4).
2. O massacre de Dili: enquadramento e rescaldo
Os acontecimentos que rodearam o massacre de Díli indiciam que o banho de sangue
perpetrado no cemitério de Santa Cruz não se tratou de uma ocorrência acidental e
espontânea. O episódio de 12 de Novembro tampouco foi uma casualidade isolada na história
de Timor-Leste e da Indonésia. Para além dos tumultos ocorridos em Tanjung Priok e Lampung,
outros incidentes de natureza separatistas e étnicos sucederam-se no vasto arquipélago
indonésio: em Aceh, Irian Java, nas Molucas e no Kalimantan Ocidental (principalmente
envolvendo a comunidade muçulmana). Aceh, em particular, foi o cenário da contínua
contestação à administração indonésia promovida pelo Aceh Merdeka (Movimento de
Libertação ou Frente de Libertação de Aceh) (5). Ocorrências violentas, tais como, a fome
severa e os assassínios em massa, tinham acontecido em Timor-Leste desde a invasão da
ex-colónia portuguesa em 1975. Um exemplo elucidativo é o do episódio de Kraras em
Viqueque de 1983, no qual entre 200 e 300 pessoas terão sido executadas pelas tropas
indonésias durante uma celebração, em retaliação pelo assassínio de 16 militares indonésios
uns dias antes (Taylor, 1990: 25; e Jones 1995: 50-8).
Pouco depois da anexação ocorrida em 1976, foram impostas restrições de acesso de cidadãos
estrangeiros ao território. Na verdade, e até 1989, Timor-Leste permaneceu vedado a
visitantes externos e teve de lidar com fenómenos como a guerra, a violência brutal e o medo
(Vatikiotis, 1992: 184). A partir dessa altura, Jacarta permitiu a abertura do território ao
exterior. Dentre os muitos motivos que poderão ter justificado a decisão indonésia importa
destacar os seguintes: a vontade de melhorar a imagem internacional com a aproximação da
presidência do Movimento dos Não Alinhados (depois do falhanço em 1988-89) (6); a
necessidade de demonstrar à comunidade internacional que não havia nada a ocultar, de
forma a conseguir que o assunto de Timor-Leste fosse removido definitivamente da agenda da
ONU; um subterfúgio para atrair maior investimento privado e estrangeiro (Liong, 1995: 65); a
manifestação de uma atitude orgulhosa e de prematura e excessiva auto-confiança patenteada
pelas autoridades indonésias (7); a tentativa de desacreditar o principal mentor da invasão de
Timor-Leste (8), Benny Murdani, que se assumia agora como um adversário político do
presidente Suharto (9), ou um esforço para denegrir a reputação de Suharto e sabotar as
manobras eleitorais do Presidente (10), Qualquer que tenha sido o motivo ou os motivos, o
que é certo é que Timor foi declarada uma província aberta em Dezembro de 1988,
inaugurando um período de keterbuknan, ainda que se tratando de uma abertura relativa.
Consequentemente, as restrições de viagem foram levantadas e a presença militar no
território reavaliada.
Este status quo provisório e indefinido, que se manteria até 1991, foi desafiado por três
importantes acontecimentos, Primeiro, em Outubro de 1989, durante uma visita papal de seis
horas de duração ao território, gritos audíveis e slogans visíveis a favor da independência
marcaram os protestos de índole pacífica dos timorenses. Segundo, em Janeiro de 1990,
aquando da passagem do embaixador americano John Monjo pela ex-colónia portuguesa,
cerca de 150 estudantes manifestaram-se defronte ao hotel onde ele estava albergado e
foram silenciados pelas forças de segurança indonésias, resultando alegadamente na morte de
dois timorenses. Por fim, em Setembro desse mesmo ano, após a celebração de uma missa
pelo Núncio Apostólico em Jacarta para comemorar o 50º aniversário da Sé de Dili, os
timorenses manifestaram-se novamente a favor da auto-determinação e independência. Como
efeito prático do somatório destes três episódios, Jacarta foi forçada a reequacionar a
decisão inicial relativamente à política de maior abertura para o território.
Em 1991, no contexto de uma negociação de sete anos entre a Indonésia e Portugal, foi
acordada a visita de 10 a 12 dias de duração de uma delegação parlamentar portuguesa. No
entanto, tal visita, prevista inicialmente para o dia 4 de Novembro, teve de enfrentar a férrea
oposição das forças armadas Indonésias (11), e acabou por ser posta em causa devido a
receios em [acarta de que protestos semelhantes aos que tiveram lugar em 1989 e 1990
voltassem a ocorrer.
Durante os preparativos para a visita da delegação portuguesa Jacarta ordenou o envio de
mais tropas indonésias para o território, de forma a prevenir e evitar sublevações adicionais.
Concomitantemente, uma nova operação com o nome-código Águia (Operasi Elang) foi
implementada com vista à antecipação dos movimentos da frente clandestina timorense. Mais
tarde, os responsáveis indonésios formularam exigências adicionais àquelas que tinham estado
na base do acordo como condição para a realização da visita. Começaram por exigir que todas
as fotografias tiradas no território durante a visita fossem enviadas para o exterior via Jacarta.
Posteriormente, impediram a inclusão de uma jornalista australiana, Jill Jollife, no elenco da
delegação. De acordo com o relato de Adam Schwarz, tinha ficado estipulado a integração de
10 jornalistas portugueses e seis estrangeiros na comitiva, cujos nomes deveriam ser
comunicados com três semanas de antecedência. A objecção da presença da jornalista
australiana residente em Lisboa prendeu-se com o facto de ter escrito durante anos de forma
crítica sobre Timor-Leste. O Ministro dos Negócios Estrangeiros Ali Alatas descreveu-a como
«uma propagandista da Fretilin, o braço armado da luta pela independência em Timor-Leste»
(Far Eastern Economic Review, 07.11.91).
Portugal rejeitou estes requisitos de última hora (12) e em 24 de Outubro anunciava a
«suspensão» da missão. Oficialmente, o pretexto estava relacionado com as supra-citadas
exigências e manobras moratórias indonésias, ainda que no seio do círculo político interno
também prevalecesse o receio de que a visita pudesse resultar na morte de muitos timorenses
(JN, 14.11.91). O cancelamento da visita portuguesa motivou a consternação e desilusão nas
populações timorenses, mas não resultou em nenhuma forma de protesto público ou violência
imediata. De qualquer forma, Claire Bolderson, correspondente da BBC e do Financial Times
em Jacarta, estava em Timor-Leste nessa altura e pôde aperceber-se da tensão existente
tendo, a propósito, partilhado com vários diplomatas ocidentais que «algo estaria prestes a
ocorrer» (entrevista, 2004).
Alguns dias mais tarde, a 28 de Outubro, um esquadrão ninja do exército indonésio invadiu a
Igreja de Motael, em Díli, matando Afonso Henriques e Sebastião Gomes, e prendendo alguns
outros jovens que estavam refugiados naquele local há cerca de um ano. Algumas versões
oficiais apresentaram a ocorrência como tratando-se de um confronto entre facções
pro-independentistas e pro-indonésios no exterior da igreja, o que motivara a intervenção e
entrada das tropas no edifício religioso. Versões de fontes alternativas, no entanto, asseguram
que se tratou de mais uma manobra orquestrada e incitada por pessoal militar indonésio à
paisana (Jones, 1995: 56-7). Esta última versão é confirmada tanto na reportagem de Adam
Schwarz - que refere que uma das vítimas, alegadamente pertencente a um grupo
pro-indonésio, era efectivamente um agente dos serviços secretos a soldo do exér- cito - como
pelo testemunho do bispo Carlos Ximenes Belo (Far Easteni Econotnic Review, 18.11.91) (13).
Em memória de Sebastião Gomes foi celebrada uma missa no dia 12 de Novembro de 1991 no
local onde ele morreu, seguida de uma procissão até ao cemitério de Díli. Esta cerimónia
religiosa transformar-se-ia num dos mais violentos incidentes na ex-colónia portuguesa desde
a invasão, quando os soldados indonésios dispararam sobre uma multidão congregada no
interior do cemitério.
Ao contrário de outras ocasiões, neste caso os disparos das automáticas M-16 foram ouvidos
um pouco por toda a parte no mundo ocidental. Dissemelhante a ocorrências anteriores, desta
feita o incidente ficou registado em suporte de vídeo.
Na verdade, o realizador britânico Max Stahl, que sorrateiramente tinha entrado no território
com câmaras ocultas com o intuito de filmar a dramática chegada da delegação portuguesa
após tantos anos de ocupação indonésia, acabou por filmar o massacre de Díli (entrevista,
1998).
Não obstante a disposição da família da vítima de evitar qualquer conotação ou
aproveitamento político na procissão, a resistência timorense achou que aquele seria o
momento indicado para proceder a uma demonstração de protesto (Jonsson entrevista, 1999).
Ciente da presença no território de jornalistas estrangeiros, bem como do Representante
Especial para a Tortura das Nações Unidas, Pieter Kooijmans (14), o líder da resistência
maubere, Xanana Gusmão, convocou a comparência dos jornalistas na demonstração. O
intuito da convocatória era o de constituir um elemento dissuasor de uma eventual
intervenção das forças indonésias, dado que todas as manifestações anteriores tinham
resultado numa intervenção ou carga policial, ainda que nunca antes numa cerimónia religiosa
(Stahl entrevista 1998). Nesse sentido, Max Stahl aceita que, de alguma forma, os Timorenses
tenham encenado a demonstração para as câmaras (ibid.).
Alguns autores acreditam que os timorenses sabiam de antemão que as forças indonésias
estariam preparadas e dispostas a agir, da mesma forma que Jacarta não poderia desconhecer
os preparativos para a demonstração de 12 de Novembro (15). Nesse sentido foi até mesmo
avançada a hipótese do Massacre de Díli ter sido uma resposta propositada dos comandantes
locais frustrados pela resiliência e pelo reconhecimento internacional da resistência maubere
(Taylor, 1995: 28-9). Para Bob Muntz, responsável do projecto da Community Abroad (uma
agência de desenvolvimento estrangeiro australiana), a acção indonésia não foi provocada,
antes premeditada e bem orquestrada. O padre Stefani entrevistado por Hugh O'Shaughnessy
do The Observer descreveu os acontecimentos como «um massacre e uma operação militar
meticulosamente planeada para eliminar os principais contestatários da Indonésia» (17.11.91).
Por fim, outros asseveram que nem os protestos foram planeados, nem a reacção indonésia foi
deliberada (Jonsson entrevista, 1999).
No que concerne às circunstâncias que envolveram o Massacre de Díli, testemunhos oculares
incluindo os de jornalistas estrangeiros, indicaram que não houve nenhum tipo de provocação.
Alguns elementos presentes no cortejo fúnebre limitaram-se a desfraldar bandeiras a favor da
independência e a ecoar alguns slogans a respeito do direito de auto-determinação. O
fotógrafo britânico Stephen Cox declarou que os soldados indonésios dispararam directamente
contra a multidão sem qualquer aviso prévio. Amy Goodman, ao serviço da estação American
Pacifica Radio, corroborou os demais testemunhos ao asseverar que os soldados indonésios
abriram fogo sobre pessoas indefesas que não tinham mais do que alguns cartazes e a cruz
comemorativa da morte do Sebastião. Allan Nairn, em representação da revista New Yorker,
assinalou que para além de ter morto uma centena de homens, mulheres e crianças indefesas,
os soldados também perseguiram jovens timorenses a quem abateram pelas costas.
Os indonésios rejeitaram as críticas de violações dos direitos humanos e definiram o incidente
como sendo um assunto do foro interno. Aliás, a terminologia frequentemente empregue por
Jacarta para designar os acontecimentos de Santa Cruz foi «incidente», não «massacre» ou
«chacina». O primeiro comunicado oficial por parte do exército indonésio dava conta de uma
sublevação em Díli, fomentada por membros incitados e influenciados pelos remanescentes da
Fretilin e outros grupos separatistas na Indonésia (Ryter, 1991). A versão indonésia consistia
em «milhares de jovens timorenses em protesto contra a anexação que desafiaram as forças
da autoridade munidos de facas, bastões e pedras, tendo dezenas de manifestantes sido dados
como mortos» (lnside Indonésia, 12.91) (16). De acordo com as forças armadas indonésias
depois dos soldados terem tentado infrutiferamente dispersar a multidão e de terem sido
atacados o incidente foi ínevítável. (17)
O General Try Sustrino, chefe das forças armadas e porta-voz de Jacarta, ao invés de assumir
qualquer responsabilidade das autoridades indonésias disparou a culpa em todas as direcções.
Mesmo que em clara contradição com algumas vozes dissonantes no seio do exército, tais
como as do comandante da zona de Udayana Sintong Panjaítan admitindo que «o mundo
inteiro está a apontar para nós. Eu aceito e lamento isso». Também o comandante operacional
indonésio em Timor, Rudolf Warouw, reconheceu que os seus homens tinham agido
erroneamente (The Guardian, 15.11.91). Try Sustrino preferiu culpar a Fretilin e elementos
estrangeiros, incluindo as ONG, pelo incidente e alegou que as tropas agiram em legítima
defesa. Adicionalmente, não só justificou os dispares dos seus homens, como expressou a
disposição de exterminar tanto os envolvidos no episódio do cemitério, como quem quer que
ousasse perturbar a estabilidade (ibid.). Paradoxalmente o general acabou por admitir que a
acção militar indonésia teria resultado de um mal-entendido, isto é, da má interpretação de
uma ordem.
O presidente Suharto, por seu turno, referiu-se aos incidentes de Novembro como sendo uma
questão menor, exagerada pelos países e imprensa ocidentais. (18)
Ali Alatas afinou inicialmente pelo mesmo diapasão ao classificar como deplorável a cobertura
noticiosa enviesada elos acontecimentos. Posteriormente o Ministro elos Negócios
Estrangeiros indonésio optou por uma postura mais moderada argumentando que o governo
não tinha ordenado nem consentido os disparos. Por fim, acabou por lamentar o episódio e
demonstrou disponibilidade da parte de Jacarta para investigar o sucedido (The Guardian, 15 e
18.11.91).
Quatro anos após o massacre, a divulgação de um documento militar secreto datado de 6 de
Abril de 1992 revelava que dois oficiais indonésios de topo conheciam em detalhe as
operações que resultaram na matança de Santa Cruz (Balowski, 1995). Na mesma altura, o
representante especial elo Conselho Nacional da Resistência Maubere (CNRM), José
Ramos-Horta, denunciava ter conhecimento de ordens oficiais emitidas pelo General Try
Sustrino, ao comandante operacional de Díli para empregar o uso da força no dia 12 ele
Novembro ele 1991. Tais ordens de comando, emitidas três semanas antes do massacre,
foram renovadas 24 horas antes elos trágicos acontecimentos (Ramos-Horta, 1995: 70). Do
mesmo modo, o Relator Especial Bacre Waly Ndiaye concluiu no seu relatório que tinha razões
para acreditar que «as acções das forças de segurança não foram uma reacção espontânea a
um desacato civil, antes uma planeada acção militar concebida para lidar com uma
manifestação civil em violação dos padrões de direitos humanos internacionais» (Krieger,
1996: 133).
Ao nível oficial, a Indonésia insistiu na versão de um acontecimento doméstico no qual os
países estrangeiros não se deviam imiscuir, uma vez que envolvia a soberania de um Estado
independente. Por exemplo, Benny Murdani recusou a proposta da ONU para a realização de
uma investigação independente sobre o massacre ele Díli, afirmando justamente tratar-se de
um assunto do fora interno.
Da mesma forma, a proposta australiana ele envio de uma força de manutenção de paz para o
território de Timor-Leste foi liminarmente recusada por Murdani, que objectou contra
qualquer tipo de interferência sob o pretexto de «que há um limite relativamente aos jogos
políticos que a Indonésia pode tolerar da parte de países terceiros ... se não há guerra em
Timor-Leste, porquê o envio de uma força de paz?» (Ryter, 1991).
Apesar das tentativas de silenciar o assunto, pressões do exterior forçaram o presidente
Suharto a nomear uma Comissão Nacional de Inquérito. A constituição desta Comissão
constituiu uma decisão sem precedentes nos 26 anos da governação do presidente indonésio.
E isso sucedeu apesar do exército ter também constituído a sua própria equipa de
investigação, denominada Conselho da Honra Militar, o que não deixa de ser revelador da
fractura então existente entre as forças armadas e o governo.
O relatório final da Comissão Nacional de Inquérito foi entregue em primeira-mão ao
presidente Suharto. Apesar de presumivelmente nunca ter sido publicado, a versão preliminar
contradizia a versão militar quanto ao número de vítimas e considerava o comportamento dos
militares como «tendo excedido as normas aceitáveis» com «disparas excessivos contra os
manifestantes (Far Eastern Economic Review, 1993 Yearbook: 130). Ainda, de acordo com o
mesmo relatório, nove soldados e um elemento das forças policiais estiveram envolvidos, e
seis oficiais superiores, incluindo o comandante da destacamento de Bali responsável por
Timor-Leste, foram incriminados (Sherlock, 1996). Consequentemente esses oficiais foram
dispensados, três deles demitidos do exército e os restantes removidos dos cargos que
ocupavam. (19)
No círculo doméstico, perpassou a ideia de que Suharto teria corrido um risco considerável de
uma revolta ao sacrificar oficiais superiores e disciplinar publicamente o apparatus militar. No
entanto, outros qualificaram a tomada de decisão do presidente como uma mudança
«cosmética» para satisfazer as exigências dos países ocidentais para que uma investigação
fosse levada a cabo e os responsáveis punidos. Dessa forma, o regime indonésio poderia
recuperar a credibilidades aos olhos dos principais países doadores de fundos.
As conclusões constantes no relatório preliminar da Comissão Nacional de Inquérito, que
atestavam não se ter tratado de uma acção ordenada pelo governo ou pelas forças armadas,
seriam amplamente contestadas. A comissão dos Direitos Humanos da ONU, na sua resolução
1993/97 relativa a Timor-Leste, lamentou que as investigações às acções dos elementos do
pessoal de segurança em Novembro de 1991, não tenham sido capazes de identificar
claramente os responsáveis pelas perdas de vidas, ferimentos e desaparecimentos; e também
expressou consternação pela falta de informação acerca do número de pessoas; mortas
(Krieger, 1996). As autoridades indonésias apenas identificaram uma das vítimas mortais:
Kamal Bamadhaj, um neo-zelandês que foi formalmente reconhecido. No balanço dos mortos,
os números apontados eram amplamente contraditórios. Inicialmente a Indonésia colocou a
fasquia de mortos nos 50, mas posteriormente esta seria reduzida para 19. Testemunhas
oculares, incluindo jornalistas ocidentais, aludiram a mais de 100 vítimas. Abílio Osório, o
governador de Timor-Leste, foi citado no Forum Keadilan alegando que pelo menos 200
pessoas teriam falecido (Goderbauer, 1993: 142). A dada altura, as cifras oficiais indonésias
apesar de inusitadas eram de fácil memorização: 19 mortos, 91 feridos e 90 desaparecidos. A
cifra definitiva, contudo, nunca foi estabelecida. Em Julho de 1994, um comunicado da Human.
Rights Watch ao Comité de Descolonização da ONU, reconhecia a ausência de qualquer
progresso na tarefa de determinar o número de desaparecidos após o massacre de Díli.
Em vista do número indeterminado de execuções extra-judiciais, que nunca foi objecto de uma
investigação apurada após o massacre de Díli, poder-se-ia concluir que mesmo à data de hoje
não é possível quantificar com exactidão o número de mortos, feridos ou desaparecidos no
episódio. Curiosamente, uma situação semelhante tinha ocorrido em Setembro de 1984,
quando tropas indonésias disparam sobre um grupo muçulmano em Tanjunk Priok, na zona
portuária de Jacarta. Não foi encetado qualquer investigação e o governo estimou as perdas
humanas em 30 enquanto que observadores independentes apontavam para mais de 100
(Goderbauer, 1993: 144). (20)
Tal como salientado anteriormente, Jacarta tinha uma interpretação diametralmente oposta
dos incidentes, que terão ocorrido numa altura inoportuna em termos das relações externas
da Indonésia. O massacre de Díli ensombrou a prospectiva presidência indonésia do
Movimento dos Não-Alinhados para o triénio de 1992-95, em substituição da ex-Jugoslávia.
Também condicionou a possibilidade de Jacarta obter o reconhecimento internacional das
suas pretensões relativamente a Timor-Leste.
Os acontecimentos de 12 de Novembro confrontaram o presidente Suharto com a necessidade
de mitigar os efeitos negativos dos incidentes no cenário internacional e, em especial, junto
dos principais países doadores. A Indonésia naquela altura dependia largamente da ajuda
externa, tal como fica demonstrado numa breve análise do ano fiscal de 1991-2, período
durante o qual Jacarta recebeu cerca de $4.7 bilhões, proveniente de várias fontes, o
equivalente a 20% do orçamento anual.
O Massacre de Díli tampouco foi abonatório para a reputação de Ali Alaras. Após ter
participado nas negociações de paz no Cambodja, o Ministro dos Negócios Estrangeiros
indonésio posicionava-se para se tornar no próximo Secretário-Geral da ONU. Os esforços de
Alatas para melhorar a imagem internacional da Indonésia e para promover uma visão mais
transparente de Timor-Leste foram postos em causa pelo incidente de Santa Cruz. Por fim, a
nível interno, o Massacre hipotecou o estatuto de candidato presidencial de Sustrino, como
sucessor de Suharto. Ao contrário, do que chegou a ser inicialmente ventilado, Sustrino não
tirou dividendos no curto prazo do episódio de Díli.
A violência e o desrespeito pelos direitos humanos não cessaram com o Massacre. Pouco
depois dos acontecimentos de Díli, o Major Sintong Panjaitan afirmou aos microfones da
Reuters que a «Operação Sorriso», num espírito de abertura, seria substituída pela «Operação
Combate», concebida para obliterar a resistência timorense. Para esse fim, o governo de
Jacarta substituiu a liderança militar conotada com a anterior abordagem de glasnost. H. S.
Mantiri foi nomeado para suceder o Major General Sintong Panjaitan, enquanto o Brigadeiro
General Theo Syafei foi nomeado o novo comandante em Díli, após o Massacre. Abílio José
Osório Soares substituiu Mário Carrascalão no cargo de governador de Timor-Leste.
Paralelamente, tanto a Cruz Vermelha como outras organizações humanitárias foram
impedidas de aceder ao território, uma decisão com alcance sine die. Em 26 de Fevereiro de
1992, foi decretada a proibição de acesso de jornalistas estrangeiros a Timor-Leste e a
atribuição dos surat jalan (visas de circulação) suspensa. Somente jornalistas indonésios ou
repórteres residentes em Díli, que não estivessem ao serviço de agências noticiosas
estrangeiras, podiam aceder à antiga colónia portuguesa.
3 O ponto de viragem
Como aludido no início deste capítulo, esta secção explica a razão pela qual o Massacre de Díli
representou um marco histórico assinalável tanto em termos da visibilidade internacional da
questão de Timor-Leste, como da sua exposição mediática na generalidade da imprensa
ocidental.
A chacina do cemitério de Santa Cruz constituiu inegavelmente um ponto de viragem no que
concerne à exposição internacional da questão timorense (Ramos-Horta, 1995). Na verdade,
esta é uma ideia consensual entre todos os entrevistados no âmbito deste trabalho. Por
exemplo, Anne Booth, especialista em política indonésia contemporânea, considera o
massacre de Díli como o factor mais decisivo em termos da sensibilização da comunidade
internacional. A académica justifica o raciocínio com base na constatação de que antes do
massacre os indonésios esperavam que Timor-Leste desaparecesse definitivamente como
assunto da agenda internacional e que o território fosse reconhecido pela ONU como
pertencendo à Indonésia (Booth entrevista, 1998; and The Economist, 16.11.91). Gabriel
Jonsson, académico e activista presidindo ao SwedishOsttimor Kommiten (um dos grupos de
apoio à causa timorense espalhados por todo o mundo) não tem qualquer dúvida em
considerar o massacre de Díli como o evento mais importante da história recente de
Timor-Leste. De outra forma, a luta timorense ter-se-ia perpetuado para sempre e não teria
atingido a psyche da comunidade internacional (entrevista,1999). O Ministro dos Negócios
Estrangeiros português de então, João Deus Pinheiro, está convencido que caso o massacre
não tivesse ocorrido Timor nunca seria um estado independente (entrevista, 2000). Por último,
o assessor de imprensa da Amnistia Internacional em Londres, Ríchard Bunting, considera que
o episódio no cemitério de Santa Cruz chamou a atenção pela primeira vez para Timor-Leste e
elevou a questão como um assunto autónomo de persistente violação de direitos humanos
(entrevista, 1998). (21)
O Massacre de Díli também constituiu um marco no que respeita à relevância noticiosa da
cobertura mediática ocidental. Antes do Massacre, Timor-Leste nunca tinha constado no menu
do noticiário internacional, com a excepção do período que mediou a revolução dos Cravos em
Portugal (Abril 1974) e a invasão de Timor-Leste (Dezembro de 1975) durante o qual a atenção
mediática foi significativa. Na altura, a possibilidade de Timor se tornar num Estado
independente ou de ser incorporado na Indonésia motivou o interesse dos média ocidentais.
No entanto, a invasão assinalou um declínio na cobertura, sendo que uma explicação plausível
para o decréscimo possa ter sido a expulsão de todos os estrangeiros do território - inclusive
jornalistas - após a tomada indonésia da ex-colónia portuguesa. Tal como Herman assinala, as
reportagens sobre Timor-Leste eram extremamente escassas e diminuíram à medida que as
violentas incursões indonésias aumentavam em intensidade; os textos eram vagos quanto às
alegadas mortes e eram desprovidos de qualquer expressão de indignação; e não empregavam
a expressão «genocídio» (1985: 191).
Ao longo dos últimos 25 anos verificou-se uma cobertura intermitente e casual na imprensa
ocidental. Interesse sustentado, só foi patenteado pela imprensa australiana, dada a
proximidade geográfica e a existência de uma comunidade de refugiados timorenses
instalados naquele país; e, em especial, pela imprensa portuguesa, devido ao passado colonial
e às estreitas e persistentes ligações culturais.
O episódio de Novembro de 1991 concedeu visibilidade a Timor-Leste enquanto assunto
internacional e emancipou-o da Indonésia, constituindo desde essa altura um tema por direito
próprio. Pela primeira vez, a ex-colónia portuguesa teve honras de primeira página e
estabeleceu um precedente na mente dos editores e repórteres (Andersson entrevista, 1999).
Os dois factores decisivos para tal protagonismo foram: a presença de jornalistas ocidentais no
território aquando do massacre - Allan Nairn. Amy Goodman, Saskia Kouwenberg, Max Stahl,
Russel Andersson e Stephen Cox - e a existência de imagens do episódio. Na verdade, e pela
primeira vez, desde a invasão, incidentes em Timor-Leste tinham sido filmados. Max Stahl não
só registou alguns momentos do massacre como logrou enviar sorrateiramente uma cassete
de três minutos para fora do país. O operador britânico solicitou ao representante da ONU,
Pieter Kooijmans, que fosse o portador da cassete, mas foi confrontado com a recusa do
holandês. Posteriormente, uma jornalista com a mesma nacionalidade, Saskia Kouwenberg,
também recusou fazê-lo por receio de ser descoberta, pelo que teve de ser o padre Renato
Stefani a transportar a cassete para o exterior do território (Stahl, 1998). As imagens não
editadas consistiam em grandes planos de avalanches de pessoas a correrem em pânico
através do cemitério tendo como barulho de fundo disparos de metralhadora e sirenes, bem
como as vozes de mulheres visivelmente perturbadas que rezavam alto em português. Talvez a
mais contundente das imagens tenha sido a de um plano fechado de um timorense ferido,
ensanguentado e em sofrimento nos braços de um antigo. As imagens foram prontamente
veiculadas em Portugal no dia 18 de Novembro e posteriormente transmitidas um pouco por
todo o mundo. Como é consensualmente aceite, a existência de imagens e a sua rápida difusão
no exterior, incluindo a Grã-Bretanha onde o Massacre mereceu uma cobertura sem
precedentes de 20 minutos no boletim diário do dia 28 de Novembro da ITV - foi fundamental
para tornar os incidentes no cemitério de Santa Cruz noticiáveis (Carey entrevista, 1998;
Bunting entrevista, 1998).
O registo visual atestava a versão dos jornalistas ocidentais presentes em Díli. Igualmente
importante, as imagens contrariaram os melhores esforços de Camberra, Londres e
Washington de manter Timor-Leste de fora da agenda diplomática internacional (Kingsbury,
2000: 172-3). As imagens pungentes motivaram a produção de dois documentários e incitaram
ao activismo internacional. Na verdade, a violência do massacre associada ao impacto das
imagens captou a atenção mundial para uma realidade no território que havia sido ocultada
durante décadas. Desta forma, o massacre literal e metaforicamente colocou Timor-Leste no
mapa-mundo (Kimura and Kheng, 1997).
Poder-se-ia argumentar que o massacre só mereceu o destaque mediático porque não havia
mais nada significativo no menu noticioso desse período. Contudo, uma análise da imprensa
escrita nessa altura revela que o fim da Guerra do Golfo, a desintegração da União Soviética e
o conflito nos Balcãs rivalizaram com o massacre de Díli pela atenção mediática do noticiário
internacional. Até mesmo na Ásia, o processo de paz no Cambodja estava nessa altura em
foco, após a assinatura do acordo em Paris, em Outubro, e o regresso do príncipe Norodom
Sihanouk depois de 13 anos no exílio. Além disso, a proximidade dos 50 anos da dolorosa
memória de Pearl Harbour, bem como, os dois tufões que abalaram as Filipinas, receberam
cobertura mais extensa que o massacre de Díli. O primeiro desses tufões provocou a morte de
5000 pessoas. O segundo, de natureza política, foi causado pelo regresso ao país de Imelda
Marcos que gerou uma onda de apoio popular na véspera das eleições presidenciais no país.
De qualquer forma, o que é inegável é que o massacre de Díli provavelmente não teria
merecido a atenção mediática caso não contivesse os ingredientes de um acontecimento
noticiável. Tratava-se desde logo de um episódio dramático, envolvendo o derramamento de
sangue, algo que sempre afecta e promove sentimentos de empatia nas audiências (Booth
entrevista, 1998; Andersson entrevista, 1999).
Mesmo não tendo sido o protagonista noticioso do período em questão, e apesar do
desconhecimento internacional da questão maubere, o massacre de Díli mereceu cobertura
mediática sem precedentes por mérito próprio.
Dois eventos conjunturais merecem atenção detalhada dado que aparecem no noticiário,
estavam relacionados com a cobertura e foram considerados durante as entrevistas encetadas
no âmbito deste trabalho: o fim da Guerra Fria e a Guerra do Golfo. Durante décadas o conflito
de Timor-Leste esteve subordinado ao calculismo ocidental da Guerra Fria relacionado com a
edificação de uma Indonésia forte na sua condição de Estado tampão da expansão do
comunismo no sudoeste asiático. À medida que a sombra da rivalidade Este-Oeste se
desvanecia na região da Ásia-Pacífico, a lndonésia perdeu algum desse valor estratégico
enquanto aliado ocidental. Ao mesmo tempo, assuntos tais como a auto-determinação, o
ambiente, o tráfico de droga e o terrorismo apareciam com maior frequência na agenda
internacional dada a acepção mais abrangente da segurança. Consequentemente, havia agora
mais margem de manobra para críticas por parte das potências ocidentais aos
comportamentos desviantes de Jacarta no domínio dos direitos humanos. O impacto do
colapso do antagonismo político-ideológico entre o capitalismo e o bloco comunista na saga
timorense, contudo, gera alguma controvérsia entre os especialistas na matéria. Enquanto
Peter Carey advoga que tal mudança fundamental no cenário internacional constituiu o factor
contemporâneo mais decisivo na luta maubere (entrevista, 1998), Anne Booth discorda e
contesta esta relevância. Para Both os assuntos dos direitos humanos já integravam a agenda
internacional mesmo antes do fim da Guerra Fria (entrevista, 1998).
Um ano antes do término da Guerra Fria, irrompeu a crise no Golfo Pérsico quando o lraque
invadiu o Kuwait e o declarou como parte integrante do seu território. Semelhanças com o
caso de Timor-Leste e a denúncia sobre a dualidade de critérios emergiram como evidências
da hipocrisia que caracterizava das intervenções dos países influentes nos assuntos
internacionais. Os timorenses esperavamque a atitude evidenciada pelos aliados ocidentais
relativamente ao. Kuwait durante a «Tempestade do Deserto» por extensão beneficiasse a sua
nação.
Bruno Beijer manifestou alguma cautela em co.mparar os dois casos por constatar que apesar
de algumas semelhanças em termos morais, no que concerne à reallpolitik as diferenças são
substanciais (1999). Enquanto. «o petróleo e a zona geoestratégica envolvida [i.e. Kuwait e
Iraque] justificavam uma reacção vigorosa», no caso de Timor-Leste «nenhuma resolução nem
nenhum tipo de embargo contra a Indonésia foi implementado (entrevista, 1999). A
comunidade internacional pretendia assegurar a observância do direito de auto-determinação
dos Timorenses sem hipotecar o. bom relacionamento com uma parceiro estratégico regional
(ibid.). (22) James Dunn também se concentrou no contraste entre o Kuwait e Timor-Leste
constatando que a ex-colónia portuguesa «não estava na convergência do relacionamento
entre as superpotências; não constituía uma prioridade política, estratégica ou económica para
a União Soviética ou a China» (1995: 7).
4 O redireccionamento da comunidade internacional no pós-massacre
Parece indisputável que o massacre de Díli amplificou a questão de Timor-Leste, colocando a
ex-colónia portuguesa no mapa mediático e diplomático. Em resultado disso, o assunto
reapareceu ocasionalmente nos fóruns internacionais e na imprensa mundial, muito embora
uma solução para o diferendo continuasse longe da vista. Na verdade, a ex-colónia portuguesa
teve de aguardar pela ocorrência simultânea de condições específicas para que se quebrasse o
impasse relativo às suas antigas pretensões. Entre os factores que facilitaram a mudança,
encontram-se a alteração do interesse da comunidade internacional, as mudanças políticas e
económicas ocorridas na Indonésia e a reconciliação portuguesa com a sua ex-colónia.
Antes de elucidar corno isto ocorreu, seria de todo injusto não destacar que a ocupação
indonésia enfrentou desde o início uma resistência armada e resoluta, à custa de 200 000 vidas
timorenses. (23) Somente a resistência, e a Fretilin em particular, como excepção à regra, não
sucumbiram ao esforço ele perpetuar uma luta determinada para manter o assunto de
Timor-Leste vivo. Um outro partido timorense, a UDT, aliou-se à Indonésia e até 1986 defendia
a integração de Timor-Leste. (24) Desde então, desapontada com Jacarta, esta facção política
assinou um acordo com a Fretilin que conduziu à formação de uma frente conjunta de luta
contra a ocupação indonésia: o Conselho Nacional de Resistência Maubere. Mais tarde, em
1997, a coligação dos grupos timorenses (incluindo por exemplo a Fretilin e a UDT) deu origem
ao Conselho da Resistência Nacional Maubere.
Além da resistência militar e civil, outros elementos estiveram envolvidos na sobrevivência da
identidade nacional timorense. Apesar da posição oficial do Vaticano se ter caracterizado pela
aceitação do status quo, membros da igreja católica local contribuíram de forma decisiva para
a preservação da identidade cultural e religiosa (por exemplo ao adoptarem o tétum como
língua litúrgica). Esse foi o caso do Monsenhor Carlos Ximenes Belo que se converteu num
aliado da resistência e no mediador privilegiado com a Indonésia. O seu antecessor Monsenhor
Martinho da Costa Lopes tinha denunciado as práticas de genocídio dos indonésios em
Timor-Leste, algo que alegadamente terá estado na sua destituição, por parte do Vaticano, a
favor de Belo, com o intuito de facilitar a integração da ex-colónia portuguesa na Indonésia
(Gomes, 1995). Após o massacre, Belo cautelosamente suscitou a possibilidade de realização
de um referendo sobre o futuro de Timor-Leste. Nos anos que se seguiram, ele assumiu-se
como um defensor activo da defesa dos direitos humanos timorenses e um opositor ferrenho
da ocupação indonésia (Kingsbury, 2000: 25).
A outro nível, as resoluções tanto da Assembleia Geral como do Conselho de Segurança da
ONU (Gunn, 1997: 107-12), considerando a integração indonésia como ilegal e reconhecendo
continuamente Portugal como potência administrante do território, revelar-se-iam decisivas
para o futuro de Timor-Leste e para a credibilidade da própria organização. Na verdade, a
atribuição do estatuto de território não-autónomo a Timor-Leste foi de importância
primordial. Permitiu, numa fase inicial, às autoridades portuguesas e aos timorenses
empreenderem a sua campanha conjunta pela causa comum e, posteriormente, legitimaria a
intervenção da comunidade internacional. Mesmo enfrentado a falta de vontade política das
maiores potencias (isto é da «coligação dos indisponíveis») em implementar as suas repetidas
resoluções, a ONU logrou preservar na sua agenda o processo inacabado de Timor-Leste ao
longo dos anos, demarcando legalmente o assunto. De 1983 a 1991, sob os auspícios de Perez
de Cuellar, a ONU promoveu negociações entre a Indonésia e Portugal sobre Timor-Leste. No
final dos anos 90, já sob a diplomacia inovadora de Kofi Annan, a ONU contribuiu para
formulação de uma solução definitiva para a questão maubere.
Portugal, a antiga potência colonial, afinou o seu posicionamento relativo à questão da sua
ex-colónia na década de 1980: Timor-Leste deixou de ser apenas uma referência marginal nos
sucessivos programas governamentais para constituir uma prioridade da política externa
portuguesa. Dois factores, em particular justificaram a mudança radical em Lisboa. Por um
lado, a influência decrescente de Portugal no Conselho de Segurança da ONU. Na verdade, o
número de países que votaram favoravelmente a resolução da Assembleia Geral das Nações
Unidas relativa a Timor-Leste passou de 72 votos a favor e 9 contra (em 1975), para um
empate técnico a 50 votos (além de 46 abstenções) em 1982. Face a esta tendência de voto, as
autoridades de Lisboa ficaram apreensivas com a possibilidade da Indonésia obter uma
votação favorável no Conselho de Segurança, algo que hipotecaria o fundamento legal da
acção portuguesa.
Por outro lado, a adesão de Portugal à Comunidade Europeia em 1986. Lisboa envolveu-se
sem grandes dificuldades no processo de Cooperação Política Europeia (CPE), cujo molde
intergovernamental não condicionava o gozo das prerrogativas soberanas externas nem
hipotecava a especificidade dos estreitos laços históricos-culturais entre Portugal e a
«affectatio communitalis» dos Estados de língua oficial portuguesa. Neste enquadramento
comunitário, Portugal empreendeu uma estratégia de «up-hill struggle» com o intuito de
sensibilizar os parceiros comunitários para a intolerável e persistente situação em Timor-Leste.
De todo em todo, Portugal merece o crédito porque Timor-Leste provou ser uma longa causa e
muitas vezes uma luta solitária (Beijer entrevista, 1999).
Em 1975, a Indonésia removeu o assunto do escrutínio da comunidade internacional e
promoveu em alguma medida o desenvolvimento no território. No entanto, as soluções
militares para os problemas em Timor-Leste não surpreendentemente receberam a
desaprovação maubere. Durante a década de 1990, as mudanças na Indonésia e, em
particular, a resignação do presidente Suharto, facilitaram a solução da questão de
Timor-Leste. Dito doutra forma, só pela conjugação dos factores da crise económica que
afectou a Indonésia e os demais «tigres» asiáticos em 1997 e a queda de Suharto em Maio de
1998, (25) foi possível a emergência de uma solução alternativa para a até então irresolúvel
questão timorense. O Presidente Habibie queria romper com o passado e estabelecer um claro
contraste com o seu predecessor, apresentando-se como um liberal e democrata. Timor-Leste
oferecia a oportunidade para evidenciar esta nova disposição. Ao contrário do antecessor,
Habibie tinha uma concepção diferente da autoproclamada 27ª província. Ele acreditava que
não compensava manter a situação no território com todos os consideráveis custos militares e
financeiros envolvidos. Timor-Leste tinha sido relegado ao ostracismo da opinião pública
indonésia. Nunca havia sido um assunto doméstico relevante, no sentido que ninguém sabia
aquilo que se passava no território e não entendia o interesse que a questão suscitava
(Tirtosudarmo, 1992: 136). Por isso, Habibie podia lidar com a questão de uma forma mais
liberal sem correr o risco de sofrer grandes represálias internas. Igualmente digno de nota, foi
o posicionamento da nova liderança indonésia no sentido da promoção da credibilidade
internacional do país. A visibilidade recém-adquirida de Timor-Leste como assunto
internacional, bem como, a sua exposição mediática mundial concederam a Habibie um
argumento adicional para amputar a situação que tinha estado na origem das críticas externas.
A abertura e disposição do novo presidente para abordar o assunto da autonomia e mais tarde
permitir a possibilidade da realização de um referendo sobre a independência,(26)
confirmaram o redireccionamento da posição indonésia vis-à-vis Timor-Leste. Também atestou
que, de alguma forma, Suharto tinha bloqueado a resolução da questão maubere e que caso
ele tivesse permanecido no poder por mais alguns anos dificilmente o estatuto de Timor-Leste
teria sofrido alguma alteração. Nesse sentido, poder-se-ia argumentar que a independência e
autodeterminação de Timor-Leste se devem mais à situação político-económica da Indonésia
do que às vontades concertadas de mudança da parte dos próprios timorenses e dos
portugueses. As mudanças político-económicas na Indonésia também facilitaram o
redireccionamento das políticas de outros países relativamente a Jacarta com algumas
repercussões para Timor-Leste. A Austrália, por exemplo, alterou o seu posicionamento
governamental em Dezembro de 1999. As autoridades de Camberra tradicionalmente
encararam a independência de Timor-Leste como uma causa perdida e a anexação indonésia
como irreversível. A alteração desta visão característica da política oficial australiana, a favor
da auto-determinação dos timorenses, seria igualmente crucial para o futuro do território.
Por último, a já sublinhada atenção mediática também constituiu um factor fundamental para
a sobrevivência da questão de Timor-Leste no cenário internacional. João de Deus Pinheiro
(entrevista, 2000) atribui-lhe um papel decisivo, tanto antes como depois do Massacre de Díli.
Antes do episódio no cemitério de Santa Cruz, a cobertura esporádica devotada a Timor-Leste
permitiu substanciar a posição e o activismo portugueses em prol da antiga colónia. Após o
massacre, não só a cobertura de Timor-Leste alcançou uma audiência internacional mais
alargada, projectando a questão de maubere de uma forma sem precedentes, como também
assumiu uma orientação mais crítica na denúncia das violações dos direitos humanos no
território (ibid.).
5 Conclusão
Este capítulo, concentrou-se nas vicissitudes da questão de Timor-Leste desde a época da
descolonização, passando pelo período de domínio de facto da Indonésia e alguns episódios
marcantes que conduziram a independência do povo maubere. Depois de 16 anos de
ocupação indonésia, e ao contrário de outras ocorrências no território, que ou não foram
noticiadas ou receberam uma míngua/exígua cobertura mediática, o massacre de Díli
constituiu um ponto de viragem do foco mediático relativamente a este território remoto. Por
fim, analisa o redireccionamento das principais potências da «coligação dos indisponíveis» e
constata que, de forma algo irónica, Timor-Leste deve em muito a sua permanência na agenda
internacional aos mesmos actores que no passado aquiesceram a ocupação de Jacarta, o que
quase se consumou na sua integração efectiva e definitiva no Estado Indonésio.
(1) Como Damien Kíngsbury reconhece: «Numa fase inicial a Fretilin e UDT não era radicalmente diferentes
nos objectivos a que se propunham, e lograram aliar-se em Janeiro de 1975 em busca da
independência… mas com os serviços secretos indonésios a conspirarem contra a Fretilin, a UDT foi
levada a crer que a Fretilin promoveria em breve um golpe. Em antecipação desse prospecto, em 11 de
Agosto de 1975, apoiada pelas forças de segurança locais, a UDT organizou um ataque preventivo contra a
Fretilin que ficou conhecido como o "movimento revolucionário anticomunista ele 11 de Agosto"… a
luta foi intensa mas terminaria em poucos dias ainda que" custa de 2000 a 3000 baixas» (2000: 155)
[tradução do autor].
(2) Embora alguns apontem 1985 como a data do reconhecimento de jure da anexação do território, a maior
parte dos autores, incluindo Peter Chalk (2001: 233-253), sustenta que tenha ocorrido em 1979.
(3) Noam Chomsky, por exemplo, referiu que «sob a mão condutora de Thatcher a Grã-Bretanha assumiu a
liderança no altamente lucrativo negócio de crimes de guerra». O rationale das autoridades britânicas
ficou expresso nas declarações do Ministro da Defesa britânico quando declarou: Eu não encho a minha
mente com o que um conjunto de estrangeiros estão a fazer sobre outros quando há dinheiro para ser
ganho (1996: 183) [tradução do autor].
(4) Expandindo a metáfora do então Ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio Ali Alatas (Sherlock, 1996: 846).
(5) No anuário de 1992, o Instituto Internacional de Investigação sobre a Paz de Estocolmo (SIPRI) relatava
que «em 1989 o movimento reemergiu, atiçando os confrontos que escalaram em 1990. Um ano depois a
oposição armada parecia ter sido suprimida mas a luta continuou intensa na parte final de 1991.
Organizações de direitos humanos estimam em 1500 o número de baixas desde 1989. A agência noticiosa
Reuters avançou com a estimativa de 2300 vítimas, das quais um terço era da população civil» (1992:
440-441; ver também Goderbauer, 1993: 132-179) [tradução do autor].
(6) É curioso mencionar a propósito do Movimento dos Não Alinhados que este organismo incluía
Timor-Leste na listagem dos países não-autónomos que aguardavam libertação.
(7) Anne Booth, por exemplo, preconiza que «o governo indonésio permitiu o acesso aos jornalistas ao
território convencidos que os problemas se tinham atenuado, o que se revelaria um erro estratégico»
(entrevista, 1998).
(8) Bruno Beijer contesta tal possibilidade mencionada na literatura. Embora admitindo que tenha havido
pensamento militar por detrás da operação da invasão e na manutenção do território durante um período
tão longo (se calhar devido a um síndroma semelhante ao do Vietname, dado que achavam que tinham
investido tanto e registado baixas tão consideráveis que não deveriam abdicar do território), ele afirma
que se tratou de lima decisão pessoal do próprio presidente. Por isso, Suharto recusava-se a
implicitamente admitir que tinha sido um erro, caso permitisse a retirada Indonésia de Timor-Leste; bem
como estava preocupado com a unidade e integridade territorial, pelo sinal que emitira para outras
localidades com pretensões autonómicas ou separatistas. Beijer refere ainda a disponibilidade da parte de
Ali Alatas para em 1995 e 1996 apresentar uma proposta credível e razoável contemplando algum tipo de
autonomia para o território, mas deparou-se coma recusa do palácio presidencial (entrevista, 1998).
(9) De acordo com Michael Vatikiotis, «Murdani desempenhou um papel crucial na invasão de Timor em 1975
e aparentemente Suharto "tratou-o como a um filho, o que fez com que a defecção política posterior de
Murdani fosse um sapo difícil de engolir para Suharto". "Murdani foi convocado em 1988 para ser
notificado que deveria abdicar do comando das Abri a favor do General Trv Sustrino" e desde altura
Murdani foi visto como "o mais provável promotor de um pulso contra Sujarão". Em 1991, quando a
sucessão de Suharto ainda não se vislumbrava como exequível, já Murdani era apontado como o principal
rival da família Suharto que o indiciavam como o conspirador-mor da campanha conducente ao derrube
de Suharto- (1992: 82-83,163).
(10)Tratou-se de uma tentativa de desacreditar o regime 5uharto (ibid.: 186).
(11)A realização da visita não era consensual nas chefias das forças armadas indonésias. Corno Vatikiotis
refere «a satisfação resultante da anulação da visita ao território era indisfarçável em algumas das altas
patentes da Abri que se tinham oposto à realização da mesma, mas na qual o ministro dos negócios
estrangeiros depositava a esperança de resolução definitiva do conflito»(ibid: 187) [tradução do autor].
(12)Classificando a atitude indonésia de «um série violação do direito de informar e de ser informado», o
porta-voz cio parlamento português, Vitor Crespo, declarou no dia 26 de Outubro que «a delegação não
viajaria até que o veto à Jolliffe não fosse levantado» (Far Eastern Economic Review, 07.11.91).
(13)Mário Carrascalão também criticou a prática indonésia de utilizar timorenses como elementos dos
serviços secretos.. «Denominando tais agentes de "bandidos e rufias" o governador de Timor-Leste
declarou que o recurso a esse tipo de expediente só servia para acirrar o clima de medo e de suspeição no
território» (Far Eastern Economic Review, 28.11.91).
(14)Pieter Kooijmans foi o primeiro alto oficial a visitar Díli desde a suspensão da visita parlamentar
portuguesa ao território. «A demonstração preparada para os visitantes portugueses», segundo
testemunhos de alguns participantes recolhidos por Adam Schwarz, «foi re-direcionada para Kooijmans»
(Far Eastern Economic Review, 28.11.91).
(15)Ver condusões do Relator Especial Bacre Waly Ndiaye cit. por Kriegel, 1996; e Monitoring Reporting,
30.11.91.
(16)Enquanto um responsável indonésio apontava para 40 mortes, uma ONG apontava para 115 e o Bispo
Belo estimava as baixas em 180. O General Try Sustrino, por sua vez, assegurava que o número de mortos
não chegava seguramente aos 100, 50 no máximo, junto com 20 feridos e nenhum estrangeiro envolvido.
(17)O Relator Especial Bacre Waly Ndiaye declara no seu relatório que «a procissão que ocorreu em Díli no dia
12 de Novembro de 1991 era, quando muito, uma demonstração pacífica de dissidência política por parte
de cidadãos indefesos; as alegações de alguns responsáveis de que as forças de segurança teriam
disparado em legítima defesa e de que teriam respeitado os princípios da necessidade e do uso
proporcional de forças letais não foram comprovadas» (Krieger, 1996: 123).
(18)Curiosamente, a Conferência indonésia dos Bispos Católicos, estudantes indonésios e outras organizações
não só condenaram o episódio corno as suas versões não correspondiam ao discurso oficial.
(19)De acordo com a versão veiculada por Stephen Sherlock «10 lower ranking commissioned and
non-commissioned officers were court-martialled and received sentences from 8 to 18 months for
disciplinary offences ... Major General Sintong Paujaitan, military area commander was sent on a study
tour to the US» (1996: 840). O Anuário de 1993 da Far Eastern Econonmic Review assinala que o
Brigadeiro-General R.S. Warouw foi substituído «and sent off for further studies in the US, while things
cooled down at home» (1993 Yearbook: 130).
(20)O grupo militar em oposto ao general Suharto, denominado a petição dos 50, salientou a semelhança
entre estes dois episódios.
(21)David Howllett, um investigador da Ásia no Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico, contesta que o
Massacre de Díli tenha sido o ponto de viragem, antes um assunto importante que suscitou a atenção
internacional». Portanto, «apesar de ter sido um episódio significativo não o foi mais do que qualquer
outro evento dramático no território considerado noticiável» (entrevista, 1998).
(22)Tal como historiador Mark Curtis constatou «o recurso à justificação aos diabos do outro lado (como
durante a Guerra Fria) para apoiar ditaduras sangrentas e assassinos em massa deixou de ser possível ...
agora outra formulação vigorava: a de que países do terceiro mundo que perpetravam repressões das
populações mas que adoptassem políticas favoráveis aos interesses ocidentais seriam de alguma forma
incapazes, por razões culturais, de garantir o respeito pelos direitos humanos, As tentativas de imposição
do alto padrão ocidental poderiam ser vistas como uma interferência nos assuntos internos de tais países
(algo que não poderíamos equacionar) pelo que o negócio deveria prosseguir como habitualmente»
(1995: 116-19) [tradução do autor].
(23)A resistência timorense foi liderada pelas Falintil (Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste)
que constituíam inicialmente o braço armado da Fretilin até se ter formalmente emancipado em 1987.
(24)O mesmo não se pode dizer acerca de algumas destacadas individualidades timorense tais corno Manuel e
Mário Carrascalão, que colaboraram com a Indonésia até meados da década de 1990. Na verdade, por
altura do massacre de Díli, Manuel Carrascalão ainda desempenhava as funções de governador de Timor
nomeado pela Indonésia.
(25)O representante português na ONU ele 1997 a 2001, António Monteiro, também considera que a renúncia
de Suharto abriu uma janela de oportunidade, ainda que o verdadeiro detentor do poder, o regime militar, permanecesse inalterado» (Monteiro, 2001).
(26)Em 30 de Agosto de 1999, apesar da campanha de intimidação indonésia, 98,6% dos eleitores timorenses
exerceram o seu direito de voto, dos quais 78,5% optou pela independência da Indonésia
Título I Timor-Leste: da Nação ao Estado
Organizadores I Rui M. S. Centeno e Rui Alexandre Novais
Edição I Edições Afrontamento I Rua Costa Cabral, 859 I 4200-225 Porto
cetac (centro de estudos das tecnologias, artes e ciências da comunicação)
Capa, I Departamento gráfico I Edições Afrontamento
Colecção I Comunicação I Arte I Informação I 3
N.º de edição I 1049
ISBN10 I 972-36-0864-2
ISBN10 I 978-972-36-0864-9
Depósito legal I 251655/06
Impressão e acabamento I Rainho & Neves Lda. I Santa Maria da Feira
Dezembro de 200