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Direito, justiça e perdão- uma breve reflexão sobre a fundamentação do
direito e análise da óptica judaico-cristã
Data · September 2010
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Pedro Dourados
University of São Paulo
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Direito, justiça e perdão: uma breve reflexão sobre a fundamentação do direito e
análise da óptica judaico-cristã
Autor: Pedro Dourados
Situação acadêmica: GRADUANDO, 1° SEMESTRE
Categoria: XIII- Filosofia do Direito
Agradecimentos: Agradecemos breve, porém especialmente, a Rute Izabel Simões
Conceição e a André Luís Menegatti pela importante colaboração que deram ao texto e pela
indispensável amizade. E, acima de tudo, e apesar dos riscos e/ou da retórica, agradecemos a
Deus.
Resumo: É, geralmente, na ideia de “justiça” que se centram as atenções dos jusfilósofos,
desde a antiguidade. Há, não obstante, um outro valor com o qual o direito entra em contato e
no qual pode buscar a sua fundamentação axiológica: trata-se do valor “perdão” – conforme
este é forjado ao desenrolar do texto bíblico e da história do cristianismo. É em torno das
semelhanças e diferenças da aplicação de um direito que realiza justiça e de um direito que
perdoa – em situações excepcionais – que proporemos uma breve discussão, enfatizando três
casos: o perdão judicial, o perdão presidencial e a anistia.
Palavras-chave: Fundamentação do direito; valor; justiça; perdão e cristianismo.
Pretendemos, neste artigo, discutir a problemática da fundamentação do direito na
ideia de justiça comparando-a com a possibilidade de fundamentá-lo na ideia de perdão, esta,
segundo a concepção judaico-cristã, apresentada no texto bíblico, em especial, no Novo
Testamento.
A máxima latina ubi societas, ibi jus (onde há sociedade, aí está o direito) já deixa
claro que a existência da sociedade está intrinsecamente ligada à existência do mundo
jurídico. Este último, no entanto, vem questionando as bases da sua própria existência: trata-
se do problema da fundamentação do direito e de sua legitimidade.
2
Sabe-se que tal fundamentação e legitimidade estão diretamente ligadas à questão da
justiça. Quando a temática torna-se demasiado abstrata, há quem faça uma cisão e diga que o
direito não deve se preocupar com questões filosóficas envolvendo conceitos ético-morais
como, por exemplo, a justiça. É este o pensamento de Hans Kelsen, segundo o qual “a questão
da justiça do sistema não deve ser tratada como um problema da ciência do direito, e sim da
filosofia” (KELSEN, comentado por BITTAR, 2003/2004, p.76).
A fragilidade da ideia de um direito que se baseia em si mesmo (enquanto um sistema
normativo absoluto que finda na norma fundamental) apresentada, segundo Ferreira (2008),
na crítica de Carl Schmitt à teoria purista de Kelsen, chamada por aquele de uma “tautologia
de uma crua factualidade”, permitiu que a idéia de justiça1 voltasse ao centro do debate sobre
a fundamentação do direito.
Essa ideia ganhou enfoque ainda maior com a introdução da teoria culturalista
tridimensional de Reale, o qual apontou que “segundo a dialética de implicação-polaridade,
aplicada à experiência jurídica, o fato e o valor nesta se correlacionam de tal modo que cada
um deles se mantém irredutível ao outro (polaridade) mas se exigindo mutuamente
(implicação)” (REALE, 1999, p. 67, grifo do autor).
1.1 Direito e Justiça: a possibilidade de um “sentido” para o sistema
jurídico
A justiça surge no contexto tridimensional, proposto por Reale (1999), como realidade
axiológica inevitável do direito. Assim sendo, a justiça é vista como um valor que assume
diferentes dimensões e concepções, dependendo do contexto histórico em que se encontra. De
tal forma, hoje, a concepção de justiça, para o autor, seria: “a condição primeira de todos
eles [demais valores], a condição transcendental de sua possibilidade como atualização
histórica. Ela vale para que todos os valores valham” (REALE, 1999, p. 377, grifo do autor).
Nesse contexto, a justiça é, portanto, o valor por que mais preza o direito e, por sua
vez, ela “funda-se no valor da pessoa humana, valor-fonte de todos os valores” (REALE,
1 A crítica de Shcmitt a Kelsen visava a, na verdade, apontar não a justiça, mas sim a política como o cerne do
direito. Não obstante, ela permitiu uma ruptura com o normativismo kelseniano a qual possibilitou a idéia de
justiça a reconquistar terreno.
3
1999, p. 379, grifo do autor). Vista desse modo, pode-se afirmar que o fundador da teoria
tridimensional do direito enxerga a justiça como o valor maior da realidade axiológica do
mesmo, mas, parece isolá-la2 das duas outras dimensões (a fatídica e a normativa) não sendo,
portanto, a justiça um ponto essencial na fundamentação do direito como um todo (como um
sistema dotado de validade e faticidade).
Diferentemente, Ferraz Junior (2007) percebe que a dogmática jurídica não depende
de um valor para continuar sendo aplicada, entretanto, caso a aplicação do direito se
desvincule de qualquer valor, ela perde seu “sentido”. O sentido do direito é, em Ferraz
Junior, aquilo que lhe dá perenidade, que legitima o direito:
Enquanto se pode postular como certo que as normas jurídicas são
regras que de alguma forma se adaptam às mudanças sociais posto que podem
deixar de valer ao serem revogadas, conforme o interesse da decidibilidade
dos conflitos, o que se procura é uma espécie de estrutura de resistência à
mudança, que assegure à experiência jurídica um sentido persistente. Desde a
Antiguidade, foi na idéia de justiça que se buscou essa estrutura. [...]
Ao menos nesses termos existenciais é de reconhecer que a justiça
confere ao direito um significado no sentido de razão de existir (FERRAZ
JUNIOR, 2007, p.366, grifo nosso).
Constata-se que para Ferraz Junior a justiça assume um papel ainda mais importante
do que para Reale, pois, sem ela, o direito perde a sua razão de ser. O direito fundamenta-se,
portanto, em um valor de cunho ético-moral tornando-se, na verdade, um “instrumento, como
meio para a realização de justiça [...] sem o que o sistema torna-se mero ato de arbítrio e,
apesar de dotado de validade, confunde-se com o exercício da violência” (BITTAR,
2003/2004, p. 80, acerca da justiça na visão de sistema jurídico em Ferraz Junior).
Dessas reflexões, percebe-se que o direito necessita de um cunho ético-moral para que
a sua aplicação seja não simplesmente aceitável mas também compreensível.
Não obstante ser a justiça, como visto, o símbolo máximo desse aspecto ético-moral,
ela não é o único: em casos excepcionais, o ordenamento jurídico de vários países – o
brasileiro inclusive – baseia suas decisões não na realização da justiça, mas na concessão de
“perdão”. Muitas vezes, buscar o perdão, ao contrário de uma justiça stricto sensu é mais
2 Para Reale, seguindo a lógica da dialética por ele utilizada, a complexa noção do direito como norma e fato
“implica” a noção axiológica de justiça, a qual, por sua vez, encontra-se “polarizada” em sua própria dimensão
axiológica, da onde certo isolamento (apesar da implicação).
4
eficaz na resolução de conflitos e traz mais rapidamente a ordem social à normalidade
desejada pelo direito.
1.2 Direito e Perdão: possibilidade da fundamentação do direito em um
valor alternativo
A questão que se apresenta é a seguinte: se a justiça tem sido utilizada, como disse
Ferraz Junior, desde a Antiguidade para dar sentido e perenidade ao direito, de onde vem a
ideia de que o perdão também é capaz de legitimar um ato jurídico? E em que tal ideia se
baseia? É o que procuraremos discutir adiante.
Para embasarmos nossa discussão, identificaremos o perdão no direito brasileiro e
atribuir-lhe-emos significado.
Enquanto a justiça relaciona-se com a idéia de equidade e com a máxima dare cuique
suum (“dar a cada um o que é seu”), o perdão, segundo o Dicionário Michaelis da Língua
Portuguesa (2010), é “remissão de uma culpa, dívida ou pena”.
Fundamentar o direito – ou, pelo menos, certos atos jurídicos de caráter excepcional –
no perdão significa, naqueles casos, não praticar justiça. Quando se perdoa alguém, retira-lhe
o que lhe é devido, seja a culpa, a dívida ou a pena.
A legislação brasileira, no que diz respeito ao perdão, age de tal forma especialmente
nos seguintes casos:
a) Concessão de anistia: Constituição Federal, Artigo 21 inciso XVII (anistia
enquanto competência da união. Lembramos serem inanistiáveis os crimes citados
no Artigo 5º, inciso XLIII da mesma Constituição. Entre tais crimes: “tortura, o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como
crimes hediondos”);
b) Perdão presidencial: Constituição Federal, artigo 84, inciso XII;
5
c) Perdão judicial: conforme marcante exemplo do Código Penal, artigo 121 § 5º
(“Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as
conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a
sanção penal se torne desnecessária”) seguindo disposto no artigo 107, inciso IX
do mesmo código.
Discutiremos tais exemplos no item 4.0, mas enfatizamos desde já que não são esses
os únicos casos em que o perdão (tratado aqui em sinonímia às expressões “graça”, “anistia” e
“indulto”) aparece em nossa legislação. Selecionamos apenas alguns casos (lembramos que há
possibilidade do perdão do ofendido e do perdão judicial em outras esferas do direito que não
a criminal.), já que, por exemplo, para efeito de extinção de punibilidade – estritamente penal
– basta o perdão judicial de qualquer outro foro jurídico.
1.2.1 Fazer justiça e conceder perdão, semelhanças e diferenças
Conforme vimos, o direito possui uma intrínseca relação com a axiologia (a disciplina
dos valores)3. O principal valor que se relaciona com o direito é o da justiça. Vimos, no
entanto, que o perdão também é usado para que se legitimem certos atos jurídicos que
assumem, como exposto, caráter de exceção, e não de regra.
A regra é que a aplicação da norma jurídica traga de volta a normalidade social
(resolva o conflito, no vocabulário de Ferraz Junior), mas não de forma neutra, e sim de forma
justa. Tal significa resolver o conflito de maneira a praticar o princípio da equidade, e
respeitar o ditame “a cada um o que é seu”4. Não nos delongaremos sobre os significados da
justiça, mas lembramos que esta muitas vezes se confunde com justiça material5.
3 Sobre o assunto conferir REALE, “Filosofia do Direito”. 2002, 20ªed. São Paulo: Saraiva. O autor dedica um
capítulo inteiro (cap.XXV, pp.351-60) à explicação da relação direito-valor. 4 O ditame em questão fora forjado pelos romanos e tinha o peso de uma “virtude”, ou seja, saber dar a cada um
o que é seu era uma virtude. Esse termo foi retomado por Santo Agostinho que o consagrou em sua escolástica.
Nesse sentido, Bittar (2007, p.203): “assim, [para Agostinho] onde não há verdadeira justiça, não há verdadeiro
Direito, [...], ou seja, [...], estará a presidir o conjunto das relações humanas a justiça, que é esta virtude que
distribui a cada um o que é seu” e “essa virtude que sabe atribuir a cada um o que é seu é uma virtude que
coordena interesses e vontades, estabelecendo a ordem”. Não pretendemos, aqui, tomar tal sentido da justiça
como o único válido, mas adotamo-o para fins de fluidez visto seu caráter mais ou menos universal. Pelo próprio
fato de ser uma máxima, a justiça enquanto virtude de dar as pessoas o que lhes é por direito é, a senso comum,
uma boa definição da justiça mesma – e isso, graças a sua clareza (qualquer falante do português básico entende
o significado da máxima) e pela sua paradoxal obscuridade (em diversos pontos, por exemplo: o que é “dar”?
6
Da mesma forma, o perdão é capaz de dar sentido ao direito, pois, como a justiça,
trata-se de um valor que se destaca dentre muitos outros por possuir um forte aspecto positivo
– muitas vezes, corretamente relacionado ao amor.6
Diferentemente da justiça, o perdão consiste em não dar à pessoa o que é seu, por
direito. No caso, para que se configure perdão, é preciso que o “seu” seja algo pejorativo,
como “culpa, dívida ou pena”, por exemplo. Nessa situação, o que se dá à pessoa é, por isso
mesmo, algo que ela não “merece”.
Em sentido parecido, Arendt (in A Condição Humana, 2009) pensou sobre a
importância do perdão no relacionamento humano, sob a óptica da manutenção da fluidez e da
própria existência do âmbito daquilo que é “público”:
Se não fôssemos perdoados, eximidos das conseqüências
daquilo que fizemos, nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer,
limitada a um único ato de qual jamais nos recuperaríamos; seríamos
para sempre vítimas de suas conseqüências, à semelhança do aprendiz
de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o
feitiço. (ARENDT, 2009, p.249, grifo nosso)
Tomando o Estado como o grande aplicador do direito, quando este decide pelo
perdão, ao invés da justiça, ele está agindo de forma a “desculpar”. Isso significa que o Estado
abre mão de um direito seu, o direito de punir (imputar a culpa ou cobrar a dívida), o qual se
pode significar “impor”? e quanto à “seu”? entre outros pontos que dependem de uma interpretação marcada por
subjetivismos). 5 Existem outras máximas acerca da justiça, em especial, acerca da justiça material. Lembremos da aristotélico-
barbosiana “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”. É, além disso, quase impossível falarmos
em justiça material sem pensarmos em Marx. Seguindo a lógica da dialética marxista, o direito não seria que
uma “superestrutura ideológica a serviço das classes dominantes” (BITTAR, 2007, p.342). Após a revolução do
proletariado, porém, uma vez realizada a perfeita instalação e manutenção do comunismo material consciente
(não alienado), podemos dizer que se realizaria justiça com uma fusão da infra com a superestrutura. Desse
modo, o sentido (ideológico) de justiça só é plenamente possível, em Marx, caso seja reflexo de uma igualdade
material (justiça material, infra-estrutural). 6
Consideramos acertada a relação devido ao seguinte raciocínio: a palavra “perdão” relaciona-se
sinonimicamente à palavra “graça”; ambas as palavras referem-se ao ato de dar a alguém algo (valorativamente
bom) que não lhe é seu por direito, por merecimento; esse ato resume-se muito bem à palavra “caridade”; por
sua vez, a palavra “caridade” pode ser equiparada à palavra “amor” semanticamente. Assim tem sido, por
exemplo, em traduções do grego ao texto bíblico para a passagem da Epístola aos Gálatas 5: 22, onde o Apóstolo
Paulo descreve os chamados “frutos do espírito”, cujo primeiro a ser apresentado é o da “caridade”. Muitas
traduções do grego, porém, trazem a mesma palavra como “amor” (Cf. Na tradução de João Ferreira de Almeida,
71ª impressão, em Gálatas 5: 22, na qual lê-se “caridade”, mas na nota de rodapé “d” indica-se “ou amor”, como
possível tradução equivalente).
7
baseia em seu poder de polícia e em seu “legítimo monopólio da violência”7 e “exime” o
perdoado das devidas “consequências”.
Assim sendo, temos aqui a maior diferença entre a aplicação da justiça e a concessão
de perdão: enquanto ao aplicar justiça o Estado executa um direito seu, ao conceder perdão o
Estado abre mão de seu direito.
2.0 A concepção judaico-cristã de perdão sob o enfoque de sua aplicação
Para a teologia cristã, o conceito de perdão, mais especificamente, no sentido de graça,
é paradigmático. Tanto é assim que, à sensu communis, a divisão da História da Humanidade
em dois períodos – antes de Cristo e depois de Cristo – equivale, para essa disciplina, não em
tempo, mas em sentido8, à divisão da História em Era da Lei e Era da Graça.
Sabe-se que, conforme a fé cristã, a chave da salvação da Humanidade encontra-se no
sacrifício do Cristo, o qual se consumou sob o aspecto da graça. A explicação é dada pelo
apóstolo Paulo em sua epístola aos Filipenses, capítulo cinco, versículos 5 a 10:
5: De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus,
6: Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser
igual a Deus,
7: Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo,
fazendo-se semelhante aos homens;
8: E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo,
sendo obediente até à morte, e morte de cruz.
9: Pelo que também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu
um nome que é sobre todo o nome
10: Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que
estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra. (FILIPENSES, in: Bíblia
de Promessas, 2006, p.232, grifo nosso).
Analisando a passagem em questão percebemos, primeiramente, que a graça é tratada
como um “sentimento” (v. 5) que se equivale a um valor – sobretudo se tomarmos como
7 Para mais acerca do assunto, consultar DALLARI (1999), “Elementos de Teoria Geral do Estado”. Conferir em
O Poder Social, Capítulo I, pp.29-38. 8 A divisão antes de Cristo/depois de Cristo e a divisão Era da Lei/Era da Graça não equivalem aos mesmos anos
exatos do calendário, por assim dizer. “Depois de Cristo” inicia-se no ano 0, enquanto a “Era da Graça” somente
se dá por começada após o fim do “ministério de Cristo na Terra” (com sua morte, ressurreição e ascensão) que,
em termos de calendário, equivale ao ano 33 d.C. em termos simbólicos, porém, as divisões equivalem-se.
8
referência a teoria de que a todo valor corresponde um sentimento: “diremos que sua tese
nuclear [da teoria subjetivista dos valores] consiste na afirmação de que os valores existem
como resultado ou como reflexo de motivos psíquicos, de desejos e inclinações, de
sentimento de agrado ou de desagrado” (REALE, 2002, p.196).
Logo em seguida (v. 7), observamos, na segunda passagem grifada, um dos aspectos
anteriormente citado do perdão – o qual diz respeito a abrir mão de um direito. Na fé cristã,
Jesus é Deus encarnado e, negando a sua posição superior, “aniquilou-se”, “humilhou-se”
para conceder ao homem a salvação, à qual não é do homem por direito, mas por graça.
O próprio apóstolo Paulo discursa sobre a questão na Epístola aos Romanos (cap. 3:
23-24) quando afirma: “porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus, sendo
justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus”
(ROMANOS, In: Bíblia de Promessas, 2006, p180-1, grifo nosso).
Pode-se verificar nessa passagem que o perdão, conforme apresentado pelo apóstolo
Paulo, “justifica” o homem perante Deus. Se adotarmos a classificação da dogmática do
Direito Penal poderíamos dizer que “a redenção que há em Cristo Jesus” corresponde a uma
“causa de justificação” (Artigo 23 do Código Penal), o que faz com que o homem não seja
punido pelos seus pecados. Essa redenção, não faz, porém, com que eles sejam apagados da
história, como se não houvessem ocorrido, não retirando, portanto a “responsabilidade
objetiva” do homem pelas consequências dos seus atos pecaminosos.
Esse trecho indicia, ainda, a superioridade – axiologicamente falando – do perdão
sobre a justiça. Essa tese é reafirmada na epístola que Paulo enviou ao povo de Corinto (I CO
13: 13) na qual expõe que “agora, pois, permanece a fé, a esperança [de onde se origina a
justiça, tendo em vista que esta só pode ser observada após a realização do ato mesmo, isto é,
antes da sua realização, só se pode esperar que o ato seja justo] e a caridade [ou amor, a fonte
do perdão9]”. E, por fim, destaca que coexistem “estas três, mas a maior destas é a caridade”
(I CORÍNTIOS: Bíblia de Promessas, 2006, p.205).
9 Ilustramos aqui o pensamento de Arendt (op. cit., 2009) acerca do tema; também para a autora, a qual também
vê origens bíblicas na atual concepção de perdão, o mesmo deriva-se do amor “pois o amor, embora seja uma
das mais raras ocorrências da vida humana, possui, de fato, inigualável poder de auto-revelação e inigualável
clareza de perceber o quem [do outro], precisamente por não cuidar – de maneira quase alheia a este mundo – de
o que a pessoa amada é [...]” (p. 253-4, grifo da autora) e, somente assim, é possível perdoar alguém. Olhar
9
Apesar da hierarquização dos valores apresentados, cabe ressalvar que a perspectiva
não é a de que haja uma cisão entre perdão e justiça, já que “[o amor] não folga10
com a
injustiça, mas folga com a verdade” (I CORÍNTIOS 13: 8, in: Bíblia de Promessas, 2006,
p.205).
3.0 As vantagens da aplicação do perdão como legitimador do sistema
Uma vez analisada uma das prováveis origens da atual concepção de “perdão”,
enquanto herança da filosofia cristã, vejamos o porquê da sua utilização como valor que
legitime um ato jurídico especial – em detrimento da justiça.
Nos versículos nove e dez do capítulo 2 da epístola do apóstolo Paulo aos Filipenses,
transcritos acima, temos a justificação, de caráter místico-espiritual, para a concessão de
perdão aos homens pela parte do Cristo. Como se percebe, há uma “recompensa”
extremamente positiva pelo fato de se ter dado aos homens perdão. No versículo nove lê-se
que “Deus o exaltou soberanamente [a Cristo]” e no versículo dez lê-se que “ao nome de
Jesus se dobre todo o joelho”.
Ao sacrifício de Cristo corresponde, pois, uma recompensa imensamente maior;
correspondência esta que, por sua vez, segue a lógica da dialética apresentada durante todo o
texto bíblico de “aniquilação do pecado”-“merecimento do paraíso”11
.
A lição que podemos extrair de tais passagens bíblicas para a aplicação do “perdão”
como instituto jurídico no direito positivo brasileiro do século XXI é a de que o perdão possui
um aspecto positivo (no sentido de valorativamente bom) que é ontologicamente imediato.
Como expusemos acima, o perdão se relaciona com o amor e a justiça com a
esperança. Tomemos como exemplo uma decisão judicial. No momento da aplicação da
interessante ela lança em relação a origem do perdão em sua atuação mais geral: “[...] o que o amor é em sua
própria esfera estritamente delimitada, o respeito é na esfera mais ampla dos negócios humanos” (p. 254), de
onde o respeito seria também fonte do perdão – concordamos com a autora, visto a relação que ela estabelece
entre amor e respeito. 10
Ressaltamos que a palavra “folgar” possui, aqui, o sentido de “aceitação” ou até mesmo o sentido de
“compatibilidade” e “coexistência”. 11
Lembramos que, na história de Cristo narrada pela Bíblia, após sua morte na cruz, ele foi ressuscitado e levado
em ascensão aos céus. As benesses tratadas por Paulo na passagem em questão referem-se à uma “glorificação”
de Cristo que ocorrerá, segundo as profecias bíblicas, em um momento pós-apocalíptico.
10
sentença, e mesmo após o início da sua aplicação, ainda não é possível dizer se esta foi
realmente justa. Ao se aplicar uma sentença a alguém só se pode “esperar” que a mesma seja
justa/realize justiça. Diferentemente, se a decisão judicial em questão é realizada de maneira a
perdoar o acusado, podemos dizer que já no momento de sua aplicação os resultados são
“bons” (pelo menos para quem fora perdoado) tendo em vista seus efeitos serem imediatos12
.
E é justamente nesse caráter imediato dos efeitos surtidos pelo perdão que reside uma
das maiores vantagens em sua aplicação.
Ferraz Junior aponta que “seja qual for o objeto que determinemos para a Ciência
Dogmática do Direito, ele envolve a questão da decidibilidade [de conflitos]” (2007, p.88).
Em sentido similar, Reale diz que “no mundo jurídico, a compreensão se converte
necessariamente em normação” (1998, p.325). Assim sendo, conclui-se facilmente a
vantagem em conceder o perdão: ganha-se em tempo. Como momento de “normação” ou de
“decisão de conflito”, ao perdoar, o direito aplica imediatamente remédio efetivo ao
problema que turbou a ordem social.
Antes que se pergunte como isso é possível, colocamos em pauta a reflexão de
Marguerat (2006) sobre as diferenças entre a Era da Lei e a Era da Graça, quando este
discorre sobre a aplicação da “lei” (que visava à obtenção da justiça aos moldes judaicos de
interpretação da lei vigente desde a época do profeta Moisés13
): “a lei qualifica os indivíduos
na medida em que ela faz a partilha entre observadores [ou justos] e transgressores [ou
injustos]” (2006, p. 73, grifo nosso).
12
Não excluímos, aqui, as possíveis conseqüências negativas de um “perdão” pelo direito. É completamente
cabível pensar que um perdão judicial traga conseqüências desastrosas para o perdoado ou para outros entes da
sociedade, não obstante, o mesmo também é cabível pensar (e testemunhar) acerca de decisões judiciais que
apliquem a justiça. Assim, uma pena pode ser justa, mas pode trazer conseqüências piores que as do próprio
crime, isso ocorre, sobretudo, com as penas de prisão (que muitas vezes são justas) de curta duração aplicadas a
“infratores menores” (não no sentido etário, mas no sentido do desvalor mesmo da ação criminosa, pequenos
furtos, e delitos afins) que acabam saindo das penitenciárias “piores” do que quando lá chegaram. Conferir
Bittencourt (2010, p. 121): “Propõe-se, assim, aperfeiçoar a pena privativa de liberdade, quando necessária e
substituí-la, quando possível [...] recomenda-se que as penas privativas de liberdade limitem-se às condenações
de longa duração e áqueles condenados efetivamente perigosos e de difícil recuperação”. 13
A lei judaica, aplicada desde a época de Moisés e seguida mais ou menos conforme aspectos exegéticos de
interpretação, pode ser encontrada no Antigo Testamento da Bíblia, em especial nos livros de Êxodo (onde é
narrado o episódio dos dez mandamentos), de Levíticos (com uma extensa compilação de leis comportamentais),
de Números e de Deuteronômio, os quais formam, junto com o livro de Gênesis o conjunto conhecido como
Pentatêuco ou Torá.
11
A imediata efetividade do perdão explica-se pelo fato de ele agir de forma a que os
indivíduos (infratores e não infratores da lei) reassumam papel de igualdade perante a lei. Isto
é, o perdão não gera “qualificação” jurídica, diferentemente da justiça, que qualifica as
pessoas como “justas” e “injustas”, fazendo com que percam o caráter de igualdade perante a
lei.14
Outra vantagem, por assim dizer, é o caráter dialógico do perdão, em detrimento do
caráter arbitrário da justiça. Ainda sobre o exemplo de uma decisão judicial, suponhamos que
ela constitua uma decisão justa. Para que assim seja, a ação depende tão somente de um
correto posicionamento por parte do juiz, o qual realizará justiça sem que a opinião ou a
participação do réu seja relevante.15
A decisão judicial, nesse caso, independe da compreensão
ou da participação do réu, não havendo, portanto, diálogo estabelecido16
.
Muito diferente é o que ocorre se o juiz decidir pela concessão de perdão, pois: “a
graça não requer senão ser aceita [...]” (MARGUERAT, 2006, p. 74). É exatamente nesse
único “requerimento” da graça que o diálogo se estabelece entre o aplicador do direito e o réu.
Realmente, pouco valiosa é a graça que não é aceita. Para ser efetiva e para que o réu em
questão seja efetivamente perdoado é necessário que ele compreenda o processo pelo qual
passou, de forma a compreender o valor (socialmente falando) de ser perdoado e não receber
a penalidade que lhe era devida. Há, portanto, um processo comunicativo efetivo em uma
decisão de perdão17
.
14
Não negamos aqui a possibilidade de o “perdão” qualificar os indivíduos entre “perdoados” e “não-
perdoados”, ressalvamos, não obstante, que se trataria de uma possível qualificação social e não de uma
qualificação com efeitos jurídicos. 15
Note-se que, ao chamarmos a atitude justa de uma atitude “arbitrária” não estamos dizendo que ela é irracional
ou ilegal. O sentido que atribuímos à palavra “arbitrária” é diferente daquele sentido atribuído à “arbitrariedade”
que os iluministas enxergaram nos juízes dos reinados absolutistas. No contexto brasileiro, a decisão judicial
deve ser feita de acordo com as regras Processuais cujos valores estão presentes na Constituição Federal
(presunção de inocência, plena defesa, entre outros) e seguindo o dogma da legalidade (imortalizado por
Feurbach pela máxima nullum crimen, nulla poena sine lege) o que, certamente, faz com que as decisões
judiciais sejam ainda mais justas. Com “arbitrariedade”, ainda assim, referimo-nos ao caráter “unilateral” da
decisão judicial, que depende unicamente do ato do juíz, não estabelecendo comunicação efetiva com o réu. 16
Arendt (op. cit., 2009) segue raciocínio distinto, mas não divergente. Segundo a autora “a punição é a
alternativa do perdão, mas de algum modo seu oposto; ambos têm em comum o fato de que tentam por fim a
algo que, sem a sua interferência, poderia prosseguir indefinidamente” (p.253), a autora não fala, todavia, do
papel do perdoado uma vez que o perdão fora concedido. 17
É, portanto, bastante aparente uma relação entre o perdão efetuado pelo direito e a “ação comunicativa”
conforme proposta por Jürgen Habermas. Segundo Habermas (1997, p. 46), “num caso de conflito, os que agem
comunicativamente encontram-se perante a alternativa de suspenderem a comunicação ou de agirem
estrategicamente – de protelarem ou de tentarem decidir um conflito não solucionado”. Mantendo uma relação
12
Se corretamente compreendido, é cabível pensar que o perdão gere por si só um
processo de reintegração social sem que o perdoado tenha que se afastar da sociedade (qual a
maior incoerência da pena de prisão, que visa a realizar re-inclusão social afastando os
condenados da sociedade18
[?]). Assim sendo, não somente a realidade social é normalizada
como também o antigo infrator não precisa ser excluído da sociedade ou ser taxado
juridicamente de modo negativamente “qualificador”.
4.0 O caráter de exceção da aplicação do perdão como valor
fundamentador do direito
Conforme vimos, há três casos especiais em que o sistema jurídico brasileiro
fundamenta-se no perdão. Não é preciso fazer pesquisas profundas para concluir que é muito
mais raro uma concessão de “anistia”, “perdão presidencial” ou “perdão judicial” que uma
aplicação de pena (latu sensu).19
Conclui-se disso que a utilização do perdão, enquanto valor
utilizado para dar sentido à aplicação do direito, é uma situação de exceção.
Com base nisso, vem à luz uma possível divergência. Se perdão e justiça são valores
de diferente natureza, o direito vai lançar mão de uma ou de outra “fonte” doadora de sentido.
Pode parecer, pois, que se terá que escolher qual caminho é preferível que o direito siga: o do
perdão ou o da justiça. Essa divergência é, contudo, superficial, pois, como dissemos, o
perdão age em casos excepcionais, sendo que nas demais diretrizes jurídicas – as quais, na
maioria das vezes é regulada por normas de grande abrangência – devem seguir um padrão de
justiça.
comunicativa, o aplicador do direito e o réu chegam a solução do conflito pela eliminação das conseqüências
jurídicas, o que requer, a custo de o perdão perder sua validade, a compreensão – por parte do réu – do processo
pelo qual passou, de modo que ambos (aplicador e réu) podem chegar a atingir seus objetivos (restabelecer a
normalidade social e amenizar as consequências amargas de se quebrar o direito) de modo democrático (sem que
uma vontade prevaleça sobre a outra). 18
Conferir Bittencourt (1993, p. 143): “não se pode ignorar a dificuldade de fazer sociais aos que, de forma
simplista, comamos de anti-sociais, se se os dissocia da comunidade livre e, ao mesmo tempo, se os associa a
outros anti-sociais”. 19
Pode-se verificar tal informação comparando as pesquisas em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Em seu site, ao fazer-se uma busca pela jurisprudência das palavras “perdão judicial” encontram-se apenas 59
documentos, nos quais muitos citam a “impossibilidade” do mesmo, e apenas alguns a sua execução. Ao
contrário, se procurarmos pela palavra “pena” encontram-se 33197 ocorrências, nas quais a palavra pena
aparece, geralmente, nas seguintes formas: “pena aplicada”, “pena base”, “pena total”, “pena fixada” e similares.
13
A tese que defendemos é de que a natureza decisória da aplicação do direito e a
necessidade do controle dos rumos da sociedade de modo a frear os “abusos” de fato (tanto
abusos de poder econômico, quanto de poder político, quanto de poder físico, entre outros) faz
com que a aplicação da norma jurídica tenha uma relação muito mais direta com a justiça que
com o perdão. Fazendo um juízo de valor sobre tal afirmação, concluímos que se trata de uma
boa combinação.
A justiça é um valor fundamental para a manutenção da vida em sociedade, como
dissemos, de modo aceitável e compreensível. A aplicação do perdão deve, portanto,
continuar sendo uma aplicação de caráter excepcional.
4.1 A efetividade do perdão pelo instituto do “perdão judicial”
É preciso, apesar de tal feição de excepcionalidade, que o aplicador de lei saiba
identificar os tais casos de exceção nos quais não cabe dúvida sobre as vantagens de se
estabelecer um “diálogo” em detrimento de uma realização unilateral de justiça. No caso do
perdão judicial em esfera penal, o “caso de exceção” é tipificado, trata-se da “hipótese de
homicídio culposo, [na qual] o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da
infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne
desnecessária”, conforme redação do § 5º, Artigo 121 do Código Penal.
Sobre esse caso, consideramos extremamente feliz o posicionamento do legislador em
abrir essa margem de aplicação do perdão para o juiz20
. Imaginemos o seguinte caso: uma
mãe deixa – desobedecendo a um dever de cuidado – um pacote de veneno de rato em cima
de um móvel de altura relativamente baixa, de modo que sua filha, de 3 anos de idade, tem
acesso ao veneno e, ao consumi-lo, falece. Pelo simples fato de o falecimento ter ocorrido sob
responsabilidade culposa da mãe, já é legítimo (conforme disposto em lei) perdoá-la. Se
imaginarmos que o ocorrido se deu sob culpa inconsciente é até mesmo cogitável a idéia de
20
Consideramos, não obstante, extremamente infeliz a redação do Artigo que, aparentemente, atribui à pena a
exclusiva função de fazer a pessoa “sofrer” (pois é isso que geralmente ocorre quando alguém é atingido pela
morte de outrem que fora causada por ele próprio). Tal visão da função da pena parece basear-se em um
retribucionismo psicológico que não visa nem mesmo a buscar um caráter de “justo” (como ocorria no
retribucionismo de Kant), mas contenta-se com um caráter de “cruel”.
14
que a mãe em questão não cometeu crime algum21
. Parece, portanto, mais do que lógico que
se conceda perdão a ela.
Perceba-se que perdoar a mãe significa não dar a ela o que lhe cabe por direito, no
caso, uma pena22
. Ao tomar esta atitude, o direito deixa de qualificar a mãe juridicamente e
dá-lhe a possibilidade de reorganizar sua vida. Ou seja, no exato momento em que ela recebe
o perdão, a normalidade social é restabelecida, pelo menos, nas possibilidades do direito de
fazê-lo. Uma vez não qualificada como injusta, mas, pelo contrário, sendo vista como alguém
“normal” (no sentido de “conforme à norma”), a mãe tem a possibilidade de agir de forma a
restabelecer a normalidade social nos âmbitos não jurídicos da existência humana, que são,
diga-se de passagem, muito mais importantes para alguém que acaba de perder um ente
próximo.
4.2 A efetividade do perdão pelo instituto do “perdão presidencial”
e um breve olhar sobre a questão da “paz”
O perdão presidencial é instituto jurídico que, quando utilizado sabiamente pelo chefe
do Estado, pode ser instrumento para restabelecer a normalidade social como também pode
ser instrumento para a manutenção da “paz” a nível internacional23
. Se entendermos paz como
fim do conflito, podemos dizer, por exemplo, que o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da
Silva semeou-a quando, em 2009, perdoou parte da dívida monetária que países africanos
tinham com o Brasil.24
Parece bastante óbvio que, quando o Estado brasileiro deixou de exigir
um direito seu (cobrar a dívida inteiramente) em prol da ajuda a países africanos em estado de
grave subdesenvolvimento, a “paz” ganhou espaço para atuar.
21
Esta idéia é sustentável sob a ótica da ação final fundada por Hans Welzel: como não havia finalidade de que
algo de ruim ocorresse a sua filha, a mãe em questão agiu de forma que não houvesse nenhum elemento
subjetivo típico que pudesse qualificar sua atuação como criminosa. 22
A pena seria, todavia, aplicável sob a ótica da “Imputação Objetiva” tendo em vista o desvalor social (o
significado) da conduta da mãe, que precisaria ser punida para que a norma penal continuasse a ser válida com
plena eficácia, mantendo a expectativa social. Tal é a doutrina defendida recentemente por Claus Roxin e, mais
extremadamente, por Günther Jakobs. 23
Pode-se ler “paz” como sinônimo de “normalidade social”. A diferença de termos ocorre, pois, usualmente, a
nível local-nacional prefere-se utilizar o termo “normalidade social” e a nível internacional prefere-se usar o
termo “paz”. Se pensarmos no mundo globalizado do século XXI como hospedeiro de uma só comunidade, a
“aldeia global”, podemos adotar ambos os termos para ambos os níveis de realidade social. 24
Para mais sobre o caso, consultar: http://www.direito2.com.br/agu/2009/jan/22/procuradoria-consegue-manter-
perdao-presidencial-a-dividas-de-paises, consultado em 9 de julho de 2010.
15
Uma vez em “paz” (quanto às suas dívidas), tais países puderam cuidar de demais
questões políticas que estavam pendentes em seus territórios – e, visto seu estado de
subdesenvolvimento, tais questões pendentes [AIDS? Fome? Seca?] deveriam ser muito mais
graves que cobrir um “mero” déficit financeiro internacional.
4.3 A efetividade do perdão a nível social: o instituto da “anistia”
no Brasil contemporâneo e na comunidade judaico-mosaica
O caso mais polêmico, por sua vez, é o da anistia. No Brasil, a anistia decretada pela
lei 6683, de 1979, é a mais problemática. De acordo com sua redação, o Artigo 1º dispõe que
“ é concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961
e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais
[...]”, de forma que a anistia englobou um grupo bastante abrangente de pessoas que
“lutaram” cada quais em seus lados (militares e não-militares25
).
A anistia constitui um perdão generalizado que toca a um grande número de pessoas.
Temos, aqui, um caso de clara exceção, onde ou o Estado abria uma infinidade de processos
judiciais para julgar a cada um que cometeu crimes na época ditatorial, ou o Estado concedia
anistia a todos, deixando de lado qualquer qualificação jurídica para que a sociedade pudesse
reencontrar seus trilhos políticos em direção a um retorno à democracia o qual, mesmo sem
penas, já seria conturbado.
O caminho seguido foi o segundo, e, a nosso ver, o perdão era realmente a melhor
escolha a ser tomada. A ditadura militar foi um fenômeno social, e, se o Estado brasileiro
quisesse julgar a cada militar e a cada não-militar que cometeu crimes políticos ou eleitorais
na época, as normas jurídicas aplicadas agiriam de forma incoerente, pois não ajudariam a
trazer a sociedade de volta ao seu estado de estabilidade, mas gerariam um caos qualificador
que dividiria a Nação entre justos (com militares e não-militares) e injustos (com militares e
não-militares) o que impediria o Brasil de efetivamente começar o processo de
redemocratização.
25
Não falamos aqui em militares e civis, pois havia civis que apoiaram o governo militar e militares que eram
contra o regime ditatorial militar.
16
Em 2010, a lei 6683/79 foi levada a julgamento ao Supremo Tribunal Federal por
pedido da Ordem dos Advogados do Brasil. Em defesa da manutenção e da não revisão da lei,
o então presidente do STF, Ministro Cezar Peluso, declarou: “se é verdade que cada povo
resolve os seus problemas históricos de acordo com a sua cultura, com os seus sentimentos,
com a sua índole e também com a sua história, o Brasil fez uma opção pelo caminho da
concórdia” e finalizou dizendo que: “uma sociedade que queira lutar contra os seus inimigos
com as mesmas armas, com os mesmos instrumentos, com os mesmos sentimentos está
condenada a um fracasso histórico” 26
.
O presidente do STF, em seu voto favorável à lei, ratificou o aspecto pacificador do
perdão, em especial, ao citar “o caminho da concórdia”, o que pode lembrar-nos o caráter de
um diálogo bem sucedido, pois, somente com uma comunicação efetiva chega-se à concórdia,
diferentemente da discórdia, que pode ser facilmente atingida com um ato arbitrário
unilateral.
De modo semelhante, a Bíblia traz diversas passagens, sobretudo no Antigo
Testamento, em que o povo hebreu foi perdoado como um todo, de modo muito parecido com
a anistia. Assim aconteceu no conhecido episódio do “bezerro de ouro”, narrado no livro de
Êxodo27
. Resumidamente, o texto conta que, contrariamente ao permitido, o povo hebreu (que
havia acabado de fugir do Egito, onde era escravizado) logo se esqueceu de seu Deus e
construiu um bezerro de ouro para adorar. A pena correspondente seria a de morte, mas o
patriarca Moisés interveio pelo povo, que foi perdoado e pode, assim, continuar sua travessia
pelo deserto, distanciando-se do Egito em busca de Canaã, a terra prometida (ÊXODO, in
Bíblia de Promessas, 2006, pp. 98-100).
O povo hebreu tinha um deserto para atravessar. Tal missão seria impossível sob o
peso de um “pecado” generalizado se este não fosse perdoado. Uma vez concedida a “anistia
espiritual”, o povo pode continuar seu caminho rumo à terra prometida.
A história do povo brasileiro, ocorrida mais de cinco mil anos após a do povo hebreu,
parece uma releitura metafórica daquela. Após quase 20 anos de ditadura militar, se o Estado
26
Ambas as citações encontram-se disponíveis em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=125515&caixaBusca=N . 27
Conferir capítulos 32 e 33.
17
brasileiro tivesse se preocupado com as infrações realizadas durante esse período turbulento,
não teria a “paz” necessária para enfrentar o deserto rumo à democracia, a qual ainda está
sendo construída pelo povo brasileiro.
Conclusão
A questão da fundamentação do direito é um ponto flou na história da aplicação do
direito. Não se chegou à verdade absoluta da fundamentação do direito e, mesmo assim, ele
vem sendo utilizado como instrumento que estrutura a sociedade28
desde que esta surgiu (ubi
societas ...). Não foi, entretanto, por falta de busca que não se chegou a tal verdade absoluta.
Como Ferraz Junior destacou, desde a Antiguidade vem-se dando especial enfoque à
“justiça” como o valor que agrega sentido à aplicação do direito, que lhe dá uma perenidade
que transcende as mudanças de que lança mão a dogmática para uma melhor decidibilidade de
conflitos.
É no mesmo sentido que Reale diz que a existência do direito na sociedade implica a
adoção de um valor, e o valor em questão é a justiça – a qual, por sua vez, fundamenta-se na
dignidade da pessoa humana.
Apontamos, contudo, que não é somente na justiça que o direito pode encontrar seu
sentido, mas também no perdão. Justiça e perdão não se confundem. Apesar de podermos
pensar que perdoar alguém foi uma atitude justa, justiça e perdão separam-se pelo fato de
aquele dar as pessoas o que lhes é devido (por direito) e este redimir-lhes do que lhes é devido
(por direito), dando-lhes o que não lhes é seu por direito, mas por graça.
Desta ideia de perdão, encontramos possíveis origens no texto bíblico com a referência
do perdão de Cristo e de diversas passagens onde Deus perdoa o seu povo. Esta noção de
perdão encontramos, também, mas com a devida laicização, nos mais diversos ordenamentos
jurídicos do mundo, e também no brasileiro, nos casos especiais do perdão judicial e
presidencial e da anistia.
28
Acerca do tema, citamos Luhmann (1972, p.7): “Toda convivência humana é direta ou indiretamente cunhada
pelo direito. Como no caso do saber, o direito é um fato social que em tudo se insinua, e do qual é impossível
abstrair. Sem o direito, nenhuma esfera da vida encontra um ordenamento social duradouro[...]”.
18
Se há alguma conclusão a que se chegar é esta: o perdão é um valor de origens
também muito positivas (se comparado à justiça) o qual também pode ser utilizado para a
fundamentação de atos jurídicos. Tais atos jurídicos ganham o caráter de excepcionalidade,
pois, via de regra, quer-se que o direito seja justo. Em tais casos excepcionais, é preferível
perdoar, pois, geralmente, precisa-se que a normalidade social seja o mais rapidamente
restabelecida. Como o perdão não qualifica as pessoas juridicamente, cabe a ele ser aplicado.
Ainda há que se dizer que, com sua aplicação, o perdão gera um diálogo29
efetivo
entre o aplicador do direito e o réu, de modo que aquele é convidado a participar da ação
jurídica (o que lhe agrega caráter de ação comunicativa) e a reconhecer o valor de ser
perdoado e não receber a sanção que lhe cabia, aumento suas possibilidades de reintegração
social.
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2009.
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reflexões de Hans Kelsen e de tercio Sampaio Ferraz Junior. In Revista da faculdade de
Direito FAAP, vol.2(2), São Paulo – 2002/2003
29
Se pensarmos que a concessão do perdão estabelece um diálogo (aplicador do direito-réu) pode-se extrapolar a
noção de ação comunicativa enquanto se concede o perdão, e pensar-se em uma “ação dialógica”. A diferença
que propomos aqui baseia-se na ideia de diálogo (segundo a concepção bakhtiniana do mesmo) a qual expressa
sempre caráter de “responsividade” (conferir Brait, 2005, p. 21), neologismo que expressa a “responsabilidade” e
a “responsividade” da ação. Assim, a ação deixa de ser enxergada como uma ação pessoal realizada (pelo
médium da linguagem) em conjunto, ou perante a sociedade, mas passa a ser vista como dependente da
sociedade. No caso do perdão, aquele que o concede é, até certo limite, responsável pelo que estabelece,
enquanto, por outro lado, aquele que o recebe necessita dar uma resposta de efetivação (sob pena de não se
estabelecer diálogo) de modo que sua nova ação (sua resposta) inicia um novo ciclo de ações das quais ela será,
por sua vez, responsável e exigirá resposta dos demais entes da sociedade (de onde cremos possa-se esperar uma
digna ressocialização).
19
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