unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
KELLI MESQUITA LUCIANO
REFERÊNCIAS HISTÓRICAS E O REALISMO MÁGICO EM IL
BARONE RAMPANTE, DE ITALO CALVINO
ARARAQUARA – S.P.
2012
KELLI MESQUITA LUCIANO
REFERÊNCIAS HISTÓRICAS E O REALISMO MÁGICO EM IL
BARONE RAMPANTE, DE ITALO CALVINO
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em “Estudos Literários” da Faculdade de Ciências e
Letras – Unesp/Araraquara, como requisito
para obtenção do título de Mestre em “Estudos Literários”.
Linha de pesquisa: Teorias e crítica da
narrativa
Orientadora: Profª Drª Claudia Fernanda
de Campos Mauro
Bolsa: CNPq
ARARAQUARA – S.P
2012
Luciano, Kelli Mesquita
Referências históricas e o realismo mágico em Il barone rampante de
Italo Calvino / Kelli Mesquita Luciano - 2012
107 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de
Araraquara
Orientador: Claudia Fernanda de Campos Mauro
l. História. 2. Realismo mágico. 3. Literatura italiana.
4. Calvino, Italo, 1923-1985. 5. Alegoria. I. Título.
KELLI MESQUITA LUCIANO
REFERÊNCIAS HISTÓRICAS E O REALISMO MÁGICO EM IL
BARONE RAMPANTE, DE ITALO CALVINO
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em “Estudos
Literários” da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção
do título de Mestre em “Estudos Literários”.
Linha de pesquisa: Teorias e crítica da
narrativa
Orientadora: Profª Drª Claudia Fernanda
de Campos Mauro
Bolsa: CNPq
Data da defesa: 30/05/2012
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
Presidente e Orientador: Profª Drª Claudia Fernanda de Campos Mauro
Universidade Estadual Paulista – UNESP/ FCL – Campus de Araraquara
Membro Titular: Profª Drª Karin Volobuef Universidade Estadual Paulista – UNESP/ FCL – Campus de Araraquara
Membro Titular: Profª Drª Adriana Lins Precioso
Universidade Estadual do Mato Grosso – UNEMAT – Campus de Sinop
Membro Suplente: Profª Drª Ana Luiza Silva Camarani
Universidade Estadual Paulista – UNESP/ FCL – Campus de Araraquara
Membro Suplente: Profª Drª Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade
Universidade Estadual Paulista – UNESP/ FCL – Campus de Assis Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
Dedico aos meus pais, Natalia e Lourival,
que sempre me apoiaram
incondicionalmente.
AGRADECIMENTOS
Acima de tudo, agradeço a Deus, que me deu motivação para os estudos, dessa forma,
possibilitou meu ingresso nessa Universidade renomada, que é a UNESP, assim como, minha
aprovação no exame de Mestrado, além de sempre, ter me dado forças para enfrentar as
dificuldades intrínsecas a vida, que escolhi, até porque, para tanto, como ocorre com muitos
estudantes universitários, tive que morar longe da minha família e, nem sempre podia visitá-la,
o tanto que gostaria.
Presenças que são primordiais na minha vida, minha mãe e meu pai, Natalia e Lourival,
meu irmão, Denis e minha tia e madrinha, Gilda, que apesar das dificuldades, nunca deixaram
de me apoiar e de acreditar em mim.
Nestes oito anos, em contato com a Unesp, envolvendo a Graduação e o Mestrado, pude
conhecer pessoas de diferentes lugares, que assim como eu, também transpuseram os
obstáculos, que surgiam, além de terem uma participação muito significativa em minha vida, em
ordem aproximadamente cronológica de conhecimento, pude conviver com pessoas, como: a
Kellen, a Silmara, a Rose, o Thiago e o Guilherme, que integravam o que chamávamos de
“Bloco C”, que pertencia a Moradia Estudantil.
Outras figuras as quais devo mencionar e que fizeram grande diferença no meu
convívio social, devido às boas conversas, ótimos momentos, “passeios de índio”, aventuras,
baladas, realização de trabalhos acadêmicos, amigos, que em certos casos, deixaram saudade,
por causa da distância: Bruna Carrino, Giovana, Andréia, Priscila, Keila, Rosely, Marina
Morgado, Alexandra, Noemi, Rodolfo Fernandes, Laudy, Susana, João Francisco, Cleber, Carol
Bianco, André Modesto, Israel, Thiago Andreu, Patrícia Aparecida, Gabriel, Patrícia Iagallo,
Pedro, Cátia, Bianca, Renata Rocha, Kelly, Karina, Gracy eTati.
Há também, os vizinhos de quitinete, com os quais pude conviver por algum tempo
dividindo momentos emocionantes, inusitados e divertidos e, que com o passar do tempo
tornaram-se amizades muito relevantes: Vanessa Faria, com quem dividi uma quitinete por um
ano, o casal: Vanessa e Guilherme, Elis Piera, André, Ana Paula, Sylvia, Fernanda, Luciana,
Gisele Nicácio e Patrícia Falasca, com quem dividi uma quitinete por quatro anos. As atuais
vizinhas: Irene e Ideko, que sempre se mostraram muito prestativas comigo.
Aos queridos, que assim como eu, também, já foram estagiários do Laboratório de
Informática: Aline, Lilian, Luciana, Allan, Felipe, Verônica, Natalia e Cinthia. Ao pessoal do
reingresso em Espanhol: Josy (Irmã), Estela, Júlio, Mário Henrique e Elton, que me garantiram
momentos de grande descontração e camaradagem e ao pessoal da biblioteca pela gentileza e
solicitude.
Ao amigo, Fernando Góes, pela revisão do texto da Dissertação.
Ao Juliano, meu namorado, amigo e companheiro, por todo carinho, atenção e paciência
dispensados a mim.
Às professoras das áreas de Língua e Literatura Espanhola: Profa. Dra. Maria Dolores
Aybar Ramirez, Profa. Dra. Silvia Beatriz Adoue e Profa. Dra. Nildicéia Aparecida Rocha, que
fortaleceram meu interesse pela língua, cultura e literatura espanhola; cultura e literatura
hispano-americana.
À Profa. Dra. Maria Gloria Cussumano Mazzi, que em 2006, foi a minha primeira
orientadora de Iniciação Científica, e, que também contribuiu para o meu interesse pela língua e
literatura italiana, a partir de leituras presenciais sobre Luigi Pirandello, ela também favoreceu a
minha incursão num Estágio Departamental sobre a Gramática Italiana. À Profa. Dra. Lígia Iara
Vinholes, que foi minha orientadora em 2007, e, que possibilitou o meu contato e encantamento
com a obra de Italo Calvino.
À Profa. Dra. Karin Volobuef, que me orientou desde 2008 até o início do segundo ano
de Mestrado, em 2011, devido ao seu ingresso em um Curso de Pós-Doc, sua orientação foi
muito importante e permitiu que eu tivesse acesso a terminologias como o Realismo Mágico e
suas ocorrências na literatura calviniana. Ressalto também a orientação da Profa. Dra. Claudia
Fernanda de Campos Mauro, que foi minha Co-orientadora de Mestrado até o início de 2011, e
que passou a ser minha Orientadora na Dissertação de Mestrado, e, que teve um papel
fundamental para que eu aprofundasse meus conhecimentos sobre o fazer poético de Italo
Calvino, tal como suas inspirações e contextualização histórica.
Às Profas. Dras., que participaram do Exame de Qualificação, Sylvia Tellarolli e Ana
Luiza Camarani, que fizeram críticas construtivas e sugestões de extrema importância para a
qualidade da Dissertação. Sendo que também, tive a oportunidade de cursar a disciplina
“Variações do Realismo Mágico”, ministrada pela Ana Luiza, e, que foi de grande valia para o
esclarecimento de eventuais dúvidas sobre o assunto, além de ter acrescentado satisfatoriamente
à Redação final da Dissertação de Mestrado.
Às. Profas. Dras. titulares, Karin Volobuef e Ariana Lins Precioso e às suplentes, Profa.
Dra. Ana Luiza Camarani e Profa. Dra. Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade, que aceitaram o
convite para o Exame da Defesa do Mestrado, e que somaram, positivamente e
memoravelmente, no processo de finalização da Dissertação.
E, enfim, ao CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico,
pelo financiamento da Bolsa de Mestrado.
“Esforça-te, e tem bom ânimo; não pasmes, nem te espantes: porque o Senhor
teu Deus é contigo, por onde quer que andares” (BÍBLIA, Josué, 1,9).
RESUMO
Esta Dissertação objetiva a análise do romance “Il barone rampante”, que faz parte da
trilogia I Nostri Antenati (1950-1960), em que também estão reunidos os romances “Il
visconte dimezzato” e “Il cavaliere inesistente”, de Italo Calvino (1923-1985).
Buscamos analisar num primeiro momento, alguns fatores que influenciaram a escrita
calviniana, como os movimentos de Resistência na Itália, que visavam lutar contra as
atrocidades da Primeira e da Segunda Guerra Mundial e do fascismo, como também
algumas características da estrutura da fábula, que podem ser identificadas no romance
estudado, a partir das atitudes de benfeitor de Cosme que o qualificam como um herói,
pois passa por diversas dificuldades e lutas em favor do bem comum de todos. Na
segunda parte da Dissertação, evidenciamos algumas referências históricas feitas à
Revolução Francesa e ao Iluminismo e seus pontos de intersecção com o contexto
histórico, em que Calvino viveu período, que envolveu Guerras e movimentos de
grande repercussão e repressão como: o fascismo, o nazismo e o socialismo; menções
de espaços reais e de Instituições históricas e de referências a figuras históricas como:
Napoleão Bonaparte, Rousseau, Diderot, entre outros. No final da Dissertação,
apontamos certas características que aproximam Il barone rampante a variedade do
realismo mágico metafísico, como, por exemplo, a decisão do protagonista, Cosme de
morar sobre as árvores, entre outros eventos. Além disso, comentamos algumas
significações alegóricas em relação ao contexto histórico da narrativa, que remete na
realidade ao século XX, época em que Calvino viveu e sobre a alegoria do intelectual
Cosme a partir da sua mudança de ponto de vista sobre as árvores, que induzem a
reflexão pela necessidade da valorização da educação e pela manutenção da esperança
no progresso humano e tecnológico a fim de uma vivência em sociedade mais justa e
igualitária. Por fim, buscamos comentar elementos simbólicos, como a árvore, espaço
que Cosme passa a maior parte de sua vida e o balão de gás, instrumento que viabiliza o
desaparecimento do protagonista pelos ares.
Palavras-chave: História; realismo mágico; Italo Calvino; literatura italiana; alegoria.
ABSTRACT
This thesis aims to analyze the novel "Il barone rampante," which is part of the trilogy I
nostri Antenati (1950-1960), who are also gathered in the novels "Il visconte
dimezzato" and "Il cavaliere inesistente" by Italo Calvino (1923-1985).We analyze at
first, some factors that influenced the writing calviniana, as movements of Resistance in
Italy, aimed at fighting against the atrocities of the First and Second World War and
fascism, but also some characteristics of the structure of the fable, which can be study
identified the novel, from the attitudes of benefactor of Cosme which qualify as a hero,
which goes through many hardships and struggles in favor of good all in common. In
the second part of the dissertation, we noted some historical references made in the
novel, about the French Revolution and the Enlightenment and their points of
intersection with the historical context in which Calvino lived, involving wars and
movements of great impact and repression as fascism, nazism and socialism; terms of
actual areas and historical institutions and references to historical figures as Napoleon,
Rousseau, Diderot, and others. At the end of the dissertation, we point out certain
features that bring Il barone rampante variety of metaphysical magic realism, for
example, the decision of the protagonist, Cosme living on trees, and other events. In
addition, we discuss some allegorical meanings in relation to the historical context of
the narrative which actually refers to the twentieth century, a period in which Calvin
lived and about allegory of the intellectual Cosme from his change of view on the trees,
which lead to reflection by need for enhancement of education and the maintenance of
hope in human progress and technology to living in a more just and egalitarian society.
Finally, we comment on symbolic elements such as tree space Cosme spends most of
his life and the gas balloon, an instrument that enables the disappearance of the
protagonist in the air.
Keywords: History; magic realism; Italo Calvino; italian literature; allegory.
SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO................................................................................................................11
2. ITALO CALVINO E ELEMENTOS DA NARRATIVA IL BARONE RAMPANTE..................16
2.1. Italo Calvino.............................................................................................................16
2.1.2. Calvino, a Resistência Italiana e o Neorealismo...................................................17
2.1.3. Calvino e as fábulas...............................................................................................19
2.1.4. Calvino e as influências da imaginação na tessitura de Il barone rampante.........21
2.2. I nostri antenati........................................................................................................23
2.3. Narrador e Focalização ............................................................................................24
2.4. Indicações de tempo e de espaço..............................................................................28
2.5. O Protagonista, Cosme.............................................................................................33
2.5.1. Cosme e a problemática do intelectual diferenciado pelo conhecimento e recluso
por traumas......................................................................................................................40
2.6. Personagens secundárias..........................................................................................48
3. REFERÊNCIAS HISTÓRICAS EM IL BARONE RAMPANTE E CONFLUÊNCIAS COM O
CONTEXTO HISTÓRICO, EM QUE CALVINO VIVEU E ESCREVEU A OBRA...................57
3.1. Espaços de existência reais mencionados em Il barone rampante...........................66
3.2. Referências a personagens históricos em Il barone rampante.................................67
3.3. Referências a Instituições históricas em Il barone rampante...................................71
3.4. Referências intertextuais Il barone rampante..........................................................76
4. O REALISMO MÁGICO, A ALEGORIA E OS SÍMBOLOS EM IL BARONE RAMPANTE...80
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................101
6.REFERÊNCIAS.............................................................................................................103
11
1.INTRODUÇÃO
A extensa produção de Italo Calvino (1923-1985) inclui contos, romances,
ensaios, entre outros. Analisaremos “Il barone rampante”, segundo romance da trilogia I
Nostri Antenati (1950-1960), em que também estão reunidas as narrativas “Il visconte
dimezzato” e “Il cavaliere inesistente”.
A história de Il barone rampante (1957) é iniciada em 1767, no século XVIII,
em que são evocados períodos de Revoluções e da Restauração na Europa. É narrada a
vida de Cosme, desde sua adolescência, velhice e posterior morte. Faz-se necessário
apontar que Cosme Chuvasco de Rondó vive num momento divisor de águas entre o
Antigo Regime e a Europa Moderna.
Na análise de Il barone rampante evidenciam-se as incertezas, o conflito entre o
interior do indivíduo e a realidade externa – o que se expressa mediante a ocorrência de
acontecimentos insólitos, estes nos são relatados por Biágio de Rondó, narrador-
personagem e irmão mais novo de Cosme de Rondó, o protagonista, que pertence à
uma família aristocrata. O protagonista discute com seu pai, o Barão Armínio de Rondó,
e por causa desse desentendimento passa a morar na copa das árvores, de onde nunca
mais desce até o resto de sua vida.
No primeiro item, comentaremos algumas características fundamentais da feitura
poética de Calvino e alguns elementos da narrativa, como: narrador e focalização;
indicações de tempo e espaço; traços marcantes do protagonista Cosme e das
personagens secundárias. Observaremos, também, em que medida a personagem Cosme
Chuvasco de Rondó representa o intelectual com formação iluminista, esta só será
possível por meio do desenvolvimento do “fiabesco”, isto é, do conjunto de situações
que na trama do romance, levam ao distanciamento progressivamente crítico. Este
distanciamento é simbolizado por sua teimosia em não descer das árvores e o leva a
conhecer outras formas de pensamento por meio dos estudos sobre filosofia, sobre
grandes pensadores, entre outros. Desse modo, elucidaremos alguns pontos de
intersecção existentes entre algumas ocorrências históricas feitas no romance Il barone
rampante e algumas presentes no contexto de Calvino.
No item segundo, trataremos algumas referências históricas, que são feitas em Il
barone rampante, que transcorre no século XVIII, assim como alguns pontos de
convergência com o contexto histórico não ficcional do século XX, período no qual
Calvino escreveu a obra, haja vista que ambos os momentos apresentam pontos de
12
ligação, como, por exemplo, a decepção do intelectual de esquerda com a sociedade e
com posturas políticas que o norteiam. Para tanto, faremos uso de alguns teóricos sobre
esses acontecimentos históricos.
De acordo com Bonura, em Invito alla lettura di Calvino (2002), Calvino opta
por tratar questões iluministas e da Revolução Francesa a fim de compará-las ao
momento em que viveu, pois no século XVIII, houve a frustração proveniente da não
concretização dos ideais iluministas preconizados naquela época. O Iluminismo pregava
os ideais de liberdade, igualdade e propriedade, fundamentava-se na importância da
razão em detrimento da ignorância que corresponderia às trevas. Essa forma de
pensamento possibilitou que o século XVIII, ficasse conhecido como Século das Luzes,
período em que a filosofia iluminista influenciou a Revolução Francesa, por meio de
seus ideais libertários em busca da igualdade social.
Em A Revolução Francesa (1976), Lefebvre expõe que este movimento
revolucionário, originário na França, teve seu estopim em 1789, a partir dos ideais de
liberdade, igualdade e fraternidade, que prometiam amplas alterações sociais e de fato,
causou grandes mudanças na forma de pensar o mundo além de marcar uma época e a
História. Se por um lado, houve algumas melhorias, como, por exemplo, a abolição do
Antigo Regime, ou seja, o fim da monarquia absolutista, que representava um governo
centrado no poder absoluto do rei e o fim dos feudos. Podemos inferir que esses
acontecimentos favoreceram o fim dos privilégios da aristocracia do Antigo Regime.
Desse modo, os camponeses não possuíam mais as obrigações feudais, que os prendiam
aos nobres e ao clero e a Igreja não poderia mais influenciar nas decisões do Estado.
Por outro lado, a Revolução também teve aspectos negativos, pois esse
movimento reprimiu todos aqueles que não compartilhassem de sua ideologia por meio
do advento da guilhotina, ocorrendo até mesmo, a decapitação do rei Luís XVI e da
rainha Antonieta. Soma-se a isso o fato de que as diferenças sociais, a pobreza e a fome
permaneceram, a Revolução impulsionou principalmente a ascensão da burguesia e a
concretização do modo de produção capitalista. Além do que, o recurso da guilhotina
propiciou a morte de muitas pessoas, e os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade
pareciam ter fracassado.
Em 1804, quando Napoleão Bonaparte assumiu o poder da França, ele tinha o
objetivo de colocar ordem no país, ele chegou a adotar uma política paternalista e
também reprimiu os intelectuais, que não compartilhavam de sua política imperial por
intermédio da censura à imprensa e às universidades, além de controlar o ensino pelo
13
Estado. O governo do Imperador favoreceu, principalmente, as conquistas burguesas,
em detrimento das classes populares, que haviam dado grande contribuição à
Revolução, como o fato de terem disseminado as ideias liberais pela Europa.
Principalmente, após a derrota de Napoleão Bonaparte, a Restauração Absolutista na
Europa (1814-1830), teve êxito e trouxe o retorno ao Antigo Regime, pois em 1913,
havia sido formada a Quadrupla Aliança, composta pela: Rússia, Áustria, Prússia e
Inglaterra. Essas potências fizeram negociações com o intuito de inibir o liberalismo e o
nacionalismo na Europa ocidental a fim de reestabelecer o absolutismo que vigorava,
antes do período revolucionário e impedir que Napoleão e seus descendentes ocupassem
o trono francês, de modo que tudo pareceu voltar ao que era antes da Revolução.
No Congresso de Viena (1814-1815), foi estabelecida a Restauração das
dinastias dos países derrotados por Napoleão e pelo exército francês e os avanços
liberais, que haviam sido alcançados em países tomados pela França, como, por
exemplo, a abolição da servidão e a igualdade jurídica foram anuladas. O Tratado de
Paris, que data de 20 de novembro de 1815, teve um papel muito importante para a
Restauração, visto que estabelecia o controle de seus países signatários, ou seja, das
grandes potências aliadas à Quadrupla Aliança, que foi renovada, pois buscava evitar a
expansão de qualquer país europeu, que pudesse se tornar uma potência semelhante ao
Império Napoleônico e que pudesse impedir a paz na Europa. O Tratado previa também,
a proibição da criação de novos Estados nesse continente. Em 1918, após pagar as
dívidas de guerra, a França foi aceita na Quádrupla Aliança, que passou a se chamar
Quíntupla Aliança.
Italo Calvino tem este contexto em mente, que é trabalhado com certa ironia e
humor por intermédio de referências à Revolução Francesa em Il barone rampante. A
partir da decisão de Cosme de morar sobre as árvores, Calvino aborda questões
existenciais que traduzem a busca por uma totalidade inatingível, a fragmentação do
homem moderno, a ruptura com a sociedade tradicional e a recusa dos papéis por ela
atribuídos ao indivíduo. É amplo o leque formado por esses aspectos – que inclusive
não excluem a interface com eventos da realidade sócio-histórica da primeira metade do
século XX, período em que se dá a produção narrativa, como observaremos a seguir.
Nesse momento histórico, a Europa estava assolada pelos vestígios da Primeira Guerra
Mundial, havia altos índices de desemprego e miséria, diante dessa realidade, surgiram
discursos que prometiam alternativas para estes problemas. Tais discursos eram
14
pregados pelo fascismo italiano, pelo nazismo alemão e pelo socialismo na Rússia,
como comentaremos agora.
O fascismo eclodiu em 1919, foi um movimento composto por ex-combatentes
da Primeira Guerra, que acreditavam que as dificuldades só seriam superadas se
houvesse uma forte repressão dos interesses individuais, pois o excesso de liberdade
conduziria ao poder da minoria sobre a maioria, por isso todos deveriam se submeter à
obediência incondicional a um líder. Em 1922, Benito Mussolini iniciou uma ditadura
que obteve grande apoio popular, por causa de suas promessas de reformas sociais e
obras públicas. Tais promessas aproximaram Mussolini de Hitler e na Segunda Guerra
Mundial (1940), o italiano participou desta Guerra, em parceria com a Alemanha. 1
Em 1920, o movimento nazista ganhou muitos adeptos, pois a população estava
descontente com a situação econômica causada pela Primeira Guerra, assim como os
fascistas italianos, os alemães também pretendiam a criação de um Estado forte, que
deveria ser guiado por um líder supremo que em 1933, veio a ser Adolf Hitler. A
ideologia nazista era disseminada por meio de propagandas maciças. Para os nazistas,
eles teriam o domínio das demais raças humanas, por integrarem a raça ariana que era
superior às outras, por isso condenavam aos campos de concentração todos que não
pertencessem a esta raça principalmente, ciganos, judeus, entre outros. Nesses campos,
multidões passaram fome, sofreram maus tratos, torturas e eram mortos em grande
número, inclusive em câmeras de gás.
Em 1930, quando Josef Stalin assumiu o governo da Rússia, ele instaurou o
Plano Quinquenal que estabelecia o crescimento econômico num prazo de cinco anos. A
Revolução teve grande apoio graças às propagandas panfletárias. Apesar das metas de
melhorias econômicas, não havia tanta igualdade como se era de esperar, pois os
opositores de Stalin eram presos e condenados aos gulags, campos de concentração,
onde eram obrigados ao trabalho forçado ou até mesmo condenados à morte. Tal
situação se assemelhava aos governos nazi-fascistas, no que concerne ao autoritarismo e
a repressão exarcebada das ideologias opostas às suas.
Esses eventos influenciaram a produção dos escritores da época de Calvino, que
tem esse contexto em mente, bem como suas consequências específicas para a Itália,
pois, quando Calvino escreveu Il barone rampante, no país refeirdo, no século XX,
presenciava-se o pós-guerra, a crise positivista e a decepção com os movimentos nazi-
1 As informações sobre os movimentos a serem referidos: fascismo, nazismo e socialismo estão
disponíveis em: http://www.cruzdeferro.com.br/index_arquivos/fascismo2.htm, acesso em: 20
15
fascistas e com os socialistas preconizados pela URSS, pois seu líder ao assumir seu
poderio também teve atitudes que poderiam ser consideradas tão ditatoriais e
repressoras, quanto as tomadas pelos governos fascista e nazista. Além da ocorrência da
Primeira e da Segunda Guerra Mundial, acontecimentos que deixaram um espírito de
descrença nos intelectuais, que presenciaram essas tragédias.
No último item, analisaremos alguns traços da terminologia realista mágica a
partir de eventos inusitados da narrativa, tendo em vista a contextualização em que
ocorrem e seus posteriores desenvolvimentos como o fato do protagonista ir morar nas
árvores e recusar-se a voltar para a terra.
Por fim, nos debruçaremos sobre algumas conceituações sobre a alegoria e os
símbolos a fim de fazermos relações entre estes a partir da temática do intelectual que
muda de ponto de vista para ampliar seu campo de visão e que mantém a esperança na
transformação da sociedade num mundo mais unido e justo, calcado na importância da
educação, da tecnologia, do progresso e da refelxão crítica. Embora, Cosme presencie
em sua realidade: a alienação, muitas injustiças e desigualdades, a decisão de se manter
sobre as árvores, alude à crença na melhoria da convivência em sociedade no futuro.
16
2. ITALO CALVINO E ELEMENTOS DA NARRATIVA IL BARONE
RAMPANTE
2.1. Italo Calvino
Italo Calvino nasceu em 15 de outubro de1923, em Santiago de Las Vegas, num
vilarejo próximo a Havana, em Cuba. Filho de pais cientistas, o pai era agrônomo e a
mãe botânica. Em 1925, a família do autor foi morar na Itália, na região da Ligúria, em
Sanremo, onde Italo viveu até os 20 anos. Como sua família era anticlerical e
republicana, ele não teve uma educação religiosa. Aos 18 anos, Calvino chegou a
matricular-se no curso de Agronomia, na Universidade de Turim, todavia não concluiu
o curso, pois sua predileção pela literatura era mais latente.
Em 1945, Calvino integrou a República Social Italiana, fez parte das Brigadas
“Garibaldi” e durante a Resistência Italiana aderiu ao Partido Comunista e, após sua
dispensa, começou a escrever em 1945, ano em que também teve maior contato com o
jornal Il Politecnico, de Vittorini. Os primeiros contos de Calvino traduziam o espírito
da guerra e da luta partigiana2 ocorridas nesse período. Vale lembrar que todas as suas
obras foram editadas pela Editora Einaudi. Ele também estudou Letras na Universidade
de Turim e em 1947, graduou-se em Literatura Inglesa e mudou-se para Milão, onde
trabalhou com Vittorini no jornal Il Politecnico. Calvino teve contato com grandes
escritores e críticos como Alberto Moravia, Carlo Levi, Elsa Morante e Natalia
Ginzburg. O autor também foi ativista do P.C.I., Partido Comunista Italiano e escreveu
sobre política, sindicatos, agricultura, indústrias, e também foi colaborador dos jornais
Giorno e Corriere della sera.
Em 1957, ele desvinculou-se do Partido Comunista. Entre 1959 e 1965,
período em que ocorria o chamado boom econômico e industrial, o autor dirigiu junto
com Vittorini, a revista “Il Menabò” que objetivava debater as relações entre literatura e
indústria, ou seja, entre a cultura e a realidade econômica social. Em 1964, Calvino
casou-se e mudou-se para Paris. Por fim, faleceu em Siena, em 1985.
Em Invito alla lettura di Calvino, Bonura comenta a origem familiar do autor e
aponta para o fato de que o próprio escritor considera-se a ovelha negra da família por
ter seguido um caminho diferente de seus familiares que eram ligados a profissões
científicas:
2 Movimento de resistência ao nazi-fascismo.
17
Sono figlio di scienziati: mio padre era un agronomo, mia madre una
botanica; entrambe professori universitari. Tra miei familiari solo gli studi
scientifici erano in onore, un mio zio materno era un chimico, professore
universitario. Io sono la pecora nera, l’único letterato della familia [...].3
(CALVINO apud BONURA, p.21, 2002)
Calvino demonstra grande conhecimento de diferentes espécies vegetais da
natureza, justamente por ser filho de cientistas e por ter vivido em ambientes cercados
por plantas de diversos tipos, como atestam suas póprias palavras: “Ho vissuto con i
miei genitori a Sanremo fino a vent’anni, in un giardino pieno de piante rare ed
esotiche [...]”4 (CALVINO apud BONURA, p.22, 2002). Devemos observar que o
autor teve a oportunidade de ter um contato tão próximo à natureza e que ele utiliza-se
de descrições minuciosas sobre elementos da mesma em Il barone rampante, até porque
a narrativa se passa, fundamentalmente, sobre as árvores e em meio aos bosques da
região de Penúmbria.
2.1.2. Calvino, a Resistência Italiana e o Neorealismo
Em Literatura e resistência, Bosi comenta as origens do movimento de
Resistência Italiana em relação aos governos despóticos e repressores que vigoraram
por algumas décadas na primeira metade do século XX, como o fascismo, o nazismo,
entre outros que, por sua vez, influenciaram a escrita dos escritores deste referido
período histórico, no que se refere às formas de enxergar e denunciar a realidade
dilacerante e inexorável que abalava a todos que a presenciaram:
O termo Resistência e suas aproximações com os termos “cultura”, “arte”,
“narrativa” foram pensados e formulados no período que corre,
aproximadamente, entre 1930 e 1950, quando numerosos intelectuais se
engajaram no combate ao fascismo, ao nazismo e às suas formas
aparenteadas, o franquismo e o salazarismo. O que os italianos chamavam de
partigiani e os franceses logo traduziram como partisans significa
participação, partido, luta de uma facção que se rebelou contra as milícias
nazi-fascistas que ameaçaram apossar-se da Europa no fim dos anos 30 e só
foram derrotados em 1945.
3 “Sou filho de cientistas: meu pai era um agrônomo, minha mãe uma botânica; ambos professores
universitários. Entre meus familiares só os estudos científicos eram honrosos, um dos meus tios era
químico, professor universitário. Eu sou a ovelha negra, o único literato da família [...]”(CALVINO apud
BONURA, p.21, 2002, tradução nossa). 4 “Vivi com meus pais em Sanremo até os vinte anos, em um jardim repleto de plantas raras exóticas
[...].” (CALVINO apud BONURA, p.22, 2002, tradução nossa).
18
Foi um tempo excepcional, um tempo quente de união de forças
populares e intelectuais progressistas. Tempo que perdurou na memória dos
narradores do imediato pós-guerra, e que produziu o cerne da chamada
literatura de resistência [...]. (BOSI, 2002, p. 125)
Em Come leggere I nostri antenati (Il visconte dimezzato – Il barone rampante –
Il cavaliere inesistente) de Italo Calvino (1999, p. 7), Di Carlo traça pontos importantes
sobre o contexto e os objetivos da feitura poética neorealista, movimento que surgiu na
década de 50 do século XX, momento em que se presenciava a Guerra Fria entre os
EUA e a URSS. O neorealismo explora os horrores do governo fascista, as atrocidades e
crueldades da guerra e o heroísmo do movimento de Resistência ao regime ditatorial na
Itália. Trata-se, portanto, do período do pós-guerra, quando se almejava a liberdade e os
intelectuais testemunhavam o sofrimento da nação e também suas esperanças. Neste
tipo de literatura, observava-se o preciosismo, o purismo, o impressionismo, o
individualismo hermético, o emprego da metáfora e de alegorias. O autor remete-se a
Calvino, que foi influenciado pelo neorealismo em sua feitura poética:
Si trattava, come dirá poi lo stesso Calvino nel’60, de non accettare
“passivamente la realtà negativa” di quel tempo, esprimendo “non solo la
sofferenza di quel particolare momento ma anche la spinta a uscirne”,
attraverso una “storia de fantasia”, rimmentendovi, però, “Il movemento, la
spacconeria, la crudezza, l’economia di stile, l’ottimismo spietato che erano
stati della letteratura della Resistenza”.5 (CALVINO apud DI CARLO,
1999, p.12)
Em Il barone rampante, Calvino utiliza-se da Revolução Francesa e do
Iluminismo como uma forma de inferir os acontecimentos que desancadearam os
movimentos de Resistência Italiana, como mencionado acima, esta estratégia alegórica
confere ao texto um tom humorístico, pois são feitas descrições de eventos marcantes
para o momento histórico do século XVIII, como por exemplo, o advento da guilhotina
que conduziu a decaptação em massa de todo aquele que fosse suspeito de trair essa
ideologia, no episódio, em que a irmã de Cosme, Batista relata as mortes e exemplifica
por meio de uma mini-guilhotina e com lagartixas, que tinham as cabeças cortadas pela
lâmina. No romance estudado, também é possível verificarmos o emprego de metáforas
5 “Tratava-se, como disse depois o próprio Calvino nos anos 60, de não aceitar “passivamente a realidade
negativa” daquele tempo, exprimindo “não só o sofrimento particular daquele momento, mas também o
estímulo para sair dele” através de uma “história de fantasia”, perdendo-as, porém, “O movimento, a
arrogância, a crueza, a economia de estilo, o otimismo desapiedado características típicas na literatura da
Resistência” (CALVINO apud DI CARLO, 1999, p.12, tradução nossa).
19
que aludem a passagem do tempo de maneira mais poética, além de elementos
simbólicos como o balão e os livros, que asssumem na narrativa um teor mágico, uma
vez que se referem a uma visão diferenciada e atrelada à terminologia do realismo
mágico, como trataremos no último item da Dissertação.
2.1.3. Calvino e as fábulas
Manacorda aponta em Storia della letteratura italiana comtemporanea (1940-
1975), algumas considerações de Italo Calvino sobre a fábula. Para o autor ela serve
como meio de transmissão dos momentos mais fundamentais da existência humana,
pois possibilita a abordagem de certos temas: a liberdade, a solidão, o medo, a luta, o
bem e o mal, o progresso, a razão, entre outros. Ressaltamos que essas temáticas são
expressas em Il barone rampante, a partir das experiências de vida do protagonista,
Cosme, que é um benfeitor, pois almeja a liberdade e o bem comum para todos; luta em
favor do progresso e da razão, que são vistos por ele como instrumentos de benefícios
sociais, mas também é incompreendido por muitos e por isso, muitas vezes, encontrava-
se solitário, esta situação pode ser equiparada a seguinte colocação de Manacorda que
reflete o tratamento das dificuldades da vivência do homem numa sociedade
massacrante:“[...] lo schema insostituibile di tutte le storie umane, resta il disegno dei
grandi romanzi esemplari in cui una personalità morale si realizza muovendosi in una
natura o in una società spietata”6 (1979, p. 268).
Além disso, para Calvino a fábula tem intenções morais que podem ser postas
em evidência: “in una letteratura che sai presenza attiva nella storia, in una letteratura
como educazione”7 (1979, p. 268), já que por meio da literatura é possível tratar
assuntos presentes na realidade humana, inclusive como forma de incentivar
satisfatoriamente a atividade reflexiva e a visão crítica dos leitores.
Calvino em Una pietra sopra. Discorsi di letteratura e società, considera
relevantes os traços de superação e traços cavaleirescos encontrados em obras antigas,
pois ajudam a tratar a síntese da vida, isto é, as constantes dificuldades e superações
pelas quais os seres humanos passam:
6 “[...] no esquema insubstituível de todas as histórias humanas, permanece a concepção dos grandes
romances exemplares, nos quais, uma personalidade moral se realiza movendo-se em uma natureza ou em
uma sociedade desapiedada” (MANACORDA, 1979, p. 268, tradução nossa). 7 “em uma literatura que seja presença ativa na história, em uma literatura como educação”
(MANACORDA, 1979, p. 268, tradução nossa).
20
Mi interessa della fiaba il disegno lineare della narrazione, il ritmo,
l’essenzialità, il modo in cui il senso d’una vita è contenuto in una sintesi di
fatti, di prove da superare, di momenti supremi. Così mi sono interessato del
rapporto tra la fiaba e le più antiche forme del romanzo come il romanzo
cavalleresco del Medioevo e il grande poema del nostro Rinascimento. 8(CALVINO, 1980, p.56)
Na Introdução de Fiabe italiane, coletânea em três volumes, em que Calvino
reuniu e traduziu de vários dialetos italianos alguns contos folclóricos da tradição oral
popular do século XIX, o autor diz que as fábulas são verdadeiras devido às temáticas
que abordam e que apresentam repetições de eventos que ocorrem na vida do homem,
no seu destino, que pode ser de bom agouro ou de condenações, conforme firma o
próprio autor: “[...]quell’unica convinzione mia, che mi spingeva al viaggio tra le fiabe;
ed è che io credo questo: le fabie sono vere” 9(CALVINO, p. XIV, 2005).
Bonura em Invito alla lettura di Calvino, (2002) diz que as fábulas são textos
breves, caracterizados pela presença de animais personificados e de humanos, que
devem desempenhar atitudes heróicas, possui um fundo moralizante, que pode ser de
intuito conscientizador quanto a cultura, a sociedade e a religião, e que teria
influenciado a obra de Calvino, mesmo em suas narrativas, posto que é trazida à tona a
problemática de heróis modernos, como é o caso de Cosme, que é altruísta, trabalha
para os camponeses da região de Penúmbria, em troca de comida, participa de lutas e
está sempre de prontidão em prol da defesa dos bosques da região, em que habita a fim
de evitar incêndios criminosos, como já havia ocorrido em dado episódio do romance.
Essas atitudes de Cosme nos reportam ao etnólogo russo Vladimir I. Propp
(1895-1970), que integrou por um curto período de tempo o movimento cunhado como
Formalismo Russo (1915-1930), ele analisou minuciosamente diversos contos de fadas,
principalmente contos folclóricos russos com o escopo de evidenciar seus elementos
narrativos mais marcantes e recorrentes. Em Morfologia do conto maravilhoso (1984), o
autor identificou sete tipos de personagens, divididos de acordo com sua função
8 “Das fábulas me interesso pelo desenho linear da narração, o ritmo, a essência, o modo pelo qual o
sentido da vida é contido em uma síntese de fatos, de provas a serem superadas, de momentos supremos.
Assim, interessei-me pelas relações entre a fábula e as formas mais antigas do romance como o romance
cavaleiresco da Idade Média e o grande poema do nosso Renascimento” (CALVINO, 1980, p.56,
tradução nossa). 9 “[...] minha única convicção, que me incitava a viajar entre as fábulas; e é que eu acredito nisto: as
fábulas são verdadeiras” (CALVINO, p. XIV, 2005, tradução nossa)
21
desempenhada nos contos, seis estágios de evolução da narrativa e trinta e uma funções
narrativas, que corresponderiam às situações mais dramáticas e significativas do enredo.
Para Propp todos os contos se iniciam com a apresentação de uma situação inicial, que
não é caracterizada propriamente como uma função, mas esse contexto inicial deve ser
considerado um elemento morfológico fundamental para o exame do conto.
Transcorrida a situação inicial, o enredo segue o esquema das funções narrativas,
propostas pelo autor russo. Vale lembrar que os contos de fadas analisados por Propp
não apresentavam necessariamente todas as funções apontadas por ele.
Devemos ressaltar que na visão de Propp o herói da fábula deve superar
obstáculos em série, ou seja, é necessário enfrentar os perigos e estar sempre em alerta,
essa característica de herói, identificamos facilmente por meio do protagonista Cosme,
que tem atitudes benéficas, extraordinárias, passa por aventuras, lutas, obstáculos e
também alcança vitórias.
2.1.4. Calvino e as influências da imaginação na tessitura de Il barone rampante
Podemos ressaltar a importância que a imaginação tem na feitura poética de
Calvino, a partir do capítulo “A consagração do instante”, no qual Paz comenta a
importância do uso da palavra poética, uma vez que esta amplia o leque de
possibilidades de interpretação e imaginação, utilidade que Calvino associa à sua obra
no que concerne à relevância que dá ao poder da criação por meio das palavras e que
conduzem a um imaginário ficcional, mas também histórico: “A palavra poética jamais
é completamente deste mundo: sempre nos leva mais além, a outras terras, a outros
céus, a outras verdades” (1982, p. 231).
No prefácio do volume da trilogia Os nossos antepassados, Calvino comenta
que no momento histórico, em que ele escreveu “Il barone rampante”, no século XX, os
intelectuais repensavam os acontecimentos históricos entre novas esperanças e novas
angústias que se alternavam. Trata-se da busca entre as relações da consciência
individual e do curso da história. É importante ressaltar que o mesmo autor baseou-se na
imagem que lhe vinha à mente em relação a composição do protagonista Cosme, assim
a imagem torna-se palavra, pois:
Anche qui avevo da tempo un’immagine in testa: un ragazzo che sale su di
un albero; sale, e cosa gli succede? Sale, ed entra in un altro mondo; no:
sale, e incontra personaggi straordinari, ecco: sale, e d’albero in albero
22
viaggia per giorni e giorni, anzi, non torna più giù, si rifiuta discendere a
terra, passa sugli alberi tutta la vita. Dovevo farne la storia d’una fuga daí
rapporti umani, dalla societá, dalla política eccetera? No, sarebbe stato
troppo ovvio e futile: il gioco cominciava a interessarmi solo se facevo di
questo personaggio che rifiuta di camminare per terra come gli altri non un
misantropo ma un uomo continuamente dedito al bene del prossimo, inserito
nel movimento del suoi tempi, che vuole partecipare a ogni aspetto della vita
attiva: dall’avanzamento delle techiniche all’amministrazione locale, alla
vita galante.10
(CALVINO, 2003, p. 417-418)
Ao abordar a questão da visibilidade nas histórias em Seis propostas para o
próximo milênio: lições americanas, Calvino considera importante a imaginação e as
metáforas como fontes de criação para a literatura:
[...] o poeta deve imaginar visualmente tanto o que sua personagem vê,
quanto aquilo que acredita ver, ou que está sonhando, ou que recorda, ou que
vê representado, no que lhe é contado, assim como deve imaginar o conteúdo
visual de metáforas de que se serve precisamente para facilitar essa evocação
visiva. (CALVINO, p.97, 1990)
No item da visibilidade que integra Seis propostas para o próximo milênio:
lições americanas, verificamos que a ideia de imaginação como uma forma de
comunicação com o mundo é iniciada por meio da magia renascentista de origem
neoplatônica, mais tarde essa mesma ideia de imaginação é retomada pelo Romantismo
e pelo Surrealismo, esta concepção de imaginação é contrária aos artifícios científicos,
ou seja, não é vista como um instrumento de saber, embora, possa ser usada por alguns
cientistas durante seus experimentos e formulações hipotéticas em suas pesquisas.
O autor expõe que existem dois tipos de processos imaginativos, um deles parte
da palavra até alcançar a imagem visiva e o outro se inicia pela imagem visiva e alcança
a expressão verbal, No primeiro caso, temos a sucessão de eventos imaginativos mais
comuns à leitura de histórias, romances, jornais, entre outros, de forma que o leitor
conforme os detalhes da escrita que lhe são dados, desse modo, o receptor poderá
formar algumas imagens em sua mente, de passagens sobre o que lê. No outro caso,
verificamos o processo de feitura poética pelo qual alguns escritores passam, primeiro
10
“Já então desde muito tempo tinha uma imagem na cabeça: um jovem que sobe numa árvore; sobe, e o
que lhe acontece? sobe, e entra num outro mundo; não: sobe, e encontra personagens extraordinárias,
pronto: sobe, e de árvore em árvore viaja dias e mais dias, ou melhor, não desce mais, recusa-se a descer
para o chão, passa o resto da vida nas árvores. Devia fazer disso a história de uma fuga das relações
humanas, da sociedade, da política etc? Não, teria sido demasiado óbvio e fútil: o jogo começava a
interessar-me só se eu fizesse de tal personagem que se recusa andar pelo chão como os outros não um
misantropo, mas um homem continuamente dedicado ao bem do próximo, inserido no movimento de seu
tempo, que deseja participar de todos os aspectos da vida ativa – do desenvolvimento das técnicas à
administração local, à vida galante” (CALVINO, 1997, p.13-14).
23
eles imaginam os personagens e ou cenas para depois escrevê-las, como é o caso de
Calvino, que inicialmente imaginou um rapaz que sobe nas árvores, e que de maneira
alguma toca o solo.
2.2. I nostri antenati
Em Come leggere I nostri antenati (Il visconte dimezzato – Il barone rampante –
Il cavaliere inesistente) de Italo Calvino, Di Carlo, (1999, p. 29) considera que as três
narrativas: Il visconte dimezzato, Il barone rampante e Il cavaliere inesistente têm em
comum personagens, de certo modo, alienados, por possuírem características incomuns
e posturas singulares, além do tratamento de questões existenciais, destoando da
sociedade, que os cercava. Calvino procura transmitir a busca do homem pela verdade,
porém, desvinculando-se de uma escrita narrativa com traços naturalistas e descritivos,
faz isso através de situações, imagens, eventos, personagens fora da realidade e que
assim permanecem até o final das histórias. Em suma, Calvino utiliza-se de metáforas,
alegorias, metonímias, mas mantém-se ancorado em dados concretos da realidade. A
partir da trilogia I nostri antenati, ele almejava desenvolver as três narrativas a partir de
imagens dos protagonistas, que já tinha em mente. Ele queria que os romances
pudessem ser entendidos como uma árvore genealógica dos antepassados do homem
moderno, o que explica o título I nostri antenati, que remete a ancestralidade do período
em que Calvino viveu.
O contexto extraordinário da trilogia reflete a existência de angústias e
incertezas, provenientes de diversos fatores como, por exemplo, a guerra. Em suas
narrativas, também estão presentes valores universais, como o amor, a amizade, a
liberdade, a luta contra o mal, as relações traumáticas advindas da repressão da
sociedade. Além disso, Di Carlo (1999) ressalta que as três narrativas apresentam
narradores em primeira pessoa, o que, de certa forma, reforça o caráter de envolvimento
e identificação de Calvino com seus personagens. Em Il visconte dimezzato, a narração
é feita pelo sobrinho de Medardo, em Il barone rampante, é feita por Biágio, irmão mais
novo do protagonista e em Il cavaliere inesistente, pela freira, Bradamante. Para
Calvino, a trilogia é composta por três histórias “inverossímeis”, “distantes” e
“imaginárias”, que formam um “ciclo”, por causa da ordem compositiva, conteúdo
estilístico, temática e forma.
24
Segundo Di Carlo, os três romances apresentam uma ordem cronológico-
histórica no que concerne ao conteúdo que, todavia, difere da ordem de publicação das
narrativas, que seguem a data de tessitura de cada história, pois Il cavaliere inesistente é
ambientado no período das guerras entre os turcos e os cristãos e da tropa de Carlos
Magno, mas foi escrito em 1959, ou seja, foi a última narrativa a ser publicada; Il
visconte dimezzato se passa no período da guerra entre os austríacos e os turcos, no final
do século XVII, foi escrito em 1951, mas foi a primeira a ser publicada e Il barone
rampante transcorre em pleno Iluminismo e a Restauração, narrativa escrita em 1957,
que foi a segunda ser publicada.
Il visconte dimezzato tem como protagonista, o visconde Medardo, que durante
uma batalha contra os turcos, é acertado por uma bala de canhão e tem o corpo dividido
em duas partes, uma metade caracterizada como boa e a outra má; é importante ressaltar
que Calvino não se limita a reportar-se às forças do bem e do mal, mais que isso, o autor
buscou representar a alegoria do homem intelectual que se sente fragmentado e
incompleto diante da realidade que o cerca, devido à falta de certezas, à crise positivista,
às guerras e às formas de governos despóticos, que não garantiram igualdade a
ninguém.
Em Il cavaliere inesistente, temos Agilulfo, que é é um cavaleiro que possui uma
armadura vazia, símbolo do homem “robotizado” que cumpre suas obrigações com
inconsciência quase absoluta. Ele liderava a cavalaria do exército de Carlos Magno.
Agilulfo desaparece no final do romance, pois é como se nunca tivesse existido. Nesse
romance, Calvino tematiza a questão da existência, da identidade individual que parece
não existir, situação equiparada ao contexto em que Calvino vivieu, em que o homem
busca sua identidade, seu lugar no mundo, mas que se sente invisível em relação a tudo
que o cerca.
2.3.Narrador e focalização
Em Il barone rampante identificamos a predominância da narração ulterior, ou
seja, da narração feita por um personagem secundário e são empregados verbos no
tempo pretérito, recurso que de certo modo transmite a ideia de distanciamento dos fatos
narrados, de acordo com Genette, em Discurso da narrativa (s/d., p. 216). O narrador
predominante é o homodiegético, pois é um personagem, que narra uma história da qual
é testemunha, no caso, Biágio, que é irmão do protagonista Cosme. Esse tipo de
25
narrador desempenha um papel secundário de observador da história contada e também
transmite a ideia de maior proximidade dos eventos narrados, como notamos no
seguinte excerto, em que o narrador-personagem diz lembrar-se do evento como se
houvesse ocorrido no momento de seu relato, além de informar a data e o contexto do
fato narrado:
Fu 15 di giugno del 1767 che Cosimo Piovasco di Rondò, mio fratello,
sedette per l’ultima volta in mezzo a noi. Ricordo come fossi oggi. Eravamo
nella sala da pranzo della nostra villa d’Ombrosa, le finestre inquadravano i
folti rami del grande elce del parco. Era mezziogiorno, e la nostra famiglia
per vecchia tradizione sedeva a tavola a quell’ora, nonostante fosse già
invalsa tra i nobili la moda, venuta dalla poco mattiniera Corte di Francia,
d’andare a desinare a metà del pomeriggio.11
(CALVINO, 2003, p. 87)
O emprego do narrador homodiegético tem para Calvino a função de mediador
dos fatos ocorridos, o que justificaria o fato da personalidade de Biágio não ser notável,
no sentido de levar uma vida considerada “normal” para os padrões da sociedade, se
comparado a Cosme, como podemos notar na passagem a seguir, que está presente no
prefácio do livro:
Per Il barone rampante avevo il problema di corregere la mia spinta troppo
forte a identificarmi con protagonista, e qui misi in opera bem noto
dispositivo Serenus Zeitblom; cioè fin dalle prime battute mandai avanti
come “io” un personaggio di carattere antitetico a Cosimo, un fratello
posato e pieno di buon senso. 12
(CALVINO, 2003, p. 421)
No capítulo dezesseis, o narrador-personagem comenta a não confiabilidade
total dos eventos que narra, por fazer uso da memória, sendo que esta pode sofrer
alterações com o tempo, além de haver uma reflexão sobre a melhor forma de expressar
os fatos narrados, o que é enfatizado pelo uso dos parêntesis:
11 “Foi em 15 de junho de 1767 que Cosme Chuvasco de Rondó, meu irmão, sentou-se conosco pela
última vez. Lembro como se fosse hoje. Estávamos na sala de jantar da nossa vila de Penúmbria, as
janelas enquadravam as densas ramagens do grande carvalho ílex do parque. Era meio-dia e, seguindo
antiga tradição, a família ia para a mesa naquele horário, embora já predominasse entre os nobres a moda,
importada da pouco madrugadora corte da França, de almoçar no meio da tarde” (CALVINO, 1997,
p.115). 12 “Em O barão nas árvores eu tinha o problema de corrigir o impulso excessivamente forte para
identificar-me com o protagonista, e aí pus em ação o bem conhecido dispositivo Serenus Zeitblom, ou
seja, desde as primeiras frases de espírito construí como “eu” uma personagem com caráter antitético a
Cosme, um irmão tranquilo e cheio de bom-senso” (CALVINO, 1997, p. 18).
26
Ormai Cosimo aveva un pubblico che stava a sentire a bocca aperta tutto
quel che lui diceva. Prese il gusto di raccontare, e la sua vita sugli alberi, e
le cacce, e il brigante Gian dei Brughi, e il cane Ottimo Massimo
diventarono pretesti di racconti che non avevano più fine. (Parecchi episodi
di queste memorie della sua vita, sono riportati tal quali egli li narrava sotto
le sollecitazioni del suo uditorio plebeo, e lo dico per farmi perdonare se non
tutto ciò che scrivo sembra veritiero e conforme a un’armoniosa visione
dell’umanità e dei fatti). 13
(CALVINO, 2003, p.208)
Em Literatura e Resistência, Bosi aponta uma característica fundamental sobre o
narrador-personagem, para o autor, este tipo de narrador pode apresentar em seu
discurso, oscilações em suas recordações e, com isso, estas variações também podem
ser perceptíveis nos fatos narrados, por meio de narração de episódios que dispõem mais
de uma versão. Desse modo, há uma dificuldade de apontar qual teria ocorrido
efetivamente: “Trata-se de um depoente, um homem que não pretende abandonar o seu
compromisso de base com a fidelidade à própria consciência, admitindo sempre que é
falível a sua percepção, lacunosa a memória e tateante o seu juízo ético” (2002, p. 237).
A passagem a seguir reflete bem a questão da variabilidade das versões dos fatos
ocorridos na vida de Cosme, pois se ele próprio, ao contar suas façanhas, fazia
alterações nos acontecimentos, isso ocorreria com maior facilidade ainda, a partir da
visão de um narrador-testemunha, como é o caso de Biágio:
Insomma, gli era presa quella smania di chi racconta storie e non sa mai se
sono più belle quelle che gli sono veramente accadute e che a rievocarle
riportano con sé tutto un mare d’ore passate, di sentimenti minuti, tedii,
felicità, incertezze, vanaglorie, nausee di sé, oppure quelle che ci s’inventa,
in cui si taglia giù di grosso, e tutto appare facile, ma poi più si svaria più ci
s’accorge che si torna a parlare delle cose che s’è avuto o capito in realtà
vivendo.14
(CALVINO, 2003, p.209)
É predominante a focalização interna fixa, que de acordo com Genette (s/d.,
p.187) refere-se à visão dos fatos da história através de um personagem, no caso,
Biágio, o irmão mais novo do protagonista, Cosme. Além disso, verificamos a posição
13
“Já então Cosme possuía um público que ficava ouvindo de boca aberta tudo aquilo que ele dizia.
Adquiria o gosto de narrar, e a sua vida nas árvores, as caçadas, o bandido João do Mato, e o cão Ótimo
Máximo tornaram-se pretextos de narrativas que não tinham mais fim. (Muitos episódios destas memórias
de sua vida são transcritos tal e qual ele os contava a pedido de seu público plebeu e digo isso para me
desculpar se nem tudo o que escrevo parece verdadeiro e compatível com uma visão harmoniosa da
realidade e dos fatos)” (CALVINO, 1997, p.252). 14
“Em resumo, fora dominado por aquela mania de quem conta histórias e nunca sabe se são mais bonitas
aquelas que de fato lhe aocnteceram e que ao serem recordadas trazem consigo todo um mar de horas
passadas, de sentimentos miúdos, tédios, felicidades, incertezas, glórias vãs, náuseas de si próprio, ou
então as inventadas, em que se corta grosseiramente, e tudo parece fácil, mas depois quanto mais
variamos mais nos damos conta de que voltamos a falar de coisas obtidas ou entendidas a partir da
realidade” (CALVINO, 1997, p. 253).
27
de admiração de Biágio, uma pessoa que leva uma vida comum em relação à vida de
Cosme e ao seu caráter revolucionário, como se observa no trecho que segue:
Io confido miei pensamenti a questo quaderno, ne saprei altrimenti
esprimerli: sono stato sempre un uomo posato, senza grandi slanci o smanie
[...] ossequiente alle leggi. Gli accessi della política non m’hanno dato mai
scrolloni troppo forti, e spero che così continui. Ma dentro, che tristezza!”. 15
(CALVINO, 2003, p.300)
Em certo momento da narrativa, a focalização oscila, pois podemos também
localizar a focalização interna variável, que diz respeito à alteração da visão dos fatos,
ou seja, o ponto de vista passa de um personagem para outro, como se pode notar nesse
excerto, no qual, Biágio transmite a voz narrativa para Cosme:
Sulle imprese da lui compiute nei boschi durante la guerra, Cosimo me
raccontò tante, e talmente incredibili, che d’avaliare una versione o un’altra
io non me la sento. Lascio la parola a lui, riportando fedelmente qualcuno
dei suoi racconti:
Nel bosco s’avventurano pattuglie d’esploratori degli opposti eserciti.
Dall’alto dei rami, a ogni passo che sentivo tonfaretra i cespugli, io tendevo
l’orecchio per capire se era di Austrosardei o di Francesi.
[...] Erano dei magnifici soldati. Io li attendevo al varco nascosto su di un
pino. Avevo in mano una pigna da mezzo chilo e lasciai cadere sulla testa del
serrafila. Il fante allargò le braccia, piego le ginocchia e cadde tra le felci
del sottobosco. Nessuno se ne accorse; la squadra continuò la sua marcia. 16
(CALVINO, 2003, p. 284)
Na passagem acima, identificamos a oscilação entre a fala do narrador
homodiegético, na qual os fatos são narrados pelo personagem Bíágio e do narrador
autodiegético, em que os fatos são narrados por Cosme, o protagonista da história. Vale
lembrar que a mudança de narrador nos é sugerida pela presença de uma pausa.
Observamos em Il barone rampante, uma relação de causalidade da narrativa
segunda, em relação à primeira, tendo em vista que a narrativa é iniciada pela
15
“Confio meus pensamentos a este caderno, nem saberia exprimí-los de outra maneira: fui sempre um
homem tranqüilo, sem grandes entusiasmos ou idéias [...] cumpridor das leis. Os excessos da política
jamais me provocaram comoções muito fortes, e espero que continue assim. Mas por dentro que tristeza!”
(CALVINO, 1997, p.360). 16
“A propósito das façanhas por ele executadas nos bosques durante a guerra, Cosme contou uma
infinidade, e tão incríveis, que não tenho coragem de avaliar nenhuma das versões. Deixo a palavra a ele,
reportando fielmente alguns de seus relatos:
Aventuravam-se pelo bosque patrulhas de exploradores adversários. Do topo dos galhos, a cada passo que
escutava entre os arbustos, apurava o ouvido para distinguir se eram de austro-sardos ou de franceses.
[...] Eram soldados magníficos. Eu os esperava num vau escondido num pinheiro. Tinha nas mãos uma
pinha de meio-quilo e deixei-a cair na cabeça do abre-alas” (CALVINO, 1997, p. 341).
28
explicação dos eventos que conduziram Cosme a subir nas árvores e de lá nunca mais
descer. Genette afirma sobre a narrativa segunda que: “[...] há uma causalidade directa
entre os acontecimentos da metadiegese e os da diegese, o que confere à narrativa
segunda uma função explicativa” (p. 231). A narrativa secundária finda no momento em
que Cosme sobe nas árvores, sendo iniciada a narrativa primeira, como se observa na
passagem que segue:
Di li a poco, dalle finestre, lo vedemmo che s’arrampicava su per l’elce. Era
vestito e acconciato com grande proprietà, come nostro padre voleva venisse
a tavola, nonostantei suoi dodici anni: cappelli incipriati [...] (Io, avendo
solo otto anni, ero esentato dalla cipria sui capelli, se non nelle occasioni di
gala,e dallo spadino,che pure mi sarebbe piaciuto portare) Cosi egli saliva
per il nodoso albero, muovendo braccia e gambe per i rami con la sicurezza
e la rapidità che gli venivano dalla lunga pratica fatta insieme. 17
(CALVINO, 2003, p. 96)
A narrativa primeira diz respeito ao desenvolvimento das ocorrências mais
significativas do enredo, após a decisão de Cosme de subir nas árvores, sua vida muda
radicalmente, pois ele passa a viver de maneira diferente de toda a sociedade, sendo
desencadeadas diversas aventuras e desventuras na vida de Cosme, desde ações em
favor da proteção da natureza, engajamento através da leitura, paixões e participações
em grupos revolucionários.
2.4. Indicações de tempo e de espaço
Os fatos apresentam uma focalização interna: o desenrolar do romance se inicia
em 1767. A vida de Cosme é narrada por Biágio, havendo pontos de intersecção entre
as etapas da vida do protagonista e o contexto europeu daquela época, ou seja, a história
de Cosme obedece à ordem da existência: adolescência, juventude, velhice e morte e às
fases da história européia, pois Cosme Chuvasco de Rondó vive num momento divisor
de águas entre o Antigo Regime, Revoluções, Contra-Revoluções, o Império e a Europa
Moderna (Restauração).
É interessante apontar que no momento, em que Cosme decide subir para as
árvores, o mesmo estava bem vestido, pois trajava roupas de gala, haja vista que era o
dia do seu aniversário de doze anos. A utilização de tais trajes por Cosme denota o
17
“Logo, pelas janelas, vimos que ele trepava no carvalho ílex. Estava vestido e penteado com muito
esmero, como papai exigia que fosse para a mesa, apesar de ter só doze anos: cabelos empoados [...] (Eu,
tendo só oito anos estava isento da fita nos cabelos, a não ser nas ocasiões de gala, e do espadim, que
gostaria de poder usar). Assim, ele subia pela árvore nodosa, movendo braços e pernas pelos ramos com a
segurança e rapidez que advinham da longa prática a que ambos nos havíamos dedicado”. (CALVINO,
1997, p.125)
29
estatus social da família. Essa situação inicial se opõe à vida que Cosme passaria a levar
sobre as árvores dali em diante. O pai de Cosme considerava que o filho desceria
quando se cansasse, todavia isso não acontece. Nesse momento da narrativa,
ressaltamos que o fato de Cosme ter doze anos de idade parece remeter a uma fase da
vida do protagonista que havia se encerrado para então iniciar-se uma nova etapa na
vida de Cosme sobre o espaço das árvores.
Verificamos alusões à passagem do tempo e da sua fugacidade por meio de
referências às mudanças das estações, como podemos observar no trecho a seguir, do
capítulo dezoito: “Fiorirono i peschi, i mandorii, i ciliegi. Cosimo e Ursula passavano
insieme le giornate sugli alberi fioriti. La primavera colorava di gaiezza perfino la
funerea vicinanza del parentado” 18
(CALVINO, 2003, p. 218).
No capítulo dezenove, temos outra indicação de mudança de estação que
intensifica a rapidez com que os acontecimentos se passam na vida de Cosme:
Era un’estate tutta lune piene, gracchi di rane, fischi di fringuelli, quella in
cui il Barone tornò a esser visto a Ombrosa. Pareva in preda a
un’irrequietudine da uccello: saltava di ramo in ramo, ficcanaso, ombroso,
inconcludente. 19
(CALVINO, 2003, p. 224)
Destacamos que a escrita de Calvino é repleta de ambientações em meio à
natureza, com descrições minuciosas de plantas, árvores, jardins, provavelmente porque
o autor teve acesso a diversos tipos de vegetações na juventude, por intermédio do pai,
que era agrônomo e da mãe, que era botânica.
Nessa narrativa, é evidente o enaltecimento da natureza, a exploração da
temática do respeito aos ambientes naturais e aos animais, pois permite observar a
grandiosidade dos mesmos, além de propiciar experiências e sensações que não se
encontram nas convenções e nos hábitos cotidianos. O protagonista se preocupava com
a preservação do meio ambiente e por isso não jogava lixo, nem dejetos em quaisquer
lugares. Quando ele precisava fazer suas necessidades fisiológicas, dirigia-se às
margens de uma torrente conhecida como merdanza, em que eram jogadas as águas
18
“Floresceram os pessegueiros, as amendoeiras, as cerejas. Cosme e Úrsula passavam juntos os dias nas
árvores em flor. A primavera colorida de alegria até a fúnebre vizinhança dos parentes” (CALVINO,
1997, p.264). 19“Era um verão feito de luas cheias, coaxar de rãs, cantos de tentilhões, quando o barão reapareceu em
Penúmbria. Dava a impressão de estar dominado por uma inquietude de pássaro: saltava de galho em
galho, intrometido, assustadiço, inconcludente” (CALVINO, 1997, p.271).
30
usadas pelas aldeias vizinhas a Penúmbria, já que era um local reservado para esses fins
e usado por todos.
Em Il barone rampante, além de ambientações em meio a natureza, verificamos
também a presença de espaços que envolvem guerras e disputas, que podem relacionar-
se a suas experiências de vida, de acordo com Bonura, em Invitto alla lettura di Calvino
(2002):
[...] qualche tentativo di seguire la tradizone scientifici familiare già avevo la
testa alla letteratura e strisi: Intanto en venuta l’occupazone tedesca e,
secondando un sentimento che nutrivo fin dall’adolescenza, combatteì coi
partigiani, nelle Brigati Garibaldi. La guerra partigiana si svolgeva negli
stessi luoghi Che mio padre mi aveva fatto conoscere fin da ragazzo. Così
approfondei la mia immedesimazione in quel paesaggio, e vi ebbi la prima
scoperta del lancinante mondo umano. 20
(CALVINO apud BONURA, 2000,
p. 22)
A ambientação da história se dá tanto em ambientes internos: a cozinha, a mesa
da sala-de-jantar, como em ambientes externos à casa: a Igreja, a região de Penúmbria,
localizada na Ligúria, Itália.
O espaço da mesa de refeições pode ser considerado simbólico, posto que, na
narrativa, é o lugar em que se desencadeiam os motivos que levam Cosme a subir nas
árvores:
[...] la tavola il luogo dove venivano alla luce tutti gli antagonismi, le
incompatibilità tra noi, e anche tutte le nostre follie e ipocresie; e come
proprio a tavola si determinasse la ribellione di Cosimo. Per questo mi
dilungo a raccontare, tanto di tavole imbandite nella vita di mio fratello non
ne troveremo più, si può esser certi. 21
(CALVINO, 2003, p.89, 90)
Na mesa, existia, de certa forma, uma “guerra” entre os adultos e as crianças,
que era observada por meio das regras de etiqueta que eram infligidas pelos menores,
como, por exemplo, manter os cotovelos sobre a mesa, por causa de infrações como
20
“[...] alguma tentativa de seguir a tradição científica familiar, mas já tinha junto à cabeça a literatura: No
entanto ocorria a ocupação alemã e, favorecendo um sentimento que nutria desde o fim da adolescência,
combati com os partidários, nas Brigadas de Garibaldi. A guerra partidária se desenvolvia nos mesmos
lugares que meu pai tinha me feito conhecer no final da infância. Assim aprofundei a minha identificação
com aquela paisagem, e vi existir a primeira descoberta da dor extremamente aguda do mundo humano”
(CALVINO apud BONURA, 2000, p. 22, tradução nossa). 21“[...] a mesa era o lugar em que vinham à luz todos os antagonismos, as incompatibilidades entre nós e
também todas as loucuras e hipocrisias; e porque justamente à mesa se determinasse a rebelião de Cosme.
Por isso entro em detalhes no relato, pois de mesas postas não ouviremos mais falar da vida de meu
irmão, isto é certo” (CALVINO, 1997, p.118).
31
essas, existiam constantes discussões e desavenças entre os dois grupos. Soma-se a isso,
o fato de a mesa ser o local onde as crianças tinham maior contato com os adultos, posto
que, por exemplo, a mãe de Cosme, a Generala Konradine, costumava ficar cerrada em
suas dependências, fazendo rendas e bordados, que chegavam a ser ilustrados por mapas
geográficos, canhões e bandeirinhas, que, por sua vez, assinalavam os planos de
batalhas os quais ela havia presenciado ao acompanhar seu pai, o General Konrad Von
Kurtewitz.
Na trajetória de Cosme sobre as árvores, são mencionados espaços como o
carvalho ílex, que era referido assim por influência da linguagem rebuscada do pai,
olmos, amoreiras, que estavam localizadas em Penúmbria, cidade autônoma, tributária
da República de Gênova, que era possessão do rei da Sardenha, Reino da França e
territórios episcopais. Sobre o nome da região de Penúmbria, temos em A História e as
histórias de Cosimo, Dissertação de Mestrado de Mareschachi, simbolizações como a
“sombra” e a “incerteza”, que podem remeter à falta de esclarecimento de muitos
habitantes de Penúmbria, que desconheciam ou ignoravam a busca pelo conhecimento
tão almejada por Cosme e também preconizada pelos iluministas, como uma forma de
aclarar as trevas, ou seja, liquidar a ignorância. Além de significações que envolvem a
“imaginação”, tendo em vista que Penúmbria se trata de uma ambientação ficcional
localizada num espaço real da Itália:
[...](na tradução brasileira de Nilson Moulin vem com o nome de
Penúmbria), espaço ficcional localizado na região da Ligúria, na Itália. O
nome da cidadezinha também é bastante sugestivo: vem do substantivo
ombra, que em português é o mesmo que sombra, e, no sentido figurado pode
ser traduzido por escuridão. Já o adjetivo ombroso significa assombrado ou
sombreado, ao passo que no sentido figurado pode ter valor de desconfiado
(Parlagreco, s/d, p. 312). Assim, o espaço onde se passa a narrativa é um
espaço não claro, não preciso, é o espaço da sombra, daquilo que é obscuro,
não claro, da desconfiança, da incerteza, e finalmente, da imaginação. Por seu
turno, a História se desenrola paralelamente num espaço extratextual mais
abrangente, porém determinado: a Europa. (PARLAGRECO apud
MARESCHACHI, 2007, p. 34)
Sobre os galhos das amoreiras, que eram consideravelmente altos, o protagonista
observava por um muro, que circundava a Vila de Penúmbria, o jardim da família
Rodamargem, composta por marqueses e nobres penumbrianos possuidores de títulos
muito almejados pelo pai de Cosme, tanto é que existia uma certa rivalidade entra as
famílias.
32
No jardim da família de Violeta, isto é, dos marqueses Rodamargem, havia
magnólias e vegetações provenientes das colônias americanas. Nesse caso, temos uma
referência histórica aos processos de conquistas territoriais no continente americano,
ocorridas também no século XVIII. Na passagem que segue, há algumas alusões às
espécies exóticas advindas da exploração de colônias da França e da Inglaterra, como,
por exemplo, florestas das Índias e das Américas, espaços reais da História Oficial.
Infatti, digià il padre degli attuali Marchesi, discepolo di Linneo, aveva
mosso tutte le vaste parentele che la famiglia contava alle Corti di Francia e
d’Inghilterra, per farsi mandare e più preziose raritá botaniche delle colonie
[...] una mescolanza di foreste delle Indie e delle Americhe [...].22
(CALVINO, 2003, p.99-100)
O muro que ficava entre as magnólias é o espaço que permite a Cosme observar
o jardim da família Rodamargem, assim como favorecia o contato com Viola Sinforosa,
na realidade, os marqueses da referida família não se preocupavam com as aventuras da
menina. O fato de Cosme ficar próximo aos Rodamargem, que não eram bem vistos
pelo barão Armínio, e suas eventuais desobediências irritavam ainda mais seu pai.
Os espaços do mar e da praia são marcados principalmente pelos encontros de
Cosme e Violante, assim como também pelo encanto que ela causava em Cosme, tanto é
que sobre as árvores, o protagonista observava quando ela cavalgava velozmente em
direção a esses ambientes.
Para Cosme não havia fronteiras, limites de terras. Sendo assim, considerava que
o território sobre as árvores pertencia a ele, era como se toda a área que ele conseguisse
percorrer e desbravar pelas árvores fosse de seu domínio, colinas, bosques e outros. De
cima das árvores, Cosme tinha uma visão ampliada de tudo:
Cosimo guardava il mondo dall’albero: ogni cosa, vista di lassù, era diversa,
e questo era già un divertimento. Il viale aveva tutt’unaltra prospettiva, e le
aiole, le oretensie, le camelie, il tavolino di ferro per prendere il caffè in
giardino [...] l’ortaglia digradava in piccoli campi a scala, sostenuti da muri
di pietre, il dosso era scuro di oliveti[...]. 23
(CALVINO, 2003, p.98)
22
“De fato, já o pai dos atuais marqueses, discípulo de Lineu, movimentara toda a enorme parentela de
que a família dispunha nas cortes da França e Inglaterra para receber as mais preciosas raridades
botânicas das colônias [...] uma mistura de florestas das Índias e das Américas [...]” (CALVINO, 1997, p.
129). 23
“Cosme observava o mundo da árvore: qualquer coisa, vista lá de cima, era diferente, e isso já era um
divertimento. A alameda ganhava uma outra perspectiva, e também os canteiros, as hortênsias, as
camélias, a mesinha de ferro para tomar café no jardim [...] a horta derramava-se em pequenos campos
33
Dentre os espaços narrados, encontramos também ambientações das
comunidades menos favorecidas economicamente da região de Penúmbria:
Attorno a Porta Capperi, in casupole e baracche d’assi, carrozzoni
zoppicanti, tende, era assiepata la gente più povera d’Ombrosa, cosi povera
da essere tenuta fuori dalle porte della città e lontana dalle camapgne [....]24
(CALVINO, 2003, p.128)
Quando Biágio casou-se com uma nobre da região, observamos referências a
existência de um feudo, pois a moça exigiu que mudassem para um castelo no velho
feudo da família Rondó, para que ficassem mais tempo lá do que em Penúmbria, pois
para ela o comportamento de Cosme seria um mau exemplo para seus filhos. Passagem
que remete à aristocracia decadente, da qual a família pertencia.
Olivabaixa era uma aldeia vizinha à Penúmbria, onde viviam espanhóis exilados
em árvores, pois havia um Tratado, o qual prescrevia que eles não poderiam “tocar o
solo” daquele território. Estavam exilados: o príncipe, Frederico Alonso Sanchez de
Guatamurra y Iobasco, juntamente com outros nobres espanhóis das regiões de Sevilha
e Granadá, que haviam se rebelado contra o rei Carlos III, por questões de privilégios
feudais negados.
O enredo finda no século XIX, no trigésimo capítulo, quando Cosme está com
mais de 65 anos, sentindo-se cansado, beirando à morte. No entanto, ainda assim não
retornou para a terra, pois optou por uma solução mais insólita, agarrou-se à âncora da
corda de um balão de gás, com o qual alguns aeronautas faziam experiências de vôo e
foi conduzido pelo vento, foi em direção ao mar, desaparecendo para sempre.
2.5. O Protagonista, Cosme
Cosme extrapola as regras cristalizadas pela sociedade, como o fato de enfrentar
os adultos, pois após recusar-se a comer escargot, ele decide morar sobre as árvores e,
de fato, nunca mais torna à terra, é uma maneira que encontra para se desviar dos
costumes e hábitos da família aristocrata, só assim poderia ir em busca da liberdade que
em forma de escada, sustentados por muros de pedra; o outro lado da encosta era coberto de olivais”
(CALVINO, 1997, p. 127). 24
“Ao redor da Porta das Alcaparras, em casinhas e barracas com estacas, carroções cambaleantes,
tendas amontoava-se a gente mais pobre de Penúmbria, tão pobre que era mantida fora das portas da
cidade e afastada dos campos [...]” (CALVINO, 1997, p. 162).
34
tanto almejava. A vida sobre as árvores pode ser considerada um ideal de retorno à
natureza, no sentido de apontar para a liberdade em seu modo de vida e para relacionar-
se com pessoas de diferentes condições sociais, sem as proibições que lhe eram
impostas pela família.
É fundamental observar que a atitude da recusa de comer os escargots durante o
almoço, que foi seguida do ato de subir nas árvores, parece inicialmente uma teimosia
de criança, um evento cotidiano. Todavia, Calvino utiliza-se disso para apontar a
necessidade que o intelectual tem de distanciar-se dos fatos; por isso Cosme mora nas
árvores, pois de lá tem uma visão diferenciada dos acontecimentos em relação àqueles
que habitam na terra, necessidade de isolamento própria dos intelectuais para a reflexão.
Com o passar do tempo, ele vai adquirindo amadurecimento em relação à sua escolha de
manter-se nas árvores e também em relação à consciência de intelectual. Ele vive nas
árvores por escolha, diferentemente, por exemplo, quando, em dado momento da
narrativa, espanhóis exilados se refugiam nas árvores por não haver outra opção.
No episódio em que Cosme escorregou pela balaustrada das escadas e chocou-se
contra o Abade Fauchelafleur, e este atingiu a estátua do antepassado Caçaguerra
Chuvasco de Rondó, cruzado na Terra Santa, que foi ao chão, teve como resultados
repreensões e castigos. Cosme, que se julgava inocente e já se mostrava rebelde para um
garoto de doze anos, pois enfrentava os adultos, tanto é que as palavras proferidas por
ele não demonstravam nenhuma consideração pelo apego de seu pai a genealogia da
família: “- Io me n’infischio di tutti i vostri antenati, signor padre!” 25
(CALVINO,
2003, p. 92).
Cosme é solitário, pois representa o herói benfeitor que busca melhorias
coletivas, mas não as alcança e por isso padece. É incompreendido por muitos e
admirado por outros. A condição de refúgio nas árvores pode ser considerada uma
necessidade de visão dos fatos distinta daqueles que vivem na terra.
O fato de Cosme enxergar além das simples aparências e do que todos viam, por
estar sobre as árvores é inferido em uma conversa que o protagonista tem com seu pai,
em que Cosme afirma que: “- Ma io dagli alberi piscio più lontano!”26
(CALVINO,
2003, p. 144).
Denis, em Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre (2002), faz referência a
Petit Robert para comentar a postura do intelectual, que muda seu ponto de observação,
25
“ Estou me lixando para todos os seus antepassados, senhor meu pai” (CALVINO, 1997, p. 121). 26
“ – Mas de cima das árvores mijo mais longe!” (CALVINO, 1997, p. 181).
35
uma vez que não se mantém na condição de simples “espectador” dos problemas da
sociedade, mas que busca intervir na mesma, seja por meio de suas reflexões, seja por
meio de trabalhos conjuntos. Salientamos a distinção deste intelectual em relação às
demais pessoas, pois ele adota uma forma de pensar e de agir que contrasta com aqueles
que o cercam, atitude semelhante a do protagonista, Cosme, que tem uma visão
diferenciada da sociedade e do mundo, por habitar sobre as árvores e, ainda assim,
interagir com movimentos de luta, ajudar os demais, estudar e também levar a cultura e
a literatura aos outros, inclusive aos marginalizados, como é o caso do ladrão João do
Mato, que tem uma mudança positiva de conduta graças à intervenção cultural que
Cosme fez em sua vida por meio da inserção do bandido no universo da leitura.
“ato ou atitude do intelectual, do artista que, tomando consciência do seu
pertencimento à sociedade e ao mundo do seu tempo, renuncia à uma
posição de simples espectador e coloca seu pensamento ou a sua arte a
serviço de uma causa”. (ROBERT apud DENIS, 2002, p. 32)
A “recusa”, isto é, o fato do protagonista recusar-se a ingerir o escargot, é uma
atitude aparentemente infantil, mas que a partir do momento em que Cosme vai
adquirindo maturidade em sua vivência nas árvores, e mantém sua posição de lá
continuar, esse evento aponta para uma representação do distanciamento que se faz
necessário para uma observação diferenciada e mais crítica por parte dos intelectuais.
No caso, a visão de Cosme é distinta dos demais, pois habita nas árvores, tendo,
portanto, experiências diferentes daqueles que vivem na terra, como se nota no seguinte
excerto, no qual é mencionada a mudança de vida de Cosme a partir de sua recusa:
[...] stando a tavola con la famiglia, prendevano corpo i rancori familiari,
capitolo triste dell’infanzia. Nostro padre, nostra madre sempre li davanti,
l’uso delle posate per il pollo, e sta’dritto, e via i gomiti dalla tavola, un
continuo! E per di più quell’antipatica di nostra sorella Battsita. Cominciò
una serie di sgridate, di ripicchi, di castighi, d’impuntature, fino al giorno in
cui Cosimo rifiutò le lumache e decise di separare la sua sorte della nostra. 27
(CALVINO, 2003, p.88)
27
“[...] estando à mesa com a família, tomavam corpo os rancores familiares, capítulo triste da infância.
Pai e mãe sempre pela frente, comer frango com talheres, e fica direito e tira os cotovelos da mesa, o
tempo todo!, e ainda por cima aquela antipática da Batista. Começou uma série de berros, de birras, de
castigos, de teimosias,até o dia em que Cosme recusou os escargots e decidiu separar sua sorte da nossa”
(CALVINO, 1997, p.116).
36
Situação que pode ser equiparada a figuração dos “evangelistas trepados nos
ombros dos profetas nos vitrais da catedral de Chatres” originária na Idade Média e que
configura a ampliação da visão, conforme Compagnon em Os cinco paradoxos da
modernidade:
Trata-se da representação dos evangelistas trepados nos ombros dos profetas,
nos vitrais da catedral de Chartres: no sul, por exemplo, São João, nos
ombros de Ezequiel, e São Marcos, nos ombros de Daniel [...].
[...] em Bernard de Chartres; Namus positus super humeros gigantis. “Somos
como anões nos ombros de gigantes”[...] os anões são menores que os
gigantes, mas trepados nos ombros desses, vêem mais longe que eles.
(COMPAGNON, 2003, p.18, grifo do autor e grifo nosso)
A posição de distanciamento de Cosme sobre as árvores indica uma forma de
resistência às normas da sociedade e à uma vida comum e despreocuapada, isenta de
culpas e de preocupações com o bem-estar do outro e de sua coletividade, fatores que
apotam para uma sociedade individualista. Esta colocação pode ser sugerida a partir de
Bosi, em Literatura e resistência:
A resistência é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina
o nó inextricável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico.
Momento negativo de um processo dialético no qual o sujeito, em vez de
reproduzir mecanicamente o esquema das interações onde se insere, dá um
salto para uma posição de distância e, deste ângulo, se vê a si mesmo e
reconhece e põe em crise os laços apertados que o vendam na teia das
instituições. (BOSI, 2002, p. 134)
Cosme apresenta em suas atitudes traços de um herói, um benfeitor, como, por
exemplo, no décimo capítulo, em que Cosme constrói uma espécie de bica da qual era
proveniente a água de uma cascata, da qual o barão utilizava-se para beber e tomar
banho. Quanto às suas necessidades fisiológicas, ele fazia uso de uma corrente de águas
escuras, que levava o nome de merdanza, que ficava camuflada entre os bambus e que
tinha curso rápido, local que era utilizado pela população com o fim do lançamento de
dejetos. Para alimentar-se ele caçava e também apanhava frutas, além de trocá-las com
camponeses por verduras e legumes. O protagonista bebia o leite proveniente de uma
cabra que ficava próxima das oliveiras. Além disso, Cosme fazia uso dos ovos de
galinhas que habitavam pelas proximidades. Percebemos, a partir dessas atitudes que ele
procurava atender suas necessidades básicas sem comprometer ou prejudicar de modo
algum o ambiente, em que vivia.
37
Na adolescência, o barão teve quase um ano de convivência na colônia de
espanhóis exilados, que ficavam na aldeia de Olivabaixa, próxima a Penúmbria. Nesse
período, ele deu grande assistência aos exilados, tendo em vista que ele introduziu no
local, reservatórios de água, pequenos fornos e sacos forrados com peles para dormir.
O protagonista explicava para a comunidade de espanhóis as ideias dos
filósofos, dos erros comuns dos soberanos e como os estados deveriam ser governados
com razão e justiça. Logo, sobre as árvores, começaram a pensar em ir à Espanha e
fazer uma Revolução, mas os planos não foram concretizados, pois dentro do grupo de
espanhóis havia um padre, Suplício de Guadalete, que integrava a Companhia de Jesus
e, que entrou em combate corporal com Cosme, mas não obteve êxito e partiu.
Cosme dedicou boa parte de sua juventude à caça, que fazia com suas
espingardas. Mesmo estando sobre as árvores, suas caças eram levadas a ele por
intermédio do cão Ótimo Máximo, já quanto a pesca, Cosme tinha uma linha com a qual
pescava as enguias e as trutas que estavam próximas às torrentes de água, além disso,
como ele queria sentir-se útil, também podava árvores, trabalhava para cultivadores de
pomares, esse trabalho era muito favorável para tornar as passagens entre as árvores
mais viáveis para a locomoção de Cosme.
O protagonista é altruísta, solidário e exemplo disso é o fato de ficar de
prontidão nas árvores, à noite, para vigiar os bosques contra incêndios, entre outros. Ele
exalta uma vida mais próxima aos elementos da natureza e é impregnado por um
espírito desbravador e aventureiro. Devem ser destacadas as oposições recorrentes entre
a liberdade encontrada na natureza versus as amarras impostas pela sociedade da época,
que é mediada por costumes e tradições calcadas na valorização do materialismo e em
aspirações de posições hierárquicas elevadas socialmente, como, por exemplo, a
existência de títulos de barão, de conde, de duque, entre outros.
Cosme, juntamente com o Cavaleiro Enéias Sílvio Carrega e com os
proprietários de terras vizinhas, construíram reservas de água para conter os incêndios
criminosos que foram provocados pelos ladrões, Hugão e Bonitão, que nutriam grande
raiva por Cosme ter convertido o bandido, João do Mato à leitura. Para se precaver
desses incêndios, houve uma considerável ação cooperativa liderada por Cosme em
favor da preservação dos bosques e dos animais que lá viviam, todavia essa união só
prevaleceu enquanto existia o risco de destruição pelo fogo, passado o perigo, logo,
Cosme tornou ao seu estado habitual de solidão, mas, ainda assim, permanecia de
38
prontidão sobre as árvores, como verificamos num diálogo entre Cosme e seu pai, o
barão Armínio:
- Buongiorno, signor padre.
- Buongiorno, figlio.
- Sta ella bene?
- Compatibilmente agli anni e ai dispiaceri.
- Godo di vederla valente.
- Così voglio dire di te, Cosimo. Ho sentito che ti adoperi per vantaggio
comune.
- Ho a cuore la salvaguardia delle foreste dove vivo, signor padre. 28
(CALVINO, 2003, p.193)
Nesses episódios de Il barone rampante, é representada a busca por uma
completude não individualista a alcançar-se por meio da persistência e da fidelidade ao
ideal de Cosme por uma determinação individual que almeja transformar positivamente
a convivência em sociedade, ainda que para isso, o protagonista passe por momentos de
solidão e até mesmo seja incompreendido por aqueles que o observam.
O comportamento desbravador de Cosme perante aos perigos encontrados na
natureza, nos conduzem a reflexão de sua situação social e existencial, posto que, ao
mesmo tempo em que o protagonista vivencia uma vida incomum, pois foge às regras
institucionalizadas pela sociedade, ele também seguirá futuramente alguns conceitos de
organização, no que diz respeito à busca pelo conhecimento, havendo um
aprimoramento de seu arcabouço intelectual, através da cultura que adquire e que
transmite aos outros, mesmo estando sobre as árvores, como, por exemplo, o fato de
emprestar livros de literatura para o ladrão, João do Mato.
Na dissertação de mestrado A História e as histórias de Cosimo, Mareschachi
comenta possíveis significações sobre o nome do protagonista, que pode se referir a um
microcosmo dentro de um macrocosmo, ou seja, o mundo de Cosme sobre as árvores
que integra um mundo maior, isto é, a sociedade como um todo:
O nome do protagonista, Cosimo, é muito significativo na narrativa,
remetendo-nos à palavra cosmo. Segundo Abbagnano (1970), o cosmos é o
mundo enquanto ordem. As grandes mudanças de pensamento, idéias e
hábitos do século XVIII são representadas pelos habitantes da pequena
28“- Bom dia, senhor pai.
- Bom dia, filho.
- O senhor vai bem?
- Proporcionalmente aos anos e aos desprazeres.
- Fico feliz de vê-lo animado.
- O mesmo quero dizer de você, Cosme. Ouvi contar que você trabalha pelo bem comum.
- Sou responsável pela proteção das florestas onde vivo, senhor pai” (CALVINO, 1997, p.235-
236).
39
Ombrosa. Trata-se de uma cidadezinha fictícia localizada em algum lugar da
região da Ligúria, na Itália. Um espaço ficcional em meio a um espaço
referencial. Enquanto a Europa vive as idéias iluministas, a Revolução
Francesa, as Guerras Napoleônicas, etc., a pequena Ombrosa vive as
extravagâncias de um barãozinho que passa a vida nas árvores, cheio de
idéias revolucionárias, e que acompanha as transformações do mundo
referencial no seu espaço ficcional. Tudo o que acontece no macrocosmo
reflete-se no seu microcosmo, porém de um modo, no mínimo, engraçado.
(ABBAGNANO apud MARESCHACHI, 2007, p. 29-30)
Há uma passagem, em que Cosme, ainda garoto sobre as cerejeiras, acaba se
misturando com meninos que eram ladrões de frutas e amigos de Violante, que foi a
paixão mais marcante de sua vida. Como os donos das terras levaram cães e escadas
para subir nas cerejeiras, e apanhar os garotos, Cosme, mais do que depressa, fugiu
pelos galhos e logo os ladrõezinhos o imitaram e perceberam que ele, apesar de integrar
uma família de posses, era mais esperto e ágil do que eles, sobre os ramos das árvores.
Nesse episódio, mais uma vez, o protagonista rompe com as orientações feitas por sua
família, pois esta o proibia de manter contato com pessoas que tinham esse tipo de
comportamento.
O barão se relacionava com pessoas das mais distintas camadas sociais e
culturais, desde o bandido João do Mato, aldeões, servos, carvoeiros, caldeireiros,
vidraceiros e até mesmo com famílias nobres, como era o caso do conde de Estomac,
que ficou impressionado com o comportamento excêntrico de Cosme, que usava um
gorro de pele de gato, polainas nas pernas e que carregava um fuzil a tiracolo e um
espeto, além de conseguir caçar, mesmo estando sobre as árvores. O conde teve uma
impressão tão favorável sobre a família Rondó, que Batista, a irmã de Cosme, ficou
noiva do filho do conde, que, por sua vez, ajudou a disseminar a fama de Cosme pelas
cortes da Europa.
Observamos o emprego de idiomas distintos do italiano, fato que denota o
envolvimento de Cosme com pessoas de diferentes nacionalidades e culturas, além de
destacar seu alto nível de intelectualidade, tendo em vista que são mencionadas palavras
em: alemão “vorsicht” (p. 96); espanhol:“Sacramos todo el tiempo, Señor!” (p.213);
francês:“C’est mon frère, monsieur, Le Baron de Rondeau” (p. 230) e inglês:“What are
you doing up there?” (p. 259).
Cosme que se debruçava sobre livros de diversos tipos, tinha sempre novas
histórias, ele passava a metade do tempo caçando e a outra lendo, tanto é que usava suas
caças como forma de pagamento, ele as trocava por livros com o livreiro Obeque. O
protagonista tinha a necessidade de contar tudo o que lia. Assim, logo a relação de
40
aprendizagem entre Cosme e o Abade foi invertida, pois Cosme passou a professor e o
Abade Fauchelafleur a discípulo.
O barão de Rondó representa o engajamento do revolucionário que passa pela
desilusão de presenciar a não concretização de ideias iluministas e da Revolução
Francesa, por causa de execuções em massa que foram acarretadas pelo artifício da
guilhotina. Isso é perceptível através do distanciamento de Cosme, pois este abre mão
de sua vida pessoal em busca de sua fé, de sua crença na ideologia ligada a esses
movimentos.
.
2.5.1.Cosme e a problemática do intelectual diferenciado pelo conhecimento e
recluso por traumas
No prefácio da trilogia I nostri antenati, verificamos que para formar a
personalidade do protagonista Cosme, Calvino baseou-se na imagem, que tinha em
mente, de um jovem que saltava sobre as árvores e que entra num outro mundo, onde
encontra personagens extraordinários e viaja por dias e dias sobre as árvores, se
recusando a descer para a terra.
De acordo com Calvino, essa atitude não pode ser considerada, simplesmente, a
fuga das relações humanas, nem mesmo da política, pois seria muito evidente. Na
realidade, para ele interessava trazer à tona a postura de um homem que almeja o bem
do próximo e que, embora não esteja moldado aos padrões da sociedade da época, busca
participar de cada aspecto da vida ativa, dos avanços tecnológicos, das técnicas
administrativas entre outros. Assim sendo, o protagonista está consciente de ser
“verdadeiro” por intermédio da companhia dos outros, de sua excêntrica vida e de sua
singular solidão, características essas que perdurariam por toda a vida, assim como a
vocação de poeta, de explorador e de revolucionário. Por isso buscamos fazer algumas
explanações sobre a situação conflitante do intelectual Cosme equiparada à situação de
decepção com a realidade sócio-histórica do intelectual da modernidade, que configura
o contexto em que Calvino escreveu Il barone rampante.
A frustração e a situação de fragmentação do intelectual na modernidade, e a
condição de constantes e inquietantes dúvidas do mesmo podem ser vislumbradas por
meio da seguinte colocação de Compagnon, presente em Os cinco paradoxos da
modernidade (2003), em que o autor expõe que desde o romantismo, o ser humano já se
sentia dilacerado e dividido, e por isso, todos os artistas modernos, que adotam uma
41
postura provocante, têm grande desespero em seus interiores, isso se deve as
contradições insolúveis que vivenciaram no século XX, por exemplo, a existência de
ideologias que se diziam de esquerda, como o comunismo da Rússia, que, contudo,
também fazia uso do totalitarismo.
Stalin apresentou um governo autoritário que submeteu a população às suas
vontades, sempre com promessas de transformações sociais positivas como a melhoria
da economia, das condições de vida em sociedade e da igualdade entre todos. Mas, na
realidade, também fez uso de campos de concentração, os gulags, onde muitas pessoas
foram obrigadas a trabalhar ou foram condenadas à morte, era a maneira que Stalin
encontrou de punir aqueles que não o obedecessem ou fizessem parte de outras
ideologias políticas. Essas atitudes autoritárias podem ser comparadas a regimes como o
nazismo e o fascismo, que também tinham um discurso que atraía a população, porém
exerciam um forte controle na vida de todos a qualquer custo, levando a um grande
genocídio.
Vale lembrar que no século XX, o racionalismo teve suas raízes abaladas,
principalmente após a Segunda Revolução Industrial, pois é desencadeada a divisão da
sociedade em classes, assim não há como atingir uma totalidade, fato que permite
refletirmos sobre o romance Il barone rampante, no qual é representada, de certo modo,
a busca por uma totalidade inatingível, neste caso, o protagonista, o barão Cosme de
Rondó, almejava a unificação da sociedade, pois visava a igualdade, tendo como base
para tais aspirações, o poder do conhecimento, o acesso à cultura e a exercitação do
intelecto.
A contradição e a quebra das expectativas da primeira metade do século XX,
devem-se a alguns fatores, dos quais podemos destacar: a industrialização de armas de
combate para abastecer as guerras, que ocasionaram a grande mortandade e altos índices
de miséria, a distribuição irregular de renda e o crack da bolsa de New York em 1929.
Tais fatores favoreceram a intensificação dos sentimentos de “impotência” e
“insatisfação” humana diante desses acontecimentos trágicos.
Além disso, houve a criação de regimes totalitários como o Fascismo e o
nazismo, que tiveram o apoio das massas ao fazerem promessas de construção de um
Estado forte, bem como prometeram eliminar a crise econômica. De maneira
semelhante agiram regimes libertários como o comunismo, pois Stalin teve atitudes
tiranas, já que também reprimia a população e assim dissolvia as esperanças de uma
redenção social para o proletário, desse modo, os ideais libertários que tiveram origem
42
dentro da era Moderna foram diluídos. Esse contexto reforça o sentimento de decepção
humana com a realidade.
A modernidade corroborou para a desfiguração da imagem do mundo, desse
modo, o indivíduo sente-se desnorteado. A incompreensibilidade da realidade universal
é trazida por teóricos, que trazem à tona as incertezas humanas, como é o caso da Teoria
da Relatividade, que cria o princípio da incerteza ao “relativizar” as bases do universo
conhecido, e a Psicanálise de Sigmund Freud, que chama à atenção para a existência de
outro “eu”, consideração, que infere a sensação de multiplicidade e de fragmentação do
homem moderno diante da realidade que vivencia.
A cisão entre o homem e o mundo é representada por Cosme, protagonista de Il
barone rampante, uma vez que o personagem não se sente pertencente a sociedade
alguma. Ele vive sobre as árvores, pois está desajustado ao mundo que o rodeia, por
isso, sobe nas árvores e recusa-se a descer de lá, o que pode ser visto como uma forma
de representar essa cisão com o mundo, que é inerente ao intelectual frustrado com as
injustiças que presencia há então, levando ao sentimento de desilusão. Esta é comentada
por Bosi em Literatura e Resistência: “Em termos de produção narrativa o importante é
ressaltar a coexistência de absurdo e construção de um modelo de desespero individual
[...] do mais profundo sentimento de impotência” (2002, p. 121).
A problemática do intelectual moderno serve de recurso e inspiração para autores
como Calvino que representou isso por intermédio do protagonista Cosme, que era
movido por ideais sólidos dentro de si e cria em ideias iluministas e da Revolução
Francesa. Contudo, esse personagem, se dá conta de que todo aquele discurso moldado
em torno dos direitos à propriedade, liberdade, igualdade e fraternidade para todos sem
distinções, na realidade declinam, pois o que de fato acontece é a ascensão da burguesia
e o aumento de seus privilégios em oposição à realidade do povo, dos camponeses e dos
artesãos, que continuavam a viver na pobreza. Esta reflexão pode ser depreendida em O
contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade, de Mainguenau, que
relaciona as angústias e questões sociais que são referidas no fazer poético de alguns
autores e que, neste caso, relacionamos a tessitura de Calvino em Il barone rampante:
“Longe de enunciar num solo institucional neutro e estável, o escritor alimenta sua obra
com o caráter radicalmente problemático de sua própria pertinência ao campo literário e
à sociedade” (MANGUINEAU, 2001, p. 27).
O mesmo autor traz à tona a importância do contexto social para o processo de
produção literária do escritor, levando-se em consideração fatores como a tensão, a
43
política e a cultura, que permitem a abordagem de determinadas problemáticas, como
são figuradas na narrativa em questão, na qual temos o tratamento da frustração de
Cosme, mas que, ainda assim, possui alguma esperança na melhoria da humanidade,
como se fosse uma maneira de atingir o equilíbrio entre a crise individual do indivíduo e
de sua coletividade social.
O protagonista relaciona-se com pessoas de diferentes estratos sociais, pois
conhece desde camponeses, grandes pensadores e até renomadas figuras históricas,
mesmo vivendo nas árvores, e apesar de possuir o título de barão, ele leva uma vida
atípica e até solitária. A essência desta ideia pode ser sugestionada em O contexto da
obra literária: enunciação, escritor, sociedade, em que Mainguenau comenta algumas
situações inevitáveis em meios as relações sociais ainda que complicadas para quem as
vivencia: “A existência social da literatura supõe ao mesmo tempo a impossibilidade
de se fechar sobre si e a de se confundir com a sociedade “comum”, a necessidade
de jogar com e nesse meio-termo” (2001, p. 28, grifo nosso). Colocação, que pode ser
reforçada por considerações do próprio Calvino no Prefácio da trilogia:
Sempre però sapendo che per essere con gli altri veramente, la sola via era
d’essere separato dagli altri, d’imporre testardamente a sé e agli altri quella
sua incomoda singolarità e solitudine in tutte le ore e in tutti i momenti della
sua vita, così come è vocazione del poeta, dell’esploratore, dei
rivoluzionario. 29
(CALVINO, 2003, p. 417-418, grifo do autor)
É necessário evidenciar a situação do desarranjo do protagonista Cosme em
relação à sociedade, pois ele não se deixa moldar pelas regras e costumes de sua época,
além de ser movido por um ímpeto desbravador, verificado por meio de suas aventuras
e desventuras em cima das árvores. Percebemos o estado de solidão de Cosme como
uma forma de representação da situação típica de muitos intelectuais em oposição ao
modo de vida das outras pessoas, que era regido por uma cultura patriarcal, hierarquias,
boas colocações políticas, aparências, entre outros.
Lukács, no capítulo “O romance como epopéia burguesa”, salienta a necessidade
da ação no romance, recurso responsável pela retratação da consciência do homem
enquanto ser racional que pensa e interage com a sociedade que o cerca.
29
“Mas sabendo sempre que para estar de fato com os outros, o único caminho era permanecer separado
dos outros, impondo teimosamente a si e aos demais aquela sua incômoda singularidade e solidão em
todas as horas e em todos os momentos de sua vida, assim como é vocação do poeta, do explorador, do
revolucionário” (CALVINO, 1997, p.13-14, grifo do autor).
44
Tratando-se de representar a relação real do homem com a sociedade e a
natureza (isto é, não somente a consciência que o homem tem dessas
relações, mas o próprio ser que é o fundamento desta consciência, em sua
ligação dialética com ela), o único caminho adequado é a representação
da ação. Porque somente quando o homem age é que, graças ao seu ser
social, encontra expressão a sua verdadeira essência, a forma autêntica e o
conteúdo autêntico de sua consciência, quer ele saiba disso ou não, e
quaisquer que sejam as falsas representações que ele tenha sobre isso em
sua consciência. A fantasia poética do narrador consiste precisamente em
inventar uma história e uma situação onde encontre expressão ativa esta
“essência” do homem o elemento típico de seu ser social. (LUKÁCS,
1999, p. 89-91)
Devemos ressaltar que o título da trilogia I nostri antenati, convida os leitores a
um retorno e uma revisitação dos costumes e tradições passadas a fim de levar a
reflexão e reformulação da forma de vida do homem moderno, que tem um estilo de
vida individualista e não se importa tanto com sua coletividade, vive para si e para suas
realizações pessoais, é antagônico de seus antecessores históricos, como nos esclarece
Lukács, que retoma Hegel:
“No atual Estado de direito, os poderes públicos não possuem por si sós
uma figura individual, mas o universal enquanto tal reina em sua
universalidade, na qual o caráter vivente do indivíduo é superado ou então
secundário ou indiferente”. Por esta razão, os homens modernos, ao
contrário dos homens do mundo antigo, separam-se com suas finalidades
e relações “pessoais”, das finalidades da totalidade: aquilo que o
indivíduo faz com suas próprias forças o faz só para si e é por isso que ele
responde apenas pelo seu próprio agir e não pelos atos da totalidade
substancial a qual pertence. (HEGEL apud LUKÁCS, 1999, p. 89-90)
A seguinte colocação de Lukács expressa muito bem a situação de Cosme,
intelectual que vivia sobre as árvores, sendo admirado por uns e também visto como
louco por outros, haja vista que tinha um modo de vida atípico que representava em
contrariedade à sociedade: “a tendência para o idílio como representação de uma relação
total e “ingênua” do homem com a natureza que é inevitavelmente negada de maneira
impiedosa pela sociedade burguesa”(1999, p. 90). Bonura, em Invito alla lettura di
Calvino (2002), reforça essa consideração ao colocar que em Il barone rampante, o
universo da alienação é transposto para o século XVIII, em que ironicamente eram
pregados os ideais que defendiam uma convivência em sociedade harmoniosa e livre.
É fundamental destacar que a organização social, muitas vezes, acaba por isolar
e dilacerar o indivíduo, que não apresenta uma unidade em sua forma de vida,
aparentemente que parece incompleta, pois é permeada por inseguranças, lacunas e
45
indagações, que dificilmente são resolvidas, estado que causa o sentimento de se viver
num mundo à parte ao que o rodeia. Esta situação era encontrada na sociedade em que
Cosme vivia, pois o protagonista sentia-se impotente, por causa da realidade
massacrante que o cercava. Por intermédio da subjetividade, ele passa de certa forma a
isolar-se, assumindo uma postura independente e discrepante em relação à sociedade,
que não o compreendia, embora ele se preocupasse e agisse a fim de melhorias
universais. Cosme sofria por suas crenças e parecia estar fadado a um estado de solidão
contínua e de desencontro com o mundo como podemos evidenciar a partir de Lukács:
“[...] o indivíduo, estando em contradição com a coletividade, degrada-se continuamente
e porque, devido à sua monstruosa estrutura da organização social, tudo concorre para
esmagar o indivíduo [...]” (1999, p. 123).
Achugar, em La política de lo estético, chama a atenção para o estado de
reclusão do intelectual burguês no final do século XIX, fato que também presenciamos
em Cosme, um intelectual de família aristocrata, que não vive de acordo com os moldes
da sociedade:
La reclusión del artista en un mundo autónomo o periférico por parte de
la burguesia, el terrible rey burgués desterrado al artista en la intempérie
del jardín, es una imagen del fenômeno durante el fin de siglo pasado, no
la única; ni es la imagen de la actualidad. 30
(ACHUGAR, 1991, p.129 -
130)
Cosme é utilizado por Calvino para representar a situação de cisão do ser
humano, no que diz respeito à sensação de desarranjo e de desencontro com o mundo, a
partir dos ideais que eram apregoados pela Revolução Francesa, porém não cumpridos,
já que este movimento libertário oprimia e punia por meio da guilhotina todos que não
compartilhassem ou fossem opositores à sua ideologia. Dessa forma, o protagonista,
assim como os idealistas do iluminismo, ansiava pelo término do Antigo Regime, pois
considerava que só dessa forma se concretizariam esses ideais, como a justiça e a paz.
Enfim, seria possível alcançar uma sociedade igualitária. Todavia tais aspirações
parecem utópicas e são frustradas, conforme a explanação de Bonura:
La vita “arborea” di Cosimo non si sviluppa certo a causa di quel rifiuto:
per Calvino è soltanto uno, punto narrativo che gli permette di far salire,
per di cosi, il suo eroe tra le piante. Il rifiuto di Cosimo nasce da
30
“A reclusão do artista em um mundo autônomo ou periférico por parte da burguesia, o terrível rei
burguês desterrado ao artista na intempérie do jardim, é uma imagem do fenômeno durante o final do
século passado, não a única; nem é a imagem da atualidade” (ACHUGAR, p.129 -130, 1991, tradução
nossa).
46
motivazioni assai più profonde. Davanti a una società corrotta, o meglio
a una civilità che si avvia verso la Rivoluzione francese, Cosimo scegli di
stare al, di fuori della mischia e al tempo stesso di misurarsi con essa e
con la natura[...].31
(BONURA, 2002, p. 73)
Em Obras escolhidas: magia e técnica, arte e poética (1994), Benjamin trata a
questão do trauma ocasionado pelo não cumprimento dos ideais das políticas
esquerdistas do século XX, como o socialismo, fator que acarretou os sentimentos de
frustração em muitos dos seguidores dessas políticas tidas como engajadas e
reivindicatórias, e que foi vivenciado por Calvino, episódio similar ao que acontece com
Cosme, que assiste aos ideais da Revolução Francesa não serem cumpridos, como, por
exemplo, a vitória do governo ditatorial de Napoleão Bonaparte, conforme percebemos
na consideração feita anteriormente por Bonura.
Neste momento, em que os políticos nos quais os adversários do fascismo
tinham depositado as suas esperanças jazem por terra e agravam sua
derrota com a traição à sua própria causa, temos que arrancar a política
das malhas do mundo profano, em que ela havia sido enredada por
aqueles traidores. Nosso ponto de partida é a idéia de que a obtusa fé no
progresso desses políticos, sua confiança no “apoio das massas” e,
finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável são três
aspectos da mesma realidade. (BENJAMIN, 1994, p. 10)
Podemos enfatizar a situação traumática do intelectual moderno a partir de
Lukács em Teoria do romance, em que o autor comenta a questão das lacunas existentes
no interior de cada indivíduo, situação essa que atormenta a todos, pois, por não
encontrar respostas prontas e soluções, faz-se necessário o uso da reflexão e da razão,
para tentar diminuir a angústia que surge e aflige a humanidade em dados momentos de
crueldade e descrença: “entre o eu e o mundo, se cavam abismos intransponíveis e que
para lá desse abismo, toda a substancialidade flutua na disserção da reflexividade”
(LUKÁCS, 196[-], p. 30).
O excerto que segue explana muito bem a temática do intelectual, que nos é
representada por Cosme, haja vista que o mesmo é dotado de uma grande “sede” de
conhecimento, tanto é que possui até mesmo um fornecedor de livros. Soma-se a isso o
fato de ter adquirido o conhecimento da ideologia de grandes figuras históricas, de
31
“A vida “árborea” de Cosme não se desenvolve somente por causa daquela recusa: para Calvino é só
um traço narrativo que lhe permite fazer subir, por assim dizer, o seu herói entre as plantas. A recusa de
Cosme nasce de motivos ainda mais profundos. Diante de uma sociedade corrompida, ou melhor, uma
civilização que seria o contrário da Revolução francesa, Cosme escolhe estar fora da mistura e ao mesmo
tempo igualar-se com esta e com a natureza [...]” (BONURA, 2002, p. 73, tradução nossa e grifo nosso).
47
filósofos, como Rousseau, que reforçam a ideia de perseverança na crença da razão e da
reflexão humana, como formas de chegar-se a uma sociedade mais justa e organizada:
Ma Cosimo, che divorava libri d’ogni specie, e meta del suo tempo lo
passava a leggere e meta a cacciare per pagareiconti del libraio
Orbecche, aveva sempre qualche nuova storia lui da raccontare. Di
Rousseau che passegiava erborizzando per le foreste della Svizzera, di
Beniamino Franklin che acchiappava i fulmini cogli aquiloni, del Barone
de La Hontan che viveva felice tra gli Indiani dell’America. 32
(CALVINO, 2003, p.183)
Vale lembrar que Calvino acreditava na importância da educação, do estudo
como fontes de melhorias e transformações na sociedade: “credono in una letteratura
che sia presenza attiva nella storia, in una letteratura come educazione, di grado e di
qualità insostituibile” 33
(CALVINO apud DI CARLO, 1999, p. 58). Características
presentes também no protagonista Cosme, que chega a construir uma biblioteca pênsil
em cima das árvores: “Per tenere i libri, Cosimo costruì a più riprese delle specie di
biblioteche pensili, riparate alla meglio dalla pioggia e dai roditori [...]”34
(CALVINO, 2003, p.186).
Bonura em Invito alla lettura di Calvino (2002, p. 35), compara Cosme a Quinto
Anfossi, o jovem intelectual, protagonista do romance La speculazione edilizia (1963),
de Italo Calvino, pois ambos tentam obstinadamente transformar, de modo positivo,
aspectos negativos da sociedade, enquanto Cosme busca uma sociedade mais justa e
igualitária, Quinto Anfossi almeja denunciar os males do neocapitalismo e os dois não
atingem seus objetivos, apesar dos esforços empreendidos.
Calvino utiliza-se de Cosme como forma de representar a situação conflituosa
dos intelectuais do século XX, vale lembrar que o intelextual italiano, Norberto Bobbio
foi militante do Partido Socialista Italiano, escreveu sobre a situação histórica do papel
dos intelectuais e tentou definir para os mesmos uma atitude ética. Para ele em
“Intelectuais e vida política na Itália” (1999), o intelectual não tem o papel de dar
soluções ou respostas para os problemas da sociedade, mas sim refletir sobre isso, usar
32
“Mas Cosme, que devorava livros de todo tipo e passava metade de seu tempo a ler e a outra metade
caçando para pagar as contas do livreiro Obeque, tinha sempre alguma nova história para contar. Sobre
Rousseau, que passeava colhendo ervas pelas florestas da Suíça, Sobre Benjamin Franklin, que pegava
raios com pipas, sobre o barão de La Hontan, que vivia feliz entre os índios da América” (CALVINO,
1997, p. 226). 33
“creio em uma literatura que seja presença ativa na história, em uma literatura como educação, de
estado e de qualidade insubstituíveis” (CALVINO apud DI CARLO, 1999, p. 58, tradução nossa). 34
“Para conservar os livros, Cosme construiu em diversas ocasiões algo semelhante a bibliotecas pênseis,
protegidas das chuvas e dos roedores” [...] (CALVINO, 1997, p. 229).
48
até mesmo uma linguagem simbólica, o intelectual não deve estar preso a ideologias,
deve ser livre para formular suas ideias e reflexões. Colocação que podemos atrelar a Il
barone rampante, romance que apresenta uma linguagem simbólica, que busca inferir
ideias, acontecimentos e incitar o senso crítico e reflexivo do leitor sem
obrigatoriamente pedir soluções.
2.6. Personagens secundárias
As personagens secundárias são esteriotipadas e, ao referí-las, Calvino afirma no
prefácio de I nostri antenati, que em comum todas apresentam, de certa forma, algum
traço de solidão à sua maneira particular, característica que norteia o protagonista por
toda a sua trajetória:
Sul personaggi comprimari, nati per spontanea proliferazione di
quest’atmosfera romanzesca, c’è poco da dire. Il dato che li accomuna quase
tutti è d’essere dei solitari, ognuno con una manera sbagliata d’esserlo,
intorno a quella unica manera giusta che è quella del protagonista. 35
(CALVINO, 2003, p. 419)
A família de Cosme pertencia à nobreza decadente de Penúmbria, pois havia
herdado terras e comprado outras a baixo custo da Prefeitura num momento, em que
esta possuía muitas dívidas.
Biágio, o irmão mais novo de Cosme, não apresenta nenhuma característica em
sua personalidade que chame à atenção, justamente por isso, a personalidade excêntrica
e o estilo de vida incomum de Cosme se destacam e dominam a atenção dos leitores, ou
seja, sua personalidade diferenciada é valorizada em oposição ao comportamento
passivo de Biágio.
Devemos salientar algumas oposições elementares entre a personalidade de
Cosme e a de seu irmão Biágio. O primeiro é audacioso, corajoso, perspicaz, além de
romper com as normas, ao passo que o outro é moldado pelos comportamentos que
eram impostos e padronizados pela nobreza daquele momento histórico, ele não se
rebela ou se revolta contra nada, simplesmente observa, encantado, a incomum vida do
35 “Sobre as personagens secundárias, nascidas pela proliferação espontânea dessa atmosfera romanesca,
há pouco a dizer. O dado que associa quase todas é o de serem solitárias, cada uma com sua maneira
equivocada de sê-lo, ao redor daquela única maneira justa que é a do protagonista” (CALVINO, 1997, p.
15).
49
irmão, chegando a comentar de forma carinhosa suas atitudes; é como se Biágio se auto-
reprovasse por não ter a mesma coragem de Cosme:
[...] sono stato sempre un uomo posato, senza grandi slanci o smanie,
padre di famiglia, nobile di casato, illuminato de idee, ossequiente alle
leggi. Gli eccessi della política non m’hanno dato mai scrolloni troppo
forti, e spero che così continui. Ma dentro, che tristezza!. 36
(CALVINO,
2003, p.300)
Em certo momento da narrativa, Cosme e Biágio fazem furos num barril, que
continha moluscos, que seriam preparados por Batista, a irmã mais velha dos dois, para
as refeições, devido a essa travessura, os moluscos fugiram enfileirados e subiam pelas
paredes movimentando suas anteninhas, esse episódio, além de apresentar um caráter
cômico, possui também referências a fatos que antecederam a decisão de Cosme de
subir nas árvores, haja vista que como castigo os dois irmãos ficaram presos num
quartinho, que servia como prisão, por três dias, basicamente a pão e água, fato que
serviu para deixar Cosme inconformado com as atitudes autoritárias dos mais velhos
sobre as crianças.
Os irmãos, Cosme e Biágio, assumem a função de representar as contraposições
observadas no mundo, por exemplo, ao compararmos a personalidade do protagonista
Cosme com a de seu irmão Biágio, percebemos que os dois apresentam posturas que
expõem a questão dos valores na sociedade; nesse caso temos Cosme, que busca
exaustivamente o conhecimento, tem uma personalidade marcante, além de apresentar
envolvimento com questões mais engajadas e algumas frustrações; estamos diante da
representação do “intelectual revolucionário”, enquanto Biágio é o estereótipo da
aristocracia tradicional que segue as regras ditadas pela sociedade sem questionamentos,
porém admira a coragem e a astúcia do irmão.
O pai de Cosme, Armínio de Rondó, que usava uma peruca, assim como Luís
XIV, que é narrada como fora de moda, era uma maneria que seu pai encontrava para
imitar a nobreza, além do que, o mesmo almejava tornar-se o duque da região de
Penúmbria, para tanto, obrigava todos a se comportarem como se estivessem às
vésperas de ir para alguma Corte, quem sabe da Imperatriz da Áustria ou do Rei Luís da
França; Armínio é um personagem que se preocupa bastante com a questão das
36
“[...] fui sempre um homem tranquilo, sem grandes entusiasmos ou idéias, cumpridor das leis. Os
excessos da política jamais me provocaram comoções muito fortes, e espero que continue assim. Mas por
dentro que tristeza!” (CALVINO, 1997, p.360).
50
genealogias, e também está sempre pensando em rivalidades e alianças com autoridades
de famílias renomadas de regiões próximas e distantes, por isso acaba sendo chato,
embora não fosse mau, além de apresentar pensamentos destoantes e confusos.
A mãe de Cosme, a generala Konradine de Rondó, apresentava bruscos modos
militares à mesa, falava como se estivesse em meio a um pelotão de guerra, haja vista
que era filha do general, Konradine Von Kurtewitz. Na infância, ela havia perdido a
mãe, por isso foi criada pelo pai e viajava com ele para campos de batalha, todavia
hospedavam-se nos em castelos suntuosos, com muitas criadas, ela passava o tempo
costurando e fazendo rendas. Após a morte do pai de Konradine, ela passou a ser
chamada de generala.
Apesar de mostrar preocupação com a disciplina dos filhos, esta personagem
apresenta grandes dificuldades de adequar-se aos afazeres domésticos, chegando a
refletir atitudes militares neste ambiente. Os trajes de generala, que a mãe de Cosme
vestia, serviam como uma espécie de “escudo” para disfarçar suas fragilidades e
impedi-la de desmoronar diante da irredutível postura de Cosme de não descer das
árvores.
Outro personagem que deve ser destacado é o Cavaleiro Advogado Enéias Sílvio
Carrega, um homem franzino, assustado, misterioso e tímido, que trabalhava com a
contabilidade dos negócios da família. Ele parecia agir com indiferença, vestia-se com
uma longa chimarra turca e um barrete, apesar de ser irmão ilegítimo do Barão Armínio
Chuvasco de Rondó, o Cavaleiro era considerado um tio ilegítimo de Cosme e seus
irmãos, Biágio e Batista.
Mesmo sobre as árvores, o protagonista estreitou os laços de amizade com o
Cavaleiro Sílvio Enéias Carrega, pois este, assim como Cosme, tinha várias ocupações,
diferente do restante da família que passava a maior parte do tempo no ócio, o Cavaleiro
era advogado, entendia de hidráulica, além de cultivar uma criação de abelhas. A
narrativa de Calvino possui diversas passagens com tons humorísticos, como, por
exemplo, o episódio, em que o Cavaleiro Silvio Enéas Carrega escondia pernis inteiros
embaixo de suas roupas para depois comê-los escondido.
É relevante frisar que o comportamento de Sílvio Enéias Carrega não dispensava
muita confiança, exemplo disso, é uma passagem, em que o barão Armínio deu ordens
aos empregados e ao Cavaleiro para que resgatassem Cosme das árvores, enquanto este
estava no muro que dava acesso para a casa da família Rodamargem, a tentativa não
teve êxito e o Cavaleiro Sílvio Enéias, ao invés de tentar fazer alguma coisa para
51
convencer Cosme a descer, teve uma atitude totalmente contrária, ao invés disso, ele
conversou com o Marquês de Rodamargem, como se fossem velhos conhecidos, esse
evento ilustra um pouco de sua personalidade não confiável.
Quando o Cavaleiro faleceu, sua morte foi atribuída a sua traição à região de
Penúmbria, pois ele informava aos piratas mouros sobre os dias de chegada e de partida
dos navios de Penúmbria, sobre as cargas e sobre as rotas. O narrador-personagem,
Biágio destaca que Cosme havia lhe contado diversas versões do ocorrido, sendo que
uma delas dizia que o Barão Armínio de Rondó acreditava que seu quase irmão teria
sido sequestrado e morto por piratas.
O Abade Fauchelafleur era um senhor magro que apresentava uma expressão de
indiferença e rispidez, com fama de jansenista37
, além disso, havia fugido da região de
Delfinato, sua terra natal, para escapar de um processo de Inquisição. Este personagem
tem a função de mediador do conhecimento de Cosme, pois subia nas árvores para ir
conversar com ele e realizar a leitura de determinados livros considerados proibidos
pela Igreja católica, por causa disso, o Abade foi preso pela Santa Inquisição.
A irmã de Cosme era conhecida como a freira Batista, uma moça que vivia
isolada e infeliz, pois havia tido um romance mal sucedido com um marquêzinho, o
descendente de uma família rival a dela. Como não houve casamento, Armínio a
obrigava a vestir-se de freira e a permanecer sempre em casa. Devemos destacar que
esta personagem apresenta característcas cômicas, pois há uma inversão de papéis,
observada a partir das atitudes dominadoras e hostis que ela desempenha e que
geralmente não são associadas à natureza feminina, como, por exemplo, a prática de
quedas-de-braço que a moça disputava com homens de uma estrebaria.
Devemos apontar o emprego do ponto de interrogação para demonstrar a
incerteza do ponto de vista de quem narra o episódio da situação lastimável em que o
marquêzinho foi encontrado, como se tivesse sido rasgado por um tigre, ato bem
incomum e que possui uma grande carga de humor e que ainda por cima foi praticado
por uma moça, como notamos na passagem a seguir:
37 Aquele que professa o janseanismo, doutrina de Jansênio (1585-1638), teólogo holandês e bispo de
Ypres, sobre a graça e a predestinação e sobre a capacidade moral do homem presente, doutrina que
apresenta semelhanaçs com o calvinismo e que foi adotada na abadia de Port-Royal por várias correntes
espirituais com tendência ao rigorismo moral. Disponível em:
http://www.dicionarioinformal.com.br/jansenista/, acesso em 26/02/12.
52
[...]se pure l’ilosamento in cui viveva le era stato imposto da nostro padre,
dopo la storia del Marchesino della Mela, era sempre stata un animo ribelle
e solitário.Come fosse andata quella volta del Marchesino, non si seppe mai
bene. Figlio d’una famiglia a noi ostile, come s’era intrufolato in casa? E
perché? Per sedurre, anzi, per violentare nostra sorella, si disse nella lunga
lite che ne segui tra le famiglie. Di fatto, quel bietolone letigginoso non
riuscimmo mai a immaginarcelo come un seduttore, e meno che mai com
nostra sorella, certo più forte di lui, e famosa per fare a braccio di ferro
anche con gli stallieri. E poi: perché fu lui a graidare? E come mai fu
trovato, dai servi accorsi insieme a nostro padre, con i calzoni a brandelli,
lacerati come dagli artigli d’una tigre?38
(CALVINO, 2003, p. 92-93)
A tristeza de Batista era refletida nos pratos estranhos que cozinhava, como, por
exemplo, em dado momento da narrativa, menciona-se que ela preparou um porco
espinho ainda filhote. As características incomuns de Batista são perceptíveis pela
maneira que se comportava na mesa, pois ela chegava a dar medo em quem a visse,
além de percebermos um tom de humor, verificado por meio da descrição da feição
carrancuda e esquisita da moça:
Il Barone, che pure avrebbe dovuto portarcela ad esempio, non osava
guardarla, perché con quegli occhi stralunati sotto le ali della cuffia
inamidata, i denti stretti in quella sua gialla faccina da topo, faceva paura
anche a lui. 39
(CALVINO, 2003, p. 89-90)
Observamos a inversão de papéis, logo no primeiro capítulo, em que Batista, a
irmã de Cosme, costumava caçar ratos à noite, pela casa, e, por isso, levava consigo
uma espingarda, atitude inusitada por ser uma moça e também para o contexto.
Outra inversão de papéis é evidenciada na personagem Violante, cujo nome já
remete à violação de regras, quando criança, com apenas dez anos de idade, ela tinha
amizade com os meninos, que eram ladrões de frutas, além disso, ela corria pelos
bosques com seu cavalinho branco, imagem que faz lembrar uma amazona. Essa
predisposição de Violante pode ser considerada um comportamento inapropriado, para
38“[...] embora o isolamento em que vivia tivesse sido imposto por papai, depois da história do
marquezinho da Maçã, fora sempre uma alma rebelde e solitária. O que acontecera com o marquezinho
daquela vez, nunca se soube direito. Filho de uma família que tinha hostilidade por nós, como havia
conseguido entrar na casa? E por quê? Para seduzir, ou melhor, para violentar nossa irmã, foi dito na
briga interminável que se seguiu entre as famílias. De fato, não dava para imaginar aquele idiota sardento
como um sedutor e, menos ainda, com Batista, na certa mais forte do que ele e famosa pelas quedas-de-
braço até com os rapazes da estrebaria. E mais: porque foi ele quem gritou? E, ainda, em que condições
foi encontrado, pelos empregados que acorreram junto com papai, as calças em tiras,como se tivessem
sido rasgadas pelas garras de um tigre?” (CALVINO, 1997, p. 121). 39
“[...] O barão que deveria apresentá-la como um exemplo para nós, não se atrevia a encará-la, pois, com
aqueles olhos arregalados sob as asas da touca engomada, os dentes cerrados naquela amarelada
focinheira de rato, provocava medo até nele” (CALVINO, 1997, p. 117-118).
53
época, até porque, a menina integrava uma família de marqueses de Penúmbria, que por
sua vez, parecia não se importar com suas atitudes desregradas em relação ao que seria
considerado um bom comportamento pela sociedade.
Violante ou Sinforosa, como também era chamada pelo bando de ladrõezinhos
de frutas, levava consigo um berrante, com o qual avisava esses meninos, quando
apareciam proprietários das árvores, as quais eles retiravam frutas, todavia ela também
os enganava com bolos feitos à base de óleo de rícino, o que provocava dores de
estômago nos garotos por até uma semana. Essa forma de comportamento de Violante
pode ser considerada um tanto inusitada pelo fato de ainda ser uma menina, que não só
mantinha amizade com ladrões, como também os ajudava e, eventualmente, os
castigava de maneira cruel. Essas atitudes causam um estranhamento por serem
praticadas por uma garotinha de aparência inofensiva: loira, com um chifre dourado de
caça no pescoço e, que usava um vestido azul e cavalgava em seu cavalinho branco.
Violeta, também conhecida como Viola, que foi uma grande paixão de Cosme e
representa o Antigue Regime, com toda sua pompa e ostentação, enfim, o apego às
futilidades, ao luxo, à riqueza, essa personagem é totalmente diferente da figura de
Cosme. A moça tinha uma conduta desregrada para a época, pois, quando criança, tinha
amizade com ladrões de frutas, como já foi mencionado e depois de adulta casou-se
com um velho duque por interesse. A passagem que segue constata alguns desses traços
da personagem: “La ragazzina bionda scoppiò in una risata che duro tutto un volo
d’altalena, su e giù. – Ma va’! I ragazzi che rubano la frutta io li conosco! Sono tutti
miei amici! [...]”40
(CALVINO, 2003, p. 102).
Em dado momento da narrativa, Cosme diz a Viola que em cima das árvores,
não havia divisões, nem identificações de proprietários, que não existiam limites,
barreiras, havendo maior contato com a natureza. Essa postura libertária pode ser
considerada uma visão quase comunista é um contraponto em relação à realidade da
sociedade, por apresentar a divisão de propriedades privadas e de limitações, regras, leis
e tradições a serem obedecidas.
No capítulo dezenove, após tantas desgraças que rodeavam a família e que
pareciam ter sido ocasionadas a partir do comportamento desviante e de ruptura com os
padrões por Cosme, isto é, sua decisão de ir morar sobre as árvores, o pai deste
40
“A menina loura explodiu numa risada que durou uma volta completa do balanço. – Deixe disso! Os
rapazes que roubam fruta eu conheço! São todos meus amigos![...]” (CALVINO, 1997, p. 132).
54
personagem, Armínio de Rondó, falece. Sua morte parece ter sido ocasionada, devido
aos muitos desgostos e desilusões que havia sofrido, pois parecia que não havia obtido
êxito em nada na sua vida, como, por exemplo, a morte de seu irmão de estima, a
postura dura e ríspida da esposa que agia como um General, a situação do filho mais
velho que vivia sobre os ramos das árvores, o mais novo que parecia ser apático e sem
atitude, a filha Batista, que havia se casado e ido morar num lugar distante, além da
família do genro ser antipática. Soma-se a isso o fato de não ter alcançado a intitulação
de duque da região de Penúmbria, que tanto almejava. É como se Armínio não resistisse
a tantas desilusões e por isso falecesse. Com isso, o título de barão passa para Cosme,
logo a notícia espalhou-se e repercutiu na região de Penúmbria e também nos arredores.
No capítulo vinte, Konradine de Rondó falece, por ter sido acometida de
complicações asmáticas. Cosme envia a Biágio um documento, no qual transfere para
este o título de barão. Nesse momento, o irmão do protagonista tem a idade de 21 anos e
casa-se com uma moça, esta por sua vez tinha medo de Cosme, devido seu modo de
vida incomum, este tinha então, 25 anos de idade.
No capítulo vigésimo terceiro, Violeta mostra-se cruel e inescrupulosa, pois
esnoba Cosme, além de contar para ele sobre os amantes que tinha: um oficial
napolitano e um inglês que diziam que aceitariam dividí-la com outros homens. A
atitude da moça pode ser considerada uma forma de ruptura para com os padrões
morais, ainda mais em pleno século XVIII, e por se tratar de uma mulher. Algum tempo
depois, Violeta parte para a França, pois percebe que Cosme jamais desceria das árvores
e acaba desistindo dele.
Enquanto, a outra paixão de Cosme, Úrsula, uma morena de olhos belíssimos e
que exalava um agradável perfume, advinda de uma família de nobres espanhóis
exilados, que haviam se rebelado contra o Rei Carlos III e, que foram procurar exílio em
Penúmbria. Essa paixão teve uma passagem muito breve na vida do protagonista,
porque, quando Cosme pensou em assumir um compromisso com a moça, o fim do
exílio foi decretado pelo Rei, desse modo, a família de Úrsula retornou para a Espanha,
assim, mais uma vez, Cosme se deparava com a solidão.
O cão bassê, batizado por Cosme de Ótimo Máximo, na realidade, era o cão de
Viola, que havia ficado perdido, quando a família da mesma partira dali quando a moça
ainda era uma criança, e que era chamado por ela de Turcanet, o protagonista se dá
conta disso, ao ser conduzido pelo cão em direção ao jardim da família de Violeta.
55
A questão do conhecimento e da cultura como formas de modificação positiva
na conduta humana é refletida no personagem João do Mato, um ladrão que causava
temor na população de Penúmbria, mas que passou a interessar-se pela leitura, adquiriu
certo conhecimento cultural e uma mudança de postura diante da vida, pois passava a
maior parte do tempo lendo e distanciou-se da vida criminosa. Transformações essas
que foram possibilitadas graças à sua amizade com Cosme, que lhe emprestava diversos
livros. A passagem a seguir, demonstra bem o interesse do ladrão pela leitura que chega
a ser exagerado. Soma-se a isso a descrição de sua expressão, que nos revela o caráter
cômico de sua situação:
Gian dei Brughi, intanto, sdraiato sul suo giaciglio, gli ispidi capelli rossi
pieni di foglie secche sulla fronte corrugata, gli occhi verdi che gli
s’arrossavano nello sforzo della vista, leggeva leggeva muovendo la
mandibola in un compitare furioso, tenendo alto un dito úmido d isaliva per
esser pronto a voltar ela pagina. Alla alettura di Richardson, una
disposizione già da tempo latente nel suo animo lo andava come
struggendo: un desiderio di giornate abitudinarie e casalinghe, di
parentele, di sentimenti familairi, di virtù, d’avversione per i malvagi e i
viziosi. 41
(CALVINO, 2003, p. 177, grifo nosso)
O ladrão, que estava encantado com o universo literário foi boicotado por dois
ladrões que o serviam antes da conversão à leitura e acabou sendo preso e enforcado,
episódio marcado pela ironia, uma vez que João do Mato tem o mesmo destino do
protagonista do livro, que Cosme estava lendo para ele:
Quand’ebbe il cappio al collo, Gian dei Brughi senti un fischio di tra i rami.
Alzò il viso. C’era Cosimo col libro chiuso.
- Dimmi come finisce, - fece il condannato.
- Mi dispiace di dirtelo, Gian, - rispose Cosimo, - Gionata finisce appeso per
la gola.
- Grazie. Cosi sai di me pure! Addio! – e lui stesso calciò via la scala,
restando strozzato. 42
(CALVINO, 2003, p. 182)
41“João do Mato, entretanto, estendido em seu catre, os hirsutos cabelos vermelhos cheios de folhas secas
na testa enrugada, os olhos verdes que se avermelhavam com o esforço, lia sem parar, mexendo a
mandíbula num soletrar furioso, mantendo no alto um dedo úmido de saliva pronto para virar a página.
Ao descobrir Richardson, foi tomado por uma disposição que já vinha incubado: um desejo de
jornadas rotineiras domésticas, de parentes, de sentimentos familiares, de virtude, de aversão pelo
mau e pelos viciados” (CALVINO, 1997, p. 219, grifo nosso). 42
“Já com a corda no pescoço, João do Mato ouviu um assovio entre os galhos. Ergueu o rosto. Descobriu
Cosme com o livro fechado.
- Conta como termina – pediu o condenado.
- Lamento dizer, João – respondeu Cosme -, Jonas acaba pendurado pela garganta.
- Obrigado. O mesmo aconteça comigo! Adeus! – E ele mesmo deu um pontapé na escada, enforcando-
se” (CALVINO, 1997, p. 224).
56
As personagens secundárias de Il barone rampante apresentam traços satíricos,
pois, conforme, verificamos em La sátira (s/d.), de Hodgard, a sátira serve para
desmascarar o que está por trás dos símbolos sociais, dessa forma são trazidos à tona
traços de uma sociedade corrompida pelas aparências, por isso os personagens parecem
ser destituídos de uma personalidade própria, ao passo que o protagonista é um herói
que é vencido em seu conflito com a sociedade, embora tenha uma morte gloriosa,
verificamos essa situação em Cosme, que não alcança seus ideais de justiça e liberdade,
por falta da união coletiva, mas ainda assim, morre de uma maneira nobre sem nunca ter
desistido de lutar pelo que acreditava, tanto é que ele, mesmo beirando a morte, se
recusa a descer das árvores para a terra, atitude que pode ser vista como uma maneira de
persistir em suas crenças, por isso ele prefere ser conduzido pelo vento em direção ao
mar, onde desaparece solenemente.
57
3. REFERÊNCIAS HISTÓRICAS EM IL BARONE RAMPANTE E PONTOS DE
CONFLUÊNCIAS COM O CONTEXTO HISTÓRICO, EM QUE CALVINO VIVEU E
ESCREVEU A OBRA
Devemos destacar que Il barone rampante não é um romance histórico, na
realidade há referências ao contexto do Iluminismo e da Revolução Francesa no século
XVIII, período que foi marcado também pela utilização da guilhotina com o intuito de
decapitar àqueles que não concordassem com os módulos da Revolução, ou seja, a
ambientação da história nesse período, por Calvino objetiva o entrecruzamento com
formas de governo da primeira metade do século XX, como o nazismo e o fascismo,
que puniam e condenavam àqueles que não seguissem suas ideologias, ou mesmo que
fossem considerados inferiores à raça ariana, como era o caso do nazismo. Desse modo,
buscamos evidenciar os pontos em comum dos dois momentos que têm em comum a
existência de políticas que apregoavam melhores condições de vida, um estado forte, e
que, por outro lado desencadearam atos de repressão maciça e resultaram em um grande
número de mortos, devido à ignorância e à intolerância desmensurada.
Conforme nos diz Defedericis, a partir de Perella em Letteratura e storia, o
romance Il barone rampante não é histórico, embora apresente referências da história
real, na realidade, Calvino utiliza-se de acontecimentos que marcaram a humanidade a
fim de provocar aproximações e a conscientização dos leitores sobre as ironias e
controvérsias de promessas, sejam elas de caráter revolucionário, sejam elas de
discursos da direita na primeira metade do século XX. O romance em questão está a
frente de seu tempo, pois nele, o autor faz uma releitura do passado por intermédio do
viés irônico, ou seja, a ironia utilizada por Calvino objetiva despertar o incômodo no
leitor, a partir da realidade social que nos é inferida com a intenção de causar a reflexão
sobre a estupidez humana, para que esta seja identificada e também tratada.
Il barone rampante è un romanzo storico? È una domanda legittima vista la
cospicua presenza di storia settecentesca che si incontra nel libro. Calvino si
avvaleva del lavoro degli storici sul quel secolo. Pur non essendo un
romanzo storico [...].43
(PERELLA apud DEFEDERICIS, 1998, p. 57)
43
“O barão nas árvores é um romance histórico? É uma pergunta legítima, tendo em vista a considerável
presença da história setescentesca que se encontra no livro. Calvino se avaliava pelo trabalho dos
historiadores daquele século. Mas não sendo um romance histórico [...]” (PERELLA apud
DEFEDERICIS, 1998, p. 57, tradução nossa).
58
Achugar ressalta em La política de lo estético, que fatos históricos ocorridos na
esfera pública corroboram para influenciar e transformar a estética. Podemos relacionar
esta consideração à postura de Calvino, que faz menção a determinados fatos históricos,
como, por exemplo, o Iluminismo e à Revolução Francesa, que provocaram mudanças
na sociedade e também na escrita, pois, como os autores daquela época, presenciaram o
terror, grande número de execuções nas ruas, a desigualdade, entre outros, sentiram a
necessidade e até a obrigação de denunciar e retratar a realidade, que presenciaram:
[...] existe una política de lo estético en Occidente cuyo origen puede ser
rastreado en las transformaciones de la sociedad europea de fines del
sigloXVIII.
Ejemplos históricos de todo esto pueden verse en la producción artística
de La Rusia zarista de comienzos del XIX, de la Comuna de París, del fin
de siglo hispanoamericano, de la Revolución bolchevique, del
surrealismo, del stalinismo, de la época del nazismo en Alemania y de la
América Latina de los 60, para solo nombrar algunos pocos casos. Es
posible señalar cómo, en ciertos períodos críticos de la vida social, la
modificación de la noción de lo artístico y de lo estético estuvo
indisolublemente entretejida con las transformaciones ocurridas en la
esfera pública. 44
(ACHUGAR, 1991, p. 124)
Recorremos a Lefebvre, que em A Revolução Francesa (1976), trata aspectos
históricos fundamentais sobre o Iluminismo e a Revolução, que são de extrema
importância para nossa análise sobre influências de acontecimentos históricos na esfera
social e na maneira de aludir a esses fatos na literatura, como é o caso de Calvino, em Il
barone rampante. Além disso, procuramos elucidar as semelhanças entre o momento
histórico em que a narrativa transcorre, no século XVIII, em relação aos acontecimentos
históricos que Calvino testemunhou, como o governo socialista, que se dizia
esquerdista, todavia tinha atitudes autoritárias e repressoras e, que de certo modo, foram
refletidas nas entrelinhas da escrita desse autor italiano, muitas vezes, por meio de uma
ironia sutil.
O Iluminismo foi um movimento repercutido principalmente pelo filósofo, John
Loche (1632 - 1704), esse movimento dominou a Europa no século XVIII, tinha como
44
“[...] existe uma política do estético no Ocidente cuja origem pode ser encontrada nas transformações
da sociedade européia do final do século XVIII. Exemplos históricos de tudo isto podem ser vistos na
produção artística da Rússia czarista do início do século XIX, da Comuna de Paris, do final do século
hispanoamericano, da Revolução bolchevique, do surrealismo, do stalinismo, da época do nazismo na
Alemanha e da América Latina dos anos 60, para nomear apenas poucos casos. É possível assinalar como
em certos períodos críticos da vida social, a modificação da noção do artístico e do estético estiveram
indissoluvelmente interligados às transformações ocorridas na esfera pública” (ACHUGAR, 1991, p. 124,
tradução nossa).
59
objetivos lutar contra o fanatismo religioso; o absolutismo e almejava a liberdade de
expressão. Contexto que ficou conhecido como Século das Luzes, porque para os
iluministas as luzes da razão deveriam sobrepor-se sobre as trevas da ignorância, para
eles o conhecimento traria uma vida melhor à humanidade.
As ideias iluministas eram bem vistas pela burguesia, grupo social em ascensão
no século XVIII, porque para os burgueses a liberdade não seria restrita somente à
liberdade de expressão ou de escolha política, englobaria também a liberdade para a
realização de comércios e negócios.
Até 1789, a sociedade francesa estava dividia em três Estados: o Primeiro era
composto pelo clero; o Segundo pela nobreza e o Terceiro pelo povo: artesãos,
camponeses, burgueses e comerciantes. Os impostos eram pagos pelo Terceiro Estado, o
clero não pagava nada e a nobreza pagava poucos impostos e vivia sem trabalhar.
Diante dessas injustiças foi feita uma convocação dos Estados Gerais, em que houve
uma votação, na qual o povo teve a maioria dos votos e reivindicava o fim do
absolutismo, governo centrado no poder absoluto do rei e o fim dos privilégios do clero
e da nobreza.
Em reunião da Assembléia dos Estados Gerais, o clero e nobreza queriam que as
votações fossem por Estado e não por pessoa, desse modo, teriam dois votos contra
apenas um do Terceiro Estado, isso gerou a revolta dos representantes do Terceiro
Estado, que em 9 de julho de 1789, proclamaram a formação de uma Assembléia
Constituinte, que pouco tempo depois teve também a inserção de representantes do
clero e da nobreza. Em 26 de agosto do mesmo ano, a Assembléia Constituinte aprovou
a Declaração dos direitos do homem e do cidadão.
Ainda em 1789, devido à falta de alimentos, a ameaça de invasão da França e do
fechamento da Assembléia, houve a queda da Bastilha, quando muitos parisienses
revoltados tomaram a Fortaleza da Bastilha, em busca de munições e armas, esse evento
aliado às inúmeras revoltas camponesas obrigaram o rei Luís XVI a aceitar o fim da
monarquia absolutista e o estabelecimento de uma monarquia constitucional. Em 1871,
a primeira Constituição francesa aboliu os resquícios do feudalismo, liberou o comércio,
o fim dos monopólios e o fim da censura, das prisões sem justificativa, além do direito
de escolha da religião e a subordinação da Igreja aos interesses do Estado.
Embora a Revolução Francesa previsse os ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade, o fim do absolutismo e uma vida mais justa para todos e tivesse alcançado
algumas melhorias, como as mencionadas anteriormente. Em 31 de maio de 1793, teve
60
início o “Período do Terror”, após a queda dos girondinos, partidários conservadores,
monárquicos, que se sentavam à direita da Assembléia, e que queriam devolver a ordem
à França, esse Período se estendeu até 27 de julho de 1974, com a prisão de
Robespierre. Nesse contexto, existia um Tribunal Revolucionário que julgava e
executava sumariamente todos aqueles que fossem suspeitos de trair a Revolução, ainda
que não existissem provas, até o rei Luís XVI foi condenado à morte pela guilhotina,
que por ironia do destino havia sido construída ao seu mandato, como uma maneira
prática de tirar vidas.
Maximilien Robespierre (1758-1794), foi um dos líderes do Clube dos
jacobinos, liderou o Comitê de Salvação Pública, que reprimiu fortemente a população
por meio da guilhotina, inclusive antigos líderes da Revolução e os jacobinos, que
representavam o povo, conhecidos também como “montanheses” por sentarem-se à
esquerda e nas partes mais altas da Assembléia. Foram guilhotinadas aproximadamente
17 mil pessoas em pouco mais de um ano, por isso foi considerado o “Período de
Terror”.
Em 1794, após o assassinato de tantos líderes populares, Robespierre e seus
partidários perderam o apoio das camadas mais pobres da população, os chamados sans-
culottes, e logo, foram guilhotinados. Nesse mesmo ano, os conservadores deram um
golpe de Estado aliados à burguesia e anularam as conquistas feitas pelos jacobinos,
pois houve a restauração da escravidão nas colônias; o aumento do preço das
mercadorias; as terras distribuídas aos camponeses foram tomadas; houve o retorno dos
nobres e dos clérigos expatriados durante o governo jacobino, além do voto censitário
que previa que só aqueles que pagassem uma determinada quantia em impostos
poderiam votar ou ser eleitos. Dessa forma, só a burguesia era privilegiada e o povo que
havia feito tantos esforços se via novamente injustiçado.
Em 1799, Napoleão Bonaparte foi apoiado pela burguesia, pela nobreza e pelo
clero para tentar devolver a ordem e a calma à população da França. Ele então deu o
golpe de “18 de Brumário” encerrou a Revolução e consolidou as conquistas da
burguesia, além de disseminar seus ideais pela Europa.
Napoleão adotou uma política paternalista e também reprimiu os intelectuais,
que não compartilhavam de sua política imperial por intermédio da censura à imprensa
e às universidades, além de controlar o ensino pelo Estado. A França passou por
profundas transformações políticas, sociais, econômicas e culturais. A Revolução
Francesa ocasionou o fim dos feudos, a concretização do modo de produção capitalista e
61
a ascensão burguesa. Esses acontecimentos favoreceram o fim dos privilégios da
aristocracia do Antigo Regime, porque os camponeses não possuíam mais ligações e
obrigações feudais que os prendiam aos nobres e ao clero. O governo do Imperador
possibilitou principalmente o favorecimento das conquistas burguesas, em detrimento
das classes populares, que haviam dado grande contribuição à Revolução, como o fato
de terem disseminado as ideias liberais pela Europa.
A Revolução Francesa pode ser equiparada ao contexto de Calvino, no século
XX, movimentos revolucionários como o comunismo, que preconizava melhorias para
população, como, por exemplo, incentivar os operários a lidedar uma Revolução para
acabar com a ideia de propriedades privadas e das fábricas e transferir esses bens para o
Estado, que com a posse desses e de outros meios de produção deveria distribuir de
forma igualitária a riqueza da sociedade com o intuito de extinguir a pobreza.
Em 1914, o governo provisório manteve a Rússia na Primeira Guerra Mundial,
mas também tomou atitudes que fortaleceram o poder dos socialistas, como, por
exemplo, a redução da jornada de trabalho de doze horas diárias para oito, a anistia aos
presos políticos e a permissão aos exilados pra retornar ao país, sendo que a maior parte
destes exilados era composta por bolcheviques, que significa maioria, eles eram a
maioria do Partido-Democrata Russo, formados por aqueles que acreditavam em um
partido integrado apenas por militantes profissionais envolvidos com a Revolução e
com o comunismo.45
Em 1917, houve a primeira revolução comunista, pois os revolucionários
derrubaram o czar Nicolau II, que governou sobre uma espécie de monarquia absolutista
e assumiram o poder da Rússia. No mesmo ano, foi criado o Conselho dos Comissários
do povo liderado por Lenin, ex-exilado bolchevique, além disso, foram postas em
prática muitas medidas almejadas pelos bolcheviques, como a desapropriação de terras e
fábricas que passaram a pertencer aos trabalhadores e ao Estado russo. Em 1921, a
situação econômica da Rússia estava péssima, devido à devastação causada pela
Primeira Guerra Mundial, além das revoluções e da guerra civil entre os Vermelhos,
comunistas e os Brancos, latifundiários e militares ligados ao czar. Diante desse
contexto, o governo bolchevique perdeu parte do apoio que tinha e criou a Nova Política
Econômica (NEP). Em 1922, a Rússia passou a se chamar União das Repúblicas
Soviéticas (URSS).
45
Disponível em: http://www.cruzdeferro.com.br/index_arquivos/fascismo2.htm, acesso em: 20
62
Com a morte de Lenin em 1924, Josef Stalin assumiu o governo da Rússia e seis
anos depois, ele extinguiu o NEP e instaurou o Plano Quinquenal, que estabelecia o
crescimento econômico num prazo de cinco anos, a Revolução teve grande apoio graças
às propagandas panfletárias. Apesar das metas de melhorias econômicas, não havia
tanta igualdade como se era de esperar, pois os opositores de Stalin eram presos e
condenados aos gulags, campos de concentração, os prisioneiros eram obrigados ao
trabalho forçado ou mesmo condenados à morte, situação que pode ser equiparada às
mortes pela guilhotina em massa, no século XVIII, em que a Revolução Francesa
prometia liberdade, porém tirava esta e também a vida de muitos.
Fatos do passado são trazidos para o presente em Il barone rampante, escrito no
século XX, por exemplo, quando Cosme participou da guerra contra os franceses e os
austro-sardos, ao canto da Ça ira, uma canção famosa do período da França
Revolucionária. Nessa época, a população de Penúmbria, guiada por ele revoltou-se
contra o Governo da República de Gênova que cobrava altos impostos e contra os
austro-sardos que queriam unir Penúmbria à República da França.
Em certo momento da narrativa, encontramos indicações da luta da população de
Penúmbria contra os austro-sardos: “A Ombrosa, però, corsero ugualmente tempi
grossi. Contro gli Austrosardi l’esercito repubblicano muoveva guerra lì a due passi”46
(CALVINO, 2003, p. 280).
Tropas genovesas e austro-sardas queriam impedir que os jacobinos apoiassem a
anexação do território de Gênova à República Francesa, o grupo de jacobinos era
liderado por Cosme, muitos foram presos, o barão não foi apanhado, pois era muito
difícil alcançá-lo sobre as árvores. Algum tempo depois, Cosme ajudava os rebeldes a
encontrarem os austríacos, ele preparava armadilhas em cima das árvores e gritava para
que seus aliados ouvissem a direção, desse modo, ele chegava até mesmo a atirar ninhos
de vespas nos soldados austríacos, o que dá ao texto uma carga de humor, além disso,
também os atingia com golpes de fuzil, juntamente com seus companheiros de
ideologia, os inimigos ficavam desorientados e perdidos entre as árvores.
Cosme, como bom cidadão juntou-se a armada republicana, mesmo estando
sobre as árvores, e foi eleito para a junta municipal provisória. Ele chegou a escrever
um Progetto di Costituizione per Città Repubblicana con Dichiarazione dei Diritti degli
46
“Em Penúmbria, porém, houve igualmente tempos difíceis. Contra os austro-sardos o exército
republicano fazia guerra a dois passos dali” (CALVINO, 1997, p. 336).
63
Uomini, delle Donne, dei Bambini, degli Animali Domestici e Selvatici, compresi
Uccelli Pesci e Insetti, e delle Piante sai d’Alto Fusto sai Ortaggi Ed Erbe47
, todavia
permaneceu inaplicável. Esta Constituição pode ser equiparada a Declaração dos
direitos do homem e do cidadão, aprovada em 1789, pela Assembléia Constituinte da
França, documento que integra a História oficial e que provavelmente foi remetida por
Calvino de forma paródica.
Em Il barone rampante, podemos observar a representação de certos fatos
históricos por meio da vida de Cosme, intelectual da aristocracia, que tem uma forma
diferenciada de pensar o mundo e os dramas sociais que o rodeiam, dessa forma,
observamos como a Revolução Francesa influencia a vida de Cosme, isso é verificado
pelo comportamento do protagonista que costuma ler textos de filosofia, que luta pelos
ideais revolucionários em que acreditava, pois mesmo sobre as árvores, ele gritava: “ –
Alto là! In nome della libertà, fraternità e ugualianza, vi dichiaro tutti prigioneri!”
48(CALVINO, 2003, p. 287). Essa passagem reforça a crença do protagonista nos ideiais
preconizados pela Revolução Francesa, tanto é que, em Penúmbria, havia uma árvore
que era denominada “árvore da liberdade” para representar os ideais revolucionários tão
almejados por Cosme, mas que na prática não eram alcançados. Cosme até foi nomeado
administrador da junta provisória de Gênova, mas por falta de união o grupo acabou se
dissolvendo e o barão foi tirado do cargo.
No texto, há menções de taxas e de dízimos que eram cobrados pelo governo de
Napoleão aos proprietários de terras em Penúmbria. Muitos jovens eram obrigados a
lutar pela Revolução Francesa, Cosme, por diversas vezes, os ajudava ensinando-os o
caminho para locais mais afastados, como cavernas, onde poderiam ficar abrigados sem
serem descobertos. A decepção de Cosme com a Revolução Francesa é evidente, na
passagem que segue:
Cosimo, testardo com’era, non voleva mai smentirsi, ed essendo stato amico
dei Francesi prima, continuava a pensare di dover essere leale, anche se
tante cose erano cambiate ed era tutto diverso da come s’aspettava. 49
(CALVINO, 2003, p.293)
47
“Projeto e Constituição por uma Cidade Republicana com a Declaração dos Direitos dos Homens, das
Mulheres, das Crianças, dos Animais Domésticos e Silvestres, incluindo Aves, Peixes e Insetos, das
Plantas das Árvores, dos Legumes e das Ervas”. 48
“ – Alto lá! Em nome da liberdade, fraternidade e igualdade, declaro-os todos prisioneiros!”
(CALVINO, 1997, p. 344). 49
“Cosme, teimoso como era, jamais queria ser desmentido e, tendo sido amigo dos franceses antes,
continuava achando que lhes devia lealdade, embora tantas coisas tivessem mudado e fosse tudo diferente
do que imaginava” (CALVINO, 1997, p. 351).
64
Calvino por meio de Cosme sugere o poder de intervenção que as
transformações históricas têm no modo de viver da sociedade. De fato, grandes
intelectuais presenciaram seus ideais frustrados diante das formas de governo ditatoriais
e contraditórias que punham a baixo muitos anseios por uma sociedade melhor,
exemplo disso, é a forma de Calvino escrever, pois o mesmo utilizou-se de um
protagonista que tem suas expectativas frustradas diante de uma realidade nada
igualitária e livre. Esse contexto decorre da não concretização dos ideais da Revolução
Francesa e da supremacia do governo despótico de Napoleão Bonaparte. Soma-se a isso
o período de Restauração da Europa, que trouxe o retorno ao absolutismo e fortes
medidas contra condutas revolucionárias, que pudessem desencadear um governo
semelhante ao de Napoleão e desse modo, colocasse em risco a paz na Europa.
Essa postura ajuda-nos a entender a realidade social e política de regimes
autoritários da primeira metade do século XX, que influenciaram autores da época,
como Calvino, que assistiram as tragédias decorrentes de regimes fortemente
autoritários como o socialismo, o nazismo e o fascismo.
A importância da presença de elementos históricos em romances, como é o caso
de Il barone rampante, colabora para sugestionar possíveis mudanças e transformações
positivas no âmbito social, visando a melhoria da convivência em sociedade, como
elucida Freitas, em Romance e História, tendo em vista que Cosme, não conseguiu
grandes mudanças na forma de pensar de sua sociedade, devido a falta de união coletiva
e de acesso à instrução, essa inferência feita por Calvino, convida o leitor a pensar sobre
as necessidades reais da sociedade que só seriam alcançadas, se as pessoas agissem de
maneira mais digna, solidária e consciente, como atuava o protagonista, que se
preocupava com a natureza e com a conservação das florestas, tanto é que ficava sempre
alerta contra incêndios criminosos, além de valorizar a educação, a leitura e a cultura.
[...] dos romances que se apoderam da matéria histórica, os que melhor
traduzem os motivos sociais e históricos não são aqueles que retratam de
maneira escrupulosamente exata os acontecimentos, assim aqueles que
exprimem o que falta a um grupo social, que mostram as possibilidades
não conseguia grandes mudanças subjacentes de determinadas situações
ou acontecimentos, e tentam assim fazer com que as virtualidades
inerentes a uma época passem da potencialidade ao ato. (FREITAS, 1989,
p.115)
65
Desse modo, a literatura participa da História de uma maneira própria e
diferenciada, pois influencia nas ideologias, além de tornar os homens mais sensíveis e
inteligentes, moralmente fortes e capazes de interpretar de forma singular a realidade,
conforme Asor Rosa, em Stile Calvino (2004, p. 6).
Devemos salientar a questão da mescla entre ficção, história e realidade que
contribuem para a feitura do romance, pois, por intermédio da criação do autor, o leitor
inconscientemente aceita estas relações através do papel de espectador da narrativa, que,
por sua vez, não é totalmente real, tampouco totalmente ficcional e imaginativa,
havendo o chamado “pacto narrativo”. Freitas recorre a Barthes para maiores
esclarecimentos:
Ora, o romance sobre a História se inscreve no âmbito de uma
determinada realidade exterior, única, de existência comprovada e
anterior ao texto - que possui, como dirá R. Barthes [...] o prestígio do
‘c’èst arrivé’ -, e que será – ou poderá facilmente ser – reconhecida pelo
autor, já que ela se integra, inconscientemente ou não, ao seu sistema de
referências culturais, este poderá então, se assim o desejar, testar a
veracidade da palavra do escritor. E, embora essa realidade reconhecível
seja transposta para o mundo do imaginário, embora ela se integre a uma
ficção, o texto não aparece ao leitor como totalmente fictício, mas como
um misto de ficção e realidade, o que muda basicamente sua relação para
com ele, o “pacto narrativo” – contrato de ficção que automaticamente se
estabelece entre autor e leitor em toda obra romanesca. (FREITAS, 1989,
p.116, grifos da autora)
Em “História é um esboço: a nova autenticidade narrativa na historiografia e no
romance” (1995), Lammert noz diz que o romance possibilita o cruzamento e a
comparação de acontecimentos históricos passados e presentes, favorecendo o processo
de reflexão de questões ainda não solucionadas na sociedade, como é feito por Calvino
através do protagonista Cosme, que busca por meio do conhecimento a melhoria da
sociedade, que naquele contexto, e até na atualidade, apresenta grandes desigualdades,
crueldades, discursos e promessas, que, por muitas vezes, são enganosos e na prática
não garantem o respeito, a segurança e a igualdade à população.
[...] romances podem, com a força imagética imediata de seus textos, não
apenas animar o diálogo entre o passado e o presente de seus leitores de
forma sempre nova, como podem também desentranhar uma visão de
relações de vida para as quais nem as instituições sociais nem as ciências
jamais encontraram, no passado ou no presente, soluções compatíveis
com a dignidade humana. (LAMMERT, 1995, p.304)
66
3.1. Espaços de existência real mencionados em Il barone rampante
Em Literatura e História. O romance revolucionário de André Malraux, Freitas
trata a existência da localização espacial, de lugares que de fato são referências reais ao
conhecimento das pessoas:
As narrativas se passam, invariavelmente, em espaços precisos e
referenciais. Não apenas os locais onde ocorrem os fatos, mas também
aqueles, numerosos, a que os textos aludem com frequência, têm
existência concreta, isto é, podem ser encontrados em qualquer mapa
geográfico; além disso os personagens se deslocam sempre em espaços
reconhecíveis, ligados de uma forma ou de outra à realidade exterior.
(FREITAS, 1986, p.15)
Como podemos observar na passagem seguinte, em que são mencionados
espaços físicos de existência real, que estão localizados na Espanha, como: “Madrid”,
“Cadiz” e “Sevilla”, nesse episódio, uma família da nobreza espanhola, que esteve
refugiada nas árvores e, que teve o fim do exílio decretado pelo Rei, pôde, então, voltar
à terra de origem:
[...] arrivò a Don Frederico una lettera coi sigilli reali spagnoli. Il bando
per grazioso indulto di sua Maestà Cattolica, era revvocato. I nobil
esilati potevano tornare alle proprie case e ai propri averi. Súbito si fu un
gran brulichio su per i platani, - Si ritorna! Si ritorna! Madrid! Cadiz!
Sevilla!.50
(CALVINO, 2003, p. 222, grifo nosso)
De acordo com Di Carlo, em Come leggere I nostri antenati (Il visconte
dimezzato – Il barone rampante – Il cavaliere inesistente) de Italo Calvino, estes nobres
espanhóis, que se rebelaram contra o Rei Carlos III, por uma questão de direitos feudais,
eles representam o exílio por motivos contingentes, diferente dos motivos de vocação
interior que levaram Cosme a morar em cima das árvores (1999, p. 55).
Observamos outras referências a espaços reais e à Revolução Francesa, em dado
momento da narrativa, em que Violante parte para a França, porque havia desistido de
Cosme, pois ele realmente não demonstrava que iria voltar para a terra, nessa passagem,
observamos explicitamente referências à Revolução Francesa e a Napoleão Bonaparte:
50
“[...] chegou a dom Frederico uma carta com os lacres reais espanhóis. O exílio, por gracioso indulto de
Sua Majestade Católica, fora revogado. Os nobres degradados podiam retornar às próprias casas e aos
próprios bens. Imediatamente houve uma grande agitação nos plátanos. – Vamos voltar! Vamos voltar!
Madri! Cádiz! Sevilha!” (CALVINO, 1997, p. 267-268, grifo nosso).
67
“Andò in Francia e gli avvenimenti storici s’accavallarono alla sua volontà, quand’ella
già non desiderava che tornare. Scoppiò la Rivoluzione, poi la guerra [...]”51
(CALVINO, 2003, p. 263).
Batista, a irmã de Cosme, vivia na França. Lá, ela havia presenciado execuções
públicas com o uso da guilhotina, pois durante a Revolução Francesa, aqueles que não
estivessem de acordo com seus preceitos eram mortos para servirem de exemplo para os
demais, que presenciavam tudo e logo propagavam os terrores de tais ocorrências.
Observamos também um pouco de humor negro, pois ao contar essas histórias, a irmã
de Cosme decapitava alguns animais para dar maior impacto aos fatos que relatava:
Lei passava le serate raccontandoci le ultime esecuzioni capitali di Parigi;
anzi, aveva un modellino di ghigliottina, con una vera lama, e per spiegare la
fine di tutti i suoi amici e parenti acquistati decapitava lucertole, orbettini,
lombrichi ed anche sorci.52
(CALVINO, 2003, p.283)
Nesse momento da narrativa, evidenciamos o caráter trágico e cômico da
situação, uma vez que mediante um período de genocídios, que deixou a população
abismada e impossibilitada de reagir contra tal realidade inexorável, percebemos
também o lado cômico proveniente das recordações narradas por Batista, que tirou a
vida de pequenos animais, que geralmente são considerados insignificantes pela maioria
das pessoas, como: lagartixas, lombrigas e ratos em busca de possibilitar uma
visualização dos acontecimentos atrozes que presenciou na França.
3.2. Referências a personagens históricos em Il barone rampante
Devemos ressaltar a partir de Lukács, em “La forma clasica de la novela
histórica”, que a presença de personagens históricos na literatura, como personagens
secundárias, chama bastante à atenção, tendo em vista que dão a impressão de maior
veracidade aos fatos narrados na história ficcional:
Pues el gran personaje histórico presentado como figura secundaria
puede vivir una vida humana plena y desarrollar libremente en la acción
todas sus cualidades humanas, tanto las sobresalientes como las
51
“Foi para França, e os acontecimentos históricos sobrepuseram-se à sua vontade, quando ela só
desejava voltar. Estourou a revolução, depois a guerra [...]” (CALVINO, 1997, p. 377). 52
“Ela passava as noitadas contando-nos as últimas execuções capitais em Paris; possuía inclusive uma
miniatura de guilhotina, com uma lâmina autêntica, e para explicar o final de todos os seus amigos e
parentes adquiridos, decapitava lagartixas, lombrigas e também ratos” (CALVINO, 1997, p. 340).
68
mezquinas; pero está incluído de tal manera en la acción que solo en las
situaciones históricas de importancia llega a actuar y a manifestar su
personalidad. Esta alcanza así una máxima y plena eficácia, siempre en
la medida en que se ve ligada a los grandes acontecimientos de la
historia.53
(LUKÁCS, 1966, p. 48)
Esse excerto transparece bem a utilização de figuras históricas no romance,
como, por exemplo, no episódio, em que Napoleão Bonaparte foi a Milão para ser
coroado, ao viajar pela Itália e ao passar por Penúmbria, ele conhece Cosme. Todavia é
um encontro breve e superficial, além disso, o Imperador demonstra ter conhecimento
da fama de benfeitor de Cosme e chega a dizer que: “- Se io non era l’ Imperator
Napoleone, avria voluto ben essere Il cittadino Cosimo di Rondò!”54
(CALVINO, 2003,
p. 294). Esta fala de Napoleão é marcada pela ironia, pois obviamente um Imperador
como ele, jamais iria querer parecer ou viver como um cidadão simples de Penúmbria,
que era considerado louco por muitos e que habitava sobre as árvores.
Nesse encontro, Napoleão parece estar mais preocupado em proteger-se do sol,
do que em ouvir as ideias do barão, tanto é que nesta passagem, identificamos uma
relação intertextual, que ocorre de forma paródica, posto que, remete-nos ao diálogo
entre Diógenes e Alexandre, em que o primeiro solicita ao outro que não se mova para
poder sentir o calor do sol. Nesse trecho, temos referências a essas personalidades
históricas e também podemos observar o descaso com que Napoleão trata Cosme e a
ideologia deste:
Vedendo l’inquetudine di Bonaparte, Cosimo domando, cortese: - Posso fare
qualcosa per voi, mon Empereur?
- Sí, si – disse Napoleone, - statevenne un pó più in qua, ve ne prego, per
ripararmi dal sole, ecco, così, fermo... – Poi si tacque, come assalito da un
pensiero, e rivolto al Viceré Eugenio: - Tout cela me rappelle quelque
chose... Quelque chose que j’ai déjà vu...
Cosimo gli venne in aiuto: - Non eravate voi, Maestà: era Alessandro
Magno.
- Ah, ma certo! - fece Napoleone. – L’incontro di Alessandro e Diogene!
- Vous n’oubliez jamais votre Plutarque, mon Empereur, - disse il
Beauharnais.
53
“Pois o grande personagem histórico apresentado como figura secundária pode viver uma vida humana
plena e desenvolver livremente na ação todas suas qualidades humanas, tanto as marcantes como as
mesquinhas; mas está de tal maneira incluído na ação que somente nas situações históricas de
importância chega a atuar e a manifestar sua personalidade. Esta alcança, dessa forma uma máxima e
plena eficácia, sempre na medida em que se vê ligada aos grandes acontecimentos da história”
(LUKÁCS, 1966, p. 48, tradução nossa). 54
“ – Se eu não fosse o imperador Napoleão, gostaria de ser o cidadão Cosme de Rondò!” (CALVINO,
1997, p. 360).
69
-Solo che allora, - soggiunse Cosimo, - era Alessandro a domandare a
Diogene cosa poteva fare per lui, e Diogene a pregarlo di scotarsi... .55
(CALVINO, 2003, p. 294)
Em Literatura e História. O romance revolucionário de André Malraux, Freitas,
também aborda a utilização de personagens históricos na feitura de romances:
Ao lado dos personagens principais que são imaginários, nota-se com
certa freqüência [...] a presença de personagens de identidade comprovada
e que exerceram funções igualmente comprovadas no acontecimento
histórico que contam as narrativas – ou seja, personagens históricos.
Podem-se distinguir três tipos: os que apesar da pequena participação
direta nas narrativas, agem sobre a História; os que, embora ligados aos
acontecimentos narrados, são apenas citados; e os que pertencem à
cronologia longa e funcionam como pontos de referência histórica.
(FREITAS, 1986, p.16-17, grifos da autora)
Freitas coloca que não são trabalhadas características pessoais dos personagens
históricos, recurso encontrado em Il barone rampante, pois, não são tratadas
características pessoais das figuras históricas mencionadas nesta narrativa:
A vida pessoal ou o destino individual desses personagens inexiste nos
romances: nenhum traço moral ou psicológico nos é dado a conhecer; as
descrições físicas, quando existem, são rápidas e correspondem fielmente
às fotos de que dispomos. (FREITAS, 1986, p.17)
As alusões a determinados eventos e personagens históricos são afirmadas pelo
próprio Calvino no prefácio de I nostri antenati:
Invece d’un racconto fuori dal tempo, dallo scenario appena accenato,
dai personaggi filiformi ed emblematici, dall’intrecio di favoletta per
bambini, ero continuamente atratto, nello scrivere, a fare un “pastiche”
storico, un repertorio d’immagini setecentesche, suffragato didate e
correlazioni con avvenimenti e personaggi famosi; un paesaggio e una
natura, immaginari si, ma descritti con precisione e nostalgia; una
vicenda che si preoccupava di rendere giustificabile e verosimile perfino
l’irrealtà della trovata iniziale; insomma, avevo finito per prender giusto
55
“Percebendo a inquietude de Bonaparte, Cosme perguntou, cortês:
- Posso fazer algo pelo senhor, mon empereur?
-Sim, sim – disse Napoleão - ,fique um pouco mais deste lado, por favor para proteger-me do sol, isso,
assim, parado... – Depois se calou, como assaltado por um pensamento, e virou-se para o vice-rei
Eugênio: - Tout cela me rappelle quelque chose... Quelque chose que f’ai déjà vu...
Cosme correu em seu auxílio:
- Não era Vossa Senhoria, Majestade: era Alexandre Magno.
- Ah, certamente! – disse Napoleão. – O encontro de Alexandre e Diógenes!
- Vous n’oubliez jamais votre Plutarque, mon empereur – bajulou Beauharnais.
- Só que então – acrescentou Cosme – era Alexandre quem perguntava a Diógenes o que podia fazer por
ele, e Diógenes quem pedia a ele que se deslocasse...” (CALVINO, 1997, p. 352).
70
al romanzo, nel senso più tradizonale della parola.
56 (CALVINO, 2003,
p.419, grifo do autor)
É interessante mencionar que Cosme escreveu um Projeto de Constituição de
um Estado ideal que seria fundado em cima das árvores, além de ser mencionada a
figura de Diderot, filósofo e escritor francês, conhecido historicamente pela idealização
da Enciclopédia, juntamente, com D’Alembert, esta obra é considerada a criação
suprema do Iluminismo, pois apregoava a razão como grande mediadora dos sentidos;
almejava diversas áreas do conhecimento; uma verdadeira compilação de informações
com manifestações filosóficas, que foi publicada em vários volumes. Nessa passagem
da narrativa, observamos um certo humor ao ser revelado que Diderot teria agradecido
com um bilhete a recepção da Constituição criada por Cosme, esse fato tem um efeito
cômico, pois um assunto que era de extrema importância para Cosme foi tratado como
algo banal e irrelevante pelo filósofo:
Convalescente, immobile sul noce, si ritemprava nei suoi studi più severi.
Cominciò in quel tempo a scrivere un Progetto do Costituizione d’uno
Stato ideale fondato sopra gli alberi, in cui descriveva l’immaginaria
Repubblica d’Arborea, abitata da uomini giusti. Lo cominciò come un
trattato sulle leggi e i governi ma scrivendo la sua inclinazione
d’inventore di storie complicate ebbe il sopravvento e ne uscì uno
zibaldone d’avventure, duelli e storie erotiche, inserite, quest’ultime, in
un capitolo sul diritto matrimoniale. L’epilogo del libro avrebbe dovuto
essere questo: l’autore, fondato lo Stato perfetto in cima agli alberi e
convinta tutta l’umanità a stabilirvisi e a vivere felice, scendeva ad
abitare sulla terra rimasta deserta. Avrebbe dovuto essere, ma l’opera
resto incompiuta. Ne mandò un riassunto al Diderot, firmando
semplicemente: Cosimo Rondò, lettore dell’Enciclopedia. Il Diderot
ringraziò con un biglietto. 57
(CALVINO, 2003, p.228, grifos do autor)
56
“Em vez de uma história fora do tempo, com cenário apenas esboçado, personagens filiformes e
emblemáticas, com trama de pequena fábula para crianças, era continuamente atraído, ao escrever, a fazer
um “pastiche!” histórico, um repertório de imagens setencentistas, repleto de datas e correlações com
acontecimentos e personagens famosas; uma paisagem e uma natureza, imaginárias sim, mas descritas
com precisão e nostalgia; uma história em que se preocupava tornar justificável e verossímil até a
irrealidade do achado inicial; em resumo terminei tomado pelo gosto do romance, no sentido mais
tradicional da palavra” (CALVINO, 1997, p.15, grifo do autor). 57
“Convalescente, imóvel na nogueira, retemperava-se em seus estudos mais severos. Começou naquela
época a escrever um Projeto de Constituição de um Estado ideal fundado em cima das árvores, e quem
descrevia a imaginária República Arbórea, habitada por homens justos. Iniciou-o como um tratado sobre
as leis e os governos, mas, ao redigir, a sua inclinação de inventor de histórias complicadas acabou
predominando e o resultado foi uma miscelânea de aventuras, duelos e histórias eróticas, inseridas, estas
últimas, num capítulo sobre o direito matrimonial. O epílogo do livro deveria ser este: o autor, fundado o
Estado perfeito sobre as árvores e convencida toda a humanidade a estabelecer-se ali e a viver feliz,
descia para habitar na terra deserta. Deveria ter sido, mas a obra permaneceu incompleta. Mandou um
resumo para Diderot, assinando simplesmente: Cosme de Rondó, leitor da Enciclopédia . Diderot
agradeceu com um bilhete” (CALVINO, 1997, p.276. grifos do autor).
71
Quando Biágio viaja para Paris, onde encontra com Voltaire, filósofo do
iluminismo francês, que muito admirado, lhe perguntou sobre Cosme, o irmão deste só
respondeu que para Cosme era necessário ter uma determinada distância da terra para
observá-la de maneria mais crítica e eficaz.
O emprego de personagens históricas pressupõe que o leitor tenha um
conhecimento prévio sobre os mesmos, ou mesmo que pesquise informações sobre eles,
para que possa ter melhor entendimento e aproveitamento dos fatos da história ficcional,
que apresenta a presença de certos elementos da História documentada, além disso, o
leitor também adquire mais cultura:
Esses personagens, todos reconhecíveis ou possíveis de sê-lo, além de
traduzirem um intertexto cultural que denuncia a presença do autor no seu
discurso, parecem em sua maioria exercer função de elementos de ligação
entre as histórias e a História, com o objetivo específico de enraizar
aquelas nesta. Por outro lado, a quase total ausência de elementos de
identificação mais precisos a respeito deles, além de revelar uma certa
intenção histórica do autor (que consiste em levar o leitor a se informar
melhor sobre o assunto, se quiser entender bem a história), mostra
também que ele pressupõe referências culturais anteriores comuns aos
dois. (FREITAS, 1986, p.18)
Em Il barone rampante, temos referências diversas a acontecimentos históricos e
à personagens históricas, esse tipo de narrativa estimula positivamente o interesse de
seus receptores, que, muitas vezes, fazem uso de materiais de apoio, como livros e
ferramentas de busca digital, que ajudam a compreender melhor o enredo do romance,
seu desenrolar, que inclui a menção e, às vezes, até breves descrições de referências
históricas, além de possibilitar ao leitor o estabelecimento de relação de causa e
consequência observáveis na História Oficial, que auxiliam na depreensão do mundo
atual em relação a fatores históricos antecedentes e expectativas futuras, assim como
também favorecem o estudo e a procura por informações mais completas e precisas
sobre as personagens históricas, no caso da narrativa em questão, como já foi
identificado anteriormente, a alusão a figuras como: Napoleão Bonaparte, Diderot,
Rousseau, D’Alambert, do Rei Carlos XVI, entre outros.
3.3. Referências a Instituições históricas em Il barone rampante
É relevante apontar a presença de referências a certas instituições e à História
documentada, que são feitas em obras literárias, como é o caso de Il barone rampante,
72
conforme coloca Freitas, em Literatura e História.O romance revolucionário de André
Malraux: “[...] os romances contêm numerosas alusões àquilo que se pode agrupar sob o
nome de entidades históricas, isto é, organismos, instituições ou grupos sociais e/ou
políticos de existência historicamente comprovada” (1986, p.18).
Como podemos constatar um exemplo de instituição destacada na narrativa
estudada, é a Igreja católica, pois a família de Cosme costumava frequentá-la para
assistir às missas e tinha o sobrenome gravado em um dos bancos da Igreja, fato que
remete ao status social elevado. Enquanto os familiares assistiam à missa, Cosme
acompanhava tudo sobre as árvores por intermédio de uma fresta, que havia na janela da
Igreja, e, que permitia tal visualização:
Noi entravamo nella cattedrale, sedevamo al nostro banco di famiglia, lui
restava fuori, s’appostava su un leccio a fianco d’una navata, proprio
all’altezza di una grande finestra. [...] Per l’accordo di mio padre con un
sagrestano, quella vetrata ogni domenica fu tenuta socchiusa, così mio
fratello poteva prendere la Messa dal suo albreo. Ma col passare del
tempo non lo vedemmo più. La vetrata fu chiusa perché c’era corrente. 58
(CALVINO, 2003, p. 163)
Há um episódio, que representa muito bem a intransigência da Santa Inquisição,
instituição histórica que caçava e condenava à morte todos aqueles que fossem suspeitos
de propagar ideias que pudessem de alguma maneira desagradar ou ir contra as crenças
católicas, na passagem, a seguir, é narrado o momento da prisão do Abade
Fauchelafleur, que por ter tido uma conduta, que incomodava a Igreja, ou seja, ele teve
acesso a livros que eram proibidos pela referida instituição religiosa, que considerava
seus conteúdos inapropriados, pois, poderiam abalar a fé dos fiéis, devido às filosofias e
as teorias racionais, que conduziriam seus leitores ao questionamento das tradições, dos
mandamentos e dos dogmas católicos inquestionáveis, até então, como verificamos na
passagem seguinte:
Ma tra l’una e l’altra disposizione del suo animo, dedicava ormai le sue
giornate a seguire gli studi intrapresi da Cosimo [...] la voce che a Ombrosa
c’era un prete che si teneva al corrente di tutte le pubblicazioni più
scomunicate d’Europa, arrivò fino al Tribunale ecclesiastico. Un
pomeriggio, gli sbirri si presentarano alla nostra villa per ispezionare la
celletta dell’Abate. Tra suoi breviari trovarono le opere del Bayle, ancora
58
“Entrávamos na catedral, sentávamos no banco da família, ele ficava do lado de fora, acomodava-se
numa azinheira ao lado da nave, bem na altura de uma grande janela. [...] Segundo uma combinação de
meu pai com um sacristão, aquela vidraça passou a ficar entreaberta aos domingos, assim Cosme podia
assistir à missa da sua árvore. Mas com o passar do tempo não tornamos a vê-lo. A vidraça foi fechada
porque entrava uma corrente de vento” (CALVINO, 1997, p.202).
73
intonse, ma tanto vasto perché se lo prendessero in mezzo e lo portassero con
loro. 59
(CALVINO, 2003, p.185, grifo nosso)
Nesse episódio, foram tematizadas as questões da fé e das controvérsias da
religião durante o período da Santa Inquisição, organizada pela Igreja católica. No
seguinte excerto, é bem evidente a decepção do Abade com a religião, a qual havia
dedicado sua vida inteira, porém, também foi por intermédio desta mesma ideologia,
que ele viu-se preso e sem direito a misericórdia, que é tão apregoada pelos religiosos:
L’Abate passò il resto dei suoi giorni tra carcere e convento in continui atti
d’abiura, finché non morì, senza aver capito, dopo una vita intera dedicata
alla fede, inche cosa mai credesse, ma cercando di credervi fermamente fino
all’ultimo. 60
(CALVINO, 2003, p.186)
No romance, outra instituição referida é a Maçonaria, uma espécie de
sociedade secreta que segue uma filosofia de altruísmo entre seus componentes, em
busca de uma sociedade igualitária. No século XVIII, as lojas maçônicas eram pontos
de encontro, onde eram discutidos os ideais iluministas e informações sobre o decorrer
da Revolução Francesa, fato que denota a relevância de sua menção em Il barone
rampante, tendo em vista o contexto, em que transpassa.
Cosme participou desta associação, a qual integrou por algum tempo, nas
reuniões do grupo, ele fazia discursos em prol de uma sociedade universal, igualitária,
livre e justa, foi também considerado franco-maçom por ter enfrentado num duelo de
espadas, o padre Sulpício da Companhia de Jesus, que achava que Cosme disseminava
ideias novas e revolucionárias. Todavia, logo, Cosme se afastou da filosofia maçônica,
pois como era de costume em sua vida, a falta de unidade e confiança entre os
integrantes dos grupos, que ele frequentava levou-o a abandonar os encontros, como é
comentado por Biágio, no trecho seguinte:
[...] Cosimo già molto tempo prima che alla Massoneria era affiato a varie
associazioni o confraternite di mestiere, come quella di San Crispino o dei
59
“Mas, entre uma e outra disposição de ânimo, dedicava então suas jornadas a supervisionar os estudos
encetados por Cosme [...] o boato de que em Penúmbria existia um padre que se mantinha a par de todas
as publicações mais excomungadas da Europa, logo chegou ao tribunal ecleseástico. Certa tarde, os
guardas se apresentaram em nossa vila para inspecionar a cela do abade. Entre os breviários dele
encontraram as obras de Bayle, ainda intocadas, mas foi o que bastou para que o prendessem e o
levassem” (CALVINO, 1997, p.227- 228, grifo nosso). 60
“O Abade passou o resto de seus dias entre prisões e convento, em contínuas abjurações, até morrer,
sem ter compreendido, depois de uma vida inteira dedicada à fé, em que coisas ainda acreditava, porém
tentando firmemente acreditar nelas até o derradeiro momento”(CALVINO, 1997, p. 228).
74
Calzoali, o quella dei virtuosi Bottai, dei Giusti Armaiuoli o dei Cappelai
Coscienziosi. 61
(CALVINO, 2003, p.98)
Verificamos referências históricas a instituições históricas como a Companhia de
Jesus, uma vez que o barão Armínio de Rondó considerava que os jesuítas o
perseguiam, devido a um desentendimento ocasionado pela disputa de um pomar
localizado numa propriedade, disputada por ambos, esse motivo de discórdia chega a ser
hilário, além disso, o pai de Cosme protegia os exilados pela Companhia de Jesus: “Da
allora nostro padre era sicuro che la Compagnia mandasse i suoi agenti ad attentare
alla sua vita e ai suoi diritti;[...] e dava asilo e protezione a quanti dai Gesuiti si
dichiaravano perseguitati [...]”62
(CALVINO, 2003, p.140).
O tratamento de fatos históricos e obras ficcionais existente em Il barone
rampante, é de extrema relevância, pois possibilita que o público relacione suas
experiências de vida e conhecimentos de mundo a fatos históricos no entendimento e
interpretação da obra.
Vale lembrar que Calvino utiliza em Il barone rampante, temas que levantam
questionamentos, que objetivam uma movimentação no âmbito da coletividade da
sociedade, desse modo, observamos o envolvimento do protagonista Cosme com
determinados grupos e instituições, que muitas vezes, acabam desintegrando-se, por
causa da falta de união e de obstinação dos integrantes desses grupos.
Il barone rampante apresenta contradições históricas, mas não necessariamente
uma resolução dessas contradições, todavia conduzem a reformulação das formas de
pensar o mundo e favorecem a formação de uma consciência mais crítica diante da
realidade e de seus antagonismos, desse modo, nessa narrativa percebemos que a
história social e política são incorporadas até uma certa medida, que varia, de acordo
com as intenções do autor.
Como ocorre, por exemplo, no último capítulo, visto que se faz necessário que o
leitor disponha de informações históricas, uma vez que são mencionadas por Biágio a
Restauração da Europa; a descrença nas formas de governo; a Revolução Francesa; a
presença dos jesuítas; a Santa Inquisição e o fracasso dos ideais iluministas. Trata-se de
61
“[...] Cosme, bem antes da maçonaria, já se filiara a várias associações ou confrarias de profissionais,
como a de São Crispim ou dos Sapateiros, ou à dos Virtuosos Tanoeiros, dos Justos Armeiros ou dos
Chapeleiros Conscienciosos” (CALVINO, 1997, p.331). 62
“Desde então papai estava convencido de que a companhia mandava agentes para atentar contra a vida
dele e seus direitos; [...] e dava asilo e proteção a todos os que se declarassem perseguidos pelos jesuítas
[...]” (CALVINO, 1997, p. 175).
75
um momento de transição histórica, que pode ser equiparado à falta de esperança
experimentada pelos intelectuais do contexto histórico de Calvino e pelo próprio autor
quanto a líderes esquerdistas, que acabam tendo comportamentos despóticos.
Ora non so che cosa ci porterà questo secolo decimonono, cominciato male e
che continua sempre peggio. Grava sull’Europa l’ombra della
Restaurazione; tutti i novatori- giacobini o bonapartisti che fossero –
sconfitti; l’assolutismo e i gesuiti rianno il campo; gli ideali della giovinezza,
i lumi, le speranze del nostro secolo decimottavo, tutto è cenere. 63
(CALVINO, 2003, p. 300)
A visão negativa de Biágio sobre a transição para o século XIX, é transcrita no
excerto acima, passagem, que induz à reflexão sobre as aflições, que tomariam o
homem, posteriormente, conforme nos diz Precioso, em sua Tese de Doutorado:
Tradição e Reinvenção: as convergências em I nostri antenati de Italo Calvino e
Primeiras estórias de João Guimarães Rosa:
A Restauração será a premissa maior que projeta a realidade italiana do pós-
guerra. O fim dos absolutismos abre caminho para a relativização e
fragmentação, características latentes do novo eixo da pós-modernidade.
(PRECIOSO, 2009, p. 147)
O sentimento de apreensão e de medo de Biágio em relação ao início do século
XIX, é perfeitamente compreensivel levando-se em consideração as situações
traumáticas que o narrador-personagem presenciou ou mesmo que teve ciência por
intermédio dos relatos que ouviu de Cosme e de Batista, além das situações misteriosas
e contraditórias que resultaram nas mortes do Cavaleiro Sílvio Enéias Carrega e do
Abade Fauchelafleur, o primeiro teria sido vítima de piratas, após ter traído a pátria que
o acolheu e o outro foi morto pelo processo de Santa Inquisição organizado pela Igreja
católica, tal como as situações de intransigência ideológica e política, que assolavam a
Europa, naquele momento histórico, sendo assim é previsível que as populações das
regiões envolvidas ficassem inseguras e pensativas sobre o futuro, se haveria melhorias
ou se ocorreriam outras desgraças.
63
“Não sei o que nos trará este décimo nono século, que começou mal e continua sempre pior. Pesa sobre
a Europa a sombra da Restauração; todos os inovadores – jacobinos ou bonapartistas que fossem –
derrotados; o absolutismo e os jesuítas retomaram o campo; os ideais de juventude, as Luzes, as
esperanças do nosso décimo oitavo século, tudo é cinzas” (CALVINO, 1997, p. 360).
76
3.4. Referências intertextuais em Il barone rampante
Em Il barone rampante, Calvino utilizou-se de acontecimentos, que marcaram a
História oficial e, que afetaram profundamente o modo de vida das pessoas, para tanto,
também fez uso de relações intertextuais, pois, em diversas ocasiões são inferidos
aspectos literários, filosóficos e científicos. O autor traça relações com obras
mundialmente conhecidas e, que foram escritas entre os séculos XVII e XVIII.
Achugar, em La política de lo estético, nos faz entender que a produção artística
dependerá do contexto histórico e social e da intertextualidade com outras obras
poéticas.
La producción artística depende de la situación desde la cual se realiza;
no hay producciones ni consecuencias de los actos artísticos en el vacío.
Nadie escribe, pinta o elabora una artesanía en una cámara neumática.
Los artistas producen contra o en diálogo con otros artistas y con otras
producciones. En este sentido, la consideración de las opciones que
realiza un artista debe ser hecha en el contexto o en el abanico de las
opciones que los otros individuos – en tanto sujetos sociales -, artistas o
no, a su vez realizan. 64
(ACHUGAR, 1991, p. 126)
Il barone rampante, apresenta intertextualidade, por exemplo, com As
Aventuras de Robinson Crusoe (1719) 65
, romance de Daniel Defoe (1660-1771), em
que Robinson decide viajar sem avisar ninguém, mas naufragou e por isso, passou a
morar numa ilha distante, e experimentou diversas situações inusitadas, havendo, então,
pontos incomuns com Cosme, que viveu sobre as árvores e também levou uma vida
solitária e distinta das demais pessoas.
Cosme escreveu um Projeto de Constituição de um Estado ideal que seria
fundado em cima das árvores que dialoga com o Dicionário Filosófico (1764), de
Voltaire (1694-1778) 66
, em que o filósofo faz críticas ao Estado e à Religião, pois não
concordava com os dogmas preconizados pela Igreja católica. É uma figura que
representa muito bem os ideais iluministas e que acreditava no progresso da sociedade a
partir da razão e do desenvolvimento da tecnologia e que escreveu, inclusive, contos
64
“A produção artística depende da situação da qual se realiza; não existem produções nem
consequências dos atos artísticos no vazio. Ninguém escreve, pinta ou elabora um artesanato em uma
câmara pneumática. Os artistas produzem contra ou em diálogo com outros artistas e com outras
produções. Neste sentido, a consideração das opções que um artista deve fazer no contexto ou no leque
das opções que os outros indivíduos – tanto sujeitos sociais -, artistas ou não, por sua vez realizam”
(ACHUGAR, 1991, p. 126, tradução nossa). 65
Disponível em: http://www.sosestudante.com/resumos-r/robison-crusoe.html, acesso em: 26/02/12. 66
Disponível em: http://www.suapesquisa.com/biografias/voltaire.htm, acesso em: 26/02/12.
77
filosóficos, equipara-se a Cosme, pois este também buscava o conhecimento e o
utilizava como um meio para reivendicar uma sociedade mais unida e igualitária,
exemplo disso, é o referido Projeto escrito pelo protagonista.
Na obra estudada, são observadas influências de J. Jacques Rousseau (1712-
1778)67
, filósofo iluminista, que teorizava sobre a necessidade de retorno ao estado
natural, ou seja, a valorização do homem bom, haja vista que ainda não teria entrado em
contato com a sociedade corruptível. Desse modo, Italo Calvino exalta a natureza; a
busca de realizações por meio de uma vida mais simples e longe da pompa característica
da sociedade aristocrata da época. Cosme chegou a escrever uma carta filosófica para
Rousseau, que não foi respondida, para Biágio, talvez o filósofo estivesse perturbado e
por isso não respondeu.
Em Il barone rampante, temos referências a leituras clássicas, visto que o Abade
Fauchelafleur, que passava lições para Cosme, como, por exemplo, traduções de
Virgílio, explicações sobre Tácito, Ovídio, sobre o funcionamento dos corpos celestes,
leis da química, um pouco de gramática, de teologia, de línguas clássicas e modernas,
enquanto Cosme ficava disposto num galho de olmos, o Abade permanecia embaixo, na
grama, sentado num banquinho.
Na narrativa analisada, Calvino, também menciona alguns livros e o nome de
alguns autores, que Cosme havia lido, e, que pertencem ao contexto dos séculos XVII e
XVIII, como: Gil Blas (1715-1735), que foi publicado em três volumes, de autoria de
Lesage (1668-1747)68
; As aventuras de Telêmaco (1699), escrito por François Salignac
de La Mothe-Fénelon (1651-1715), teólogo católico, que tinha ideias liberais e políticas,
que iam contra a Igreja e o Estado da época. Esta narrativa daria continuidade a um
episódio da Odisséia, obra clássica grega, de Homero, que narra as tentativas de Ulisses
de voltar para casa depois da Guerra de Tróia, ele passa por diversos lugares, conhece
diferentes formas de governo e está sempre acompanhado por um Mentor, que na
realidade é Minerva, deusa da sabedoria disfarçada69
; Clarisse (1748), de Samuel
Richardson (1689-1761), considerado o pai do romance inglês70
; Henry Fielding (1707-
1754), romancista inglês, que escreveu com tons humorísticos, inclusive sátiras
67
Disponível em: http://www.suapesquisa.com/biografias/rousseau.htm, acesso em: 26/02/12. 68
Disponível em: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/233480/Gil-Blas, acesso em: 26/02/12. 69
Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/leituras/os-primeiros-da-cabeceira, acesso
em: 26/02/12. 70
Disponível em: http://www.literaturaemfoco.com/?p=1808, acesso em: 26/02/12.
78
políticas71
; Jonathan Wild (1683-1725), famoso criminoso inglês, que teve seus feitos
abordados por muitos escritores72
e também, há referências à Enciclopédia ou
Dicionário razoado das ciências, artes e ofícios (1750-1772), primeira enciclopédia
publicada na Europa, com o intuito de reunir todo o conhecimento produzido na época,
foi editada, principalmente, por Denis Diderot (1713-1784) e D’Alembert (1717-
1783)73
.
Quando Cosme estava apaixonado por Úrsula, uma exilada espanhola, ele
chegou a emprestar-lhe livros como: Paulo e Virgínia (1787), livro que trata os ideais
do Iluminismo, de uma sociedade ideal e do respeito aos direitos humanos, defesa da
educação longe da civilização e que retrata o amor de dois adolescentes que vivem
numa ilha, fato que pode ser comparado a situação de Cosme e Úrsula, que habitavam
sobre as árvores, ou seja, numa posição de certa forma distanciada do mundo, Paulo e
Virgínia foi escrito por Bernadin Saint-Pierre (1737-1814)74
e Julia ou A nova Helóisa
(1761), que apresenta considerações filosóficas, sobre o amor, a amizade, de Jean-
Jacques Rousseau (1712-1778)75
, esses livros, respectivamente, justificam os interesses
de Cosme em ensinar os ideais iluministas à moça, assim como demonstrar seu lado
sentimental e apaixonado.
Nas relações de intertextualidade, todo texto refere-se a histórias já ocorridas ou
mesmo a outros livros, como exemplo, temos a passagem em que o ex-ladrão, João do
Mato é boicotado por um grupo de ladrões que o serviam antes de sua conversão à
leitura e acaba sendo preso e enforcado. O episódio é marcado pela ironia e pela
intertextualidade, uma vez que João do Mato tem o mesmo destino do protagonista, de
um romance de Fielding que Cosme estava lendo para ele, sendo que já havia lido
anteriormente o romance Clarisse, de Richardson para o ex-ladrão.
Calvino, em Perché leggere i classici, ressalta a importância dos clássicos, livros
inesquecíveis e que permitem sempre uma nova leitura cada vez que relidos. Podemos
relacionar esta questão à relação intertextual dos clássicos mencionados em Il barone
rampante.
71
Disponível em: http://pt.wikiquote.org/wiki/Henry_Fielding, acesso em: 26/02/12. 72
Disponível em: http://h2g2.com/dna/h2g2/A3176291, acesso em: 26/02/12. 73
Disponível em: http://tipografos.net/historia/alembert.html, acesso em: 26/02/12. 74
Disponível em: http://translate.google.com.br/translate?hl=pt-
BR&langpair=en%7Cpt&u=http://www.peterowen.com/pages/fiction/paulv.htm, acesso em: 26/02/12. 75
Disponível em: http://www.consciencia.org/rousseau.shtml, aceso em: 26/02/12.
79
Non necessariamente il clássico ci insegna qualcosa che non sapevamo; alle
volte vi scopriamo qualcosa che avevamo sempre saputo (o creduto di
sapere) ma non sapevamo che l’aveva detto lui per primo (o comunque si
collega a lui in modo particolare). E anche questa è una sorpresa d’una
origine, d’una relazione, d’ una appartenenza, da tutto questo potremmo
derivare una definizione del tipo:
I classici sono libri che quanto più si crede di conoscerli per sentito dire,
tanto più quando si leggono davvero si trovano nuovi, insapettati, inediti.76
(CALVINO, p.15, 1990, grifo do autor)
O fato de Calvino aludir a diversas obras clássicas, favorece, de certo modo, o
interesse dos leitores pela busca por informações sobre os títulos remetidos, isso é muito
positivo, pois estimula os receptores do romance à leitura e a aumentarem o interesse
pela cultura, pela literatura, assim o público de Calvino tem a possibilidade de aumentar
seu campo de visão dos fatos da narrativa além de poder relaciona-los com eventos de
outras obras mundialmente conhecidas.
76
“Não necessariamente o clássico nos ensina algo que não sabemos, às vezes, descobrimos algo que
sempre soubemos (ou que se acreditava saber), mas não sabíamos que tinha sido dito antes (ou no
entanto, você se conecta a ele em particular). E também é uma surpresa de uma origem, de uma relação,
de uma filiação e de tudo isso tiramos uma definição do tipo:
Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos que conhecemos, por ouvir falar, quanto mais se
lêem, são realmente novos, inesperados, inéditos” (CALVINO, p. 15, 1990, grifo do autor, tradução
nossa).
80
4. O REALISMO MÁGICO, A ALEGORIA E OS SÍMBOLOS EM IL BARONE
RAMPANTE
Il barone rampante é uma narrativa, que apresenta traços da terminologia
realista mágica, a qual iremos comentar mais adiante, mas para abordá-la com maior
eficiência, é fundamental traçarmos primeiro, um breve panorama sobre o realismo
mágico e suas variações tipológicas.
Iniciaremos nossa discussão sobre o realismo mágico a partir de O Realismo
Maravilhoso. Forma e Ideologia no romance Hispano-Americano (1980), que foi
escrito após o “boom” da literatura hispanoamericana, isto é, a produção literária em
grande escala, neste livro, Chiampi ressalta a crise do realismo na América hispânica,
com a qual surge a necessidade da formulação de um novo romance, há então um
fenômeno de renovação ficcional, que ocorreu entre os anos 1940 e 1955.
Ela trata o surgimento do termo realismo mágico, sendo que o primeiro a
empregá-lo foi o crítico de arte alemão Franz Roh. Este aplicou o termo a pintores que
trabalhavam na Alemanha, após a Primeira Guerra Mundial, e que negavam o
Expressionismo, tendência que dominou a arte alemã no pós-guerra
Para Chiampi, tanto Franz Roh, alemão historiador e crítico de arte, quanto
Massimo Bontempelli, precursor do termo na Itália, buscaram trazer à tona o que estava
oculto nos objetos e ambientes do cotidiano:
Quando em 1925, o historiador e crítico de arte Franz Roh cunhou o termo
realismo mágico, já ficou patenteado o ponto de vista fenomenológico que
iria predominar na crítica hispano-americana desde os anos quarenta. Em seu
livro Nach Expressionismus (Magischer Realismus), Roh visava a
caracterizar como realista mágica a produção pictórica do pós-
expressionismo alemão afim à arte metafísica italiana da mesma época), cuja
proposta era atingir uma significação universal exemplar, não a partir de um
processo de generalização e abstração, como fizera o expressionismo de ante-
guerra, mas pelo reverso: representar as coisas concretas e palpáveis, para
tornar visível o mistério que ocultam.[...] Também pela mesma época, outro
teórico europeu, Massimo Bontempelli, falava de “realismo místico” e
“realismo mágico”, como formas para superar o futurismo. Para
Bontempelli, como para Roh, a nova estética refutava a realidade pela
realidade e a fantasia pela fantasia, ou seja, propugnava buscar outras
dimensões da realidade, mas sem escapar do visível e concreto. (CHIAMPI, 1980, p. 21-22, grifo nosso)
81
Carpentier, no Prefácio de O reino deste mundo (1985), trata práticas como o
“vodu”, crenças que são próprias a determinadas etnias e a questão da fé. Ele cunhou o
termo realismo maravilhoso, que atualmente, pode ser considerado correspondente a
tipologia do realismo mágico antropológico proposto por William Spindler em Magic
Realism: a typology, como será constatado ao tratarmos as tipologias postuladas por
Spindler.
O romance O reino deste mundo tem como protagonista Mackandal, um escravo
rebelde do Haiti que teve uma das mãos amputadas por um moinho; criou-se a lenda de
que ele era licantropo, ou seja, de que ele transformava-se em diferentes animais.
“[...] durante minha permanência no Haiti, quando vivi em contato diário
com aquilo que poderíamos chamar de Realidade Maravilhosa. Pisava eu
numa terra onde milhares de homens ansiosos pela liberdade acreditaram
nos poderes licantrópicos de Mackandal, a tal ponto, que essa fé produziu
um milagre no dia da sua execução”. (CARPENTIER, 1985, p. 4, grifo do
autor)
Carpentier aponta que o realismo maravilhoso tem como uma de suas
características principais a ocorrência de uma “inesperada alteração da realidade”, isto
é, a fé, a crença herdada por certos povos em determinadas histórias e figuras lendárias
que compõem sua cultura; se tirarmos a palavra “milagre” teríamos uma definição de
surrealismo, movimento que o escritor cubano já integrou, mas do qual também
desvinculou-se.
“[...] o maravilhoso começa a sê-lo, de maneira inequívoca, quando surge de
uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação
privilegiada da realidade, de um destaque incomum ou singularmente
favorecedor das inadvertidas riquezas da realidade, ou de uma ampliação
das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular
intensidade, em virtude de uma exaltação do espírito, que o conduz até um
tipo de ‘estado limite’. Antes de tudo, para sentir o maravilhoso é necessário
ter fé. Aqueles que não acreditam em santos não se podem curar com
milagres de santos, como também não podem entrar de corpo, alma e posses
no mundo de Amadis de Gaula ou de Tirante, o Branco, aqueles que não são
quixotescos”. (CARPENTIER, 1985, p. 3, grifos do autor)
É relevante, apontarmos que o realismo mágico apresenta influências do
surrealismo, comentaremos brevemente, algumas de suas semelhanças e diferenças.
Teles, em Vanguarda européia e modernismo brasileiro, comenta a importância do
papel da imaginação para o movimento surrealista, para tanto, reporta-se ao Manifesto
do surrealismo (1924). Tendo em vista que o surrealismo influenciou a escrita realista
82
mágica, salientamos a importância que a imaginação tinha para o surrealismo e para a
escrita de Calvino: “A simples imaginação me dá conta do que pode ser, e é o suficiente
para suspender um pouco a terrível interdição, bastante também para que eu me
entregue a ela sem temor de me enganar [...]” (1997, p.105), temos aí, a realidade
ampliada pelo efeito realista mágico encontrado em Il barone rampante.
O Surrealismo preconiza a escritura automática, a exercitação da imaginação, a
liberação do inconsciente, do sonho, de tudo que contradiz a razão; esta vanguarda
apresenta traços em comum com o realismo mágico, haja vista que ambos podem fazer
uso de situações insólitas em ambientações e situações cotidianas. Gomes, em A
Estética Surrealista, remonta a Carrouges:
O acaso ou “acaso objetivo”, tal como o denominavam os surrealistas, é
assim definido por Michel Carrouges: “será o conjunto de premonições, de
reencontros insólitos e de coincidências estupefacientes, que manifestam de
tempos a tempos na vida humana. Estes fenômenos aparecem como os sinais
de uma vida maravilhosa que viria a revelar-se por intermitências, no curso
da vida cotidiana”. (CARROUGES apud GOMES, 1995, p. 26)
Em “Realismo mágico e realismo maravilhoso”, Esteves aponta que o
Surrealismo apresenta pontos em comum com elementos maravilhosos, pois enfatiza a
negação do racional, sobrepondo a este a liberdade imaginativa e de criação, de maneira
que a região da América hispânica serve como estímulo para a exploração de traços
exóticos, desconhecidos e até mesmo utópicos almejados pelos surrealistas:
Para nomear o desconhecido, transformando-o numa manifestação da
linguagem, valem-se da magia, vista quase como um sinônimo de poesia.
Através dela, pode-se chegar ao maravilhoso, cujo lugar predominante é a
própria linguagem, que tem a capacidade de criar universos alternativos, um
“outro lugar” que refuta, incessantemente, a realidade mais imediata. Ao
negar a realidade que os rodeia, muitos surrealistas como o próprio Breton ou
Artaud, buscam na América esse lugar da inocência, numa espécie de
reatualização da própria Utopia. (ESTEVES, 2005, p. 399-400)
Spindler em Magic Realism: a typology (1993), compara o Surrealismo e o
Realismo mágico, para ele a vanguarda surrealista agia contra o positivismo e o
racionalismo, sendo calcada fundamentalmente na prática imaginativa aliada à liberação
do inconsciente, ao passo que o realismo mágico parte do “maravilhoso” enquanto
adjetivo que encantava os surrealistas e seu efeito é inserido no mundo, como se não
causasse contradição alguma.
83
Em Contentious Contribution: Magic realism goes British, Hegerfeldt expõe que
no realismo mágico, há duas ordens: a do real e a do sobrenatural. Existem também
algumas especificidades na associação do termo “maravilhoso”, enquanto adjetivo, no
sentido de algo extraordinário, pois, aquilo que é considerado “maravilhoso” para uma
dada comunidade pode não ser considerado “maravilhoso” para outra, por exemplo, o
“vodu” mencionado por Carpentier em O reino deste mundo, para certas sociedades
pode ser considerado uma prática incomum, ao passo que para as sociedades que o
praticam é visto como algo natural.
[…] the problem that terms like “marvelous”, “fantastic” or
“supernatural” are culturally contingent and that what is considered
physically impossible in some cultures may be deemed perfectly normal in
the others.77
(HEGERFELDT, 2002, p. 66)
Esteves em “Realismo mágico e realismo maravilhoso” faz referências às
distinções entre as concepções de Flores e Leal sobre o realismo mágico, sendo que o
efeito “naturalização do irreal” é encontrado em A metamorfose, em que Gregor Samsa
é metamorfoseado em inseto, e tal acontecimento insólito é aceito naturalmente por
todos os personagens sem maiores questionamentos; já a “sobrenaturalização do real” é
observada em O processo, em que o excesso de burocracia atinge níveis que extrapolam
o limite do real:
Se Flores, por um lado, definia o realismo mágico, seguindo o modelo
fantástico kafkiano, como uma espécie de “naturalização do irreal”, Leal
inverterá o processo, usando a fórmula da “sobrenaturalização do real”,
apoiando-se tanto no anti-expressionismo de Roh como na proposta
surrealista da ontologia da realidade. Ao contrário de Flores, que incluía em
seu realismo mágico uma literatura tipicamente fantástica, produzida na
América, Leal insiste em que a nova tendência não cria mundos imaginários,
já que a magia está na própria vida, nas coisas e no modo de ser dos homens.
(FLORES; LEAL apud ESTEVES, 2005, p. 397)
Em “O barroco e o real maravilhoso”, Carpentier comenta que o realismo
mágico proposto por Franz Roh em 1925, utiliza exemplos da pintura realista mágica,
em que havia a confluência de objetos da realidade numa ambientação onírica.
77
“[...] independentemente do problema do uso de termos como ‘maravilhoso’, ‘fantástico’ ou
‘sobrenatural’ que são culturalmente contingentes e aquilo que é considerado fisicamente impossível para
algumas culturas pode ser considerada perfeitamente normal para outras” (HEGERFELDT, 2002, p. 66,
tradução nossa).
84
[...] o realismo mágico era representado pela figura de Chagall, onde se vêem
vacas voando no céu, burros sobre os telhados das casas, personagens de
cabeça para baixo, músicos entre nuvens, quer dizer elementos da realidade
porém levados a uma atmosfera de sonho, a uma atmosfera onírica.
(CARPENTIER, 1987, p. 123-124)
Esta colocação de Carpentier nos remete ao artigo Magic Realism: a typology,
em que Spindler aponta que: “Magic Realism, as it was then understood, was not a
mixture of reality and fantasy but a way to uncover the mystery hidden in ordinary
objects and everyday reality” 78
(1993, p. 75).
Spindler divide o realismo mágico em três tipologias: realismo mágico
metafísico, realismo mágico antropológico e realismo mágico ontológico. O autor
salienta que uma obra pode apresentar características de mais de uma tipologia do
realismo mágico: “It has to be stressed that there are many points of overlap between
the three types proposed, and that they are by no means mutually exclusive. Words by
the same author, furthermore, might well fall into different categories” 79
(1993, p. 79).
O realismo mágico metafísico utiliza cenários cotidianos; todavia tem-se a
ocorrência de eventos que causam um estranhamento, por serem insólitos e que não
explicitam fatos sobrenaturais:
In literature, Metaphysical Magic Realism is found in texts that induce a
sense of unreality in the reader by the technique of Verfremdung, by which
a familiar scene is described as if it were something new and unknown, but
whitout dealing explicity with the supernatural, as for example, in Franz
Kafka’s Der Prozeβ (1925) and Das Schloβ (1926); Dino Buzzati’s Il deserto
dei Tartari (1940) and Jorge Luís Borges stories “Tema del traidor y del
héroe”, “La sexta del Fénix” and “El Sur”. The result is often an uncanny
atmosphere and the creation within the next of a disturbing impersonal
presence, which remains implicit [...]. 80
(SPINDLER, 1993, p. 79, grifo
nosso)
78
“O Realismo Mágico, como foi entendido então, não era uma mistura de realidade e fantasia, mas uma
maneira de revelar o mistério oculto nos objetos ordinários e na realidade do dia a dia” (1993, p. 75). 79
“É preciso ser ressaltado que há mais pontos de coincidência entre os três tipos propostos e que eles não
são de maneira alguma mutuamente exclusivos. Obras de um mesmo autor podem, além disso, muito bem
cair em diferentes categorias” (1993, p. 78). 80
“Em literatura, Realismo Mágico Metafísico é encontrado em textos que induzem a um senso de
irrealidade no leitor pela técnica do Verfremdung (estranhamento), por meio do qual uma cena
familiar é descrita como se ela fosse algo novo e desconhecido, mas sem lidar explicitamente com o
sobrenatural, como por exemplo, em O processo de Franz Kafka (1925) e O castelo (1926); O deserto
dos tártaros de Dino Buzzati (1940) e as histórias Tema do traidor e do herói, A seita do Fênix e O sul,
de Jorge Luis Borges. O resultado é frequentemente uma atmosfera estranha e a criação, dentro do texto,
de uma perturbadora presença impessoal, que permanece implícita [...]” (SPINDLER, 1993, p.79, grifo
nosso).
85
O realismo mágico antropológico, por sua vez, está relacionado à especificidade
de referentes míticos e histórico-culturais num determinado grupo étnico ou social, e
corresponde ao realismo maravilhoso definido por Carpentier, em O reino deste mundo,
por tratar a questão das crenças, das lendas, dos mitos de determinadas comunidades
pré-industriais. De acordo, com Spindler:
In this type of Magic Realism the narrator usually has “two voices”.
Sometimes he/she depiets events from a rational point of view (the “realist”
component) and sometimes from that of a believer in magic (the “magical”
element). This antinomy is resolved by the author adopting or referring to
the myths and cultural background (the “collective unconscious”) of a
social or ethnic group: the Maya of Guatemala, in the case of Asturias; the
Black Haitian population, in Carpentier; and small rural communities in
Mexico and Colombia, in Rulfo and García Márquez. The word “magic” in
this case is taken in the anthropological sense of process used to influence
the course of events by bringing into operation secret or occult controlling
principles of Nature. This is the most current and specific definition of
Magic Realism and it is strongly associated with Latin American fiction. 81
(SPINDLER, 1993, p.79, grifo nosso)
Spindler aponta que no realismo mágico ontológico, o sobrenatural é narrado de
forma natural e realista no texto, sem haver explicações para as situações irreais
presentes nas histórias. Como, por exemplo, em A metamorfose, de Kafka, que trabalha
com eventos impossíveis, no caso a transformação do protagonista em um inseto, que é
narrada de maneira muito realista, além disso, não há nenhuma indagação ou
perturbação nos demais personagens diante de tal evento.
Unlike anthropological Magic Realism, ontological Magic Realism resolves
antinomy without recourse to any particular cultural perspective. In this
“individual” form of Magic Realism the supernatural is presented in a
matter-of-fact way as if it did not contradict reason, and no explanations are
offered for the unreal events in the text. There is no reference to the
mythical imagination of pre-industrial communities. Instead, the total
freedom and creative possibilities of writing are exercised by the author,
who is not worried about convincing the reader. The word “magic” here
refers to inexpicable, prodigious or fantastic occurrences which contradict
the laws of the natural world, and have no convincing explanation.
81
“Neste tipo de Realismo Mágico o narrador normalmente tem ‘duas vozes’. Às vezes ele/ela retrata
acontecimentos de um ponto de vista racional (o componente “realista”) e às vezes do ponto de vista do
crente em magia (elemento mágico). Essa antinomia é resolvida pelo autor quando adota ou se refere aos
mitos e histórico cultural (o ‘inconsciente coletivo’) de um grupo étnico ou social: o Maya de
Guatemala, no caso de Astúrias; a população negra haitiana, em Carpentier; e as pequenas
comunidades rurais no México e na Colômbia, em Rulfo e García Márquez. A palavra ‘mágico’
nesse caso é tomada no sentido antropológico de um processo usado para influenciar o curso dos
acontecimentos fazendo funcionar os princípios secretos ou ocultos controladores da Natureza. Essa
é a definição mais atual e especifica de Realismo Mágico e é fortemente associada com a ficção latino-
americana” (SPINDLER, 1993, p.79).
86
The narrator in Ontological Magic Realism is not puzzled, disturbed
sceptical of the supernatural, as in Fantastic Literature; he or she describes
it as if it was a normal part of ordinary everyday life. Formally, the factual
style employed in Ontological Magic Realism, where impossible of the
technique of Verfremdung used in Metaphysical Magic Realism.
Examples of the ontological type are Kafka’s Die Verwandlung (1916),
Carpentier’s “Viaje a la semilla”, and some of Julio Cortázar’s stories such
as “Axolotl” and “Carta a una señorita en Paris”. 82
(SPINDLER, 1993,
p.82, grifos nossos)
O autor ainda explica que, em A metamorfose e Axolotl, os acontecimentos
insólitos são narrados como eventos cotidianos, com naturalidade, não há nenhum
suspense, nem mesmo indagações sobre a natureza dessas situações extraordinárias:
As in Kafka’s Die Verwandlung, where in the first paragraph the
protagonist, Gregor Samsa, wakes up to find himself transformed into a giant
insect, the horrific transformation is described almost incidentally. There is
no apparent antinomy between the natural and supernatural. The statement
that the narrator is an axolotl “Ahora soy un axolotl” is made in the same
tone used to describe an ordinary action (“Dejé mi bicicleta contra las rejas
y fui a ver los tulipanes”, p. 426) The ordinary and the extraordinary are
portrayed on exactly the same level of reality. Cortázar does not want to
titillate his reader with mystery or suspense. No explanation is called for, or
pur forward, for the incredible occurrence. The reader is simply invited to
accept the ontological reality of the event.83
(SPINDLER, 1993, p.83,
tradução de Fábio Lucas Pierini, grifos nossos)
82
“Diferentemente do Realismo Mágico Antropológico, o Realismo Mágico Ontológico resolve a
antinomia sem recorrer a nenhuma perspectiva cultural em particular. Nessa forma “individual” do
Realismo Mágico, o sobrenatural é apresentado de um modo realista como se não contradissesse a
razão e não são oferecidas explicações para os acontecimentos irreais no texto Não há referência à
imaginação mítica de comunidades pré-industriais Ao contrário, a liberdade total e as criativas
possibilidades de escrever são exercidas pelo autor, que não está preocupado em convencer o leitor.
O narrador do Realismo Mágico Ontológico não está intrigado, perturbado ou cético ao sobrenatural,
como na Literatura Fantástica, ele ou ela o descreve como se fosse uma parte normal do dia a dia comum.
Formalmente, o verdadeiro estilo empregado no Realismo Mágico Ontológico, no qual situações
impossíveis são descritas de uma forma muito realista, representa o exato o posto da técnica de
Verfremdung (estranhamento) usado no Realismo Mágico Metafísico.
Exemplos do tipo ontológico são A metamorfose, de Kafka (1916), Viagem à semente, de Carpentier e
algumas das histórias de Julio Cortázar, tais como Axolotl e Carta a uma senhorita em Paris”
(SPINDLER, 1993, p.81). 83
“Como em A metamorfose de Kafka, em que no primeiro parágrafo o protagonista Gregor Samsa,
acorda e se encontra transformado em um inseto gigante, a horripilante transformação é descrita quase
acidentalmente. Não há antinomia aparente entre o natural e o sobrenatural. A afirmação de que o
narrador é um axolotl (‘Agora sou um axolotl’) é declarada no mesmo tom usado para descrever uma
ação corriqueira (‘Deixei minha bicicleta encostada nas grades e fui ver as tulipas’, p. 426). O
corriqueiro e o extraordinário são retratados exatamente no mesmo nível de realidade. Cortázar não
quer excitar seu leitor com mistério ou suspense. Nenhuma explicação é pedida, ou apresentada, para
a incrível ocorrência. O leitor é simplesmente convidado a aceitar a realidade ontológica do
acontecimento” (SPINDLER, 1993, p.82).
87
Em Psychic Realism, Mithic Realism, Grotesque Realism: Variations on Magic
Realism in Contemporary Literature in English, Delbaere-Garant explora as variações
terminológicas do termo e conceitua três variações do realismo mágico distintas das três
anteriores feitas por Spindler: realismo mágico psíquico, realismo mágico mítico e
realismo mágico grotesco.
A autora exemplifica por meio da obra de Angela Carter a definição de realismo
mágico psíquico, que consiste, basicamente, na liberação do subconsciente e na
materialização dos desejos humanos mais secretos, ou seja, há a projeção das fantasias
retraídas na história:
Angela Carter’s The infernal Desire Machines of Doctor Hoffman is the
first-person story of Desiderio, an old and famous politician, who records the
events of fifty years before when he became a national hero by ridding his
country of Doctor Hoffman, thereby putting an end to the “Great War”. That
war had started when the Doctor’s “infernal” experiments, which consisted
in liberating the subconscious by making people’s most secret desires
materialize, opened a fracture in the real that promptly turned the city into
phantasmagoric chaos.84
(DELBAERE-GARANT, 1995, p.250)
No realismo mágico mítico, os personagens devem ter uma ligação intensa com
o espaço e a terra que habitam e estes espaços não podem ter sido consumidos ou
deteriorados, além disso, os personagens não são forasteiros, devem integrar o território
de origem, diferindo, portanto do realismo mágico antropológico de Spindler, em que há
o tratamento de crenças étnicas, de mitos e de lendas, de comunidades pré-industriais,
sendo que os personagens não têm a especificidade de viver e permanecer em sua terra
de origem.
I would like to adopt the term “mythic realism” and apply it not just to the
Canadian West but to all the countries that still possess “unconsumed
space”, where “magic” images are borrowed from the physical environment
itself, instead of being projected from the characters’ psyches. It seems to me
that Ondaatje’s term is a suitable one for Second World countries from which
indigenous cultures have largely vanished, even though they remain
hauntingly present in the place itself.85
(DELBAERE-GARANT, 1995,
p.253)
84
“Angela Carter em A Infernal Máquina dos Desejos do Doutor Hoffman, narra a história em primeira
pessoa de Desiderio, um político velho e famoso, que recorda os eventos de 50 anos antes, quando ele se
tornou um herói nacional por livrar seu país do Doutor Hoffman, pondo fim a ‘Grande Guerra’. A guerra
começou quando o Doutor fez experimentos ‘infernais’, que consistiam na liberação do subconsciente,
fazendo com que os desejos mais secretos das pessoas se materializassem, abriu uma fratura no mundo
real que logo transformou a cidade num caos fantasmagórico” (DELBAERE-GARANT, 1995, p.250,
tradução nossa).
85
“Gostaria de adotar o termo ‘realismo mítico’ que não se aplica apenas ao Oeste Canadense, mas a
todos os países que ainda possuem ‘espaços não consumidos’, onde as imagens a ‘mágicas’ são
88
De acordo com Delbaere-Garant, o realismo mágico grotesco está ligado à
“carnavalização” proposta por Bakhtin, pois trabalha o baixo corporal, a excentricidade
popular, ampliando a distorção da realidade tornando-a crível. Além disso, pode
envolver uma combinação de elementos da América do Norte e do Barroco da América
Latina.
[…] “grotesque realism” he used not just for popular oral discourse but also
for any sort of hiperbolic distortion that creates a sense of strangeness
through the confusion or interpenetration of different realms like
animate/inanimate or human/animal.
[…] the term “grotesque realism” recalls Bakhtin’s carnival body, and
beautifully conveys Hodigins’ intention […] does indeed, like Bakhtin’s
carnivalesque, emphasize the regenerative power of a new communal and
popular consciousness in a selfish and materialist world. 86
(DELBAERE-
GARANT, 1995, p.256-257)
Moses, em Magical Realism At World’s End, aponta que o realismo mágico
permite que os leitores retornem ao passado, isto é, traz à tona diferentes crenças
primitivas, sendo até sentimental, de certo modo, pois é nostálgico e retoma contextos
que estão distantes cronologicamente da modernidade, como observamos em Il barone
rampante, ambientado no século XVIII, em meio ao Iluminismo e à Revolução
Francesa.
Both the historical romance and the magical realist novel are compensatory
sentimental fictions that allow, indeed encourage, their readers to indulge in
a nostalgic longing for and an imaginary return to a world that is past, or
passing away. Far from offering real, that is politically engaged, resistance
to modernization, these fictional genres depend for their success on the fact
that their readers (at least implicitly) accept that the premodern world is a
historical anachronism. Both literary forms offer purely symbolic or token
resistance to the inexorable triumph of modernity.87
(MOSES, 2001, p.105-
106)
emprestadas ao ambiente físico em si, em vez de serem projetadas pela psique dos personagens. Parece-
me que o termo Ondaatje’s é adequado para os países de Segundo Mundo, dos quais as culturas indígenas
em grande parte desapareceram, embora permaneçam assustadoramente presentes nesses locais”
(DELBAERE-GARANT, 1995, p. 253, tradução nossa). 86
“[...] o ‘realismo grotesco’, não é usado apenas no discurso oral popular, mas também para qualquer
tipo de distorção hiperbólica que cria uma sensação de estranheza com a confusão ou interpenetração de
reinos diferentes como animado /inanimado ou humano / animal.
[...] O termo ‘realismo grotesco’ lembra a carnavalização do corpo de Bakhtin, e transmite
maravilhosamente a intenção de Hodigins [...] de fato, como a carnavalização de Bakhtin, enfatiza o
poder de regeneração de uma nova consciência comum e popular em um mundo egoísta e materialista”
(DELBAERE-GARANT, 1995, p.256-257, tradução nossa). 87
“Tanto o romance histórico quanto o romance realista mágico são ficções sentimentais compensatórias
que permitem incentivar seus leitores a entrar em uma saudade nostálgica do retorno ao imaginário para
um mundo que é passado, ou esquecido. Longe de oferecer o real, o que é politicamente engajado, e a
resistência à modernização, esses gêneros de ficção dependem para seu sucesso, do fato, de que seus
leitores (pelo menos implicitamente) aceitem que o mundo pré-moderno é um anacronismo histórico.
Ambas as formas literárias oferecem uma resistência puramente simbólica ou um sinal para o triunfo
inexorável da modernidade” (MOSES, 2001, p.105-106, tradução nossa).
89
O realismo mágico pode ser caracterizado como uma literatura anacrônica, de
acordo com Moses, pois o autor faz referências a diferentes sistemas sociais, religiões,
crenças, entre outras, e utiliza-se também de narrativas orais tradicionais. Estes fatores
nos reportam a Il barone rampante, pois há o tratamento das divisões sociais por títulos,
como, por exemplo, o título de barão do protagonista Cosme, a menção de instituições
religiosas, como a Igreja católica, referências à Santa Inquisição e à Maçonaria. Além
de percebermos as influências das fábulas, pois, há a tematização do herói que passa por
situações de lutas, de dificuldades, como é o caso do protagonista do referido romance.
The magical realist novel, like the historical romance, sublates (preserves,
cancels, and transcends) those anachronistic cultural forms of the
premodern world that in incorporates and represents in fictional form.
These sublated forms include archaic literary and oral narrative traditions,
as well as premodern social, religious, and political institutions, practices,
and beliefs.88
(MOSES, 2001, p. 106)
Embora reconheça ser um pouco complicado classificar a obra de Calvino,
Spindler, em Magic Realism: a typology (1993, p. 82), aproxima a narrativa em questão,
da variedade metafísica do realismo mágico, haja vista que a história apesar de
incomum não é totalmente improvável de acontecer e se passa num ambiente cotidiano,
isto é, nas mediações de uma família tradicional e depois transcorre sobre as árvores até
o final da narrativa, além disso, não há a ocorrência de nenhum evento sobrenatural. De
certo modo, o realismo mágico desnuda o caráter ficcional do romance, haja vista que
permite um aprofundamento das representações sobre os acontecimentos inusitados do
romance, que apresentam um significado, que ultrapassa uma simples impressão inicial
dos fatos, o que deve ser levado em consideração, pois a escrita de Calvino é permeada
por ironias, como, por exemplo, a decisão de Cosme de morar sobre as árvores, que não
é um mero ato de rebeldia adolescente, na realidade, essa atitude possibilita ao
protagonista o ingresso num mundo de aventuras, descobertas, decepções, romances,
revoluções, atos heróicos e a constante ideia e esperança na melhoria das relações
humanas e no mundo.
The magic realist novels belonging to Italo Calvino’s trilogy I nostri
antenati, for example, are difficult to categorise [...] Il barone rampante
88
“O romance realista mágico, assim como o romance histórico (conserva, cancela, e transcende) as
formas anacrônicas culturais negadas do mundo pré-moderno que, incorporam e representam de forma
ficcional. Estas formas tradicionais arcaicas incluem a narrativa literária e oral, bem como instituições
sociais pré-modernas, religiosas e políticas, práticas e crenças” (MOSES, 2001, p. 106, tradução nossa).
90
(1957), tells a strange but not utterly impossible story, that of a boy who
climbs up the trees and refuses to come down for the rest of life. Despite its
unusual departing point, the novel does not narrate any supernatural events.
For this reason alone, it should be included in the metaphysical type, in
spite of the fact that its tone evokes the playful and cheerful mood of
adventure stories (Stevenson is frequently aluded to), instead of the eerie
and melancholy atmosphere of most metaphysical magic realista novels and
paintings. 89
(SPINDLER, 1993, p. 84)
Vale lembrar que a árvore aparece de certa forma, como um espaço mágico,
visto que se trata de um lugar muito improvável para alguém viver. Nas árvores, Cosme
passa a sua adolescência, a vida adulta e a velhice, sendo assim, podemos atribuir à
árvore um teor mágico, no que concerne às aventuras que Cosme lá viviencia, como
episódios, em que luta contra um gato selvagem; contra inimigos da região de
Penúmbria; evita incêndios; se apaixona por Violante e por Úrsula; caça, pesca,
trabalha; estuda, adquire conhecimento e o passa para outras pessoas; participa de
grupos revolucionários; conhece condes e até mesmo conversa com Napoleão
Bonaparte.
Quando Cosme vivia nas árvores, ainda, há pouco tempo, ocorreu um episódio
de superação dos medos e de enfrentamento da natureza, no que diz respeito aos seus
aspectos mais medonhos e selvagens, haja vista que Cosme é surpreendido por um gato
selvagem, proveniente do bosque, este tinha um olhar feroz e amarelado. O protagonista
sente um grande temor diante do animal, com o qual luta e, por isso tem sua roupa
rasgada e é ferido, todavia atinge o gato com golpes de espada e o mata. Em seguida, o
barãozinho ergue o gato pela cauda como se fosse um troféu em sinal da superação de
seus medos e de vitória, ele chega a fazer um casaco e um gorro com a pele do animal:
Era salvo, lordo di sangue, con la bestia sellvatica stecchiata sullo spadino
come su uno spiedo, e una guancia strappata da sotto l’occhio al mento da
una triplice unghiata. Urlava di dolore e di vittoria e non capiva niente e si
teneva stretto al ramo, alla spada, al cadavere di gatto, nel momento
disperato di chi há vinto la prima volta ed ora sa che strazio è vincere, e sa
che è ormai impegnato a continuare la via che há scelto e non gli sarà dato
lo scampo di chi fallisce. 90
(CALVINO, 2003, p. 136)
89
“Os romances mágico-realistas pertencentes à trilogia I nostri antenati, de Italo Calvino, por exemplo,
são difíceis de classificar [...] O barão rampante (1957) conta a estranha, mas não completamente
impossível história, de um garoto que sobe em árvores e se recusa a descer pelo resto de sua vida. Apesar
desse incomum ponto de partida, o romance não narra qualquer acontecimento sobrenatural. Por essa
única razão deveria ser incluído no tipo metafísico, apesar de o seu tom evocar o humor brincalhão das
histórias de aventura (a que Stevenson frequentemente alude), ao invés da sinistra e melancólica
atmosfera da maioria dos romances e pinturas mágico-realistas metafísicos” (SPINDLER, 1993, p.82). 90
“Estava salvo, imundo de sangue, com a fera metida no espadim como num espeto e um lado do rosto
arranhado dos olhos até o queixo por uma tríplice unhada. Urrava de dor e júbilo e não entendia nada,
mantendo-se unido ao ramo, à espada, ao cadáver do gato, no momento desesperado de quem venceu a
91
Essa batalha com o gato selvagem dá a Cosme caracteres animalescos, pois ele
luta vorazmente contra o animal, que para ele parecia muito feroz e perigoso, tendo em
vista a idade de doze anos do protagonista, que, de certo modo, atua como um fato
aterrorizante, além disso, o garoto fica com as roupas rasgadas, ensanguentadas e com
uma expressão desnorteada. Essa passagem da luta contra o gato do mato nos remete a
aspectos do realismo mágico metafísico, pois a história em si é um tanto absurda e
inusitada, mas isso não impede que seja possível de ser experimentada, até porque, o
acontecimento é narrado com ares de aventura, desse modo, o fato acaba se tornando
crível.
Outro episódio que merece ser destacado é a conversão de João do Mato à leitura
e à uma vida distante da criminalidade, visto que o ex-ladrão teve uma mudança de
comportamento ocorrida a partir do contato com Cosme, que emprestou diversos livros
para João tirando-o de um mau caminho, como se fosse uma forma de redenção do ex-
bandido. Além disso, Cosme já havia construído uma biblioteca pênsil sobre as árvores,
com o auxílio de Biágio. Embora esses acontecimentos sejão pouco prováveis de
acontecer não são impossíveis e não apresentam nenhum teor sobrenatural, além de
transcorrerem num ambiente cotidiano.
Cosme é diferente dos outros personagens, ele chega a ser considerado louco por
boa parte das pessoas que o conhecem, ou mesmo que ouviram falar dele. A condição
de isolamento e desencontro de Cosme com o mundo facilita a abordagem da
importância da cooperação em sociedade, como isso não acontece, hipótese inviável,
uma vez que o personagem está sozinho em suas ideologias, ou mesmo compartilha
desta com uma minoria irrisória, o protagonista tem suas expectativas liquidadas e passa
a agir como uma pessoa insana. Ele tem algumas atitudes estranhas, como, por exemplo,
imitar pássaros, se vestir com penas como se fosse um índio americano, episódio, que
elucida a questão da loucura, além de haver referências aos índios americanos, como
“aborígenes da América”.
[...] Cosimo era diventato matto davvero. Se prima andava vestito di pelli
da capo a piedi, ora cominciò ad adornarsi la testa di penne, come gli
aborigeni d’America, penne d’upupa o di verdone, daí colori vivaci, ed
primeira vez e agora sabe que desgraça é vencer, e sabe que doravante será obrigado a continuar no
caminho que escolheu e na olhe será dada a salvação de quem falha” (CALVINO, 1997, p. 170).
92
oltre che in testa ne portava sparse sui vestiti. Fini per farsi delle marsine
tutte ricoperte di penne, e ad imitare le abitudini di vari uccelli, come il
picchio, traendo dai tronchi lombrichi e larve e vantandoli come gran
richezza. 91
(CALVINO, 2003, p. 265)
Além de Cosme usar penas em suas roupas, ele também imitava os hábitos de
diferentes pássaros, como, por exemplo, o pica-pau; extraía dos troncos das árvores
lombrigas e larvas; fazia apologias aos pássaros, pois os reconhecia como seus
verdadeiros amigos; fazia discursos de acusação a toda à sociedade na forma de
parábolas; enfeitava as árvores com folhas, em que estavam escritas máximas de Sêneca
e Shafterbury e pendurava cocares de penas, pequenas foices e coroas.
É relevante comentar que Cosme, após algum tempo, volta ao seu estado de
consciência da realidade, encontramos em sua fase de insanidade, uma manifestação do
realismo mágico metafísico, pois não é impossível que uma pessoa passe por momentos
de quase ou total falta de sanidade em ambientes cotidianos, e depois volte ao seu
estado normal, embora, seja um tanto insólito.
A maneira como Cosme se vestia durante sua fase de loucura, remete a um teor
satírico, conforme Hodgart, em La Sátira (s/d. p. 115), coloca que a sátira procura
desnudar o personagem tirando-lhe os traços que configuram sua classe social pela
aparência, como, ocorre, por exemplo, com as vestimentas, que são destituídas de
caracteres de valor a fim de evidenciar que por trás das roupas existe um simples mortal,
que por mais que tenha grandes aspirações, mantém seu instinto animal.
No final da narrativa, Cosme tem uma morte que nos é inferida no momento em
que se agarra à corda de um balão de gás, e parte em direção ao mar e desaparece. Esta
pode ser considerada uma forma inusitada de despedida que apresenta claramente
caracteres mágicos, pelo fato de não retornar a terra e também por nunca mais ser visto
por ninguém, é como se Cosme se confundisse com as nuvens no céu, e essa ocorrência
mágica impede sua visualização pelos demais e nenhum corpo é avistado. Essa situação
pode ser atrelada a terminologia do realismo mágico metafísico, pois embora, seja uma
atitude muito difícil de ser presenciada, pode transcorrer, além disso, não envolve
91
“[...] Cosme se tornara louco de verdade. Se antes andava vestido com peles da cabeça aos pés, agora
começara a enfeitar a cabeça com penas, como os aborígenes da América, penas de poupa ou verdilhão,
com cores vivas e além de usá-las na cabeça espalhava algumas pelas roupas. Acabou por fazer casacos
totalmente recobertos de penas, e a imitar os hábitos dos diferentes pássaros, como o pica-pau, extraindo
dos troncos lombrigas e larvas e considerando-as como grande riqueza” (CALVINO, 1997, p. 319).
93
nenhum caráter sobrenatural, pois, se dá, numa ambientação natural e, que é de
conhecimento das pessoas, que conhecem Cosme.
O protagonista é excêntrico e parece não fazer parte da sociedade habitual, ele
desconstrói as normas da sociedade, devido a sua escolha de levar uma vida quase
selvagem, pois ainda na infância, ele se distancia radicalmente dos valores simbólicos
que a sociedade dita, ele rompe com tudo isso ao subir nas árvores e de lá recusar-se a
descer. Esse episódio faz lembrar uma das funções propostas por Propp em Morfologia
do conto maravilhoso (1984), no caso, a primeira, quando “um dos membros da família
sai de casa” (p.19), caracterizada também pela apresentação dos membros da família de
Cosme na mesa da sala das refeições e pela incursão em uma vida plena de aventuras,
como viria a se concretizar o futuro de Cosme. Esta situação de distanciamento da
família é acarretada pelo movimento inverso da segunda função, que determina o
“aspecto transformador da proibição” (p.20), ou seja, no momento, em que Armínio
queria obrigar Cosme a ingerir escargot. Tal contexto de adversidade contrasta com o
contexto da casa, da bela natureza que é narrada, inclusive com o local em que Cosme
passa a morar, sobre as árvores.
Notamos a função oitava que se refere a “falta de alguma coisa a algum membro
da família” (p.28), identificada pela busca contínua do protagonista pelo conhecimento
literário, científico, político e cultural ao ponto de construir uma biblioteca pênsil sobre
as árvores e participar ativamente nos movimentos revolucionários em defesa dos ideais
da Revolução Francesa.
Observamos a função nona, quando é divulgada “a notícia do dano ou de
carência” (p.28), quando Cosme, como verdadeiro herói que é, decide por conta própria
vigiar os bosques contra incêndios criminosos. Ainda nesta função, temos o item “um
moribundo preste ao herói que lhe preste serviço” (p.29), podemos relacionar a este
item, o episódio, em que João do Mato estava prestes a ser enforcado e solicita a Cosme
que terminasse de ler o livro, que o ex-ladrão havia iniciado, mas que havia sido
impedido, por causa de sua prisão.
Verificamos também coincidências com a função décima “o herói busca, aceita
ou decide reagir” (p.29) e com a função vigésima nona, em que “o herói recebe nova
aparência”, ambas fazem lembrar a fase de insanidade do protagonista, que se vestia
com penas e fazia discursos em enaltecimento aos pássaros e à natureza, esse período de
loucura dura um curto período de tempo, pois o barão consegue voltar as suas atividades
habituais, inclusive, participa de lutas contra os austro-sardos, mesmo estando
94
localizado sobre as árvores. Na passagem, em que Cosme luta contra um gato selvagem
e quando Violeta o desafia a roubar frutas das árvores dos vizinhos, identificamos
semelhanças com a décima primeira função “o herói é submetido a uma prova” (p.29).
O fato de Cosme agarrar-se ao balão de gás, nos sugere a função décima quarta
que designa que “o meio mágico passa às mãos do herói” (p.31), desse modo, o balão,
que é um instrumento tecnológico também pode apresentar uma significação mágica,
haja vista que é um objeto, um meio de locomoção que aparece de maneira “súbita” e
“espontaneamente”, o qual possibilita ao protagonista subir aos céus sem precisar
retornar para a terra. Essa situação insólita rememora também a função décima quinta,
em que “o herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto
que procura” (p.34), na realidade, Cosme não estava procurando um objeto, seu objetivo
era uma sociedade igualitária e livre das amarras impostas pelo contexto social, uma
forma de encontrá-la seria a persistência em seu ideal de não voltar para a terra, que
pôde ser mantido por meio do balão de ar.
Ainda na função décima quinta, devemos salientar o item “o protagonista voa
pelos ares”, que está intimamente ligado ao desfecho da narrativa, marcado pelo
desaparecimento de Cosme de maneira bastante singular e até sublime entre as nuvens,
em direção ao mar, sendo conduzido pelo vento até desaparecer totalmente para aqueles
que o observavam na expectativa de que o protagonista se rendesse e descesse para a
terra, pois já estava idoso e debilitado.
Durante toda a narrativa, é notável a existência de pessoas que auxiliam Cosme
de alguma forma em diversas situações, como, por exemplo, seu irmão, Biágio, que
levava para Cosme livros da biblioteca particular da casa, além de outros utensílios
domésticos, como cobertores, entre outros; o Cavaleiro Enéias Sílvio Carrega ajudou
Cosme a construir reservas de água, um mecanismo, que impedia que incêndios
criminosos se expandissem; o Abade Fauchelafleur teve um papel muito importante
enquanto mediador cultural, pois ele subia numa escada para poder ensinar ciências,
latim, folosofia, entre outros para Cosme; o cão, Ótimo Máximo levava para Cosme
alimentos como, por exemplo, ovos, além de ajuda-lo a estar atento sobre possíveis
ataques inesperados. Essas ocorrências evidenciam muitos pontos em comum com o
item “diferentes personagens colocam-se voluntariamente à diposição do herói” (p.32),
encontrado na décima quarta função.
Os momentos de desafios e combates que Cosme trava e alcança vitória, seja
ainda na adolescência, como, por exemplo, quando luta contra o gato selvagem e o
95
mata, seja na idade adulta, ao enfrentar e espantar o pelotão austro-sardo e ao entrar em
combate corporal com o padre, Suplício de Guadalete, que integrava a Companhia de
Jesus, e o vence, possibilitaram a Cosme adquirir vitórias em lutas, que apresentam uma
grande carga humorística, tendo em vista as circusntâncias mais adversas e incomuns
que ocorreram. Essas situações de tensão e enfrentamento do inimigo apontam para as
funções vigésima sexta e vigésima oitava, respectivamente, nas quais “o herói e seu
antagonista se defrontam em combate direto” e “o antagonista é vencido” (p.35).
Embora Il barone rampante seja um romance e não um conto maravilhoso,
Cosme é um herói que modifica, revoluciona e movimenta positivamente, tanto o
universo coletivo quanto individual, pois, se por um lado, ele consegue mobilizar a
população de Penúmbria em favor da proteção dos bosques ameaçados por incêndios e
também atua como líder dos jacobinos, revolucionários de esquerda, por outro, Cosme
também intervém na vida de João do Mato, ex-ladrão, que atinge a redenção ao ser
convertido por intermédio da leitura e de sua inserção no mundo da cultura, tendo
Cosme como seu mediador. O barão participa até mesmo de batalhas, ele luta, ajuda os
outros, constrói artefatos, como o mecanismo que evita a expansão de incêndios, caça,
pesca e busca a reconstrução e a modificação da sociedade, apesar de estar sobre as
árvores, o que pode ser considerado um traço fabuloso, são características inferidas por
Propp, como o enfrentamento de dificuldades, que o herói consegue transpor mesmo
passando por diversidades imensurávies. Em Morfologia do conto maravilhoso, o
etnólogo russo elucida uma definição referencial para nossa caracterização de Cosme
enquanto herói:
[...] do ponto de vista morfológico, a importância do herói continua muito
grande, pois suas intenções constituem o eixo da narrativa. Estas intenções se
revelam nas diversas ordens que o protagonista dá a seus auxiliares [...] O
herói do conto de magia pode ser tanto o personagem que sofre a ação do
antagonista agressor (ou que sofre de carência) no momento em que se tece a
entrega, como também o personagem que aceita reparar a desgraça ou
atender às necessidades de outro personagem” (PROPP, 1984, p. 34)
Mesmo sobre as árvores, o protagonista consegue suprir suas necessidades
básicas, pois se alimenta; faz suas necessidades; caça para poder sobreviver; faz
ligações a uma torrente de água para poder lançar seus dejetos; contrai enfermidades, se
recupera; envelhece e adoece por causa do inverno. Essas atitudes de Cosme remontam
às características típicas do herói da fábula, uma vez que o protagonista tem ações tão
positivas em busca do bem comum e universal, que chega a servir como um modelo a
96
ser seguido e admirado pela população de Penúmbria e que alcança reconhecimento até
mesmo na França, onde já se ouvia falar de um homem que morava sobre as árvores e
ainda assim desempenhava atividades altruístas, distintas e revolucionárias. Sendo a
grande moral de Il barone rampante a transmissão da mensagem que alerta para a
necessidade de uma união coletiva e sincera para a transformação efetiva da realidade
social, injusta e contraditória, que ocorre devido ao individualismo humano.
As atitudes insólitas do protagonista sugerem que até mesmo as ideias e
comportamentos, que parecem mais absurdos e incomuns poderiam ser justos e ter um
sentido maior, no caso, seria o intuito de pregar o respeito à natureza e aos animais.
A filosofia de vida de Cosme parece absurda e utópica, na realidade ele não
queria que houvesse uma civilização essencialmente selvagem, mas sim uma sociedade
que independentemente, de envolver espaços urbanos ou bucólicos tivesse um governo
ideal e perfeito, exemplo disso, é o Projeto de uma Constituição ideal sobre as árvores,
que ele escreveu e que nunca obteve êxito por falta de apoio externo.
Em Il barone rampante, Calvino cria uma alegoria das condições humanas da
primeira metade do século XX, tendo em vista que no texto, nos são dadas referências
históricas da Revolução Francesa, num estilo figurativo, pois a situação de
descontentamento de Cosme com as promessas revolucionárias; com atitudes
repressoras e sanguinárias, como, o uso da guilhotina, que funcionou como uma forma
de punição daqueles, que não aderissem aos ideais da Revolução, e com o governo
autoritário de Napoleão Bonaparte, podem ser equiparadas à situação do homem das
décadas de 50 e 60 do século XX.
Neste contexto, havia governos despóticos, como: o nazismo e o fascismo, além
de governos de esquerda, que pregavam uma sociedade mais igualitária, como foi o
caso da URSS, todavia, seu governo dispunha dos gulags, campos de concentração, que
também foram palco de terror, de torturas e de condenações à morte, de maneira
deliberada, tal como, também foi o caso da Revolução Francesa, que exterminou um
elevado número de pessoas em praças públicas, com o intuito de punição e de
intimidação da população.
Para compreendermos melhor certas ocorrências alegóricas e simbólicas
encontradas em Il barone rampante, faz-se necessário, que nos reportemos a alguns
críticos, que conceituam a alegoria e o símbolo. Começaremos por Koethe, que em A
Alegoria, coloca que a mesma costuma ser entendida como uma técnica metafórica, que
97
pode representar e personificar de forma concreta uma ideia abstrata, o autor nos dá
exemplos de alegoria por meio das ideias que a palavra “justiça” pode remeter:
[...] aparece configurada por uma mulher de olhos vendados, com uma
espada na mão, a sustentar uma balança. Cada um desses elementos tem um
determinado significado: os olhos vendados, a igualdade de todos perante a
lei; a espada, a força de poder tomar decisões; a balança, o sopesar dos atos
postos em julgamento. E que essa figura seja uma mulher não se deve apenas
ao fato da justiça ser uma palavra feminina.
De qualquer modo, o que nessa figura se mostra é que cada um dos
elementos alegóricos quer dizer alguma coisa além dele próprio e não aquilo
que a primeira vista parece. Mas, ao mesmo tempo, há uma relação entre o
que aí apareceu e seu significado subjacente. Alegoria significa, literalmente,
“dizer o outro”. (KOETHE, 1986, p. 6-7, grifos do autor)
Em Escritos sobre arte, Goethe coloca que o símbolo possiblita uma infinitude
de significações, além de ter o universal no particular, ao passo que a alegoria apresenta
um significado limitado e o particular é um exemplo ilustrativo do universal:
A alegoria transforma o fenômeno em conceito, o conceito em imagem, mas
de tal modo que o conceito continua ainda necessariamente tomado e contado
pela imagem, de maneira, limitada e completa sendo expresso por ela [...] o
simbólico transforma o fenômeno em idéia, idéia em imagem, de tal modo
que na imagem, a idéia permanece sempre infinitamente atuante e
inacessível, mesmo que seja exprimida em todas as línguas [...]. (GOETHE,
2006, p. 268)
Considerações, que são reforçadas ao investigarmos a postura de Durand, em A
imaginação simbólica, em que o autor nos traz considerações importantes para
compararmos o símbolo à alegoria, tendo em vista que no primeiro, o leque de
significações é mais amplo, enquanto na alegoria, há uma especificidade na
representação dos significados:
Enquanto num simples signo o significado é limitado e o significante, ainda
que arbitrário, é infinito: enquanto a simples alegoria traduz um significado
finito por um significante e não menos delimitado, os dois termos dos
Símbolos são, por sua vez, infinitamente abertos. (DURAND, 1993, p. 12)
A decisão de Cosme de viver sobre as árvores permite que apontemos algumas
significações simbólicas em relação ao elemento árvore, que dentro da história, assume
uma forma de mediação entre espaços opostos, como: a terra e o céu, já que Cosme
prefere viver pelos ares, pois se locomovia entre uma árvore e outra, além de se negar a
98
voltar para a terra. A vida nas árvores remete, principalmente, à questão de retorno à
ancestralidade do homem moderno, haja vista que foi neste contexto, que Calvino
escreveu a obra, desta forma, o autor infere a importância das experiências e modos de
vida dos antecessores de sua época.
É imprescindível ter em mente, que a árvore, enquanto símbolo, por apresentar
raízes e galhos, pressupõe a ideia de coletividade, de busca por uma continuidade nas
árvores. Percebemos que há uma procura de pôr em evidência a tematização da
relevância da árvore genealógica do homem, isto é, suscitar o reconhecimento e a
valorização das origens do homem. Salientamos que a figuratização da árvore inclui ao
mesmo tempo, uma coletividade universal e o retorno à tradição, o que é perceptível ao
observarmos o título da trilogia I nostri antenati, que pode ser associado a uma
revisitação ao estado natural do homem em contato com a natureza.
No romance estudado, verificamos também a tematização da esperança no
progresso, que é trabalhada por Calvino no final da narrativa, no episódio, em que
Cosme se agarra a um balão de gás, esta atitude representa a alegoria da crença num
futuro de realizações, inovações tecnológicas e que trariam, por sua vez, progresso para
a sociedade, até porque o balão de gás era um meio de locomoção inovador para a
época, pois foi inventado no século XVIII, em 1783, pelos irmãos franceses Jacques e
Joseph Montgolfier92
. Na passagem seguinte, é narrado o momento, em que Cosme
segura às cordas do balão:
L’agonizzante Cosimo, nel momento in cui la fune dell’ancora gli passò
vicino, spiccò un balzo di quelli che gli erano consueti nella sua gioventù,
s’aggrappò alla corda, coi piedi sull’ancora e il corpo raggomitolato, e così
lo vedemmo volar via, trascianto nel vento, frenando appena la corsa del
pallone, e sparire verso il maré [...] Così scomparve Cosimo, e non ci diede
neppurela soddisfazione di vederlo tornare sulla terra da morto. Nella tomba
do famiglia c’è una stele che lo ricorda conscritto: ‘Cosimo Piovasco di
Rondò – Visse sugli alberi – Amò sempre la terra – Salì in cielo’. 93
(CALVINO, 2003, p.303)
92
Disponível em: http://www.centennialofflight.gov/essay/Dictionary/Montgolfier/DI35.htm, acesso em:
27/02/2012. 93
“O agonizante Cosme, no momento em que a corda da âncora passou perto dele, deu um salto daqueles
que costumava dar em sua juventude, agarrou-se na corda, com os pés na âncora e o corpo enroaldo, e
assim o vimos levantar vôo, levado pelo vento, refreando um pouco a corrida do balão até desaparecer no
mar... [...] Assim desapareceu Cosme, e não nos deu nem a satisfaçãode vê-lo voltar para a terra depois de
morto. No jazigo da família há uma estela que o recorda com a escrita:’Cosme Chuvasco de Rondó –
Viveu nas árvores – Amou sempre a terra – Subiu ao céu’ ”(CALVINO,1997, p.363).
99
Nesse episódio, é importante comentar que, embora, Cosme tenha seguido ideias
iluministas e não tenha alcançado seus objetivos revolucionários e coletivos devido à
forças externas como a existência de ideologias contraditórias e a falta de união
coletiva, ainda assim, ele não deixa de ter esperanças, haja vista sua postura de não
retornar à terra, que pode ser vista como uma maneira de manter a perseverança em seus
ideias. O fato de Cosme agarrar-se ao balão de gás sugere a alegoria da fé advinda da
tecnologia, das descobertas que, de certo modo, melhorariam a vida do homem, visto
que o balão é um meio de locomoção pelos ares, o que para a época, em que transcorre a
história era uma grande inovação, que simboliza grandes expectativas nos avanços
científicos, na reflexão e na importância disso tudo para a vida prática das pessoas. Vale
ressaltar também que o balão aparece como um objeto mágico, que permite a Cosme ser
conduzido nos ares pelo vento mantendo a sua postura de jamais descer ao espaço terra,
acontecimento que traz à narrativa uma ambientação misteriosa, pois ninguém sabe
realmente o que aconteceu com o protagonista após seu desaparecimento em meio a
natureza. Outros aspecto que precisa ser destacado é a variação dos espaçõs, os quais
Cosme passa, a terra seria o espaço mais sólido, as árvores, espaços menos sólidos e o
ar por onde Cosme é conduzido pelo balão é um espaço mais leve, não palpável que
remete as promessas que foram feitas durante a Revolução Francesa para o povo e que
acabaram diluídas e se esvaíram, assim como Cosme esvaiu-se no espaço do céu.
Consideramos relevante destacar a seguinte colocação de Lukács em “La forma
clasica de la novela histórica” que aponta a importância dos acontecimentos históricos
para impulsionamento do progresso, este seria uma fonte de esperança em dias melhores
sugerida por Calvino, a partir da imagem de Cosme agarrado à corda do balão de gás:
La racionalidad del progreso humano se explica cada vez más por las
oposiciones internas de las fuerzas sociales en la historia misma, es
decir, la propia historia ha de ser portadora y realizadora del progreso
humano. 94(LUKÁCS, 1966, p. 25-26)
Goethe, em Escritos sobre literatura (2000, p. 25) propõe que: “[...] o mais
nobre de nossos sentimentos é a esperança de permanecer mesmo quando o destino
parece nos ter conduzido para uma total inexistência”. Esta colocação nos remete à
situação de Cosme, que permanece convicto em seus ideais até o final da história,
94
“A racionalidade do progresso humano se explica cada vez mais pelas oposições internas das forças
sociais da própria história, isto é, a própria história há de ser portadora e realizadora do progresso
humano” (LUKÁCS, 1966, p. 25-26, tradução nossa).
100
mesmo encontrando-se sozinho em sua luta por uma sociedade melhor, ele não desiste,
apesar de ser visto pelos outros como louco, excêntrico e distante da realidade da época
que o cercava, pois apresentava características de um herói, que busca a unidade social
em favor de uma humanidade mais justa e com livre acesso ao conhecimento e, que
fosse capaz de formar opinião crítica a partir da leitura, dos estudos, da literatura, da
ciência e da História.
A identificação da fé, isto é, da crença em ideais de melhoria e progresso, que
caracterizavam o Século das Luzes, como aludimos, tendo em vista o último capítulo,
de Il barone rampante, em que Cosme agarra-se à corda de um balão, ou seja, o balão
pode simbolizar o progresso, a crença de que mudanças positivas e favoráveis aos
homens ainda estariam por vir. O sentimento de fé, de certo modo, acompanha o ser
humano em diferentes momentos históricos, seja em séculos passados, seja na
modernidade.
O fim da narrativa, leva à reflexão e instiga o leitor, pois, embora as aspirações e
idealizações revolucionárias de Cosme não tenham sido atingidas, ainda é possível
transmitir a mensagem da necessidade da esperança na mudança, na importância da
ação coletiva para a melhoria da humanidade, algo, que só seria atingível por mediação
da educação, do estudo, da reflexão, da pesquisa, dos avanços tecnológicos, entre
outros, que conduziriam a uma convivência em sociedade mais satisfatória e ao
progresso universal. Observamos por meio de Cosme a alegoria do intelectual que por
meio da fidelidade e da auto-determinação individual, do conhecimento, dos estudos, do
altruísmo aspira uma completude não individualista.
101
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Calvino aborda questões existenciais de uma forma fabulosa, trazendo à tona a
multiplicidade do homem moderno, que é incompleto, fendido, devido aos
acontecimentos históricos da primeira metade do século XX, tais como a crise
positivista e o fim das certezas do homem moderno, o Pós-guerra, entre outros.
Esse período é abordado de forma alegórica pelo autor, que opta por tratar
questões iluministas e da Revolução Francesa a fim de compará-las ao momento em que
viveu, pois na primeira metade do século XX, ocorreram a Primeira e a Segunda Guerra
Mundial, o que deixou um espírito de descrença nos intelectuais do período, basta
pensar no Pós-guerra, no fascismo, liderado por Mussolini na Itália, no nazismo,
preconizado por Hitler na Alemanha, acontecimentos que influenciaram a produção dos
escritores.
Em Il barone rampante são refletidos esses eventos, pois por intermédio do
protagonista Cosme é abordada essencialmente a alegoria do intelectual que tinha forte
crença em ideais revolucionários e que, no entanto, não consegue realizá-los, pois são
mudanças que exigem a transformação do pensamento coletivo, o que é representado
por Cosme; este buscava transformar a realidade da sociedade, mesmo estando sobre as
árvores, mas não consegue porque está só, ou seja, falta apoio coletivo e também as
forças exteriores a ele impregnam toda a sociedade e impedem a ação ativa dos mais
esclarecidos, devido a repressão violenta às massas populares e aos intelectuais; apesar
do protagonista ter integrado diversos grupos de discussões e reflexões intelectuais,
estes acabam se dissolvendo pela falta de unidade e de força conjunta. Vale lembrar que
Calvino integrou por um tempo o Partido Comunista, mas ele passou por algumas
decepções, como o conhecimento de certos campos de concentração conhecidos como
gulags, existentes na Rússia, que era governada por Stálin. Desse modo, observamos a
decepção dos intelectuais com a esquerda, pois mesmo quando essa tinha acesso ao
poder, tomava as mesmas atitudes dos governos despóticos de direita.
Em Il barone rampante, há ocorrências que remetem a terminologia realista
mágica metafísica, em diversas passagens, como, por exemplo, no momento em que
Cosme, ainda na adolescência, luta contra um gato selvagem e vence; a conversão à
leitura e à uma vida melhor propciada ao ladrão João do Mato por meio da intervenção
de Cosme; o fato de recusar-se pelo resto de sua vida a voltar à terra e no final, quando
Cosme parte agarrado a âncora de um balão de gás, são eventos que se desenrolam em
102
ambientes cotidianos, não envolvem nenhum traço sobrenatural, são inusitados, todavia
não são impossíveis de acontecer.
A fuga de Cosme pelos ares através do balão de ar mongolfiera, galicismo
advindo da língua francesa montgolfière, pode estar ligada à questão dos avanços
tecnológicos, das formas de locomoção, enfim ao progresso que estaria por vir; tal
representação nos sugere o apego a um fio de esperança, pois, desse modo é enfatizada
a importância da luta dos intelectuais por seus ideais, com isso, é reforçada a
perseverança na melhoria das relações e formas de vida humanas. Assim, pode-se dizer
que, se o percurso de Cosme pelo céu remete a algo etéreo, na medida em que esta
situação pode equiparar-se ao pós-guerra na Itália do século XX, em que os intelectuais
viam suas expectativas dissolvidas pelos “ares” e temiam o progresso diferentemente de
Cosme, em comum ambos sofreram pressões externas que os obrigavam a conviver com
uma realidade, muitas vezes, injusta e repressora.
Com a feitura desse romance Calvino não buscou dar soluções ou respostas para
os dramas do homem moderno, mas, sim, despertar a reflexão coerente em torno da
importância da busca pelo conhecimento aliado à ação consciente e coletiva da
sociedade, já que a função do intelectual é suscitar dúvidas que conduzem à reflexão em
torno da razão. Observamos neste romance a auto-determinação individual do
protagonista que age como um herói e aspira uma completude não individualista, ou
seja, a realização de melhorias para a sociedade.
Por essas razões, consideramos pertinente explanar a problemática do intelectual
em conflito e em desajuste com a sociedade, que nos é representada por Cosme;
juntamente com a utilização de algumas exposições de Calvino que colaboram para a
análise do romance em questão. Além disso, observamos algumas referências da
História Oficial, no enredo romance, bem como seus pontos em comum com o
momento histórico, em que Calvino o escreveu; a existência de elementos da
terminologia realista mágica e algumas significações alegóricas e simbólicas presentes
na narrativa.
103
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