UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
Lembrando da vida, da cor, do gênero: um
estudo de imagens e interpretações sobre o negro em Belém (Final do Séc. XIX/ Início do Séc. XX).
Tiago Luís Coelho Vaz Silva
BELÉM -PA Janeiro/ 2005
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
Tiago Luís Coelho Vaz Silva
Lembrando da vida, da cor, do gênero: um estudo de imagens e interpretações sobre o
negro em Belém (Final do Séc. XIX/ Início do Séc. XX).
BELÉM -PA Janeiro/ 2005
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Lembrando da vida, da cor, do gênero: um estudo de
imagens e interpretações sobre o negro em Belém (Final do Séc. XIX/ Início do Séc. XX).
Tiago Luís Coelho Vaz Silva
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Antropologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará como requisito para obtenção do título de Bacharel e Licenciado Pleno em Ciências Sociais/ ênfase em Antropologia sob a orientação da Prof ª Dr ª Maria Angelica Motta-Maués.
Banca Examinadora:
Prof ª Diana Antonaz (Examinadora) _____________________________
Prof.ª Angélica Motta-Maués (Orientadora) ______________________________
BELÉM –PA, _____/_____/_____
Conceito: __________________________
3
SUMÁRIO Abreviaturas utilizadas..............................6 Agradecimentos.............................7
Epígrafe: Os ombros que suportam o mundo..............................8 Saber Envelhecer.............................9 Apresentação.............................10 Introdução..............................11 Capítulo I – As Unidades de Acolhimento a Pessoa Idosa............................17
1- Por que as UAPI(s).............................17 2- O Cenário Pesquisado: O espaço das UAPI(s).............................19 3- Organização e Funcionamento da UAPI(s).............................25
Capítulo II - A Associação Santa Luiza de Marillac.............................34
1- A escolha da Associação como “Locus” da Pesquisa...........................34 2- O Cenário Pesquisado: A Associação Santa Luiza de Marillac.........................35
3- A organização interna da Associação..............................40
Capítulo III – Os Interlocutores da pesquisa: Quem são esses velhos e velhas a quem tanto ouvi?............................46
1- Os Internos das Unidades de Acolhimento a Pessoa Idosa...........................46 2- As interlocutoras da Associação Santa Luiza de Marillac ou Quem são as
mulheres que querem ouvir sua voz no gravador?....................58 3- Quadro sobre as características apresentadas pelos interlocutores..................65 4- Algumas considerações sobre cor/ raça a partir do parentesco.........................66
Capítulo IV – Ouvindo velhos negros e brancos: histórias de vida e interpretações sobre raça e cor..............................69
4
1- Falando da vida: Lembranças sobre família, trabalho e cidade........................69 2- A(s) Cor(es) de Belém: terminologias, gradações e continuum de cor...............79 3- Quadros sobre as gradações de cor e a forma como as categorias de cor/ raça
foram utilizadas pelos informantes..............................98
Considerações Finais..............................99 Referências Bibliográficas..............................102 Apêndice I: Croquis UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel............................111 Apêndice II: Cronograma de atividades das UAPI(s)..............................113 Apêndice III: Pesquisa Bibliográfica...............................115
Fotos: Fotos 1 e 2..............................21 Fotos 3 e 4..............................24 Fotos 5 e 6.............................30 Fotos 7 e 8..............................41
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ABREVIATURAS UTILIZADAS
CEAF
CFCH
CIASPA
CNPq
DAB
FBESP
LAANF
LBA
PA
PIBIC
SESC
SETEPS
UAPI
UFPA
Centro de Atendimento a Família
Centro de Filosofia e ciências Humanas
Centro Integrado de Assistência Social do Pará
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
Diretoria da Assistência Básica
Fundação do Bem-Estar Social do Pará
Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo
Legião Brasileira de Assistência
Pará
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
Serviço Social do Comércio
Secretaria Executiva do Trabalho e Promoção Social
Unidade de Acolhimento a Pessoa Idosa
Universidade Federal do Pará
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AGRADECIMENTOS
- Aos meus pais Milton e Cleide pela força e incentivo durante a vida toda,
especialmente, pela oportunidade que me deram para estudar;
- A minha irmãzinha Letícia, a quem quero sempre bem;
- A todos meus familiares pelo apoio;
- As minhas avós Maria e Floralice, desejando mais felicidades e muitos anos de vida
para elas;
- Aos meus padrinhos Édson e Cecília, por quem tenho profundo apreço;
- A todos meus amigos pelo companheirismo;
- Aos meus amigos Bruno e Gianno que também contribuíram para elaboração deste
trabalho;
- A minha companheira Hermínia que sempre me incentivou e esteve ao meu lado me
apoiando nos momentos difíceis;
- Aos avaliadores internos e externos do Programa de Iniciação Científica PIBIC/ CNPq
pelas contribuições nas discussões relativas a pesquisa.
- A minha orientadora Maria Angelica Motta-Maués pela aprendizagem e dedicação,
sem a qual este trabalho não poderia ser realizado.
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Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é velhice?
Teus ombros suportam o mundo
E ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
edifícios
Provam apenas que a vida prossegue
E nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
Preferiram (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(Os ombros suportam o mundo, Carlos Drummond de
Andrade).
8
Por certo, os que não obtêm dentro de si os recursos
necessários para viver na felicidade acharam
execráveis todas as idades da vida. Mas todo aquele
que sabe tirar de si próprio o essencial não poderia
julgar ruins as necessidades da natureza. E a velhice,
seguramente, faz parte delas! Todos os homens
desejam alcança-la, mas, ao ficarem velhos, se
lamentam. Eis aí a inconseqüência da estupidez!
Queixam-se de que ela chegue mais furtivamente do
que a esperavam. Quem então os forçou a se enganar
assim? E por qual prodígio a velhice sucederia mais
depressa à adolescência do que esta última sucede a
infância? Enfim, por que diabos a velhice seria menos
penosa para quem vive oitocentos anos do que para
quem se contenta com oitenta? Uma vez transcorrido
o tempo, por longo que seja, nada mais consolará
uma velhice idiota...
Vós que costumais admirar minha sabedoria – possa
ela ser digna de vossa opinião e de meu nome! -,
reparai que somos sábios se seguimos a natureza
como um deus, curvando-nos às suas coerções. Ela é
o melhor dos guias. Aliás, não seria verossímil que,
tendo disposto tão bem os outros períodos da vida, ela
se precipitasse no último ato como o faria um poeta
sem talento. Simplesmente, era preciso que houvesse
um fim: que, à imagem das bagas e dos frutos, a vida,
espontaneamente, chegada sua hora, murchasse e
caísse por terra. A tudo isso o sábio deve consentir
pacificamente. Pretender resistir à natureza não teria
mais sentido do que querer – como os gigantes –
guerrear contra os deuses.
(Saber Envelhecer, Cícero).
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Apresentação
Este Trabalho de Conclusão de Curso é resultado de dois anos de pesquisa como
bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)
patrocinado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA), onde tive a
oportunidade de desenvolver, sob orientação da Prof ª Maria Angelica Motta-Maués, as
duas pesquisas que deram origem a esta monografia, intituladas: Lembranças da Cor:
Memória e Identidade de Velhos em Belém (Final do séc. XIX/ Início do séc. XX) e
História de Vida: Lembranças de Velhas Negras e Brancas em Belém.
A partir das pesquisas mencionadas, o presente estudo tem por objetivo
identificar e analisar imagens e interpretações criadas sobre o negro, assim como a
criação de categorias de cunho racial empregadas em relação a este, existentes e
identificadas no final do século XIX e início do século XX na cidade de Belém, através
de uma perspectiva de registro e interpretação da memória social de pessoas negras e
brancas, utilizando como instrumental teórico-metodológico a co-relação entre história
de vida e memória social dos interlocutores que se disponibilizaram em participar da
pesquisa.
O estudo teve como locus de pesquisa três instituições: as Unidades de
Acolhimento à Pessoa Idosa (UAPI-s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel, que são
instituições asilares que abrigam pessoas idosas, de responsabilidade do Governo do
Estado do Pará e; a Associação Santa Luiza de Marillac, que desenvolve atividades de
assistência à idosos de baixas condições financeiras, sendo de caráter particular.
10
Introdução
A finalidade deste estudo é identificar e analisar as imagens e interpretações
formuladas sobre o “negro”1, bem como as categorias de cunho racial empregadas para
referi-lo, isto é, (baseadas nas percepções e nominações de cor), que foram construídas
no final do século XIX e início do século XX, na cidade de Belém2. O estudo se
encaminhou através de uma perspectiva de registro e interpretação da memória social,
considerando relatos particulares ou história de vida de dez velhos, sendo quatro
homens e seis mulheres.
A pesquisa desenvolveu-se principalmente com pessoas negras que se auto-
identifiquem e que sejam identificadas pelos outros como tal, mas também, e do mesmo
modo, com pessoas brancas, homens e mulheres que possuem mais de sessenta anos
(alguns com idade acima de oitenta e noventa anos), cuja idade permita explorar uma
memória do período em questão, não diretamente, pois não seria possível, mas de forma
indireta através de informações adquiridas com outras pessoas, como seus pais, avós,
familiares ou amigos, que nasceram por volta da última década do século XIX. Para isso
utilizei os recursos metodológicos da memória e da história de vida no mesmo sentido
que Luís Fernando Dias Duarte (1987) e Antônio Custódio Gonçalves (1992) conferem
ao termo, ou seja, no sentido de (re) construção e /ou construção de identidades de
grupos e etnias, que se enquadra na perspectiva da “segunda via” de se trabalhar com
memória social3, que, como sabemos, sempre se apresenta como fundamental neste tipo
de análise.
1 Refiro-me desta maneira aos personagens principais deste estudo por ser esta forma utilizada para designar os descendentes de africanos, considerando-se o processo de construção histórica que, na virada do XIX para o XX, transformava o escravo no negro. Processo, aliás, interpretado, por exemplo, para São Paulo, por Schwarcz (1996), utilizando também fontes jornalísticas tal como faço neste trabalho. Além disso, daqui por diante, toda vez que palavras como negro, negritude, raça, racismo, racialismo forem mencionadas no texto não serão utilizadas aspas com intuito de não torná-lo pesado para os leitores. 2 Para uma referência desse processo em relação ao país cf. Maggie, 1996. 3 Tanto Duarte quanto Gonçalves indicam vias de trabalho para análise da memória social, sendo que em Duarte elas aparecem de duas formas: a) memória individual como fato social e b) memória como (re) construção e /ou construção de identidades de grupos, classes, nações e etnias, através de categorias como passado, tradição e história. Gonçalves, por sua vez, acrescenta mais uma via, além das duas apontadas por Duarte, como uma terceira via que seria, assim, a visão de patrimônio para composição da memória social.
11
O trabalho de coleta de dados foi realizado em três locus de pesquisa: nas
Unidades de Acolhimento à Pessoa Idosa (UAPI-s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel, e na
Associação Santa Luiza de Marillac. As UAPI(s) possuem característica
eminentemente asilar, estando sob responsabilidade da Secretaria Especial do Trabalho
e Proteção Social e Secretaria Executiva do Trabalho e Promoção Social (SETEPS), sob
coordenação da Diretoria de Assistência Básica (DAB) e administração do Governo do
Estado do Pará. Diferentemente das duas primeiras instituições, a Associação Santa
Luiza de Marillac não tem como característica a reclusão de idosos e se configura como
uma associação de mulheres católicas que tem por finalidade disseminar a prática
filantrópica e assistencial entre idosos desamparados, ao mesmo tempo em que se
conforma enquanto um grupo de convivência para as mulheres atendidas que
freqüentam esta instituição.
Mesmo sabendo que as etapas de uma pesquisa não são rigorosamente
separadas, arrisco-me nesta tentativa de arrumá-las assim, para demonstrar os caminhos
percorridos para efetivação do trabalho em questão.
O presente trabalho possuiu várias fases no seu desenvolvimento, iniciando a
partir da pesquisa documental e bibliográfica, em que considerei os conteúdos e o
referencial teórico a ser aplicado de acordo com o contexto, desenvolvendo a leitura
bibliográfica concomitantemente com o desenrolar da pesquisa.
Para realização de um estudo sobre histórias de vida de velhos em Belém, o
recurso metodológico (junto com o referencial teórico) do estudo da memória se revela
de fundamental importância, uma vez que possibilita, de forma ímpar, trabalhar com a
subjetividade desses indivíduos, já que estas subjetividades tendem a ultrapassar as
individualidades e atingem características coletivas de grupos específicos (cf.;
Bernardo, 1998; Bosi, 1979; Duarte, 1987; Gonçalves, 1992; Halbwachs, 1990; Pollak,
1992).
O segundo momento do desenvolvimento do estudo se refere a realização da
pesquisa de campo, onde visitei as UAPI(s) com intuito de conhecer as pessoas,
sobretudo os idosos, homens e mulheres, que residem em tais instituições, para recolher
os depoimentos e histórias de vida dos mesmos sobre as questões referentes a pesquisa,
12
utilizando como critério a idade mínima de sessenta anos (tendo sido muito interessante
coletar informações com interlocutores de setenta e oitenta anos ou mais).
Noutra etapa, que se realizou na segunda vigência da bolsa de iniciação
científica, dei continuidade à pesquisa de campo, que teve como locus a Associação
Santa Luiza de Marillac, onde desenvolvi o estudo somente com mulheres (utilizando
novamente o critério de sessenta anos como idade mínima), uma vez que a associação é
composta apenas por mulheres católicas, e a presença masculina quase não ocorre.
Deste modo, pude estabelecer contatos formais e informais com as mulheres idosas
dispostas a colaborar no desenvolvimento da pesquisa, com intuito de propiciar um
ambiente de empatia entre o pesquisador e as interlocutoras, ou de algum modo
propiciativo ao desenvolvimento do trabalho.
A coleta de dados tanto com os internos das UAPI(s) quanto com as mulheres
que freqüentam a Associação Santa Luiza de Marillac realizou-se através de conversas
informais (que, como sabemos, se mostram sempre tão ricas para nossas pesquisas), de
entrevistas formais com utilização do gravador e, sobretudo, como instrumento
importante, as histórias de vida dessas pessoas.
A história de vida enquanto metodologia qualitativa foi de fundamental
importância para efetivação desta pesquisa, pois ela permite um rendimento maior dos
contatos informais entre o pesquisador e o interlocutor (cf. Bernardo, 1998; Debert,
1986), uma vez que quando este recurso é utilizado como um suporte da investigação,
possibilita compreender as redes de relações sociais nas quais os interlocutores estão
inseridos (cf.; Piscitelli, 1993). Além disso, a experiência da Antropologia com esta
técnica é antiga, uma vez que foram os antropólogos os primeiros pesquisadores das
Ciências Humanas a utilizarem este recurso e, no caso em questão, esta técnica de
pesquisa se torna importante para juntar a memória (mais) pessoal e a construção social
(histórica).
Sobre esta técnica a antropóloga Guita Debert diz:
“a razão alegada para utilização deste instrumental reside no fato de possibilitar o estabelecimento de uma conversação ou um dialogar entre informante e analista. Quando os autores, neste caso, fazem uma oposição entre falar e conversar ou
13
enfatizam o argumento que a história de vida possibilita um dialogar com os sujeitos estudados, chamam a atenção para dois aspectos. Em primeiro lugar, para a violência implícita no procedimento que envolve a imposição, aos informantes, de categorias que não lhe dizem respeito, vindas de uma teoria exterior a eles ou ao conjunto de valores do próprio pesquisador. Em segundo lugar, para a importância de darmos condições aos informantes de nos levar a ver outras dimensões e a pensar de maneira mais criativa a problemática que, através deles, nos propomos a analisar” (1986: 142).
Entretanto, apesar da história de vida se apresentar como um recurso
valiosíssimo para inúmeras pesquisas, esta técnica apresenta algumas armadilhas para
os pesquisadores que nela se apóiam para realizarem seus estudos. De acordo com
Pierre Bourdieu (1986) os indivíduos ao relatarem suas histórias de vida o fazem de
forma encadeada com início, meio e fim, geralmente obedecendo a uma ordem
cronológica; assim, as coisas e os acontecimentos possuem uma origem e um sentido na
história de vida de cada indivíduo e são justificados através dela.
Para Bourdieu, os relatos sobre história de vida tendem a mostrar
acontecimentos e eventos que nem sempre ocorrem na vida das pessoas naquela ordem
real. Assim, as histórias de vida são contadas a partir de esquemas “arrumados” de
elaboração de discurso, em que os acontecimentos vividos e presenciados por
determinado indivíduo são relatados sob forma de “romance” ou até mesmo de uma
novela, diria eu, já que estas duas formas se apresentam (ou podem se apresentar) como
modelos disponíveis para o relato da história de vida, o que sugere que tais relatos
sejam compreendidos sob a técnica de análise de discurso, cabendo ao pesquisador
desconstruir e “desnaturalizar” tais fenômenos como se apresentam.
Porém, ainda segundo Bourdieu, tais esquemas “arrumados”, os discursos sobre
histórias de vida, não são propriedade única dos informantes, mas muitas vezes são
reproduzidos pelos próprios pesquisadores, uma vez que estes modelos também fazem
parte de sua construção social, devendo ser desnaturalizados por eles através de uma
vigilância epistemológica e metodológica, como indica este autor.
Assim, a pesquisa se desenvolveu a partir das seguintes perspectivas: fazendo
uma análise antropológica com o propósito a que se refere Malinowski: “apreendendo
do ponto de vista dos nativos” (1978: 37-38), aqui entendidos como velhos negros e
brancos, homens e mulheres, “seu relacionamento com a vida, sua visão de seu mundo”
14
(Idem); com um “olhar treinado”, “olhando”, “ouvindo” e “escrevendo” como propõe
Roberto Cardoso de Oliveira (2000). Na medida em que, só depois do texto escrito (e a
rigor, dado ao público), como aponta este autor, nosso trabalho como antropólogo se
completa.
Entretanto, mesmo com o devido rigor teórico-metodológico com que a pesquisa
foi conduzida, devo dizer que os dados coletados sobre as imagens e interpretações
formuladas sobre o negro em Belém, no período delimitado pelo estudo, surgiram nos
relatos dos meus informantes em menor proporção em relação a outros temas. Deste
modo, a partir das lembranças oriundas da memória social dos interlocutores da
pesquisa, obtive uma série de relatos sobre família, trabalho, cidade e outros assuntos
que dizem respeitos às várias esferas da vida social destes indivíduos.
Apesar disto, no desenrolar do estudo, não me distanciei completamente da
problemática proposta inicialmente, pois, os próprios relatos sobre família, trabalho (dos
quais falei acima) encaminharam a pesquisa para o fenômeno do sistema de
classificação racial brasileiro (para o qual enveredei, particularmente, porém sem
esquecer o tema inicial), isto é, a forma pela qual a nossa sociedade classifica/
categoriza as pessoas considerando noções sobre a cor/ raça dos brasileiros, já que,
principalmente, pela forma como se constituiu o Brasil, as relações sociais (família,
trabalho, etc.) não podem ser pensadas separadamente das relações raciais (cf. DaMatta,
2000; Fernandes, 1978; Hasenbalg, 1996; Hasenbalg & Silva, 1988; Sansone, 1996),
uma vez que tais relações estão estruturadas sob um conjunto de representações sociais
sobre cor e raça.
Assim, o trabalho está dividido em quatro capítulos: no primeiro, discorro sobre
as duas UAPI(s), Val-de-Cans e Socorro Gabriel, onde exponho os motivos da escolha
de tais instituições para realização do estudo. Neste capítulo faço uma descrição do
cenário em que a pesquisa se desenvolveu, mostrando os espaços e as especificidades
das UAPI(s) com a finalidade de apresentar uma idéia geral da organização das duas
instituições, bem como dos internos que residem nelas e dos funcionários que ali
trabalham.
15
No capítulo seguinte (cap. 2), mostro o outro locus onde o estudo se
desenvolveu, a Associação Santa Luiza de Marillac. Neste capítulo, como já terei
mostrado no anterior, apresento os motivos que me levaram a desenvolver o estudo
nesta associação, procurando, também, dar uma idéia geral da organização interna da
associação, assim como das mulheres que a freqüentam.
No terceiro capítulo, pretendo mostrar o perfil e a história pessoal dos dez
interlocutores da pesquisa, para o que se apresentou de fundamental importância a
elaboração de esquemas de parentesco que enfatizam as idéias (representações) sobre a
cor/ raça de alguns deles, com o intuito de inserir o leitor na discussão sobre o sistema
de classificação racial predominante no país, que é abordado no capítulo seguinte. Além
disso, neste capítulo consta um quadro que reúne características em comuns dos
informantes que se dispuzeram em participar da pesquisa, como por exemplo: cidade de
origem, cor da pele, tipo de cabelo, dentre outros.
O quarto capítulo trata do foco principal de análise deste estudo, momento em
que os relatos sobre as histórias de vida dos interlocutores são agrupados com intuito de
reunir itens em comum dos informantes para analisá-los sistematicamente. Neste
capítulo, a partir dos relatos obtidos, abordo as várias esferas da vida social dos
interlocutores, que dizem respeito à família, cotidiano, trabalho, cidade e sobretudo, às
questões que envolvem o fenômeno do sistema de classificação racial brasileiro, bem
como a construção das imagens e interpretações criadas sobre o negro no final do século
XIX e início do século XX na cidade de Belém.
A última parte do trabalho refere-se às considerações finais, onde procuro, mais
do que chegar a conclusões definitivas, fazer algumas reflexões e considerações a
respeito da problemática discutida. Além disso, também consta um apêndice com os
croquis das UAPI(s) e seus cronogramas de atividades, assim como, um representativo
levantamento bibliográfico sobre história de vida e memória social.
16
Capítulo I – As Unidades de Acolhimento à Pessoa Idosa
1 – Por que as UAPI(s) ?
A instituição que primeiro foi pensada para a realização desta pesquisa foi a
Casa de Abrigo Associação da PIA – União do Pão de Santo Antônio, devido esta ficar
localizada às proximidades da Universidade Federal do Pará (UFPA), na Avenida José
Bonifácio, no bairro do Guamá, além do interesse particular de minha orientadora,
Maria Angelica Motta-Maués, de que a pesquisa se desenvolvesse em tal instituição –
dada a clientela mais diversificada em termos de classe social da mesma. Entretanto,
segundo a assistente social do abrigo, este somente é aberto ao público, tanto para visita
de parentes quanto para estudantes, pesquisadores, pela parte da manhã sendo as
atividades realizadas pela parte da tarde exclusivamente de funcionários do abrigo,
portanto a pesquisa nesta instituição ficou inviabilizada, uma vez que desenvolvo
minhas atividades discentes de assistência às aulas pela parte da manhã.
A outra instituição pensada foi a Casa do Ancião Dom Macedo Costa, localizado
na Avenida Almirante Barroso, no bairro do Souza, porém esta instituição estava
desativada devido a que a estrutura física do prédio onde funcionava se encontrava
abalada; tal fato acarretou a transferência dos idosos que residiam neste asilo para outras
instituições. Mas, foi a partir deste fato, e de seu encaminhamento, que acabei
escolhendo o locus desta pesquisa.
Com a desativação da Casa do Ancião Dom Macedo Costa foram criadas pela
Secretaria Especial do Trabalho e Proteção Social e Secretaria Executiva do Trabalho e
Promoção Social (SETEPS), sob coordenação da Diretoria da Assistência Básica
(DAB), outras instituições para suprir as necessidades do antigo Dom Macedo Costa;
criou-se, então, as denominadas Unidades de Acolhimento a Pessoas Idosa (UAPI),
passando a exercer a função duas novas instituições: a UAPI – Val-de-Cans e a UAPI –
Socorro Gabriel, sendo que o Lar da Providência, uma instituição que já existia,
localizada na Alameda Samuca Levi, nos fundos do Dom Macedo Costa, também
passou a fazer parte das UAPI(s).
17
As UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel são unidades exclusivamente
públicas, enquanto a UAPI – Lar da Providência cobra taxas para residência do idoso,
porém, em determinados casos, existem exceções em que não se paga a taxa. Sendo
assim, as instituições selecionadas para realização da pesquisa foram as UAPI(s) Val-
de-Cans e Socorro Gabriel, pelo fato de serem instituições exclusivamente públicas sob
administração do Governo do Estado do Pará e, por isso, não cobram mensalidade dos
idosos que, na sua grande maioria, não teriam condições de pagá-la, pois são oriundos
das classes populares e possuem poucas condições financeiras, caso contrário,
procurariam os serviços de outras instituições asilares como o abrigo do Pão de Santo
Antônio ou o próprio Lar da Providência, por exemplo. Além disso, tais instituições
foram escolhidas devido acreditar encontrar nelas um maior número de velhos negros
(daí porque a escolha das duas e não só de uma), já que estes representam a maioria da
população de baixa renda no Brasil4, haja vista a consideração da exploração
historicamente sofrida por este grupo social em nosso país. Outro motivo que levou a
escolha da realização deste trabalho nas UAPI(s) deve-se a residência permanente
desses indivíduos nesses determinados locais, ou seja, um locus específico para
realização da pesquisa.
Apesar da opção por duas UAPI(s) (Val-de-Cans e Socorro Gabriel), o que de
certa forma excluiu o Lar da Providência de minha pesquisa, esta última instituição foi
locus de pesquisa de outro pesquisador, também participante do grupo de pesquisa (cf.
Santos, 2004), que em sua dissertação de mestrado realizou um estudo sobre saudade e
memória social entre os idosos que residem no Lar, procurando analisar o sentimento de
saudade como uma categoria sociológica através das lembranças e dos relatos de seus
informantes, com intuito de compreender e interpretar tais lembranças a partir das
diferenciações de gênero, isto é, como eram e sobre o que eram os sentimentos de
saudade dos homens e como eram e sobre o que eram os sentimentos de saudade das
mulheres.
No período de 1999 a agosto de 2000, anterior a sua desativação, o Dom
Macedo Costa possuía em média 127 idosos e ao iniciar-se esse processo,
concomitantemente inicia-se o processo de mudança de alguns desses idosos para as
4 Sobre as causas da pobreza dos negros no Brasil cf. Guimarães, 2002; Hasenbalg e Silva, 1993, entre outros.
18
novas instituições. Foram transferidos 30 idosos para a UAPI – Val-de-Cans e 12 idosos
para a UAPI – Lar da Providência, sendo que neste período a UAPI – Socorro Gabriel
ainda não existia, portanto, restando 85 idosos que, a partir de julho de 2001, passariam
a ser atendidos nas seguintes instituições5:
Instituições Quantidade de Idosos
CEAF Tucunduba 23
Hospital de Clínicas 17
Pavilhão São José 20
UAPI – Lar da Providência 02
UAPI – Val-de-Cans 08
CIASPA 15
Total 85
O pedido para internação dos idosos nas instituições públicas, UAPI – Val-de-
Cans e UAPI – Socorro Gabriel advém de familiares, do próprio idoso, da
“comunidade” (vizinhos, amigos dos idosos) ou através do ministério público (seguindo
esta mesma ordem), porém, uma grande parcela das pessoas que procura uma instituição
desse tipo para si próprias ou para parentes ou amigos não consegue vaga, pois de
acordo com funcionários da equipe técnica, estas instituições já se encontram com sua
capacidade esgotada, e até mesmo com um número de indivíduos superior a sua
capacidade. O que significa, segundo tal informação, que a demanda ultrapassa a
possibilidade de atendimento.
2 - O Cenário Pesquisado: O espaço das UAPI(s)
A Unidade de Acolhimento a Pessoa Idosa – Val-de-Cans foi inaugurada e
começou a funcionar no dia 28 de agosto de 2000 para acolher os idosos que residiam
no abrigo Dom Macedo Costa. A UAPI – Val-de-Cans está localizada no Conjunto
Providência, Avenida Norte, no bairro de Val-de-Cans, próximo a Unidade Básica de
Saúde deste bairro. Ela está localizada em um terreno relativamente grande que
corresponde a quase um quarteirão, sendo que apenas metade desse terreno é ocupada
pela construção da casa que abriga os idosos, e a outra metade não está sendo
5 Relatório Anual das Atividades do Ano de 2002 – UAPI – Socorro Gabriel.
19
aproveitada, e possui apenas um gramado, abandonado, com duas torres refletoras
(semelhantes, em menor proporção, as que existem em estádios de futebol) voltadas na
direção da casa.
A estrutura física desta unidade ainda possui alguns traços da estrutura da creche
municipal que lá funcionava, mesmo após algumas reformas feitas no prédio, de modo
que alguns quartos apresentam batentes de cimento e armários embutidos nas paredes,
onde supostamente funcionava antes uma cozinha, impedindo a presença de mais
camas, pois de acordo com a assistente social da instituição, a casa deve passar por mais
reformas para poder se adequar, mais ainda, a sua função de “abrigo”.
A UAPI – Socorro Gabriel está localizada em um prédio térreo, localizado ao
lado da Seccional Urbana de Polícia do bairro da Cremação, na travessa Padre Eutíquio,
na parte que corresponde a atual rua dos Cabanos, passando a exercer a função de
abrigo para idosos a partir de março de 2002. Do mesmo modo como ocorreu na UAPI
– Val-de-Cans, esta instituição também servia anteriormente como creche, porém já
encontrando-se melhor estruturada para desempenhar sua função de abrigo. Levando em
conta apenas a casa, ou seja, a construção existente na UAPI Val-de-Cans, percebe-se
que a outra é maior e mais bem estruturada, caso contrário seria o inverso, pois, como já
mencionei esta metade do terreno da UAPI – Val-de-Cans que corresponde a quase um
quarteirão, não é utilizada.
Na entrada da UAPI – Val-de-Cans existe um portão com uma guarita ao lado,
onde se encontram, permanentemente, um porteiro da instituição (durante o dia) e um
vigia (durante a noite). Nesta área, anterior a entrada, propriamente dita, da casa,
existem vários vasos com diferentes plantas e algumas passarelas em volta, todas com
cobertura para locomoção das pessoas ao redor da mesma.
Tanto a porta de entrada quanto as janelas da instituição são todas gradeadas e
pouco se pode ver do lado de fora para dentro do prédio. Passando pela porta, existe
uma sala onde grande parte dos internos encontra-se vendo televisão ou simplesmente
sentado em sofás ou poltronas. Nesta mesma sala, do lado direito, está localizada a sala
da diretoria e equipe técnica da instituição e, ao lado desta, um primeiro “quarto
feminino”, como é chamado, acomodando seis mulheres.
20
Font
e: U
API
– S
ocor
ro G
abrie
l, 20
02.
Foto 1 – Passeio: Idosos da UAPI – Socorro Gabriel na Caminhada pela Saúde na Praça Batista
Campos
Font
e: U
API
– S
ocor
ro G
abrie
l, 20
02.
Foto 2 – Missa: Idosos da UAPI – Socorro Gabriel na Missa promovida pela instituição
21
Do lado esquerdo existe mais um outro quarto com cinco mulheres e ao seu lado
o primeiro “quarto masculino” acomodando cinco homens. Caminhando da sala em
direção a um corredor encontra-se o posto de enfermagem do abrigo, onde as
enfermeiras trabalham em turnos, sendo três plantonistas 12/48 horas, ou seja,
distribuídas em escala corrida de 10 plantões, e uma coordenadora de 6 horas.
No final do corredor se encontra, do lado esquerdo, o segundo quarto masculino
com cinco pessoas e do lado direito, um pequeno corredor levará a outros três
aposentos: um, onde se guarda os mantimentos da instituição, o segundo é um quarto
masculino com três homens e o terceiro, é um banheiro (o único fora dos quartos), que
atende a este quarto masculino. Mais adiante, do lado esquerdo, ainda, encontra-se um
outro corredor onde existe uma secretaria e o último quarto masculino comportando três
pessoas, totalizando os dormitórios em quatro masculinos e dois femininos.
Na entrada da UAPI – Socorro Gabriel existe um portão que não é muito largo e
poucos metros após este portão, na recepção, encontra-se uma parede de blocos de vidro
trabalhado. A recepção possui algumas cadeiras e poltronas onde os internos passam a
tarde inteira sentados, olhando outras pessoas e carros passarem, apesar de só poderem
observá-los por um ângulo um tanto quanto limitado, pois o portão por onde se têm
acesso a instituição é estreito e ao lado esquerdo deste (vista de dentro) existe uma
parede grande com pequenas frestas de onde, na verdade, pode se ver muito pouco. O
mesmo pode-se dizer de quem está do lado de fora, querendo olhar para dentro, pois não
se vê muita coisa, uma vez que existe, poucos metros depois do portão, uma parede de
blocos de vidro trabalhado, como já foi mencionado (p. 20), que impede a vista para
dentro da instituição, além da parede com pequenas frestas ao lado do portão.
Percebe-se que essas “janelas gradeadas”, a “parede com material de vidro
trabalhado” logo após o portão e a “parede grande com pequenas frestas de onde pode
se ver muito pouco” fazem parte da característica de “fechamento” das instituições
totais (cf. Goffman, 1974), decorrente da tentativa de “isolamento” das pessoas que
residem neste tipo de instituição, um estado de reclusão social, impossibilitados de ver
“o mundo lá fora”, assim como as pessoas de fora também não podem observar o que
acontece no “mundo de dentro”. Essas e outras características como: homogeneização
dos indivíduos, homens e mulheres (são todos “internos”, com a mesma ficha
22
padronizada, a mesma rotina), a proibição da livre locomoção, a uniformização dos
aposentos, a proibição de aquisição particular de objetos, resultam, conseqüentemente,
na “mortificação do eu” dos indivíduos que residem em tais instituições, já que são
tolhidos das três esferas básicas da vida estabelecida pela sociedade moderna: dormir,
brincar e trabalhar com pessoas diferentes e, em locais variados, sob diferentes
autoridades. Deste modo, Erving Goffman (1974) – em seu estudo referencial
originalmente denominado, justamente, “Asylums” – diz sobre as “instituições totais”
"Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”. (1974: 11)
Ainda no que se refere ao controle e a normatização dos indivíduos Michel
Foucault (1977), em outra obra referencial para o estudo de, ou em, instituições deste
tipo, aponta a disciplina como um dos mecanismos táticos e dispositivos que serão
progressivamente utilizados na sociedade contemporânea, ou seja, manobras políticas
efetivas e técnicas de exercício de poder que se estruturam e que tem como lógica de
funcionamento o processo de disciplinarização; o panoptismo, isto é: “o principio geral
de uma nova ‘anatomia política’, cujo objeto e fim não são as relações de soberania,
mas as relações de disciplina” (Foucault, 1977: 183).
Na UAPI – Socorro Gabriel, tanto os dormitórios quanto as enfermarias, estão
divididas por sexo, existindo o dormitório masculino que se divide em dois blocos
ocorrendo o mesmo com o feminino. Nos dormitórios, ao invés de camas, existem leitos
ou macas, como se as pessoas estivessem em enfermarias de um hospital, pois a
instituição possui um aspecto mais hospitalar do que o de uma casa de repouso ou asilo
para idosos, como no caso da UAPI – Val-de-Cans. No que se refere à enfermaria
ocorre a mesma divisão, duas alas, tanto na enfermaria masculina quanto na feminina.
Nesta UAPI existem áreas que não são totalmente fechadas, ou seja, não possuem
paredes laterais e permitem a circulação de ar e a passagem direta da luz do sol, como,
por exemplo, a área destinada às refeições que é apenas demarcada por batentes, com
aproximadamente 70 centímetros de altura. Embora possam circular pelas áreas comuns
do abrigo, existem algumas áreas que não podem ser freqüentadas pelos internos da
instituição como, por exemplo: a cozinha e o local destinado a guardar os mantimentos.
23
Font
e: U
API
– V
al-d
e-C
ans,
2002
.
Foto 3 – Festa: Comemoração do dia das Crianças na UAPI – Val-de-Cans
Font
e: U
API
– V
al-d
e-C
ans,
2002
.
Foto 4 Passeio: Círio dos Idosos realizado pela UAPI – Val-de-Cans
24
Na UAPI Val-de-Cans, os quartos possuem camas, diferentemente dos
dormitórios da UAPI – Socorro Gabriel que apresentam leitos ou macas, como já disse
há pouco, e todos os quartos possuem banheiros, com exceção de um dos quartos
masculino em que o banheiro se encontra no corredor. Voltando por este mesmo
corredor encontrar-se-á a cozinha e o local de refeições dos internos, com várias mesas
com lugar para quatro cadeiras em cada uma; esse refeitório também serve como local
de recreação dos mesmos, pois possui televisão. Mais adiante existe uma sala destinada,
especificamente, a atividades recreativas, com mesas e cadeiras que são utilizadas de
diversas formas como veremos mais adiante. Diferentemente da UAPI – Socorro
Gabriel na UAPI – Val-de-Cans o interior da casa não possui áreas abertas com
circulação de ar e passagem direta da luz do sol.
Na UAPI – Socorro Gabriel existe uma área destinada às refeições onde os
internos realizam tanto as refeições principais, almoço e jantar, quanto lanches entre
estas, com sucos, biscoitos, etc. Nesta mesma área também são realizadas recreações
onde essas pessoas se distraem de alguma forma, seja assistindo televisão ou escutando
música ou jogando dominó com outros internos. Alguns internos ao invés de assistir
televisão ou jogar dominó com outros, preferem ir para entrada do prédio, ou seja, para
a chamada “recepção’, onde se encontra um porteiro.
Foi na área da recepção que pude estabelecer, nesta instituição, um primeiro
diálogo ou contato, se assim podemos denominar, com um dos internos e futuro
interlocutor, como será observado posteriormente.
3 – Organização e Funcionamento da UAPI(s)
De acordo com uma funcionária da equipe técnica, a UAPI – Val-de-Cans abriga
vinte e oito idosos, sendo dezessete homens e onze mulheres. Cada interno possui um
prontuário psico-social e de saúde, sendo que neste prontuário não consta a
identificação de cor ou racial de cada indivíduo, portanto, a instituição não possui o
registro de quantos velhos negros e brancos lá residem. Lá só residem internos velhos,
ou seja, indivíduos com mais de sessenta anos, como a instituição considera.
25
Já a UAPI – Socorro Gabriel tem capacidade para acolher sessenta e duas
pessoas, porém atualmente abriga sessenta e cinco, estando dividida em espaços para
homens e para mulheres, sendo que neste universo de sessenta e cinco pessoas existem
trinta do sexo feminino e trinta e cinco do sexo masculino. Diferentemente da outra
UAPI, a instituição não acolhe somente pessoas velhas, ou seja, pessoas com mais de
sessenta anos. Temos, então, a presença de três pessoas não-velhas (por essa
classificação), que, de alguma forma, conseguiram acesso a instituição, seja através de
ações pelo Ministério Público, como é o caso da Dona Maria da Glória6 e do Seu
Roberto Zabala ou através do recurso denominado “Prontidão”, como no caso do Seu
Roberto Travasso Pingarilho, que ocorre quando o indivíduo apresenta um determinado
“risco social”7, e então, consegue acesso a instituição; porém estas pessoas estão lá em
número bastante restrito.
Nas duas UAPI(s) cada interno possui um prontuário psico-social e de saúde,
como já mencionei, sendo que, na fase inicial da pesquisa, não constava neste
prontuário a identificação de cor ou racial de cada interno. Atualmente, com a
introdução deste indicador em uma delas a partir do mês de maio de 20038 a residência
de velhos na UAPI – Socorro Gabriel quanto a cor e o sexo é a seguinte9:
Cor / Sexo Homem Mulher Total
Branco 16 08 24
Preto 05 04 09
Pardo 14 18 32
Entretanto, antes disso, após uma observação mais apurada na instituição e com
outro parâmetro de identificação que não considera apenas a pele absolutamente negra
como indicador (cf. Maggie, 1988, 1991, 1996; Guimarães, 1998; Sheriff, 2001; Sodré,
6 Os internos das UAPI(s) serão aqui referidos pelos seus próprios nomes. Além disso, também, será atribuído “Seu” para homens e “Dona” para mulheres, já que tais designações são usadas de forma aberta e freqüente pelos funcionários das instituições, bem como, pelos próprios internos. 7 A situação denominada de “risco social” pela instituição é aquela em que um indivíduo se encontra “marginalizado” no seio da sociedade, rejeitado pela família e sem ter onde morar, conseqüentemente, perambulando pelas ruas e praças da cidade. 8 Mesmo sem poder afirmar com certeza, acredito que a introdução do indicador de identificação racial ou de cor no prontuário psico-social da UAPI – Socorro Gabriel se deva a realização da pesquisa nesta instituição, já que este dado foi por mim solicitado num momento anterior a sua elaboração. 9 Os dados referidos neste capítulo foram coletados em pesquisa de campo durante o período de outubro de 2002 a maio de 2003.
26
1999) pude perceber trinta e seis negros que lá residem, vinte e três homens e treze
mulheres, sendo que a maioria, tanto dos homens, quanto das mulheres já, se encontra
com seu estado de saúde visivelmente debilitado. Seguindo o mesmo padrão de
identificação utilizado aqui, na outra unidade (UAPI – Val-de-Cans), pude perceber a
presença de dezoito negros, onze homens e sete mulheres residindo naquela unidade.
A partir da inauguração da UAPI – Socorro Gabriel, os idosos que passaram a
viver nesta unidade, precederam dos seguintes locais10:
Instituições Quantidade de Idosos
CEAF Tucunduba 38
Hospital de Clínicas 17
UAPI – Lar da Providência 02
UAPI – Val-de-Cans 07
Total 64
De acordo com dados da instituição, considerando o indicador básico “vínculo
familiar”, a condição dos internos deste abrigo é a seguinte11:
Vínculo Familiar Percentual (%)
Possui família 34,55
Não possui família 52,73
Referências colaterais∗ 12,73
Total 100
A maioria dos internos no caso da UAPI – Val-de-Cans primeiramente teve
acesso a instituição através do abrigo Dom Macedo Costa a partir do qual 30 e,
posteriormente, mais 8 idosos passaram a residir nesta nova unidade. Os idosos que
atualmente residem na instituição chegaram a ela através, em sua maioria, da
comunidade (vizinhos, amigos do idoso) e de familiares, como se observa na tabela que
se segue12:
10 Relatório Anual das Atividades do Ano de 2002 – UAPI – Socorro Gabriel. 11 Idem. ∗ Vínculo de procedência “não-parentesca”, ou seja, de outras procedências como, por exemplo, vizinhos, amigos, etc. 12 Relatório Anual das Atividades do Ano de 2002 – UAPI – Val-de-Cans.
27
Procedência Quantidade de Idosos
Pavilhão São José 02
FBESP 03
Hospital da Aeronáutica 01
Comunidade 11
Pronto Socorro de Icoaraci 01
Família 06
Santa Casa de Misericórdia 01
CIASPA 02
Ministério Público 01
Total 28
No que se refere ao foco central desta pesquisa, o estudo de memória social e
história de vida de velhos negros, especialmente, mas também brancos, a funcionária da
Administração técnica da UAPI – Val-de-Cans observou que a pesquisa poderá
apresentar dificuldades neste sentido, pois segundo a mesma, estes velhos já não
possuem “discernimento” do que é presente e do que é passado13, possuindo
“deficiência mental” e “esclerose”, porém não colocou outras dificuldades para
realização do estudo, a não ser a proibição de registro com material fotográfico14.
Ao mencionarmos que a pesquisa a se realizar na instituição se tratava de um
estudo com perspectiva de registro de memória e identidade de velhos, a posição da
funcionária da UAPI – Socorro Gabriel foi a mesma da funcionária da UAPI – Val-de-
Cans, entendendo que, neste sentido, a pesquisa poderia ter alguns problemas, pois
segundo a mesma, a maioria destes velhos já possui algum tipo de “deficiência mental”,
como, por exemplo, a esclerose, sendo esta a mais comum entre essas pessoas de idade
avançada, porém não colocava nenhum empecilho a realização da pesquisa no local,
apenas com as restrições da não utilização de material fotográfico e do compromisso do
pesquisador em fornecer uma cópia das transcrições das entrevistas com idosos.
13 Para uma interpretação instigante, que constitui um verdadeiro tratado moderno sobre a questão da velhice – com minuciosa refutação dos argumentos acima – ver Cícero (2002), que “respondia” as considerações de seu tempo, ainda na Roma do século IV da era Cristã. 14 Apesar da proibição de registro com material fotográfico, tanto dos internos quanto dos espaços das unidades, as UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel disponibilizaram, por decisão e escolha própria, algumas fotos para ilustrar a pesquisa.
28
Ao perguntar sobre o número de velhos negros que residem na instituição, pude
observar a conhecida problemática de identificação racial que ocorre no Brasil, pois a
funcionária apenas identificou aqueles imediatamente reconhecíveis, ou seja, que
apresentam a cor da pele bem escura, em relação a outros, devido ao seu fenótipo.
Apesar disso, parece ser evidente a percepção da identificação das pessoas nestes
termos, uma vez que a mesma funcionária observou que ocorre o que ela chamou de
“situações de discriminação racial” na UAPI – Socorro Gabriel envolvendo velhos
brancos em relação a velhos negros.
De acordo com ela, a instituição está dividida entre pessoas “dependentes”, ou
seja, pessoas que, por algum motivo, seja deficiência física ou mental, ou até mesmo a
idade bastante avançada, não podem exercer nenhuma atividade sem a ajuda de algum
funcionário ou enfermeiro; e pessoas “não-dependentes”, assim denominadas as pessoas
que ainda podem realizar algumas atividades básicas, como tomar banho e alimentar-se
sozinhas. Existe uma quantidade maior de pessoas “dependentes” na UAPI – Socorro
Gabriel do que de pessoas “não-dependentes”, sendo que as primeiras ocupam a
enfermaria da instituição, não ocupando os dormitórios em que estão alojados os “não-
dependentes”. Uma pessoa é encaminhada à enfermaria quando sua saúde se encontra
bastante debilitada, caso contrário, continua ocupando os dormitórios.
Ao freqüentar algumas vezes a UAPI – Val-de-Cans pude observar que a
maioria destes internos ainda pode exercer algumas atividades sem a ajuda de
funcionários ou enfermeiros, podendo até, em determinados casos, sair da instituição
para caminhadas, passeios, inclusive pela cidade de Belém, mediante autorização da
equipe técnica; ou seja, esta instituição possui a maioria de idosos não-dependentes, fato
que a diferencia da UAPI – Socorro Gabriel. Tal observação foi confirmada pela
assistente social da instituição, que acrescentou: “quando o estado de velhice se acentua
eles são transferidos para UAPI – Socorro Gabriel”, uma vez que esta possui uma
estrutura mais adequada de enfermaria para tratar das deficiências por estes velhos
apresentadas.
Nas duas UAPI(s) os enfermeiros constantemente estão aplicando a medicação
destinada aos internos, sendo que, segundo informações, estes medicamentos são
receitados de acordo com o problema individual de cada um deles.
29
Foto 5 – Passeio: Idosos da UAPI – Val-de-Cans na Caminhada pela Saúde na Praça Batista Campos
Fonte: UAPI – Val-de-Cans, 2002.
Foto 6: Idosos da UAPI – Socorro Gabriel sentados no sofá
Fonte: UAPI – Socorro Gabriel, 2002.
30
Trabalhando na UAPI – Val-de-Cans existe um total de 50 funcionários, sendo
três assistentes sociais (mulheres), sendo uma delas “gerente”; três médicos (clínico
geral, psicólogo∗, psiquiatra)15; uma nutricionista e quatro enfermeiros (homens e
mulheres) fazem parte da equipe técnica da instituição. Os demais funcionários estão
assim divididos: oito cozinheiros (homens e mulheres), oito atendentes de enfermagem
(homens e mulheres), três auxiliares administrativos (homens e mulheres), dezessete
cuidadores de idosos (homens e mulheres), uma lavadeira e dois vigias.
No caso da UAPI – Socorro Gabriel, existem 148 funcionários, ou seja, 98
funcionários a mais do que na outra instituição, o que segundo um auxiliar técnico,
deve-se ao número de internos e principalmente ao estado de saúde dos mesmos, pois,
como já foi mencionado, a instituição possui uma quantidade de indivíduos
“dependentes” superior a de “não-dependentes”. Fazem parte da equipe técnica da
instituição: uma advogada (que não funciona como tal e sim como gerente da
instituição), um psicólogo, uma assistente social, um médico, um psiquiatra, uma
terapeuta ocupacional, uma fisioterapeuta, seis enfermeiros (homens e mulheres), uma
nutricionista e dois auxiliares técnicos. Os demais funcionários estão assim divididos:
quinze agentes administrativos (homens e mulheres), trinta e sete auxiliares de
enfermagem (homens e mulheres), trinta cuidadores de idosos (homens e mulheres),
vinte agentes de portaria, quatro cozinheiros (homens e mulheres), vinte serventes
(homens e mulheres), um motorista, dois auxiliares de serviços complementares, uma
costureira e dois vigias.
A equipe técnica das duas instituições freqüentemente promove passeios
coletivos16 (por ocasião de festas ou comemorações) para outras instituições de idosos,
balneários (Neópolis), bem como oficinas ocupacionais na própria instituição, como as
de tapeçaria que ocorrem na UAPI – Val-de-Cans, por exemplo. Nesta mesma
instituição, todas as quintas-feiras, reza-se, coletivamente, o terço às 8 horas da manhã e
∗ Nota-se que nestas instituições o profissional de psicologia está inserido na condição de médico, entendido como se fosse um “médico da cabeça” se assim pudermos denominar. 15 Estes 3 médicos não são funcionários efetivos da instituição e apenas prestam serviços para a mesma. 16 Um dos passeios mais comentados pelos idosos da UAPI – Val-de-Cans foi o Círio dos Idosos, onde estes realizaram uma procissão na semana do Círio de Nazaré pela principal rua do bairro, dando a volta pelo quarteirão; também o passeio mais comentado pelos idosos da UAPI – Socorro Gabriel diz respeito ao Círio, quando os internos tiveram a oportunidade de homenagear a Santa Nossa Senhora de Nazaré no Santuário da Basílica de Nazaré na praça do CAN.
31
na última quinta-feira do mês, é celebrada uma missa, no mesmo horário. É válido
ressaltar que tanto essas atividades mencionadas acima, como passeios, oficinas
ocupacionais ou essas duas de caráter religioso, não são atividades obrigatórias, ou seja,
só participam os internos que se interessam pelas mesmas.
Contudo, é importante que se deixe bem claro que é fácil visualizar que toda
atividade realizada pelos internos é feita sob a supervisão dos funcionários ou dos
monitores (dirigentes), e se realiza como se feita por grande número de “iguais”17 (cf.
Goffman, 1974; 1982), que fazem as mesmas coisas em conjunto. Essas atividades são
pré-estabelecidas em dias e horários, rigorosamente cumpridos, para que haja o bom
funcionamento da instituição e sua meta seja cumprida, do seu ponto de vista, isto é, de
seus dirigentes.
Sendo assim, percebe-se que a vida dos internos é controlada e administrada
pelos funcionários ou dirigentes da equipe técnica que cuidam do acompanhamento das
atividades realizadas na instituição, sendo responsáveis pela manutenção da ordem e
principalmente sendo a “mão” do Estado na mesma. Nota-se, também, o modo
homogeneizado de se referir às pessoas que residem nesta instituição, como internos,
característico das instituições totais. Estas características podem ser melhor observadas
no referencial trabalho de Maria Luiza Gusmão (1978), que fez um estudo sobre a
ideologia do velho asilado em um abrigo para idosos, sob administração da “Casa do
Candango”, em uma cidade satélite de Brasília. Nesta obra Gusmão mostra a instituição
do ponto de vista de três atores diferentes: dos internos, dos funcionários, e dos
dirigentes da instituição.
Neste sentido, podemos perceber, também, o caráter disciplinar existente nestas
instituições, e lembrar outra vez Foucault (1977, 1979) quando nos ensina que a
disciplina é uma técnica de poder que faz com que indivíduos sejam vigiados
constantemente, possibilitando o registro, o controle e o acúmulo de saber sobre os
indivíduos vigiados; além disso, ela é também o controle do tempo e análise do espaço,
uma vez que baseia-se na visibilidade, na regulamentação minuciosa do tempo e na
localização exata dos corpos nesse espaço.
17 De acordo com Goffman (1982) a categoria sociológica iguais é atribuída a todos os indivíduos que compartilham de um mesmo tipo de estigma.
32
Os internos das duas unidades, onde realizei a pesquisa, não podem sair da
instituição, a não ser acompanhados por um funcionário da mesma – isso no caso de
alguns internos que saem uma vez por mês para receber proventos (pensões ou
aposentadorias) ou no caso de visitas de parentes que os levam para passar o fim de
semana ou algumas datas comemorativas, como aniversários, natal, etc. Porém, como já
se sabe, em raros e determinados casos, ocorre que um ou outro interno da UAPI – Val-
de-Cans, em boas condições de saúde, pode receber autorização da equipe técnica para
passear pela cidade de Belém, realizar caminhadas, ou até mesmo, visitar parentes ou
conhecidos.
33
Capítulo II – A Associação Santa Luiza de Marillac
1 – A escolha da Associação como “Locus” da Pesquisa
Esta etapa do trabalho de campo corresponde a segunda vigência de bolsa de
iniciação científica PIBIC/ CNPq, que foi pensada, a princípio, para ser realizada na
residência das pessoas que se dispusessem a participar da pesquisa. Entretanto, com a
intenção de se obter mais prontamente (dado o tempo de desenvolvimento do estudo)
um maior número de participantes, optei por desenvolver o trabalho de campo num
local (que não possuísse características semelhantes a asilos, pois a pesquisa anterior se
realizou neste tipo de instituição, como foi mostrado no primeiro capítulo) onde esses
indivíduos se encontrassem agrupados em maior número, ou seja, caracterizando um
local específico onde o estudo pudesse ser realizado.
Assim, pensou-se primeiro em realizar a pesquisa com um “Grupo de Terceira
Idade” na Escola Superior de Educação Física da Universidade do Estado do Pará
(UEPA), porém, mesmo após algumas mulheres do grupo terem se disposto a participar,
percebi que geralmente depois das atividades de dança, caminhada, expressão corporal,
dentre outras, que são realizadas naquele local, elas não tinham muito tempo para as
conversas, pois tinham que retornar para suas residências para cuidar de outros afazeres,
ou devido ao horário necessário para esse retorno.
Conversando sobre as dificuldades de desenvolver a metodologia da pesquisa
com a professora de educação física deste grupo de terceira idade, ela me indicou a
Associação Santa Luiza de Marillac, onde também desenvolve sua atividade
profissional de forma voluntária. Ao visitar a Associação pude perceber que o local
preenchia os requisitos necessários para o andamento da pesquisa, possuindo um
número bastante relevante de freqüentadoras que não vão somente para as atividades lá
promovidas, mas também para conversar sobre assuntos do cotidiano, familiares, etc.,
como será mostrado no item seguinte, em que pretendo dar uma idéia geral da
Associação Santa Luiza de Marillac, bem como das mulheres que a freqüentam. Então,
foi a partir destes fatos que se deu o encaminhamento da escolha do locus onde se
realiza o trabalho de campo.
34
2 – O Cenário Pesquisado: A Associação Santa Luiza de Marillac
A Associação Santa Luiza de Marillac foi fundada na cidade de Belém no dia 15
de março de 1935 (tendo portanto, cerca de 69 anos de existência) por um grupo de
mulheres católicas que tinham por objetivo disseminar o evangelho cristão, através do
atendimento social a idosos “carentes” e “desamparados”. De acordo como Dona Suely,
presidente da Associação, esta instituição beneficente teve sua primeira sede nas
dependências do Dispensário São Vicente de Paulo, onde permaneceu durante 54 anos.
Esta Associação se encontra presente em outras cidades do país e tem como inspiração
as primeiras Associações de Damas de Caridade, conhecidas pelo nome de “Caridades”
fundadas por São Vicente de Paulo em 1617 na França, da qual Luiza de Marillac18 era
membro integrante.
Na cidade de Belém, a sede da Associação se encontra localizada na Travessa
Ferreira Pena nº 593, no bairro do Umarizal, funcionando principalmente nos dias de
terça, quinta e sexta-feira. A Associação Santa Luiza de Marillac se configura como
uma instituição sem fins lucrativos, ou seja, uma associação beneficente de caráter
filantrópico e, principalmente, como um espaço de convivência de mulheres idosas,
onde se conversa assuntos do cotidiano, assuntos familiares, da vizinhança, etc. Enfim,
a Associação se configura enquanto um espaço de interação e de sociabilidade dessas
mulheres, semelhante, entre outros, ao grupo de convívio de terceira idade estudado
pela antropóloga Flávia de Mattos Motta na cidade de Porto Alegre.
18 Luiza de Marillac nasceu no dia 15 de agosto de 1951 em Paris. Ela foi pupila espiritual de São Vicente de Paulo, com quem fundou na França a Companhia das “Filhas de Caridade” ou simplesmente “Caridades”. Esta ordem religiosa foi a primeira em que as irmãs podiam sair as ruas para trabalhar em hospitais e não eram obrigadas a fazer o voto perpétuo. A partir daí Luiza de Marillac foi guia para vários grupos femininos de assistência a pessoas necessitadas. Ela faleceu em 15 de março de 1660, em paris. Foi beatificada em 1920 e canonizada em 1934 pelo Papa Pio XI, sendo considerada padroeira dos doentes, dos vicentinos e das viúvas, além de ser patrona de todas as obras sociais. As informações adquiridas sobre Santa Luiza de Marillac, bem como, sobre a origem e fundação da Associação na cidade de Belém, foram obtidas no “Projeto Social” da Associação e em pesquisas em sites da Internet: www.filhasdacaridade.com.br/fundadores , www.psleo.com.br/santos_03.htm.
35
Motta (1998) ao pesquisar em um grupo de idosos da LBA - Legião Brasileira
de Assistência (em local onde a maioria dos freqüentadores eram mulheres19) tinha
como objetivo compreender como se desenvolve a construção de uma identidade
feminina na velhice, e observa que a “faceirice” (o ato de se pintar, embelezar, passear,
namorar, dentre outros) se assenta como o eixo central da noção de feminilidade
daquelas mulheres, se conformando como um estilo, uma estética, um ethos específico
das mesmas, como a autora nos mostra:
“A identidade feminina que aqui examino está definida em função de uma certa noção (e vivência) de feminilidade. Como parto do pressuposto de que ‘noções de feminilidade’ não são universais e que, portanto, há ‘n’ maneiras de construir essa noção, vou aqui referir-me à que é particular ao grupo estudado, como faceirice. A faceirice é o eixo central que define a identidade feminina das mulheres que observei em dado contexto e em determinado momento de suas vidas – segundo um estilo, uma estética, um ethos específico” (Motta, 1998: 16-17).
Desta forma, o trabalho de Motta se diferencia de outros estudos sobre
identidade e sociabilidade de velhos (cf. Barros, 1981; Debert, 1984; Motta, 1999) que
tomam o aspecto da velhice como concepção fundamental para a construção da
identidade das pessoas que se encontram neste período da sua vida.
Do mesmo modo que Motta observa no grupo de terceira idade da LBA, na
Associação Santa Luiza de Marillac não existe um tipo absoluto de idosa faceira ou uma
“velha faceira” típica, como aponta a autora, mas sim, o que tenho visto é que entre as
mulheres idosas que freqüentam o espaço estudado, algumas são mais e outras menos
faceiras. Talvez, pelo fato dessas mulheres possuírem baixos recursos financeiros (até
mesmo inferiores aos recursos que as informantes de Motta possuíam) essa “faceirice”
não se expresse (não possa se expressar) tanto em vestidos, colares e outros objetos de
adorno feminino, porém, isso não impede que elas concebam e externalizem esta
faceirice de outras formas, não em si mesmas, mas nas relações com os outros, homens
particularmente, através de coisas como passeios, paqueras e, por que não, namoro.
Um exemplo que pode ilustrar a construção da identidade de velha faceira nessa
idade é que mesmo residindo no asilo UAPI – Val-de-Cans, Dona Maria do Carmo e
19 Embora não tenha dados mais representativos oriundos de pesquisas, posso dizer, de acordo com observações e informações obtidas, que essa maior freqüência feminina parece ser uma constante nestes grupos assistenciais à idosos e nos chamados clubes de terceira idade.
36
Dona Nair apresentavam essa noção de feminilidade. Dona Maria do Carmo era
considerada, principalmente por mulheres, como “namoradeira” e “metida”, talvez por
ser muito vaidosa e gostar de estar sempre bem arrumada, unhas dos pés e das mãos
pintadas, cabelo cortado, sobretudo por possuir alguns bens dentro da instituição que
outras internas não possuíam, como: cordões, brincos, pulseiras e, até mesmo, bonecas
que exibia com orgulho. Dona Nair, outra interna, chegou a ter um relacionamento com
Seu Raimundo, também interno; o relacionamento surgiu desde a Casa do Ancião Dom
Macedo Costa, outro asilo, onde se conheceram, porém o namoro terminou devido a
saída deste interno da UAPI – Val-de-Cans para residir com seu filho. (cf. Vaz Silva
2003 a).
É sabido que algumas idosas sofrem mais e de diferentes formas o impacto da
velhice e por diversos fatores, e isto está (ou pode estar) intimamente relacionado com a
construção ou não da identidade “faceira” na velhice, tomando emprestado o termo de
Motta. Além disso, acredito que este fato influencia também na forma de faceirice –
idosa com pretensões “namoradeiras” ou simplesmente que gostam de se enfeitar,
passear, etc. – que uma ou outra idosa possa ter. Posso utilizar como exemplo a
experiência que tive com as mulheres idosas da Associação Santa Luiza de Marillac
quando li para elas os direitos que o Estatuto do Idoso lhes garante e, percebi, confesso
com um pouco de demora, que a grande maioria delas estava mais interessada em saber
se teria entrada gratuita ou não em cinemas e outros locais de diversão pública e,
principalmente, o que precisariam fazer para viajar para outros Estados onde tem
parentes e/ou conhecidos, já que a lei agora lhes garante este benefício20, do que outros
itens do texto que lhes garantem o direito a cidadania (de outras formas) como, por
exemplo, a criminalização da discriminação ao idoso. Apesar deste fato, deram sempre
a devida atenção a leitura e não desvalorizaram as demais conquistas.
Assim, o interesse destas informantes pela gratuidade nos cinemas, na passagem
para viajar e conhecer outras cidades ou encontrar com parentes e amigos corrobora
com as várias conversas informais que tive com muitas delas ao longo do trabalho de
campo sobre assuntos que são freqüentemente relatados, como por exemplo, as idas as
20 De acordo com o Estatuto do Idoso, em viagens interestaduais as companhias rodoviárias devem reservar uma quantidade de vagas de forma gratuita para os indivíduos que possuam mais de 60 anos de idade, desde que estes marquem a passagem com um período de antecedência.
37
praças da cidade de Belém que cada uma delas realiza nos finais de semana com os
netos e outros parentes, as visitas a outras instituições e os passeios em sítios e
balneários promovidos pela Associação também são mencionados, fazendo, então, com
que a “faceirice” a que me refiro, no caso destas interlocurtoras, se expresse em sua
maioria desta maneira.
Pode-se dizer que a Associação Santa Luiza de Marillac é um espaço de
interação e sociabilidade fundamentalmente marcado pela presença feminina, ou seja, a
maioria das pessoas, se não todas, que freqüentam este local de convivência são
mulheres; a presença de homens neste local se realiza apenas esporadicamente,
principalmente no dia da doação das cestas básicas para os idosos que a Associação
promove no terceiro domingo de cada mês ou quando é preciso fazer algum tipo de
reparo na casa, como por exemplo, consertar o encanamento ou infiltração, ou seja, a
presença se dá com data e horário marcados, se assim pudermos nos referir. Mesmo
assim, os que aparecem para receber a assistência estão em número muito pequeno e
alguns alegando que foram representar sua esposa que por ocasião não pode
comparecer. A dificuldade de acesso a alguns documentos da Associação Santa Luiza
de Marillac21 inviabilizou a verificação se algum homem possui registro na instituição
ou não, para o recebimento da cesta básica. Mesmo sabendo que este fato não
compromete o desenvolvimento da pesquisa, seria importante para obtenção de alguns
dados, como por exemplo, a quantidade de pessoas que estão realmente inscritas na
Associação e há quantos anos essas pessoas estão lá, bem como, o número de pessoas
que recebem a assistência com as cestas básicas, dentre outros, que contemplariam
melhor as informações sobre a instituição pesquisada.
A maioria das mulheres que freqüentam a Associação possui idade superior a
sessenta anos de idade e possui baixas condições financeiras, sendo oriundas de
diversos bairros periféricos de Belém, como: Jurunas, Guamá, Terra-Firme, dentre
outros; e, ainda, existem casos de mulheres que se deslocam de Ananindeua, Marituba e
21 É importante dizer que nas Unidades de Acolhimento à Pessoa Idosa, asilos públicos do Estado, não tive este tipo dificuldade, pois tive acesso a alguns livros de registros das UAPI(s), bem como, informações dos prontuários psico-sociais dos internos que lá residem.
38
Icoaraci22 até a Associação, porém em menor número. Assim, este espaço de
convivência se conforma enquanto o seu “pedaço”, isto é, um local de encontro e lazer
para um grupo de mulheres idosas que procuram a Associação para estabelecer uma
rede de relações sociais com pessoas que possuem características em comum com elas,
partilhando de gostos, hábitos e valores semelhantes que lhes confere o caráter de um
grupo. De acordo com José Guilherme Cantor Magnani, preocupado com o
desenvolvimento dos estudos em antropologia urbana, em trabalho intitulado “Quando o
campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole” (2000), a categoria “pedaço” é
definida como um determinado espaço territorial demarcado, ou um segmento deste
espaço, que se torna referência na distinção de um grupo específico que freqüenta e faz
parte do mesmo; pertencendo a sua rede de relações. Para Magnani é no “pedaço” que
se desenvolvem as relações do cotidiano, a vida do dia-a-dia na vizinhança, as trocas de
informações, também, sendo o espaço privilegiado para as práticas de lazer nos bairros
populares.
Porém, o autor sinaliza que a categoria “pedaço” não se restringe apenas a
bairros populares, existindo também nas regiões centrais da cidade, como por exemplo:
lugares de encontro, lazer, onde indivíduos não precisam se conhecer necessariamente
nas relações estabelecidas no cotidiano do bairro, como é, neste sentido, o caso das
mulheres que freqüentam a Associação Santa Luiza de Marillac, com exceção de
algumas vizinhas e irmãs que freqüentam juntas a instituição. Deste modo, compreendo
como o “pedaço” das mulheres idosas que freqüentam a Associação não só as suas
vizinhanças e os bairros dos quais são oriundas, onde se desenvolvem as relações do
dia-a-dia com familiares e amigos, mas também a própria Associação Santa Luiza de
Marillac, uma vez que, enquanto grupo de terceira idade ou grupo de convivência, como
mostrarei mais adiante, esta instituição se configura como um dos espaços de interação,
sociabilidade e lazer destas idosas, sendo assim, no sentido de Magnani, o seu “pedaço”.
Pode-se dizer, então, que na associação se comunga de valores, hábitos e gostos
em comum, caracterizando-se, principalmente, a idade e a feminilidade como fatores
distintivos, fazendo com que essas mulheres idosas tenham um sentimento de pertença a
22 Estas localidades se encontram mais afastadas do centro de Belém, sendo que Icoaraci é um distrito e fica a 14 km do centro desta cidade; e Ananindeua e Marituba são municípios do Estado do Pará que fazem parte da região metropolitana de Belém.
39
um grupo comum, ou seja, sintam-se fazer parte de um mesmo grupo, onde se possui
códigos e símbolos semelhantes que marcam a diferença e o caracterizam como grupo.
Assim, para Magnani (op. cit) a categoria “pedaço” deve ser compreendida como uma
forma particular de sociabilidade e apropriação do espaço, sendo resultado de práticas
coletivas e, ao mesmo tempo, condição para seu desenvolvimento e fruição.
Diferentemente das UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel que possuem
características asilares, onde os idosos residem na instituição (como mostrei no capítulo
anterior), as mulheres idosas apenas freqüentam e participam das atividades promovidas
pela Associação Santa Luiza de Marillac e não residem na mesma.
3 – A organização interna da Associação
No período que corresponde aos meses de janeiro e fevereiro de 2004, a casa que
funciona como sede da Associação Santa Luiza de Marillac começou a apresentar
alguns problemas como alagamento, infiltração nas paredes e destelhamento devido as
fortes chuvas e ventos que se intensificam durante esta época do ano em Belém. Devido
a este fato, durante o mês de março e grande parte de abril a Associação passou a
realizar suas atividades apenas um dia por semana, mas sem designar um dia específico,
a depender da chuva, o que diminuiu bastante a freqüência das mulheres idosas que a
procuram, e que na maioria das vezes, contou apenas com a presença da presidente,
Dona Suely.
No final do mês de abril a sede da Associação que, como já disse, está localizada
na Travessa Ferreira Pena nº 593, no bairro do Umarizal, entrou em obras para reformar
as estruturas da casa que já se encontravam abaladas devido o passar dos anos e as
fortes chuvas que costumam cair na cidade de Belém. Assim, a Associação se encontra
funcionando atualmente durantes os dias de segunda, terça e quartas-feiras em outro
local, o dispensário São Vicente de Paula, localizado na Travessa Soares Carneiro entre
a Avenida Senador Lemos e a rua Municipalidade, no bairro do Telégrafo.
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Foto 7 – Missa: O arcebispo Dom Vicente Zico celebrando a Quaresma com as idosas da Associação Santa Luiza de Marillac
Fonte: Associação Santa Luiza de Marillac, 2004.
Foto 8 – Comemoração da Semana Santa na Associação Santa Luiza de Marillac
Fonte: Associação Santa Luiza de Marillac, 2004.
41
Deste modo, para a reforma da casa, sede da Associação Santa Luiza de
Marillac, a presidente, Dona Suely, conseguiu através de ofício encaminhado a SETEPS
um pequeno recurso financeiro para realização das obras, porém a quantia recebida não
foi suficiente para totalização da reforma pela qual a associação atravessa. Assim, outras
formas de obtenção de recursos (além do bazar da pechincha, dos artesanatos e
confecções, como mostrarei mais adiante) foram iniciadas, em que se destaca a
utilização dos meios de comunicação (impresso e televisivo), solicitando a ajuda aos
comerciantes, empresários e a sociedade civil em geral, sob forma de apelo, enfatizando
a importância em colaborar com a reforma da associação e manutenção das cestas
básicas, para que, assim, se possa dar continuidade ao trabalho de assistência aos idosos
que procuram a Associação Santa Luiza de Marillac, promovido por esta instituição.
Assim, como na ocasião das reportagens estava desenvolvendo minha pesquisa e
freqüentando periodicamente esta instituição, fui convidado a participar de duas delas,
auxiliando Dona Suely e as idosas na relação com responsáveis pela reportagem, bem
como, com alguns depoimentos sobre a Associação.
Durante o mês de julho as atividades realizadas pela Associação foram
novamente interrompidas devido a chegada de um grupo de freiras oriundas de várias
localidades do interior do Estado, que vieram a Belém para participar de um retiro de
orações e ficaram hospedadas no dispensário São Vicente de Paula. Porém, no mês de
agosto as atividades já normalizaram, sendo realizadas nos dias de segunda, terça e
quarta-feira, como já foi dito.
A Associação Santa Luiza de Marillac é composta por dois grupos distintos de
mulheres: a) as associadas ou “Luizas” (voluntárias); b) as idosas (assistidas). As
“Luizas”, como já disse, são as mulheres católicas que se disponibilizaram como
voluntárias na disseminação das práticas cristãs para a assistência filantrópica de velhos
considerados como carentes e desamparados. As idosas são as mulheres que procuram a
Associação ou que chegaram até ela através de outras pessoas e que são beneficiadas
pela atividade desenvolvida pelas “Luizas”. Porém, no decorrer do trabalho de campo
pude observar que, na sua organização, se configura um terceiro grupo na Associação
composto por algumas mulheres idosas que são beneficiadas pela instituição e
receberam elas também o título de “Luizas”, e que serão referidas por mim, a partir
daqui, como “Luizas-beneficiadas”. Devo dizer que estas idosas não são classificadas
42
por si e por outras pessoas desta maneira e, sim, apenas, como “Luizas”, portanto a
categoria “Luizas-beneficiadas” não se configura como uma categoria nativa (cf.
Malinowski, 1978), sendo fruto da classificação do pesquisador – embora surgida/
constituída a partir das observações em campo. Desta forma, temos: as associadas ou
“Luizas” (voluntárias); as idosas (assistidas) e as “Luizas-beneficiadas” (idosas
assistidas que receberam o título de “Luizas”).
As idosas que passaram a serem designadas por “Luizas” na Associação (e por
mim “Luizas-beneficiadas”) receberam tal titulação por sua atuação e desempenho ao
longo dos anos no exercício da caridade e voluntarismo aos idosos que necessitam de
assistência, que se constitui como a principal meta das “Luizas”, além de disseminar o
evangelho cristão. Uma característica que diferencia as “Luizas” e as “Luizas-
beneficiadas” das demais idosas, além da nomenclatura ou titulação de “Luizas”, é o
fato destas possuírem um cordão com um crucifixo grande de madeira que é dado a elas
por sua ação e empenho como voluntárias no amparo de idosos carentes e necessitados.
Desta forma, este cordão representa (além dos significados que o cristianismo confere
ao objeto) a prática da caridade e do voluntarismo na assistência dos idosos
desamparados.
A Associação não possui muitos recursos financeiros, mantendo-se,
principalmente, com a mensalidade paga pelas associadas ou “Luizas” que estão
atualmente em número mais ou menos de 42 mulheres. Além das mensalidades a
Associação recebe doações e proventos de alguns colaboradores (principalmente,
comerciantes da cidade de Belém), sendo obtida, também, uma pequena renda com a
venda periódica de algumas roupas e objetos usados (“bazar da pechincha”) e com a
venda de alguns trabalhos artesanais que são confeccionados pelas próprias idosas.
Todos os recursos financeiros obtidos pela Associação são utilizados na manutenção da
casa e, principalmente, para composição da cesta básica23 fornecida aos idosos todos os
meses. O dia da doação pode variar, dependendo fundamentalmente dos recursos
obtidos para a composição da cesta básica, mas a entrega é realizada principalmente no
terceiro domingo de cada mês. 23 A cesta básica é geralmente composta por: Arroz, feijão, macarrão, sal, açúcar, café, biscoito e farinha de mandioca. A quantidade de alguns alimentos que compõem a cesta básica pode variar de acordo com a quantidade de produtos arrecadados, podendo determinado produto constar ou não na cesta básica, de acordo com a situação.
43
A Associação promove algumas atividades ocupacionais para as idosas, como
por exemplo, as atividades de educação física que são realizadas nos dias de terça-feira
e quinta-feira e a atividade de música que ocorre às sextas-feiras. A atividade de
educação física tenta proporcionar um cuidado com a parte muscular e articulação das
mulheres idosas, bem como caminhadas, dinâmicas de grupo, expressão corporal, além
de atividades recreativas como jogos, brincadeiras etc., enquanto a atividade musical
tem por objetivo a formação de um coral. De acordo com os comentários das
interlocutoras as duas principais atividades trazem benefícios para elas, sendo que os
resultados das atividades de educação física são mais percebidos no dias-a-dia, nas
tarefas realizadas em casa e nas caminhadas pela cidade, enquanto o reflexo das
atividades de música estão sempre remetidos ao lúdico, ao gosto pela música que grande
parte delas dizem possuir.
É importante dizer que as atividades promovidas na Associação são, na maioria
das vezes, realizadas com muito improviso, como no caso das aulas de educação física
em que as idosas utilizam pequenas garrafas plásticas de refrigerante preenchidas com
areia como haltere (peso). Além disso, esses profissionais que desempenham seu
trabalho na Associação não possuem nenhum vínculo empregatício com a mesma,
realizando-o de maneira voluntária, uma vez que esta não possui muitos recursos
financeiros e não teria como contratar tais profissionais.
Desta forma, é de fundamental importância que se compreenda a Associação
Santa Luiza de Marillac como uma instituição beneficente de caráter filantrópico para
assistência a pessoas idosas, mas, sobretudo ou talvez mais – no que se refere as idosas
assistidas por ela, sua característica de sociabilidade para este grupo social. Assim,
pode-se dizer que instituição proporciona para as idosas que a freqüentam um espaço de
interação privilegiado, configurando-se como um espaço social, que atualmente, passa
por um largo processo de expansão na sociedade moderna e com freqüência, vem sendo
denominado de “grupo de convivência” ou “grupo de terceira idade”.
De acordo com a antropóloga Simoni Lahud Guedes (1999), em artigo intitulado
“A concepção sobre a família na Geriatria e na Gerontologia brasileiras: ecos dos
dilemas da multidisciplinaridade” em que esta discute a temática da velhice, tomando
44
para análise o ponto de vista de geriatras e gerontólogos, ela indica que os “grupos de
convivência” ou “grupos de terceira idade” tem por objetivo proporcionar uma melhor
qualidade de vida para os idosos, para que eles possam ser pessoas mais saudáveis,
pessoas que se relacionem tanto com pessoas adultas quanto com jovens e
principalmente, estejam bem com sua família, fazendo com que tais características
(saúde, normalidade e relacionamento familiar harmonioso) apontem para uma “velhice
bem-sucedida” em detrimento de uma “velhice mal-sucedida”, como se refere a autora.
Segundo Guedes, deste ponto de vista a “velhice bem-sucedida” é marcada
fundamentalmente pelo eixo simbólico da atividade/inclusão e, é/ deve ser trabalhada
pelos grupos de convivência no sentido contrário da “velhice mal-sucedida” que é
demarcada pelo eixo simbólico da inatividade/exclusão.
Assim, partindo desta perspectiva também podemos considerar a Associação
Santa Luiza de Marillac como uma instituição que preza por uma melhor qualidade de
vida para as idosas que a freqüentam, tentando proporcionar a elas uma “velhice bem-
sucedida” no mesmo sentido que fazem (porém de formas diferenciadas, por serem
instituições privadas) os “grupos de convivência” ou “grupos de terceira idade”
mencionados por Guedes (op. cit).
45
Capítulo III – Os Interlocutores da pesquisa: Quem são esses velhos e velhas a
quem tanto ouvi?
Neste capítulo, como o próprio título já indica, pretendo mostrar, da forma mais
completa que me for possível fazê-lo, o perfil e a história pessoal de cada uma das dez
pessoas que concordaram em participar da pesquisa como interlocutores, bem como a
construção de esquemas de parentesco que enfatizam as idéias (representações) sobre a
cor/ raça de alguns deles. Isto tem a finalidade de introduzir o leitor na discussão sobre
o sistema de classificação racial brasileiro e sobre as imagens e interpretações
construídas sobre o negro no final do século XIX e início do século XX em Belém, que
se constitui no foco central deste trabalho e será abordado no quarto tópico deste
capítulo, mas, principalmente, no próximo capítulo onde a questão é trabalhada de
forma mais ampla.
Além disso, no terceiro tópico deste capítulo, elaborei um quadro que reúne itens
em comum sobre os informantes, como por exemplo: cidade de origem, residência em
instituições asilares, cor da pele e tipo de cabelo, dentre outros, com a finalidade de
mostrar o conjunto dos dados coletados com esses interlocutores que foram referidos na
história pessoal de cada um deles. É importante esclarecer que todas as informações
sobre os velhos, contidas nesta parte do trabalho, são fruto das lembranças ou relatos
sobre a história de vida desses interlocutores, bem como, das observações do
pesquisador e dos depoimentos de funcionários e dirigentes das instituições.
1 – Os Internos das Unidades de Acolhimento a Pessoa Idosa
Este tópico se deterá no perfil e história pessoal dos informantes – assim como
nos esquemas de cor/ raça e parentesco de alguns deles – que residem em duas
instituições públicas de caráter asilar: as Unidades de Acolhimento a Pessoa Idosa,
UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel. Nestas duas Unidades os interlocutores estão
em número de seis pessoas, sendo quatro homens: Seu Abílio, Seu Francisco, Seu
Euclídes e Seu Isidoro do Carmo; e duas mulheres: Dona Olívia e Dona Nair.
46
Seu Abílio
Foi na recepção da UAPI – Socorro Gabriel que pude conhecer Seu Abílio, um
velho negro, calvo, com cabelo bem crespo e totalmente esbranquiçado, que possui 84
anos e nasceu no município de Acará, no interior do Estado do Pará. Ele é magro de
estatura mediana, anda com ajuda de um “andador” e possui a voz muito baixa que
chega a ser preciso fazer um pouco de esforço para escutar. Seu. Abílio é, ou pode ser
imediatamente identificado por sua cor, como negro por ser “muito escuro”24, apesar da
referência a esta sua pretensa identificação ter surgido em poucas oportunidades nos
seus relatos e em conversas informais com o pesquisador. Em algumas destas conversas
pude identificar, através do seu depoimento, que ele sempre pertenceu a uma família
pobre, de poucas condições financeiras, tendo tido que trabalhar muito e desde cedo,
para poder obter algo; aliás, sempre se referindo com orgulho a sua profissão de torneiro
modelador e carpinteiro.
Seu Abílio já reside há cerca de seis anos neste tipo de instituição pública do
Estado, passando primeiro pelo abrigo Dom Macedo Costa. Antes de ser transferido
para residir na “casa”, modo como funcionários e internos chamam as UAPI(s), tendo já
residido um período na outra UAPI. O caso dele é um caso comum, pois a maioria das
pessoas que residia no Dom Macedo Costa também foi transferida para outras
instituições; a maioria delas foi para o CEAF Tucunduba e alguns para a UAPI – Val-
de-Cans, como já foi demonstrado (p. 10), para somente no início do ano de 2002 os
idosos serem transferidos para a “casa”, o que indica este tipo de percurso.
A instituição, na opinião do Seu Abílio não é boa, pois ele se queixa da
alimentação e de pretensos roubos que ocorrem freqüentemente no local. Ele se refere a
instituição da seguinte forma: “Aqui é duro (...) aqui é barra!”. Ao comparar a UAPI –
Socorro Gabriel a UAPI – Val-de-Cans Abílio diz: “lá eu ainda podia tomar um tacacá
que vendia na esquina à tardinha, aqui eles não deixam eu comprar um sorvete, quando
passa aí na frente!”. Apesar de não concordar com a forma como algumas coisas
funcionam na “casa”, Seu Abílio se comporta adequadamente, segundo as regras da 24 A partir daqui todas as referências que serão feitas sobre as características físicas dos interlocutores, como por exemplo, a cor da pele “muito escura” ou o tipo de cabelo “bem chegado”, são realizadas através de categorias que foram encontradas ao longo da pesquisa de campo, mencionadas pelos próprios interlocutores.
47
instituição, sendo bem visto pelos funcionários, devido seu jeito “ordeiro” e
“comunicativo” e também pelo fato de não chamar muitos palavrões, como dizem que é
costume por parte de alguns internos, principalmente homens, que freqüentemente,
quando estão conversando entre si ou até mesmo com algum funcionário, utilizam-se
bastante de palavrões. Por outro lado, por causa deste e dos outros motivos já referidos,
Seu Abílio não possui muitas amizades com os outros internos, principalmente homens,
suas amizades são com poucas mulheres internas e alguns funcionários, como ele
próprio diz: “não me misturo muito não (...) sou mais chegado das mulheres, não sou
chegado deles não”. Utilizando a palavra “deles” para se referir aos internos do sexo
masculino.
Seu Abílio, como a grande maioria dos internos da UAPI – Socorro Gabriel,
recebe poucas visitas, apenas de uma sobrinha, que quando pode, leva algumas roupas e
frutas para ele. Este interlocutor não possui mais irmãos e esposa, já falecidos. Ele não
chegou a ter filhos com sua mulher, apesar de ter “criado” nove filhos com ela, os
chamados “filhos de criação”, adotados informalmente.
Dona Olívia
Dona Olívia é uma negra de 69 anos que, quanto a cor, é o que se chamaria
também de “muito escura”. Ela possui o cabelo curto e bastante crespo, totalmente
esbranquiçado, sua estatura é mediana e socialmente seria reconhecida como
“gordinha”. Ela nasceu em Belém, onde morou por alguns anos antes de ir ainda criança
para Breves, na Ilha do Marajó. Dona Olívia, quando criança e jovem, morou muito
tempo com seus pais e mais 7 irmãos no interior de Breves, município do Estado Pará,
retornando a Belém, depois de adulta, quando já se encontrava viúva com um filho de
seu primeiro casamento.
Ela morou bastante tempo no bairro do Marco com seu segundo marido, antes
deste ser transferido para o Estado de Pernambuco para trabalhar na Estação
Ferroviária. Após morar 14 anos em Pernambuco ela mudou-se para o Rio de Janeiro,
onde seu segundo marido faleceu. Eles residiram 18 anos no Rio, e após a morte de seu
companheiro, Dona Olívia voltou para Pernambuco para morar com seu filho. Depois
de um ano decidiu voltar para Belém, devido as saudades de seus familiares, sem
48
precisar quais sejam. Segundo relata, Dona Olívia decidiu morar por conta própria no
Dom Macedo Costa, pois devido sua idade avançada, não queria dar problemas para
seus parentes. Ela residiu 5 anos no abrigo Dom Macedo Costa e está residindo há 2
anos na UAPI – Val-de-Cans, onde aproveita bastante as oficinas de tapeçaria com as
outras internas que também se interessam por esta atividade.
Ao ser indagada sobre a instituição, Dona Olívia diz: “eu não gosto daqui, mas é
o jeito né!. O salário não dá pra se sustentar lá fora. As minhas sobrinhas me chama pra
morar com elas, mas .... eu passo uma semana, uns dias.” Apesar de não gostar da
instituição, esta informante é bem vista pelos funcionários que lá trabalham, não se
envolvendo em discussões e outros problemas, o que pode ser comprovado, já que ela é
uma das poucas internas que pode sair e passar alguns dias com parentes, como ela
própria nos mostra no relato acima.
Em seus relatos esta interlocutora constantemente se refere aos seus familiares,
sobretudo, às lembranças contadas por sua avó paterna e seu avô materno. Os nomes do
pai e da mãe de Dona Olívia eram, respectivamente, Graciliano Pereira do Nascimento e
Benedita Antônia Pires da Luz. Esta informante chegou a conhecer alguns de seus avós.
Segundo ela, seus avós paternos eram africanos: o nome de sua avó era Zulmira Ferreira
e o do seu avô ela já não se lembra mais. Seus avós maternos eram descendentes de
portugueses. O nome de seu avô era Gregório da Luz e sua avó se chamava Maria Pires.
Recordando das conversas com seu avô, Dona Olívia lembra: “o meu avô Gregório
dizia: ‘ah meus filhos! quando vocês ficarem da minha idade, se vocês chegarem na
minha idade, você vai ter muita coisa pra contar pra frente’”, e assim, esta informante
encerra a entrevista com o pesquisador.
Dona Nair
Dona Nair foi a primeira mulher a estabelecer um diálogo com o pesquisador,
apesar de ser um pouco retraída, às vezes, chegando a ser bastante introspectiva, falando
e sorrindo pouco durante a realização das entrevistas, apesar disto, nunca colocou
dificuldades para realização das mesmas. Ela é uma senhora de cor branca nascida no
Estado de Goiás, e também como Dona Olívia, seria socialmente reconhecida como
49
“gordinha”. Esta interna não tem certeza de sua idade correta, mas acredita possuir 72
anos, quatro destes no Dom Macedo Costa, sendo transferida posteriormente para UAPI
– Val-de-Cans onde já reside há 2 anos.
No desenrolar das conversas informais com esta informante, ela relembrou sua
saída de Goiás para a cidade de Belém, pois ela já teria conhecido a cidade
anteriormente por um período e se apaixonado por um rapaz, do qual não referiu o
nome. Então, com sua família em Goiás ela recebeu uma carta de uma moça que lhe
contara que este rapaz estava se envolvendo com outra moça, fato que fez com que
Dona Nair vendesse algumas coisas de valor que possuía e fugisse para Belém a procura
do rapaz. Após alguns meses, Dona Nair e o tal rapaz já possuíam um relacionamento,
que, segundo ela, não durou o período esperado; rompendo com ele, ela preferiu não
retornar para sua família e seu Estado de origem, trabalhando em várias “casas de
família” como empregada doméstica.
Dona Nair nunca se casou, não possui filhos e, de acordo com Dona Maria do
Carmo25, outra interna da instituição, desde que ela fugiu de Goiás nunca mais
estabeleceu contato com sua família e esta última nunca soube o paradeiro de Dona
Nair. Dona Nair chegou a ter um relacionamento com um interno, Seu Raimundo26; o
relacionamento surgiu desde a Casa do Ancião Dom Macedo Costa onde se
conheceram, porém o namoro terminou devido a saída deste interno da UAPI – Val-de-
Cans para residir com seu filho.
Devo dizer que, grande parte do material que coletei com esta interlocutora
escapou aos diálogos estabelecidos com ela no momento em que me utilizava do
gravador, talvez por ela não ter se sentido a vontade com o registro de alguns assuntos 25 Dona Maria do Carmo é uma mulher de 71 anos, de cor branca, cabelo pouco crespo e bastante esbranquiçado. Considerada “namoradeira”, “fuxiqueira”, e, sobretudo, “metida”, talvez por ser muito vaidosa gostando de estar sempre bem arrumada, mas, principalmente, por possuir alguns bens dentro da instituição que a maioria dos internos não possuem, Dona Maria do Carmo não é muito bem vista pelas mulheres da UAPI – Val-de-Cans. Depois de conhecê-la, ao retornar na semana seguinte para dar continuidade a pesquisa recebi a notícia que Dona Maria do Carmo, repentinamente, havia falecido de infarto no dia 19 de novembro de 2002. 26 Seu Raimundo é um negro de 76 anos nascido no interior de Abaetetuba (PA). Consta que Seu Raimundo possui um relacionamento dentro da instituição com a Dona Nair, relacionamento que é do conhecimento tanto dos internos quanto dos funcionário da instituição e existia desde o Dom Macedo Costa, porém não gosta de falar sobre essa questão com outras pessoas, inclusive com outros internos. Mas, em dezembro de 2002, seu Raimundo saiu da UAPI – Val-de-Cans para residir com seu filho, o que pode ter posto fim ao “namoro”.
50
muitos particulares de sua vida, ou até mesmo, pelo fato de não estar acostumada com a
utilização do gravador e com o tipo de situação ao qual estava participando, assim,
acredito que a utilização deste aparelho, em alguns momentos, a intimidava de alguma
forma.
Seu Euclides
Seu Euclides é um paraense de 80 anos nascido no bairro do Telégrafo onde se
criou. Este interno ainda chegou a residir durante quatro meses no Dom Macedo Costa
antes de sua interdição, sendo deslocado para o Lar da Providência onde ficou mais
quatro meses. Ele já reside há dois anos na UAPI Val-de-Cans. Seu Euclides trabalhou a
maior parte de sua vida como garçom na noite belemense, sendo vários anos no
Amazon Bar no Grande Hotel, atual Hilton Hotel (localizado na Avenida Presidente
Vargas, próximo a Praça da República). Boêmio, como ele próprio se denomina,
conheceu grandes personalidades e artistas da boemia belemense de sua época que
costumava ver quando trabalhava, como por exemplo: Guiães de Barros, Geruza Souza,
Assis dos Santos, Pérola, entre outros27.
Este interlocutor se refere a este período de sua vida da seguinte forma: “naquele
tempo era bom” e diz que chegou a ter um “caso” com uma cantora de samba da época,
de nome artístico Marquise Negra. Seu Euclides se lembrou dos principais lugares
freqüentados pela boemia belemense da época, a boite “Palhoça”, localizada na Praça da
República, o Sinuca Bar no Bairro do Telegrafo, Pedreira Bar no bairro da Pedreira, Bar
da Condor no Guamá, além do Amazon Bar onde trabalhava e freqüentemente se
apresentavam as orquestras “Martelo de Ouro” e banda “Los Crioulos”.
Seu Euclides, segundo relato seu, chegou a morar na cidade de São Paulo,
trabalhando em uma boite na Avenida Paulista, a boite Táxi Dancing, onde trabalhou
por dois anos. Teria chegado, também, a conhecer alguns artistas e boêmios paulistanos
como, por exemplo, um advogado e poeta negro com quem chegou a fazer amizade, não
se recordando do nome deste, lembrando, porém que era conhecido como “miolo de 27 O primeiro era pianista e dono de conhecido e prestigiado conjunto musical nos anos cinqüenta em Belém, tocando na Rádio Clube, única emissora da época, e em festas nos grandes clubes e nas residências de membros da elite local. A segunda era cantora que se apresentava na Rádio Clube e em shows na cidade (Informações pessoais da orientadora).
51
lápis” por ser “pretinho, magrinho e cabeça chata”. Ao se lembrar do amigo e declamar
alguns de seus poemas mais conhecidos Seu Euclides chorou. Ao final da conversa ele
disse: “eu vou contar pro senhor a minha vida, a minha história é um romance. O que eu
me lembro era isso”. Como vemos, praticamente só lembranças boas, certamente
ativando assim, o outro “capítulo da memória ... e não sua função antagônica”, como
nos diz do esquecer, Pedro Nava em seu “Baú de Ossos” (1999).
Seu Francisco
Seu Francisco é um negro de 84 anos, ele é baixo, calvo e os poucos cabelos que
possui são brancos e crespos. Este interlocutor é de naturalidade acreana, porém, morou
grande parte de sua vida no interior do Rio Grande do Norte, onde trabalhou na roça
com sua família. Seu Francisco é filho de João Ramos de Oliveira e de Regina Ramos
Duarte, e segundo este informante, ele chegou a conhecer os seus avós paternos José
Salviano Ramos de Sousa e Maria Ramos de Sousa. Ele não se lembra dos nomes de
seus avós maternos, pois de acordo com o seu relato, ele saiu muito pequeno do Estado
do Acre, onde os parentes de sua mãe, inclusive seus avós maternos, moravam.
Seu Francisco nunca se casou e também não tem filhos, tendo morado sempre
com sua mãe no bairro do Guamá, em Belém. Ele dedicou grande parte de sua vida ao
trabalho e a cuidar de sua mãe, por isso não procurou se casar e constituir família com
mulher alguma, ao contrário de seus irmãos e irmãs (com exceção de uma delas) que se
casaram cedo e deixaram a casa da materna para morarem com seus parceiros, que para
este informante, fez com que seus irmãos aos poucos fossem se afastando cada vez mais
da família materna, a qual ele valoriza e afirma ter sempre permanecido. Segundo ele, já
trabalhou em várias profissões, chegando a possuir quatro bancas de engraxate no Ver-
o-peso, de onde surgem algumas lembranças, principalmente das comidas típicas
paraenses, como vatapá, tacacá, maniçoba e especialmente o açaí e o peixe frito ou
caldeirada.
Este interlocutor é bem quisto pelos funcionários da UAPI – Val-de-Cans, sendo
considerado por eles como uma pessoa bem-humorada, sorridente e bastante
comunicativa, o que faz com que este interno possua uma boa relação dentro da
instituição tanto com os funcionários quanto com os outros internos, com quem passa as
52
tardes conversando e/ ou jogando dominó. Além disso, Seu Francisco gosta sempre de
participar das atividade programadas pela equipe técnica da instituição, como por
exemplo, as oficinas de musicalização, mas, gosta, principalmente, quando ocorrem os
passeios e os “festivais de sorvetes” que são programados a outras instituições com
características semelhantes (UAPI – Socorro Gabriel) ou passeios em balneários, onde
são selecionados para esta atividade apenas aqueles que possuem “bom
comportamento”.
Diferentemente da maioria dos outros internos, ele não veio transferido de outra
instituição para idosos, residindo neste tipo de instituição apenas há dois anos e pode ser
considerado, do mesmo modo que Dona Olívia, um dos privilegiados da UAPI – Val-
de-Cans, uma vez que é dada a ele, mesmo que raras vezes e com o horário pré-
determinado, a possibilidade de fazer visitas a conhecidos e passeios pela cidade de
Belém, principalmente, no Ver-o- peso, de onde este informante guarda muitas
recordações.
Deste modo, a partir dos relatos sobre história de vida dos informantes, mas,
sobretudo, os de Seu Francisco, Seu Euclídes e Dona Olívia, podemos perceber o
caráter “seletivo” da memória social, já que a memória, na maioria das vezes, é ativada
e possui uma interligação com os fatos e acontecimentos que, de alguma forma foram
vivenciados e/ ou marcaram e possuíram uma profunda relação com o indivíduo e com
o grupo ao qual ele pertence (Cf. Bosi, 1995; Halbwahcs, 1990; Nava, 1999; Pollak,
1989, 1992). Assim, a partir destas considerações e, concebendo o elemento seletivo
que constitui a memória, esta deve ser compreendida através de seu caráter “relacional”
com o esquecimento e não como fenômenos distintos e antagônicos, mas
complementares.
Seu Isidoro do Carmo
Seu Isidoro do Carmo é um negro paraense de 78 anos, nascido em Belém. Este
interlocutor é cego e já reside neste tipo de instituição há aproximadamente quatorze
anos, possuindo tal deficiência desde dois anos antes de entrar nesta última “casa”, ou
seja, há dezesseis anos. Segundo ele, grande parte dos seus familiares já faleceu, seus
53
54
pais morreram quando ele possuía apenas oito anos de idade, o que fez com que ele
tivesse que se criar na casa de conhecidos da sua família e trabalhar desde cedo no
ofício de motorista de caminhão, de ônibus e chofer de táxi, a sua preferida.
Atualmente, os únicos parentes com quem Seu Isidoro do Carmo mantém contato,
mesmo que de forma esporádica, são seus dois filhos que moram um no Estado de
Pernambuco e o outro na Bahia e, segundo este informante, ligam quando podem.
No decorrer do diálogo, este interno se recordou do bairro onde morou em um
momento de sua vida, o bairro de Canudos, mais precisamente na Rua Nina Ribeiro
próximo a Rua Roso Danin. Antes de ser transferido para a UAPI – Socorro Gabriel,
Seu Isidoro residia no antigo Dom Macedo Costa; como já foi mencionado antes, esta
instituição já não possui esta característica (de asilo), então este interno foi transferido
para outra denominada CEAF Tucunduba, localizada próximo ao final da Avenida 1° de
Dezembro, para apenas no início do ano de 2002 ser transferido para a “casa”. Ao se
referir a constante troca de uma instituição para outra Seu Isidoro diz “a gente vem
rolando”, e ao ser indagado sobre as condições que a atual instituição lhe oferece e se
gosta dela, ele responde: “tem que gostar, não tou pagando nada! (...) se não gostar,
morre e vai embora”.
Este interlocutor, diferentemente de Seu Abílio, que também reside na mesma
instituição, UAPI – Socorro Gabriel, não é muito bem visto pelos funcionários que
trabalham nesta Unidade, pois é considerado por estes como “encrenqueiro”,
“reclamão” (segundo alguns funcionários, Seu Isidoro gosta de chamar muitos
palavrões) e em algumas situações, até mesmo, violento. A antipatia da equipe técnica
com este interno foi percebida por mim quando estes dirigentes souberam por
intermédio de outros funcionários que no desenrolar da pesquisa utilizei o gravador para
registrar a entrevista com este informante, foi então, que os dirigentes me solicitaram a
transcrição da entrevista realizada com ele e, a partir daí com todos os outros, só pude
realizá-las mediante fornecimento da cópia de cada entrevista, sendo assim, instituída
esta regra para realização das entrevistas nesta instituição, como mencionei no primeiro
capítulo.
=
Zulmira (muito escura)
Graciliano (pretinho mesmo)
=
Benedita (mais clara)
=
João (muito escuro)
Antônio (bem escuro)
Jovelina (mulata)
Pedro (mais claro)
= =
S/f. (sem filhos) João Antônio (bem escuro)
Joaquim (mais claro)
Dona Olívia (muito escura)
(branca) (branco) (branca)
Gregório (branco)
Maria (branca)
=Dona Olívia
55
56
=
José (branco)
Celina (branca)
Abraão (branco)
=
=
Nair (mais morena)
Maria (morena)
Abraão (moreno)
José (mais moreno)
Raimundo (moreno)
Dona Nair (branca)
Alcebíades (branco)
Carmem (morena)
Raquel (mais morena)
Dona Nair
57
=
José (branco)
Maria (branca)
=
João (branco)
Regina (morena escura)
João (mais moreno)
Francisca (mais clara)
Fátima (morena escura)
Maria (mais clara)
Alcides (branco)
=
(moreno escuro) (mais morena)
Seu Francisco (mais moreno)
Seu Francisco
2 – As interlocutoras da Associação Santa Luiza de Marillac ou Quem são as
mulheres que querem ouvir sua voz no gravador?
Este tópico tem por finalidade abordar sobre o perfil e história pessoal de quatro
mulheres idosas que freqüentam a Associação Santa Luiza de Marillac: Dona Maria
Filomena, Dona Raimunda Carvalho, Dona Maria Auxiliadora e Dona Ana Silva
Gonçalves. Como no tópico anterior, neste também, consta os esquemas de cor/ raça e
parentesco de duas das quatro interlocutoras.
Dona Maria Filomena
Dona Maria Filomena ou simplesmente Dona “Filó”, como é chamada por
algumas companheiras na Associação, foi a primeira interlocutora a estabelecer contato
com o pesquisador neste locus de pesquisa. Ela é uma negra de 85 anos de idade e
nasceu na cidade de Chaves na ilha do Marajó. No que se refere as características
físicas, Dona Maria Filomena é magra e baixa, possui o cabelo crespo bastante
esbranquiçado, o que, no primeiro caso, e de acordo com as categorias encontradas na
pesquisa, se chamaria de “bem chegado” e, do mesmo modo, a cor da sua pele poderia
ser classificada como “muito escura”. Segundo seu relato, ela morou grande parte da
sua vida na cidade de Chaves com sua mãe e duas irmãs, sendo que seu pai morreu
quando ela tinha apenas seis meses de idade. Quando residia em Chaves, Dona “Filó”
trabalhava com sua mãe e irmãs no roçado e na mata; já em Belém, trabalhou muitos
anos como lavadeira de roupa e como empregada doméstica em “casa de família”.
Atualmente, trabalha só na sua casa como costureira e cuida dos afazeres do lar.
Dona Maria Filomena e sua irmã Raimunda Carvalho de 92 anos vieram morar
em Belém após a morte da mãe, mas ela não se lembra exatamente há quantos anos
reside aqui, acreditando que tinha 30 ou 40 anos quando veio para cá. Desde que vieram
para esta cidade, ela e sua irmã moram em casas próximas, na mesma rua do bairro do
Jurunas e ajudam-se mutuamente no trabalho, nos afazeres, na vida cotidiana, enfim.
Dona Maria Filomena nunca se casou e teve três filhos homens, sendo que todos já
faleceram.
58
Assim, como já foi dito, Dona Maria Filomena mora no bairro do Jurunas e
freqüenta a Associação Santa Luiza de Marillac juntamente com sua irmã e outras
vizinhas, porém, também, não se lembra há quantos anos a freqüenta, o que também não
pude confirmar, pois não tive acesso a tais informações. Quanto a sua classificação no
grupo, ela se encontra na categoria que defini como “idosa (assistida)”.
“Filó” foi bastante receptiva para participar como informante da pesquisa (tanto
é que quis ser a primeira a ser entrevistada); sempre bem humorada e sorridente, antes
de começar a gravação, perguntava: “depois dá pra gente escutar a nossa voz”?, o que
inspirou o título deste tópico do trabalho.
Dona Raimunda Carvalho
Dona Raimunda Carvalho nasceu na Ilha do Marajó, mais precisamente na
cidade de Chaves, onde se criou com os pais: Quirino Carvalho dos Passos e Paula
Andrade Carvalho e duas irmãs, dentre elas Dona “Filó”, que sempre esteve ao seu lado
desde a saída de Chaves e chegada em Belém, no bairro do Jurunas, onde residiram
juntas durante muitos anos e, atualmente são vizinhas28.
Dona Raimunda Carvalho é uma negra de 92 anos que, quanto a cor também
pode ser classificada como “muito escura”. Esta interlocutora é bastante magra, possui
estatura mediana e seus cabelos são completamente esbranquiçados e crespos. Ela
chegou a se casar e teve cinco filhos, sendo três homens e duas mulheres, porém apenas
as mulheres encontram-se vivas. Dona Raimunda Carvalho trabalhou durante muito
tempo, desde sua chegada em Belém, como empregada doméstica em “casa de família”,
além de ajudar sua irmã, Dona Maria Filomena, com as lavagens de roupa que as duas
faziam para algumas patroas.
Das quatro informantes desta Associação, citadas neste trabalho, Dona
Raimunda Carvalho é a mais introspectiva, sorri pouco, não fala muito e não participa
das atividades de educação física proporcionada pela Associação Santa Luiza de
Marillac, talvez por causa da idade mais avançada e por possuir um pouco de
28 O que até pouco tempo atrás acontecia, pois Dona Raimunda Carvalho veio a falecer no ano de 2004, durante o mês de fevereiro.
59
dificuldade para se locomover. Ela mostra gostar mais das aulas de canto, momento em
que parece ser um pouco extrovertida e esboça até alguns sorrisos e risadas em certos
momentos.
Dona Raimunda Carvalho, no que se refere a Associação Santa Luiza de
Marillac, se diferencia das demais informantes que participaram desta pesquisa, pois
esta interlocutora faz parte do grupo de mulheres idosas que precisam da assistência
beneficente promovida pela associação, porém, devido sua atuação e empenho enquanto
voluntária no amparo à idosos carentes e necessitados, recebeu o título de “Luiza”.
Assim esta informante se enquadra na categoria que classifiquei como “Luizas-
Beneficiadas” (idosas assistidas que receberam o título de “Luizas”), já que, apesar de
possuir essa titulação, continua recebendo a assistência dada pela associação.
Dona Maria Auxiliadora
Dona Maria Auxiliadora é uma belemense de 64 anos de idade. Ela possui traços
físicos fortes, tanto de negro quanto de indígena, possuindo longos cabelos negros e
lisos, que, quando soltos, chegam ao fim das costas, sendo que a cor de sua pele é
bastante escura e seus lábios e nariz são protuberantes e, nos seus relatos ela se
classifica como morena. Dona Maria Auxiliadora, junto com mais quatro irmãs, perdeu
seus pais quando era muito criança e foram todas morar com seus respectivos padrinhos
e segundo esta interlocutora, depois de morar alguns anos com os padrinhos foram
“dadas”29 (entregues para serem criadas) a outras pessoas desconhecidas, na casa das
quais trabalharam como domésticas para poderem sobreviver. Quando adulta Dona
Maria Auxiliadora continuou trabalhando em casa de família até se casar. Ela chegou a
ter dez filhos, sendo cinco homens e cinco mulheres, mas, como a própria interlocutora
diz “as primeiras filhas não foi de casamento”. Atualmente, dois filhos seus, um homem
e uma mulher, já faleceram. Depois que se casou, Dona Maria Auxiliadora trabalhou
durante 20 anos como gari na limpeza pública municipal até se aposentar.
29 O fenômeno da criação de crianças longe dos seus genitores, seja por parentes como, avós, padrinhos, tios, ou, até mesmo, por pessoas desconhecidas, por um determinado período de tempo, podendo ser mais curto ou mais prolongado a depender de uma confluência de fatores, dentre eles a condição sócio-econômica da família, vem sendo referido nas Ciências Sociais como “circulação de crianças” (cf. Fonseca, 1995; Motta-Maués, 2004; Sarti, 1996).
60
Dona Maria Auxiliadora é uma das mulheres que se deslocam de bairros
longínquos para participar dos encontros na Associação; ela mora no bairro das Águas
Lindas no município de Ananindeua, na grande Belém, porém é sempre uma das
primeiras a chegar às reuniões. Esta interlocutora freqüenta a Associação Santa Luiza de
Marillac há dois anos, e assim como Dona “Filó”, ela se encontra na categoria que
denominei de idosa (assistida). Das quatro interlocutoras com quem estabeleci contato
nesta Associação, esta informante parece ser a mais simpática e extrovertida
participante da pesquisa. Com muito bom humor e gargalhadas ela tenta sempre ser
prestativa e colaboradora com o pesquisador tanto no momento de efetivação do estudo
propriamente dito (entrevistas e conversas formais) como em momentos de bate-papo e
conversas informais. Do mesmo modo que Dona “Filó”, Dona Maria Auxiliadora fez
questão de escutar sua voz no gravador ao término da entrevista.
Dona Ana Silva Gonçalves
Dona Ana Gonçalves é uma mulher branca, de 68 anos de idade que nasceu e
morou grande parte da sua vida no município de Soure, na ilha do Marajó, no interior
do Estado do Pará. Quanto as suas características físicas, ela é baixa e, o que poderia se
considerar, um pouco “gordinha”, possui cabelo crespo e grisalho. Esta interlocutora
trabalhou muito tempo com sua mãe, Alzira Alves da Silva e cinco irmãos na roça,
enquanto seu pai, Raimundo Leão da Silva, trabalhava como embarcadiço num barco
conhecido na região como “Cláudio Monarca”. Depois da morte de seus pais, Dona Ana
Gonçalves continuou morando em Soure, vindo a residir há apenas alguns anos em
Icoaraci, onde seu filho conseguiu se empregar. Esta informante nunca residiu na cidade
de Belém, vindo à cidade de maneira esporádica e, principalmente, nos dias que
freqüenta a Associação Santa Luiza de Marillac.
Deste modo, esta interlocutora não possui muitas lembranças sobre a cidade de
Belém, ao contrário do que ocorre com sua cidade natal, de onde surgem várias
recordações familiares, das brincadeiras de infância, do trabalho na roça com sua mãe e
irmão, além das festas e namoros na juventude.
Dona Ana é viúva e seu marido faleceu há cerca de dez anos, ainda na cidade de
Soure, antes dela vir para Icoaraci com o filho. Ela teve dois filhos, um homem e uma
61
62
mulher, porém nenhum é fruto do casamento com seu marido, tendo nascido antes desta
união. Dona Ana trabalhou muitos anos em Soure como lavadeira de roupa, além de
outros serviços que eram realizados em casa como varrer, capinar terreiro e cuidar de
outros afazeres domésticos. Do mesmo modo que Dona “Filó” e Dona Maria
Auxiliadora, Dona Ana Silva Gonçalves também se enquadra na categoria de idosa
(assistida).
=
Gerência (morena)
=
Quirino (bem moreno)
Paula (bem escura)
Joana (bem escurona mesmo)
João (bem escuro)
Dona Maria Filomena
=
Raimunda Carvalho (muito escura)
Joaquina (morena escura)
Dona Maria Filomena (muito escura)
63
Dona Ana Silva Gonçalves
=
Francisco (moreno claro)
Raimundo (moreno claro)
Alzira (clara)
=
=
Eva (mais clara)
Dona Ana (branca)
=
Jaci (morena clara)
Jorge (branco)
S/f. (sem filhos)
Célio (moreno)
José (moreno claro)
(mais escuro)
64
Idosos
Cidade de
origem
Cor da Pele
Cabelo
Residência e tempo de moradia em asilos
Residência em outra
instituição asilar
Freqüenta algum Grupo de
Terceira Idade
Recebe Cesta Básica
mensalmente do grupo
Relatos sobre
histórias de vida e imagens
construídas sobre o negro
Seu Abílio Acará (PA) Negro, muito
escuro Calvo, cabelos bem
crespos e esbranquiçados Socorro Gabriel. Reside
há 6 anos em asilos Sim, outras
duas Não _____ Sim
Dona Olívia Belém (PA)
Negra, muito escura
Curto, bastante crespo e esbranquiçado
Val-de-Cans. Reside há 7 anos em asilos
Sim Não _____ Sim
Dona Nair Interior de Goiás
Branca Lisos e pretos na altura dos ombros
Val-de-Cans. Reside há 6 anos em asilos
Sim Não _____ Sim
Seu Euclides
Belém (PA)
Negro, mais claro
Pouco calvo e pouco
crespo e esbranquiçado
Val-de-Cans. Reside há
3 anos em asilos
Sim, outras
duas
Não
_____
Sim
Seu Francisco
Interior do
Acre
Negro, mais claro
Calvo, pouco crespo e
esbranquiçado
Val-de-Cans. Reside há
2 anos em asilos
Não
Não
_____
Sim
Seu Isidoro do
Carmo
Belém (PA)
Negro, mais claro
Calvo, bem crespo e
totalmente esbranquiçado
Socorro Gabriel. Reside
há 14 anos em asilos.
Sim, outras
duas
Não
_____
Sim
Dona Maria
Filomena
Chaves (PA)
Negra, muito
escura
Curto, bem crespo e
esbranquiçado
Nunca residiu em asilo
______
Associação Santa Luiza de Marillac
Sim
Sim
Dona Raimunda
Carvalho
Chaves (PA)
Negra, muito
escura Curto, bem crespo e
totalmente esbranquiçado Nunca residiu em asilo ______
Associação Santa Luiza de Marillac
Sim
Sim
Dona Maria Auxiliadora
Belém (PA)
Traços fortes de negro e indígena,
morena
Lisos e pretos, longos ao
fim das costas
Nunca residiu em asilo
______
Associação Santa Luiza de Marillac
Sim
Sim
Dona Ana Silva
Gonçalves
Soure (PA)
Branca
Crespos e grisalhos na
altura dos ombros
Nunca residiu em asilo
______
Associação Santa Luiza de Marillac
Sim
Sim
65
3 – Quadro sobre as características apresentadas pelos interlocutores
4 – Algumas considerações sobre cor/ raça a partir do parentesco
A partir do relato destes informantes e da elaboração de cinco esquemas de cor/ raça
e parentesco, pude identificar, num primeiro momento, 21 (vinte e uma) categorias ou
gradações de cor: branco, branca, clara, mais claro, mais clara, mulata, moreno, morena,
moreno claro, morena clara, mais moreno, mais morena, bem moreno, moreno escuro,
morena escura, mais escuro, bem escuro, muito escuro, muito escura, pretinho mesmo e
bem escurona mesmo.
Devo dizer que as categorias usadas pelos cinco interlocutores representam apenas
uma pequena amostra das inúmeras terminologias utilizadas pelos brasileiros na
identificação de sua cor/ raça30, o que aponta para uma disseminação abrangente que
norteia a sociedade brasileira: o “mito de origem” da colonização pelo português, em que,
supostamente, teria se estabelecido no país uma relação harmoniosa entre brancos, negros e
índios de que resultou uma sociedade miscigenada onde não existe preconceito e
discriminação racial, uma espécie de “paraíso racial” onde as três “raças” que conformam o
país interagem de forma aberta e igualitária. Assim, no Brasil se construiu o imaginário de
uma sociedade onde predominaria a democracia racial (cf. Freyre, 1933/1984; Ventura,
2000).
Porém, este “mito de origem”, apontado por Roberto DaMatta (2000) como a
“fábula das três raças”, nos ajuda a pensar a forma peculiar de como são construídas as
relações raciais no país, ou como o próprio autor se refere o “racimo à brasileira”.
Entretanto, a concepção de uma suposta democracia racial existente no Brasil, apesar de
amplamente discutida e refutada por sociólogos e antropólogos (cf. DaMatta, 2000;
Fernandes, 1978; Guimarães, 1998, 2002; Hasenbalg, 1979, 1996; Hasenbalg & Silva,
1988, 1993; Sansone, 1996, Schawarcz, 2001) ainda permeia nossa sociedade, trazendo
como uma das suas conseqüências a dificuldade de discussão e enfrentamento efetivo da
30 Na pesquisa da PNAD realizada pelo IBGE em 1976, os brasileiros que foram entrevistados responderam apresentando 136 categorias de cor para se referir à sua classificação sobre cor/ raça.
66
questão racial31, assim como a dificuldade de classificação quanto a cor/ raça dos
brasileiros.
De acordo com estudiosos do nosso sistema de classificação racial, as categorias
que designam a cor/ raça dos brasileiros se apresentam, em sua grande maioria, sob forma
de gradações de cor que obedecem a lógica de um continuum que opera nesse sistema de
classificação, onde se privilegia terminologias como claro, mais claro, escuro, mais escuro
(como as que surgem nos relatos e esquema de parentesco dos interlocutores) em
detrimento de categorias polares como branco e negro, por exemplo (cf. Birman,1989;
Maggie, 1988, 1991, 1996; Sodré, 1999; Sheriff, 2001).
Segundo a antropóloga Yvonne Maggie (1988, 1996), a forma pela qual as pessoas
classificam outras pessoas e a si próprias no Brasil, tende a “encobrir” ou “escurecer” os
termos polares branco e negro, pois, com a utilização de uma variedade de gradações de
cor, estas categorias parecem, na maioria da vezes, como se estivessem camufladas no
discurso sobre raça e cor em nosso país. Maggie sustenta sua tese afirmando que branco e
negro seriam “termos indizíveis”, sendo, sempre que possível, evitado pelos brasileiros, o
que ela considera como conseqüência do ideal de branqueamento que ainda se faz presente
no imaginário da nossa sociedade.
As várias gradações de cor que compõem o nosso sistema de classificação racial são
interpretadas por Suely Kofes (1976) a partir de duas classificações: a) os termos
descritivos, que tem por finalidade apenas a descrição minuciosa de características físicas
dos indivíduos para se diferenciar uma pessoa de outra, como por exemplo, a cor da pele
mais clara ou morena; b) os termos categóricos, terminologias que possuem uma relevante
autonomia em relação as características físicas da pessoa a quem se quer fazer referência,
remetendo a uma classificação ou categorização racial.
31 O melhor exemplo sobre essa questão é o debate atual a respeito da implementação ou não da política de ação afirmativa que reserva cotas para negros nas universidades federais brasileiras. Para uma melhor discussão a respeito (cf. Carvalho & Segato, 2002; Heck, 2003; Maggie & Fry, 2003; Vogt, 2003).
67
Assim, para a antropóloga norte-americana Robin Sheriff (2001) as diversas
categorias raciais que se referem a cor/ raça dos brasileiros devem ser compreendidas na
mesma perspectiva apontada por Kofes (op. cit), denominada pela norte-americana como
discursos sobre raça, cor e racismo. Esses discursos podem ser classificados de três
maneiras: a) discurso de descrição, nestes discursos (como nos termos descritivos de Kofes)
o objetivo é apenas descrever as características físicas dos indivíduos; b) estilo pragmático
ou indicial de discurso, esta forma de discurso é uma maneira substantiva de se referir a
outra pessoa, onde se manipula o vocabulário sobre raça/ cor para escolher uma categoria
racial específica que, supostamente, representaria a “verdadeira cor” de uma determinada
pessoa; c) estilo racial de discurso, este discurso é construído a partir de categorias raciais,
não enfatizam a cor e nem a aparência, mas, categorias raciais bipolares (branco e preto ou
branco e negro) ou categorias raciais tripartites (branco, mulato e negro), pois ressaltam a
noção de raça.
Estas formas de interpretar as categorias utilizadas para a classificação de cor/ raça
serão familiarizadas aos leitores no decorrer deste trabalho, assim como, a discussão mais
ampla sobre o sistema de classificação racial brasileiro e suas implicações nas relações
raciais no país.
68
Capítulo IV – Ouvindo velhos negros e brancos: histórias de vida e interpretações
sobre raça e cor
Este capítulo tem por desígnio apresentar e interpretar os relatos particulares e
oriundos da memória social dos homens e mulheres residentes das UAPI(s) Val-de-Cans e
Socorro Gabriel, bem como das mulheres que freqüentam a Associação Santa Luiza de
Marillac. Primeiramente, abordo as diversas esferas sociais da vida dos dez interlocutores
que se dispuseram a participar da pesquisa em questão, em que pude obter relatos que
dizem respeito a família, cotidiano, trabalho, cidade, infância, namoro, festas, entre outros.
Em seguida, e como objetivo principal deste estudo, este capítulo pretende desenvolver a
temática da construção das imagens e interpretações criadas sobre o negro no final do
século XIX e início do século XX na cidade de Belém, para o que se apresentou de
fundamental importância a co-relação entre historia de vida e memória social dos
informantes, sendo que os relatos se encontram de forma agrupada com intuito de reunir
itens em comum destes indivíduos para analisá-los sistematicamente.
1 – Falando da vida: Lembranças sobre família, trabalho e cidade
Os relatos dos interlocutores sobre suas histórias de vida, na maioria das vezes,
referem-se a lembranças de seu lugar de origem, de família, lembranças dos pais, irmãos e
parentes mais próximos com quem possuíam algum tipo de vínculo afetivo e sentimento de
pertencimento ao grupo familiar. A princípio, como sabemos, a memória pode parecer um
elemento de caráter individual ligada a uma determinada pessoa, porém, se observarmos ao
longo das lembranças dos interlocutores apresentadas neste trabalho perceberemos que
estas sempre nos remetem a uma coletividade; isto se deve a relação destes indivíduos com
seus familiares e com os grupos com que eles se relacionam, de modo a confirmar a
memória como um fenômeno construído socialmente. Neste sentido, como veremos depois,
são lembranças compostas com e remetidas a um universo mais amplo, do qual elas
também são personagens. Isso nos remete ao que afirma Maurice Halbwachs, para quem:
“a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a
69
flutuações, transformações, mudanças constantes” (HALBWACHS Apud POLLAK,1992: 201).
Deste modo, no processo de construção social da memória coletiva, seguindo esta
observação, podemos perceber o caráter social da memória quando meus interlocutores se
referem, por exemplo, às classificações de cor mencionadas por eles, uma vez que estas
classificações fazem parte de um processo de construção social de categorias de cor no
Brasil que utilizamos, em nosso cotidiano, sem até nos darmos conta disso. Entretanto esta
questão será melhor discutida no decorrer deste capítulo.
No que se refere as lembranças familiares, devemos também lembrar que, de acordo
com Myriam Lins de Barros (1989), a família apresenta-se como o objeto das recordações
das pessoas e, ao mesmo tempo, o meio e o espaço em que as lembranças familiares podem
ser avivadas, daí porque o grupo familiar aparece, quase sempre, como referência
fundamental para a reconstrução do passado de uma pessoa. Neste sentido, sobre suas
famílias e a relação com seus familiares, as lembranças de Seu Abílio, Dona Ana Silva
Gonçalves e Dona Maria Filomena, respectivamente, enfatizam a estabilidade e harmonia
da convivência, valores certamente muito caros e a serem, orgulhosamente, salientados por
aqueles a quem o senso comum e a historiografia (esta até recentemente, como nos
mostram, especialmente, Slenes, 1999; Julião, 2000), reservavam apenas a carência:
“Minha mãe nasceu num lugar com o nome de Jacarequara, município do Acará, Cândida Ferrei... Rosa Ferreira da Silva, morreu com 95 anos, aqui no bairro do Juruna, na minha custa. (...) Minha mãe e meu pai eram tão ‘velho querer’ que eu nunca vi empurrar o outro, isso que é família, meu amigo! Isso que é família, nunca vi nem minha mãe com meu pai discutir, nunca, nunca, nunca não! (...) Uma criação da minha mãe e do meu pai que eu gostei. Apanhei uma vez da mamãe e uma vez do papai, só isso! Porque tem pai que bate em filho, e filho que quer bater em pai, de tudo, tá tudo errado! Meu pai foi, é um homem que eu queimava cartucho de carta de cigarro no bolso, com medo dele. Hoje em dia pai convida filho pra ir lá no bar: ‘umbora meu filho, vamos beber uma cerveja ali’. Vai ser triste dar confiança pra um filho. Eu só vim beber cachaça com quarenta e poucos anos de idade, que eu vim beber, eu apanhei, uma vez do papai, uma surra antes do almoço. (...) O papai com a mamãe num tantinho conversavam assim, num tantinho de conversa com pai e mãe, com um tantinho, mas eu não vivia dentro de casa eu só vivia na oficina, aprendendo ofício, eu nunca, eu parava em casa só dia de domingo mesmo (...) não era de conversar com pai e mãe, assim como a gente conversa, não tinha esse tempo, mas não tinha tempo mesmo” (Seu Abílio, 84 anos).
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“O nome do meu pai era Raimundo Leão da Silva, minha mãe era Alzira Alves da Silva; eu tenho uns irmãos, um que mora na praia lá do Pesqueiro, lá no Marajó e outra mora aqui no Telégrafo e eu lá no Icoaraci. (...) Irmãos eu tenho três ... Quer dizer antes. A mãe teve, éramos seis, quer dizer que o mais velho morreu, então tem quatro vivos... é quatro vivos! Dois irmãos e duas irmãs. Um tá agora lá em Icoara..., lá no Pesqueiro, outro pra banda daí, que eu não sei pra onde, da Bahia, ele trabalha embarcado e a outra mora aí no... no Telégrafo. Vou dizer, os meus avós parte de pai eu cheguei a conhecer só o meu avô, que era Chico, chamavam ‘Chico do povo’, agora a minha avó eu não cheguei a conhecer e nem a da minha mãe também. Eu só conheci a minha mãe e o meu pai só”. (Dona Ana Silva Gonçalves, 68 anos).
“O nome do meu pai era Quirino Carvalho dos Passos e da minha mãe era Paula Andrade Carvalho. Eu não conheci meu pai, quando ele morreu eu estava com seis meses de nascida, não conheci ele não. (...) E irmão, nós éramos três de matrimônio, que era eu, ela ali (refere-se a irmã que também freqüenta a Associação)e uma que morreu. (...) E a mãe da minha mãe se chamava Joana Batista dos Santos, agora pai eu não sei, né. Eu não conheço o pai dela e nem de quem é. Agora e a ... e a ... ela era minha avó por parte de mãe, agora da parte do meu pai chamava-se Gerência Carvalho dos Passos, era a mãe dele, do meu pai. Agora os irmãos dele eu não sei, ele tinha muito irmão, mas eu não conheci. Assim, também da parte da minha ma..., da minha avó era muita gente, ela tinha muitas irmãs, irmãos, mas assim, eu não conheci todas as irmãs dela. Nossa família era muita grande ...” (Dona Maria Filomena, 85 anos).
Os relatos sobre histórias de vida obtidos com esses interlocutores também se
remetem ao mundo do trabalho, sendo que no caso dos homens, as lembranças sobre o
trabalho surgem com o orgulho da profissão que foi exercida:
“Então, quando completei 22 anos foi quando meus dois pais faleceram. Eu tive que viajar e fui conhecer Brasília, tavam construindo Brasília, aí eu fui trabalhar com a minha profissão de garçom (...) então depois que construiu Brasília e tal, ai eu tive que sair de Brasília, fui pra São Paulo. Em São Paulo eu trabalhei no Táxi Dancing, ali onde é o..., onde é a..., em frente a Praça da Bandeira na Avenida São João. (...) Ai voltei. Quando eu voltei fiquei aqui em Belém, aí fui trabalhar no Grande Hotel, em baixo em um bar com o nome de Amazon Bar, no tempo da guerra. Eu trabalhei lá no Amazon Bar como garçom também, a minha profissão” (Seu Euclides, 80 anos).
“Eu sou torneiro modelador. Depois aprendi carpintaria, mas me esqueci mode... mode...(...) meu pai morreu com 88, eu tava em Conceição do Araguaia como mestre de obra numa companhia federal, SESP. (...) Eu tive que andar no mundo nessa companhia que eu trabalhei, entrei em 40, primeiro lugar na estra... que começou na estrada nova, da marinha pra cá. (...) Vou lhe dizer uma coisa, o resto do bagulho tudo eu faço, viu. O senhor sabe aquele caracol grande? Faço um bagulho daquele, tudo isso eu faço, de cama, de mesa, de cadeira, tudo, tudo isso!” (Seu Abílio, 84 anos).
Em relação às mulheres as lembranças sobre o trabalho, em sua grande maioria, não
aparecem da mesma forma como no relato dos homens, talvez, pelo fato de todas com
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quem estabeleci contato terem trabalhado como domésticas em casa de família. Desta
forma, surgem algumas características recorrentes mostrando que padrões como: o trabalho
na roça, para as mulheres que moravam no interior na sua infância e juventude e,
principalmente, o trabalho como doméstica, na maioria das vezes, na função de lavagem de
roupa, são um dos poucos espaços no mercado de trabalho que estiveram disponíveis para
essas mulheres, como pode ser visto abaixo:
“É... eu, eu sempre fiquei em casa de patroa...trabalhava pra fora, fazia cumida, lavava, passava, essas coisa né!” (Dona Nair, 72 anos)
“Quando a mamãe era viva eu trabalhava na roça, depois que ela morreu não trabalhei mais, não trabalhei mais. Meu trabalho era em casa mesmo, capinar terreiro, varrer, era isso que eu fazia. (...) Trabalhava em casa, né. Em casa que eu trabalhava, quer dizer, quando eu cheguei em Soure, o meu marido, ele era pescador, o meu marido era pescador. Aí eu fui trabalhar na casa da vizinha, da dona Maria, né, negócio de lavar roupa, né, fui trabalhar lá. Também foi só que eu trabalhava, mas assim empregada não, assim empregada pela carteira não” (Dona Ana Silva Gonçalves, 68 anos).
“De verão a gente trabalhava no campo, quando era de inverno a gente trabalhava no mato. Tinha uma fruta que a gente juntava pra vender, chamava é ‘muri-muri’ (...) quando era de verão a gente ia pro campo, era a gente que cortava o .... tinha, agora já não tem mais... Era ‘piri’ que chamava o nome, um mato que crescia assim, cumprida, que a gente cortava pra secar aquilo, secavam e daí a gente fazia esteira pra vender. Neste tempo dava um tostão uma esteira (...) Eu e ela (refere-se a irmã) trabalhamo muito, tanto lá como aqui em Belém. Aqui em Belém, quando eu cheguei aqui em Belém, eu me empreguei em lavar roupa. Lavava roupa. Ia buscar roupa nesse edifício aí, aqui na 28 tem aquele edifício Fátima, eu ia buscar roupa lá, segundo andar, eu subia, ia buscar roupa lá em cima. Dia de semana vinha trazer, tinha tempo que a gente tinha seis, sete lavagem de roupa em casa. Depois comecei a trabalhar já em casa de família viu, eu trabalhei em casa de família. Trabalhei oito ano numa casa ali na... na Ó de Almeida (...) daí eu tava, só lá eu trabalhei oito ano, ainda acha.... ainda não saia de casa, era sábado, era domingo, ainda trabalhava em casa. Tudo isso eu fazia”. (Dona Maria Filomena, 85 anos).
Pode-se dizer que o trabalho de doméstica desenvolvido na casa dos patrões e de
lavadeira de roupa, que elas faziam em suas próprias casas, é um padrão que se repete para
mulheres negras desde a escravidão, e tende a reproduzir-se tanto quanto não se
desenvolvam melhorias na condição sócio-econômica de vida da família negra, e das
famílias pobres de modo geral. O trabalho de doméstica e de lavadeira de roupa exercido
por essas mulheres durante grande parte de suas vidas deve ser compreendido como uma
estratégia de sobrevivência das famílias de baixa renda, sobretudo, as famílias negras.
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De acordo com historiadores paraenses, além dos ofícios de doméstica e na lavagem
de roupa exercido pelas mulheres negras escravas e/ou libertas, os registros de jornais
belemenses que datam aproximadamente do final do século XIX e início do século XX
mostram-nas vendendo nas ruas seus produtos: doces, mingau, tacacá, açaí, “cheiro” (Cf.
Conceição, 1995; Fontes, 1997; Pantoja, 2001; Salles, 1988), o que também pode ser
comprovado por uma de minhas informantes quando relata sobre o mercado do Ver-o-Peso,
em um período que corresponde as primeiras décadas do século XX; segundo ela:
“Era assim... uns morenos e uns brancos, assim mo..., mas que vendia assim era dentro do mercado, fazia venda assim num banco, naqueles banco de mercado que vendia... vendia mingau, vendiam fruta, vendia tacacá. Era tudo lá no mercado, depois foi que foram criando a feira. (...) Mas, tinha muitas senhoras que vendia tacacá, senhoras idosas que vendiam tacacá, caruru, vatapá. (...) A roupa delas era assim negócio de fazendas baratinhas, né! Aventalzinho na frente pra fazer aquela venda” (Dona Raimunda Carvalho, 92 anos).
Outro padrão que se repete nas famílias pobres, sobretudo, nas famílias negras a que
me refiro é a dificuldade de criação das crianças na infância, depois da morte dos pais. A
criação das crianças é realizada, na maioria dos casos ou muitas vezes, por padrinhos ou
parentes mais próximos quando estes possuem condição para isso, caso contrário elas
podem ser criadas, até mesmo, por desconhecidos, porém isto só ocorre em último caso,
como pode ser observado a partir dos seguintes relatos:
“O nome do meu pai era Raimundo Jorge do Nascimento e da minha mãe era Maria Barbosa. Depois que meus pais faleceram, aí fui pra casa da madrinha, madrinha de batismo né, me criou junto com o filho dela (...) meu padrinho e ela minha madrinha, aí fui me criando assim, sabe?, um dia bem, um dia mal, um dia bem, um dia mal. Eles eram muito bom comigo, mas depois eu não tive ... eles não tiveram mais condição de me criar, né, me botaram na casa de outros, né, sabe como é casa dos outros, né, tem vez que eu ia dormir duas horas, três horas da manhã, porque não tinha empregada e a empregada lá era eu, pra tudo. A hora que o patrão chegava ele me chamava pra botar a comida pra ele, aí eu tinha que me acordar, nem que eu não quisesse. Era assim ! Me diverti pouco, fui muito pouco pro colégio, não tinha tempo de ir pra aula, porque eles não deixavam ir. Porque o braço direito era eu, né, aí eu queria ir pra aula, mas não podia ... Até que enfim eu saí de lá e fui pra uma casa de uma professora, foi lá que eu aprendi a assinar meu nome e ler alguma coisa, porque ler, eu não sei ler assim corretamente, mas eu leio alguma coisa”. (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos).
“Nossa família era muito grande e quando meu pai morreu, eu fiquei pequena, eu fiquei pequenininha, com seis mês de nascida era na época assim que tinha.... e meu irmão estava com três anos, eu tinha seis mês só de vida. Brincando (de repente)
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minha mãe ficou viúva, tenho, ficou com ela, ela ficou em poder da mãe dela, quem nos criou foi ela e o filho dela que era João (tio), o nome dele era João. Depois nós tivemos um ‘bocado’ junto, depois que nos fumos crescendo ficamos filhas-moças, rapaz, foi quando a minha mãe mandou fazer uma casa pra nós separada, aí se separemos, foi o tempo que o tio que nos criou casou também, e ela não quis ficar com a cunhada, né, na casa morando só numa família, né. Cada qual se separou”. (Dona Maria Filomena, 85 anos).
De acordo com a antropóloga Cláudia Fonseca (1995) a criação de crianças em lares
diferentes, ora na casa dos pais, ora na casa dos avós e padrinhos, o que a autora denominou
de “circulação de crianças”, ou seja, “o grande número de crianças que passa parte da
infância ou juventude em casa que não a de seus genitores” (1995: 14) é uma pratica
tradicional de muitas gerações anteriores das famílias de baixas condições financeiras ou de
grupos populares, como a autora classifica.
Para Cláudia Fonseca (op. cit), na maioria das vezes, as famílias que apresentam
esta característica de circulação de crianças são rotuladas e compreendidas como desviantes
do modelo da “família tradicional”, isto é, são vistas como famílias “patológicas” e
“desorganizadas” e de péssima influência para as virtudes e valores da sociedade. Desta
forma, Fonseca pretende desconstruir a concepção que vigora sob a ótica da ideologia
dominante de desorganização da família pobre pelo fato de crianças circularem entre a casa
de avós, parentes e até mesmo desconhecidos, a partir de uma outra noção de família, que
tem nesta prática e em seus contornos simbólicos um “processo social” e não um “problema
social”. Assim, para autora, a prática de circulação de crianças deve ser compreendida
como uma estrutura básica da organização de parentesco das famílias de baixas condições
financeiras, sendo um arranjo familiar, ou como a autora denomina, uma estratégia de
sobrevivência dos grupos populares que encontram nesta forma alternativa de organização
familiar uma maneira de criação das crianças. E não de abandono delas como muitas vezes
se interpreta.
Em trabalho que também discute o fenômeno de “circulação de crianças” Maria
Angelica Motta-Maués (2004) relativiza ainda mais a questão da circulação representar a
desorganização de famílias pobres como quer a ideologia dominante, já que, segundo esta
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autora o “vaivém” de crianças é uma alternativa de organização familiar não só dos grupos
populares, mas, muitas vezes, também das camadas médias urbanas, embora assumindo
entre elas outros contornos e diferentes e mais dinâmicos fluxos. Desta forma, Motta-
Maués aponta que o fenômeno de “circulação de crianças” deve ser entendido de forma
mais ampla e dinâmica para compreender temporadas e períodos mais curtos e em
diferentes espaços, e não como algo mais permanente com maior duração na vida das
crianças, como até então se pensava a questão.
Então, para Motta-Maués este “vaivém” de crianças ora na casa dos pais, ora na
casa dos avós, outros familiares ou outros espaços, não deve ser interpretado como uma
prática de criação dos filhos ou um arranjo familiar realizado apenas pelas famílias de
baixas condições financeiras, mas também pelas camadas médias urbanas, mesmo que esta
prática vá de encontro à visão de mundo, ao ethos e ao estilo de vida desta camada social.
Do mesmo modo como a família e o trabalho, a cidade, a casa e até mesmo as
brincadeiras de infância e o namoro também estão bastante presentes nos relatos dos meus
informantes, que lembram, por exemplo, da casa comprada e construída por eles próprios,
ou da casa em que passaram a maior parte de sua infância, onde ocorriam as brincadeiras
com seus irmãos e amigos daquela época.
A cidade, na maioria das vezes, é referida (e reconstruída) a partir da relação de
vínculo do sujeito com a mesma, ou seja, a partir das atividades de trabalho, de lazer, dentre
as mais variadas que foram desenvolvidas no cotidiano desses indivíduos e que remetem a
um local, que pode ser uma rua ou um bairro, por exemplo, que possui uma relação com os
interlocutores que se referem a estes espaços da cidade, sendo estes espaços, por sua vez,
mencionados através do processo de urbanização e dos constantes processos de mudança
pela qual passou Belém no decorrer das décadas, como podemos perceber através dos seus
relatos:
“Então quando terminava a função (de garçom) lá as quatro horas da manhã nós atravessávamos pro Bar do Parque, já existia o Bar do Parque, atravessávamos e vínhamos é pra boemia, ali freqüentavam só os boêmios, ficava ali ate de manhã. Um
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cantava outro declamava e assim... era toda noite depois das quatro horas da manhã, toda madrugada a gente ia pra lá pro Bar do Parque. É a minha vida foi essa. Eu aqui em Belém não existia ainda, ih! Aqui em Belém, naquele tempo não tinha, no tempo do bonde né, no tempo do trem que saia aqui de Belém pra ir, pra ir pra Bragança, onde é agora o Ico.... Icoaraci, antigamente era o Pinheiro né... era Pinheiro, pegava o trem pra ir pra Pinheiro, que hoje em dia é Icoaraci32. Então, aqui em Belém ali na Cidade Velha, a Cidade Velha, não existia Cidade Nova nesse tempo, era Cidade Velha, e aí a gente também durante o dia né, ficava por ali pela Praça da Sé, ali de frente hoje em dia é o....me esqueci o nome... tem aquele canhão ... o Forte do Castelo, ficava ali em frente da praça, ali durante o dia conversando com os amigos... (...) a gente podia ficar a vontade, pessoas, moradores aqui de Belém, a noite sempre às oito, às nove horas da noite ficava nas porta conversando com o vizinho, sentado nas porta da sua casa e tal, hoje em dia não se pode fazer mais isso devido o bandido, a grandiosidade de malandro...” (Seu Euclides, 80 anos).
“Então, eu trabalhava aqui na ca... nessa como é, aonde tem essa vala grande? nesse canal grande que é... como é que chama esse canal grande? (...) Doca de Sousa Franco. Antigamente aqui não era Doca de Sousa Franco era Igarapé das Armas, não entrava canoa, não entrava nada! (...) Sabe aonde era aquele bairro São Jorge, agora é Matinha.... (atual bairro de Fátima) eu, os meus irmãos tudo se formou lá, tudo se formou lá na Matinha (...) Aí eu comprei aqui uma casa na 22 de Junho (atual Alcindo Cacela), de primeiro era 22 de Junho. Não tinha água, um carro pipa vinha deixar água nas casas, não tinha água não. Comprei essa casa de açaizeiro (...) O nome dessa rua mudou, antigamente ela era na Condor, isso aqui mudou tudo mesmo, não vê a Bernardo Sayão, Bernardo Sayão não, era Conceição, agora é Bernardo Sayão. Aqui é Padre Eutíquio, não era, Padre Eutiquio era como, era São Mateus, passou pra Padre Eutíquio. Tudo isso teve, vai mudando as ruas. Tamoios era trilho e mudou Rua do Trilho, agora já é Tamoios, mudou muito. (...) Olha eu acompanhava o Círio, não largava, tempo de menino, rapazinho eu não largava, acompanhava a Santa até lá no, no arraial” (Seu Abílio, 84 anos).
“Quando nós trabalhava... quando trabalhava no Ver- o- Peso o ônibus que tinha, quando eu cheguei aqui era bonde não tinha ônibus, depois é que foi que foi nascendo bonde... ônibus. O bonde foi se acabando, se acabando até que acabou o bonde ficou só ônibus. Agora não, já tem muito ônibus, ta tudo mais fácil, tudo já tem carro. O ônibus nós vamos nesse daqui, paramos lá perto de casa, vem de lá nele. Pra todo lado agora tem ônibus, antes não tinha” (Dona Raimunda Carvalho, 92 anos) .
“Antes a cidade era só ponte. Quando a gente andava na Humaitá (bairro) era só ponte, escorregava da ponte tava no igapó. Agora tá tudo bonito, mas no meu tempo a gente ia buscar roupa, tinha que andar devagar por cima do açaizeiro33 porque se escapulisse do açaizeiro estava em cima, tava em cima da lama. As vezes eu caia da
32 No tempo ao qual Seu Euclides se refere, o distrito de Icoaraci era denominado Pinheiro e o percurso era realizado de trem, como ele próprio diz. O bairro da Cidade Velha é o bairro onde se formou o primeiro núcleo em Belém, sendo considerado o mais antigo e um dos mais tradicionais bairros da cidade. O bairro da Cidade Nova é mais recente (surgindo, aproximadamente, na década de 80), pertencendo ao município de Ananindeua, localizado na grande-Belém. 33 No tempo ao qual Dona Maria Auxiliadora se refere, era comum nos bairros mais periféricos da cidade de Belém andar sobre os troncos da palmeira (árvore em que cresce o fruto do açaí e se retira o palmito) e sobre os “igapós” (terrenos muito alagados), aterrados com os caroços do açaí (depois de batidos). Ainda hoje, bairros como, por exemplo, Terra-Firme e Guamá apresentam igapós, abaixo das pontes, aterrados com caroço de açaí.
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ponte com uma trouxa de roupa tudo branca. A maré, tava chovendo, aí eu fui querer passar de um pau pro outro, o meu pé escapoliu aí eu tchum! O garapé chio d’água, a trouxa foi embora! Agora não, ta tudo bonito, asfaltado, porque no nosso tempo quando a gente era moleque, hum!” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos)
Sobre a casa onde passaram a maior parte de sua infância elas lembram:
“Minha casa, a primeira casa que eu fiz aqui no... em frente ao Lauro Sodré na rua Vigília. A primeira casa foi de buruçú, sabe o que é buruçú? È uma palha, é tipo essa palha do coqueiro, palha grande! Hoje em dia ainda tem, ainda, mas casa agora ta difícil, tudo agora é só Brasilit, faz de telha de barro, mas as minhas toda vida foi telha de barro, eu nunca gostei de brasilit, muito quente! Hoje em dia sempre faz telha de barro, que é mais barato! Na rua Nova comprei três casa lá, duas, duas de madeira e uma de alvenaria, tinha cinco compartimentos, toda forrada, lajotada, toda murada, gradeado na frente. Ela era por dentro, era dessa cor assim, por dentro era dessa cor assim, meio, meia cinza né, toda ela por dentro, por fora ela era branca” (Seu Francisco, 84 anos).
“Era tudo de barro, casa de palha, a nossa casa da Humaitá era toda de barro coberta de palha. Mas não chovia, não respingava nadinha, podia dar a chuva que desse. Agora a gente compra telha, a chuva vem lá na casa de uma senhora a gente tem que ficar subindo nos bancos, molha tudinho. Na casa de palha nem respingava. Ela era pintada, toda rebocada de barro, todinha. Você olhava assim você dizia que ela era de alvenaria, mas não era não, era de barro, papai mandou fazer. Era grande... Nosso quintal era um verde que deu uma vila de casa, era, era doze de frente por oitenta de fundo, a nossa casa da Humaitá, quando eu passo lá me dá saudade, eu choro, não gosto de passar! Puxa, era tão bonito, era cheio de fruta, papai plantava muito... depois que ele vendeu o dono derrubou tudinho pra fazer, pra fazer vila de casa” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos).
As brincadeiras de infância: jogo de bola, para os meninos e, roda, para as meninas,
são algumas dentre várias brincadeira praticadas quando criança, além dos namoros e festas
em uma fase mais adulta, que também são bastante lembrados pelos interlocutores,
sobretudo mulheres, como pode ser observado.
Sobre as brincadeiras infantis eles recordam:
“Eu ia brincar bola, jogar, lá apanhava um sol danado. círio eu ia, festa do Mosqueiro eu ia, Bragança” (Seu Isidoro do Carmo, 74 anos). “Era brincadeira de roda, ‘fazendo poço’. Era brincadeira de roda, moinho de barro, era mexendo com terra, no meu tempo era moinho de barro. A gente brincava papai deixava, a gente ia, a gente ia na rua... não tinha, não tinha perigo no tempo em que a gente era criança, era, era... a rua era deserta não tinha esse negócio que tem agora não, na rua a gente ficava até de manhã brincando era muito bom! Brincava de pira, a gente gostava de brincar de pira, pira-coca, pira-se-esconde. Hoje em dia você não
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pode sair até ali no canto que já estão lhe agarrando, era assim” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos)
“É, a gente brincava, a gente brincava em casa, a nossa brincadeira, a gente quase não brincava. Ah! Só assim criancinha desse tamanho assim. A gente brincava sozinho de ‘besteira’, rodava, brincadeira de roda, de criança mesmo. (...) Nós é que inventava mesmo brincadeira. Eu é que era mais brincalhona, que brincava. Eu sozinha brincava só, não tinha com quem brincar ninguém ia na casa do vizinho brincar, porque a nossa criação era assim (..) ninguém vivia pela casa dos outros, era tudo dentro de casa” (Dona Maria Filomena, 85 anos)
A respeito de namoro elas dizem:
“O primeiro namorado meu... quer dizer, a minha irmã foi lá pra Soure e começou a namorar o Raimundo. Aí nós ia no cinema né, aí quando era mocinha assim, o Raimundo, o Raimundo que era o namorado da Eva, ele, ele foi, ele conheceu um rapaz... daí ele, que esse rapaz foi meu namorado, primeiro namorado meu. Aí depois eu deixei, aí comecei a namorar outros, namorei outros, aí foi o tempo que, que... aí fizeram o que fizeram... fizeram comigo, aí eu peguei um filho, peguei um filho, mas eu já tava, já tava grandona, já tava com meus 33 anos quando eu peguei filho” (Dona Ana Silva Gonçalves, 68 anos). “Ah! Meus, meus, meus pais de criação... hum! Eles eram... (...) namorava era escondido, hum, na escola a gente saia da escola ia namorar era escondido, o papai ‘Deus o livre’. O papai não deixava, eu chamava de pai pro meu padrinho sabe? (...) E aí ‘Deus me livre’ se chegasse uma pessoa em casa assim:
- Ah! Seu Jesus, quero falar com a Dona Maria. - O que é que você quer com ela?
Procurava saber tudo. Hum, tu sabe quando tu chegar lá em casa não vai dizer que quer falar comigo, diz que quer falar com a madrinha aí eu dou a volta pela saguão e vou me encontrar contigo lá no canto (risos)” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos)
Assim, como pode ser observado nos relatos destes interlocutores a família, o
trabalho, as brincadeiras infantis e outras esferas da vida social aparecem como forte
referencial nas recordações e lembranças pessoais, e tem essas informantes como detentoras
e responsáveis pela manutenção e reconstrução do passado de suas famílias.
Feitas essas primeiras observações a respeito das esferas sociais como as relações
cotidianas com a família, no trabalho, este estudo se deterá a partir de agora no foco
principal de análise que se refere a construção de imagens e interpretações sobre o negro na
cidade de Belém, no período delimitado por esta pesquisa, bem como, nas discussões a
respeito do sistema de classificação racial predominante em nosso país, na sua tradução
local tal como identificada neste estudo.
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2 – A(s) cor(es) de Belém: terminologias, gradações e continuum de cor
O material que se apresentou no decorrer da pesquisa, versou, principalmente, sobre
temas como família, trabalho e cidade, se constituiu valiosíssimo para o estudo do sistema
de classificação racial brasileiro, uma vez que em nosso país as relações sociais (constituem
as diversas esferas da vida social) devem ser compreendidas imbricadas (de forma
relacional) com as relações raciais, devido as representações que tais questões assumiram
no país ao longo da formação histórica e social da nossa sociedade.
Devo dizer que as classificações de cor/ raça referidas neste trabalho por meus
interlocutores fazem parte de um processo de construção social de categorias de cor/ raça
que norteiam o sistema de classificação racial no Brasil e, por sua vez, dentro deste mesmo
sistema de classificação seguem uma lógica de um certo continuum em que existe uma forte
presença de gradações de cor como sinaliza Patrícia Birman:
“Há muito que já se sabe que o sistema de classificação racial brasileiro possui como uma de suas particularidades o fato de ser ordenado de modo a privilegiar relações entre dois pontos polares ao invés de traçar uma linha divisória nítida entre dois campos. Em outras palavras, privilegia-se um certo continuum de relações ao invés de estabelecer campos com fronteiras em domínios excludentes. Nesse sistema as referências à cor da pele se fazem preferencialmente por gradações – as pessoas aproximam-se do negro em certas circunstâncias. São em certos contextos mais ou menos ‘escuros’.” (195-196: 1989).
Assim, segundo esta antropóloga, no sistema de classificação racial brasileiro o
continuum e as gradações de cor tendem a privilegiar relações entre dois pontos polares e
não uma separação nítida entre branco e negro. O que, aliás, tem sido constatado e
interpretados por vários estudiosos de nossas relações raciais (Cf. Fry, 2002; Kofes, 1976;
Maggie, 1988, 1991, 1996; Muniz, 1999; Sansone, 1996; Sheriff, 2001).
Desta forma, as classificações de cor referidas abaixo pelas informantes estão
inseridas no complexo e ambíguo sistema de classificação racial brasileiro, sendo
proferidas de forma bastante abrangente no cotidiano da sociedade nacional, como pode ser
observado quando os interlocutores descrevem a composição em termos da cor apresentada
por seus familiares:
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“Meu pai era filho de africano, meu pai era bem escuro e bem forte mesmo. Meu pai era pretinho mesmo, ele era mesmo que aquela pimentinha (do reino), mesmo o cabelo dele. Nós saímos tudo escuro, tudo assim da minha cor, a gente puxamos tudo pro lado do meu pai mesmo, muito escuro. A minha mãe era mais clara, não era branca não!, era morena bem clara assim, tipo mulata mesmo. Tinha um cabelão grande. Ela quando casou com meu pai já tinha 3 filhos do primeiro marido dela, são tudo branco. Ela casou com o segundo marido que era o meu pai, porque o meu pai era bom, escuro mesmo, ele era bom (...) A família parte do meu pai era africana e da minha mãe era de português. Eu tenho família escura e família branca ... é... a minha família é misturada. È arroz com ..., é leite com café” (Dona Olívia, 69 anos). “Minha mãe e meu pai era da minha cor, moreno escuro (...) Só tem gente mais escuro do que eu na minha família. É tudo misturado, eu tenho gente que é desta cor em Icoaraci. A minha avó por parte do meu pai era índia (...) O meu avô era italiano, não lembro o nome dele também” (Seu Abílio, 84 anos). “Nós somos tudo do interior de Goiás eu... eu e meus pais. O nome da minha mãe é Maria da Conceição e do meu Pai é Abraãozinho do... do... não lembro. (...) O meu pai é branco que nem eu... e... e... e eu também, já a minha mãe é... ela é morena, morena. (...) Os meus irmão, homem e mulher são seis... e são moreno tudo da minha mãe já eu branca do meu pai” (Dona Nair, 72 anos).
“O meu pai chamava-se João Ramos de Oliveira, cor branca, minha mãe Regina Ramos Duarte, morena alta, cabelos compridos, cabelos longos, muito trabalhadeira. (...) A minha mãe ela era da minha cor, morena. Meu pai era branco. Os meus irmãos eram tudo moreno, quando saiam uns mais claros. Os que puxavam pro lado do meu pai eram mais claros, os que puxavam pro lado da minha mãe eram mais morenos” (Seu Francisco, 84 anos).
“A cor da minha mãe... ela tinha a cor dessa senhora aí... (refere-se a outra idosa que freqüenta a associação), dessa cor. O meu pai ‘diz que’34 era bem moreno. Eu nunca conheci ele. (...) Só a mãe da minha mãe que eu conheci, mas ela era bem escura, era bem preta mesmo. E a mãe da minha avó era branca... dos olhos amarelados, eu ainda conheci ela, conheci ela, ainda me lembro dela, do jeito que ela era. Ela era branca dos olhos verdes, linda, tinha assim... o cabelo dela bem amarelo, o cabelo dela. Ela era branca mesmo, e a mãe... e a minha avó, filha dela, era bem escurona mesmo, cabelo bem chegado” (Dona Maria Filomena, 85 anos).
“Meu pai era assim meio claro, que nem esse menino aí (refere-se a um neto que acompanhava sua avó a associação) e a minha mãe já era moreninha assim da minha cor. Meu padrinho era branco parece um português e a minha madrinha era morena, quase da minha cor assim” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos)
“A cor da minha mãe era clara, ela era filha de espanhol, espanhola. O meu pai era cearense, era. Ele era, ele era moreno, ele era moreno, não era escuro, muito escuro, era moreno claro, assim... mais escuro do que eu. A cor dele... e do meu avô também é da cor, da cor dele. E o meu marido também era, o meu marido era mais escuro do que eu” (Dona Ana Silva Gonçalves, 68 anos).
34 A expressão “diz que” é utilizada entre nós para tratar sobre algum assunto que não temos total certeza, assim, supostamente, segundo as informações de Dona Maria Filomena seu pai “diz que era” bem moreno.
80
A partir destes vários relatos que fizemos questão de expor aqui, é importante
destacar alguns pontos para percebê-los no seu conjunto e no contexto do debate sobre
classificações de cor/ raça dentro do sistema de relações raciais no Brasil. Devo destacar,
primeiramente, a questão dos indivíduos utilizarem a si próprios e a outras pessoas como
parâmetro para definir a cor de alguém, como nos mostram os interlocutores quando dizem:
“Nós saímos tudo escuro, tudo assim da minha cor”; “Minha mãe e meu pai era da minha
cor”; ou ainda “A cor da minha mãe... ela tinha a cor dessa senhora aí...”. Assim, estes
informantes estão se referindo, supostamente, a cor/ raça de seus pais e irmãos a partir da
sua própria cor; portanto, utilizando a si mesmos como parâmetro para definir a cor/ raça de
seus familiares, interpretação que é acompanhada, muitas vezes, por um gesto indicativo
que “ajuda” a compor a classificação que estão fazendo35.
Esta característica de grande importância que acompanha tal fato diz respeito a
movimentos gestuais, principalmente, com as mãos e com o dedo indicador para assinalar a
semelhança entre a cor/ raça de uma pessoa e de outra; deste modo, grande parte dos
interlocutores ao falarem sobre essa questão utilizam-se deste movimento gestual,
mostrando um de seus braços – passando os dedos da mão espalmada na pele – para se
referir à cor deles mesmos e de seus parentes, como pude demonstrar em outras
oportunidades (cf. Vaz Silva, 2003a, 2003b, 2004b). Fatos como este também foram
observados, por exemplo, pela antropóloga americana Robin Sheriff (2001) em sua
pesquisa que aborda os discursos sobre cor, raça e racismo com moradores do “Morro do
Sangue Bom” no Rio de Janeiro.
Pelos relatos dos interlocutores, podemos perceber que os mesmos ao se referirem a
cor/ raça dos seus familiares constroem um “discurso de descrição”, na perspectiva
35 Um outro exemplo interessante sobre essa questão das pessoas utilizarem outras e a si próprias como parâmetro para definir a cor de alguém e, também, valer-se de movimentos gestuais para isto, se deu na realização de uma pesquisa de opinião, como avaliação da disciplina Estatística Aplicada às Ciências Sociais I, realizada no bairro da Terra Firme, por mim e Bruno Guilherme dos S. Borda, também estudante de Ciências Sociais, sobre identificação de cor/ raça com a seguinte pergunta: Como você se identifica em relação a sua cor/ raça ou etnia? Como opções, havia as respostas branca, preta, parda e indígena. Na oportunidade, um rapaz negro estava respondendo a questão enquanto um outro, também negro, observava esperando sua vez. Ao responder, o outro rapaz viu que o primeiro tinha escolhido a opção parda e, antes de responder, olhou novamente para o rapaz, em seguida olhou para seu braço, notando que era “mais escuro”, então, respondeu: “marca aí... preto”, como se a partir daí não tivesse alternativa.
81
apontada pelas antropólogas Suely Kofes (1976) e Robin Sheriff (2001), pois possuem
como objetivo apenas a descrição das características físicas apresentadas pelos seus
parentes. De acordo com Kofes, nestes casos em que as pessoas precisam ou tem por intuito
apenas descrever as características físicas de outras, elas fazem uso de “termos de cor
descritivos” como classifica a autora, que nada mais são que uma gama de termos
descritivos que levam em conta os mínimos detalhes para identificar e diferenciar uma
pessoa de outra, a cor da pele de intensidade mais ou menos escura, por exemplo; como
relata Dona Ana Silva Gonçalves quando diz: “Ele era, ele era moreno, ele era moreno, não
era escuro, muito escuro, era moreno claro, assim... mais escuro do que eu”
Neste mesmo sentido, caminha a abordagem de Sheriff. Para a autora norte-
americana, no discurso de descrição, os indivíduos não fazem uso de termos que denotem
uma noção concreta de identidade racial, portanto, estes discursos não devem ser
concebidos como possuidores de categorias raciais ou classificações raciais, mas apenas
termos que remetem a uma descrição física, onde se descrevem características como cor da
pele, cor do cabelo, entre outras, como fazem, aliás, meus interlocutores no relato anterior.
Na maioria das vezes, e nos relatos em questão, o discurso de descrição é construído sob
forma de comparações com familiares ou outras pessoas que, por ventura, possuam
características semelhantes a pessoas a quem se deseja fazer referência.
É importante destacar, também, que ao dizer, por exemplo, “meu pai era bem escuro
(...) meu pai era pretinho mesmo”, “minha mãe era mais clara”; “minha mãe e meu pai era
da minha cor, moreno escuro”; “os meus irmãos eram tudo moreno, quando saiam uns mais
claros (...) os que puxavam pro lado da minha mãe eram mais morenos”, as pessoas que
ouvi, utilizam-se do diminutivo (pretinho) e da gradação de cor ou continuum de cor (bem
escuro, mais clara, mais claros, moreno escuro, mais moreno) de uma forma que parece
“encobrir” ou “escurecer” as polarizações (preto e branco), já que preto e branco seriam
termos “indizíveis”, como demonstra Yvonne Maggie (1996).
Retomando novamente a discussão sobre a constituição do sistema de classificação
racial brasileiro a partir das gradações de cor e do continuum de cor apontado por Patrícia
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Birman (op. cit), Yvonne Maggie (1996), outra estudiosa das relações raciais no Brasil,
pensa que as inúmeras terminologias de cor utilizadas para se referir a suposta cor/ raça de
determinada pessoa tendem, como já disse, a “encobrir” ou “escurecer” as polarizações
preto e branco, como já sinalizava Birman, se considerarmos preto e negro como categorias
equivalentes.
Para Maggie, no sistema de classificação ou identidade racial do Brasil, as
classificações de cor/ raça: preto e branco seriam “termos indizíveis”, pois as pessoas
geralmente evitam utilizar estes termos, já que os mesmos fazem referência explícita as
diferenças existentes entre branco e negro, o que não reforçaria o mito de branqueamento
que norteia a sociedade brasileira que se compreende “misturada, e não segregada” como
nos indica esta autora. Ficando isso explícito em falas como as seguintes: “Eu tenho família
escura e família branca... é... a minha família é misturada. É arroz com ... (o que sugere
como complemento feijão), é leite com café”; “Só tem gente mais escuro do que eu na
minha família. É tudo misturado...”.
Além disso, segundo o cientista político Michael Hanchard (1996), um afro-
americano que fez extensa pesquisa sobre movimento negro no Brasil, a constante opção
por variadas categorias de cor desmascara a outra dimensão que há muito vigora no “senso
comum” racial brasileiro que é o mito de “democracia racial”. Por outro lado, com o uso
em menor freqüência destas polarizações (branco e negro) tanto o mito da “democracia
racial” quanto o ideal do branqueamento passam a ser bastante reforçados uma vez que no
sistema de classificação racial brasileiro os indivíduos possuem uma diversidade de
terminologias e gradações de cor como: moreno claro, bem moreno, bem escura, muito
escuro, entre outras, tais como aquelas que são proferidas por meus interlocutores.
Contudo, falar em gradações e continuum de cor não implica em dizer que em determinadas
situações a polaridade de cor (branco e negro) não exista e surja no discurso dos mais
variados sujeitos, como mostrarei mais adiante, que fazem parte e ajudam a construir o
sistema de classificação racial brasileiro.
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Ainda sobre os primeiros relatos dos informantes e os que se seguirão a partir daqui
é de fundamental importância que se perceba a recorrência com que vem se apresentando
determinados termos de reforço que aparecem como agregados as variadas categorias de
cor/ raça que se inserem no continuum de cor. Terminologias como assim, quase, meio,
bem, mesmo, mais e muito se configuram enquanto termos que ressaltam uma intensidade e
um reforço da cor/ raça de quem se deseja fazer referência, uma vez que estes são
pronunciados de uma forma bem particular, com uma entonação peculiar na fala que ajuda
a dar sentido e a explicar a cor/ raça que se quer mencionar, ajudando a compor a
mensagem, como quando relatam: “minha mãe era mais clara, não era branca não!”; “Os
meus irmãos eram tudo moreno, quando saiam uns mais claros”. Além disso, quando Dona
Olívia diz: “não era branca, não!”, percebemos que o fato de sua mãe ser “mais clara” não
implica em que esta fosse branca, portanto, “mais claro” e branco são termos que se
apresentam (ou podem se apresentar) como diferentes em relação a informação sobre a cor/
raça dos indivíduos.
Ao longo das pesquisas que desenvolvi como bolsista do programa de Iniciação
Científica, tais termos vem sendo denominados por mim de agregados/ explicativos. Estes
termos sugerem uma variedade ainda maior nas gradações de cor e possuem locais
específicos para cada terminologia no continuum, já que quando Dona Ana Gonçalves se
refere: “Ele era, ele era moreno, ele era moreno, não era escuro, muito escuro, era moreno
claro, assim... mais escuro do que eu”, ela quer dizer que seu pai era moreno, não muito
escuro, porém era mais escuro do que ela própria (que se auto-identificava como branca) e,
segundo a mesma se enquadrava na categoria de moreno claro – veja-se a sofisticação e
sutileza da classificação!
Dona Maria Filomena diz: “Só a mãe da minha mãe que eu conheci; mas ela era
bem escura, era bem preta mesmo (...) E a mãe da minha avó era branca... e a minha avó,
filha dela, era bem escurona mesmo, cabelo bem chegado”. Se observarmos o relato desta
informante ela se utiliza de dois termos agregados/ explicativos bem e mesmo nas duas
vezes que vai se referir ao seus familiares, primeiramente sua mãe que é definida por ela
como “bem preta mesmo” e em seguida sua bisavó que ela define como “bem escurona
84
mesmo”. Além disso, podemos verificar, a partir do relato acima, que os termos “bem
escura” e “bem preta mesmo” e outros que estejam mais próximos da categoria negro
significam preto ou negro (já que ambas são análogas, como será mostrado mais adiante) se
apresentando como categorias equivalentes, diferentemente da categoria “mais claro” em
relação a branco, como foi observado anteriormente (p. 84)
Assim, a grande maioria dos interlocutores (para não dizer todos) ao definirem a
cor/ raça de seus parentes se dispõem com uma variedade de terminologias que denotam
raça/ cor e utilizam-se dos termos agregados explicativos para reforçar e intensificar a cor/
raça que pretendem mencionar para diferenciá-las das demais. Deste modo, os termos
agregados/ explicativos também podem ser úteis para verificação de termos que podem se
apresentar como categorias equivalentes ou não em relação a informação sobre a cor/ raça
dos indivíduos, como mostrei ainda a pouco.
É de grande importância observar as lembranças de Dona Maria Filomena e Dona
Olívia para discutir a temática das relações raciais que proponho neste trabalho, pois
segundo seus relatos:
“(...) E, a mãe da minha avó era branca... dos olhos amarelados, eu ainda conheci ela, conheci ela, ainda me lembro dela, do jeito que ela era. Ela era branca dos olhos verdes, linda, tinha assim... o cabelo dela bem amarelo, o cabelo dela. Ela era branca mesmo, e a mãe... e a minha avó, filha dela, era bem escurona mesmo, cabelo bem chegado” (Dona Maria Filomena, 85 anos).
A minha irmã pegou o nome de mulata, porque tinha um cabelão grande, bem quebrado o cabelo dela né! Aí todo mundo chama: ‘cadê a mulata’? Mulata por causa do cabelo. O nome dela é Jovelina, o nome verdadeiro dela (...) Ela era clara porque é do primeiro marido da minha mãe, mas é irmã por parte de mãe. Ela era morena clara, bem clara. Ela tinha um cabelo que vinha até aqui (mostra gestualmente o tamanho do cabelo que atingia a metade da costa) (...) porque antigamente, os cabelo assim, a gente chamava de mulata, né! Todo aquele cabelo, todo. Era bonito o cabelo dela, ai chamavam: ‘cadê a mulata’? mulata, mulata e por mulata ficou” (Dona Olívia, 69 anos).
No primeiro relato podemos perceber que os padrões de beleza mencionados por
esta interlocutora são padrões de origem européia, que tem na cor da pele branca, nos olhos
verdes e no cabelo “bem amarelo” (loiro) a referência estética para definir o que é belo ou
não. Assim, em nenhum momento sua avó que era “bem escurona mesmo” e era dona de
85
um “cabelo bem chegado” foi referida pela informante como bela ou simplesmente bonita,
o que sugere que os padrões de beleza e estética, neste caso, estejam intimamente
relacionados com questões raciais, o que aponta para uma “norma somática” que ao longo
da história coloca o fenótipo negro em uma escala inferior, em relação ao branco, no que se
refere a questões de beleza e “boa aparência”. Assim, a beleza e a estética também se
conformam como um dos componentes que fazem parte do sistema de relações raciais
brasileiro ou do habitus racial que norteia a concepção sobre as relações raciais no Brasil,
como sinaliza Livio Sansone (1996) pensando na noção de habitus proposta por Pierre
Bourdieu como relações sociais que são internalizadas, mas não são estruturas estruturadas
e sim estruturas estruturantes.
Por outro lado, quando Dona Olívia fala sobre os apelidos de infância,
principalmente o de sua irmã que era chamada de mulata, e até mesmo, do seu primeiro
relato sobre sua mãe, no inicio deste capítulo, quando diz: “minha mãe era mais clara, não
era branca não!, era morena bem clara assim, tipo mulata mesmo. Tinha um cabelão
grande.”, percebemos a valorização da mulata, que para Mariza Corrêa (1996) vem se
constituindo ao longo do seu processo histórico-social como uma figura “mítica” ou
“imaginária” em nossa sociedade. O que significa trabalhar, com o processo de construção
e atualização de nosso sistema de diferenciações e hierarquizações raciais o qual, como se
tem referido, opera fortemente imbricado com as de gênero (cf. Corrêa, 1996; Motta-
Maués, 1987).
Em seu trabalho intitulado: “Sobre a invenção da mulata”, Corrêa (1996) tem como
principal objetivo discutir a construção da mulata enquanto categoria social, com intuito de
questionar a forma habitual que estamos lidando com esta categoria, tanto nas relações
raciais quanto nas relações de gênero. De acordo com esta autora, a mulata ao longo de sua
construção social, a quem se atribuiu nos discursos médicos, literários ou carnavalescos
uma sensualidade e sexualidade acentuadas, acabou por se configurar como um objeto de
desejo, a ponto de assumir um certo estatuto simbólico que lhe confere positividade e
tornar-se símbolo nacional, escapando, assim, de seu pólo negativo que tinha na
miscigenação um grande problema para a sociedade brasileira. Porém, Corrêa aponta que a
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passagem do pólo negativo ao pólo positivo, o qual a mulata percorreu em sua trajetória,
não ocorreu da mesma forma com seu par masculino: o mulato.
Segundo Corrêa (op. cit), no seu processo de integração a sociedade brasileira o
mulato passou por um processo de branqueamento social de forma muito rápida,
transformando-se em agente social de grande importância para constituição da nossa
sociedade, enquanto a mulata foi “engendrada” socialmente, configurando-se em nosso
imaginário social/ racial como “objeto social, símbolo de uma sociedade (que se quer)
mestiça” (p. 48). Mas, as diferenças não param por aí. No que se refere ao continuum de cor
a categoria mulato se apresenta de forma extremamente ambígua e frouxa e quase não
aparece nos relatos dos informantes, já seu par feminino, mesmo que ambíguo, se revela
como uma categoria fixa diante da fluidez que possui as várias gradações de cor dentro do
continuum, pois como nos mostra Corrêa: “A mulatice não é uma definição passível de
negociação: ‘a mulata é a tal’ ”(p. 47), a autora acrescenta ainda que: “ao destacar dela a
mulata que é a tal, parece resolver-se esta contradição, como se se criasse um terceiro termo
entre os termos polares Branco e Negro”(p. 49).
De acordo com Corrêa, nas discussões sobre gênero, tanto o mulato quanto a mulata
saíram do campo das classificações de sexo para os da classificação de gênero, porém o
primeiro assume o papel de agente social, como já disse, enquanto a mulata é concebida
como símbolo de sensualidade e desejo sexual, o que lhe confere uma maior “visibilidade”
tanto em relação ao mulato quanto em relação a própria mulher negra que não é
nomeadamente mulata. Afinal, é para a mulata – noutra interpretação, a negra – que se
promove o concurso de musa do carnaval (vinheta globeleza) e os olhares e as câmeras
estão voltados neste período no país.
Motta-Maués (1999) pensando na questão da “invisibilidade” imposta ao negro no
Brasil trabalhada por Carlos Hasenbalg (1988), aponta a existência de uma delicada
combinação entre “invisibilidade & visibilidade” que, segundo a autora, compõe os dois
eixos que conduzem a forma de lidar com o negro e a questão racial entre nós. Sobre isso
ela diz:
87
“De minha parte e olhando de outro ângulo, penso que, como sempre, a vida social é mais complexa. Falo da existência no Brasil de uma esdrúxula combinação entre invisibilidade & visibilidade, mistura, aliás, que casa bem, tanto com nossas construções acadêmicas sobre a nação, como com o processo de construção histórico-intelectual da mulher negra, nomeadamente mulata ou não. O que joga com outra imbricação significativa: raça/ cor e gênero. Assim, verso e reverso da mesma moeda, invisibilidade & visibilidade configuram, para mim, os dois eixos que ordenam nossa forma de lidar com o negro e a questão racial” (1999: 6).
Retomando novamente o relato anterior de Dona Olívia podemos perceber que esta
interlocutora ao falar na figura da mulata se referindo tanto a sua mãe quanto a sua irmã dá
bastante ênfase aos cabelos de ambas, ficando explicito em sua fala que “cabelão grande” e
“cabelo bem quebrado” são características das mulatas. Deste modo, remeto novamente a
Motta-Maués (1999) ao tratar do jogo de “invisibilidade & visibilidade” e do processo de
construção da mulata. Motta-Maués acredita que os cabelos, principalmente no caso das
mulatas, é o elemento de maior visibilidade (talvez, mais até que a própria cor da pele),
pois “emoldura o rosto”, uma vez que está no alto da cabeça e pode modificar-se de acordo
com a intenção de sua dona ou dono de embranquecer ou enegrecer. Sobre isso a própria
autora diz:
“Penso que os cabelos, mais (talvez) que a cor da pele, casam perfeitamente com o nosso sistema racial de classificação de cor e, no meu caso, aqui, de gênero. Eles são muito bons parceiros no jogo invisibilidade & visibilidade, de ser, não sendo, característico de nossos modos e modas nos assuntos de raça e cor. Sendo, ao que parece, o elemento de maior visibilidade – está no alto da cabeça, ‘emoldura o rosto’ – pode participar, a gosto, desse jogo, transformando-se (sendo transformado por seu dono ou dona) conforme o desejo (de ‘mudar de cor’) ou a própria mudança mesmo. Seja para embranquecer ou para enegrecer, aliás. Daí que, parece, não é a pele, a cor que é boa ou ruim, bem ou mal com Deus, como se diz no Brasil, mas o cabelo” (MOTTA-MAUÉS, 1999: 18-19).
De acordo como Suely Kofes (op. cit) e Robin Sheriff (op. cit) no sistema de
classificação racial brasileiro existem algumas situações em que o discurso sobre
classificação racial deixa de ser apenas descritivo e passa a ser um discurso que privilegia
determinadas terminologias que tendem a categorizar e classificar ao se referir sobre a cor/
raça dos indivíduos, como por exemplo, quando Dona Olívia se refere a irmã e a mãe como
mulatas. Esta forma de discurso pode ser observada no relato de Seu Abílio que prefere ser
chamado de moreno e escuro a ser chamado de negro e, também nas lembranças de Dona
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Ana Silva Gonçalves ao se referir a uma amiga que a acompanhou a uma festa junina no
município de Soure; segundo eles:
“Agora eu acho chato dizer pra um moreno uma coisa.... chamar cor negra. Tem essa cor negra? Não tem! A cor negra é carvão e piche. O cara é escuro, escuro tá certo! Escuridão é escuridão, há cor assim né? Há cor morena, cor assim...., mas negro eu não gosto de.... ser chamado de negro. Eu não gosto, negro é carvão. (...) Agora eu não vou dizer que eu sou branco, eu não vou chamar você de outra cor né, se sua cor é branca é branca!, a minha cor é escura é escura!” (Seu Abílio, 84 anos).
“Eu ia pra lá, eu e uma vizinha lá do lado, a morena. Nós dançava, dançava, dançava bem. Graças a Deus a mamãe não proibia nada não” (Dona Ana Silva Gonçalves, 68 anos).
Para Kofes os termos “categóricos”, como designa a autora, possuem uma relevante
autonomia em relação às características físicas; no nosso caso tais como a que a amiga
denominada de morena por Dona Ana Silva Gonçalves possa apresentar, uma vez que tais
termos ou discursos remetem a classificação ou categorização, por isso, se diferenciando
dos termos ou discursos descritivos, como indica Kofes. De acordo com Robin Sheriff (op.
cit), essa forma substantiva de se referir a outra pessoa é denominada como “estilo
pragmático ou indicial” de discurso cotidiano. Segundo Sheriff, nesses discursos os
indivíduos “manipulam conscientemente o vocabulário sobre raça/ cor” (Sheriff, 2001:
219), de maneira a optar por uma determinada categoria racial que para ela representa a
“verdadeira cor” da pessoa a quem se referiu. Conforme a autora, no “estilo pragmático ou
indicial” de discurso o termo escolhido para designar a cor/ raça de alguém depende
fundamentalmente “do jeito de falar”, fazendo com que o indivíduo que se refere desta
forma a pessoa de cor “marca, constrói e/ ou negocia ativamente” (idem, p. 222) sua
relação com esta última, podendo ofender ou não a pessoa a quem se direciona tais termos,
já que são classificatórios, como já disse.
Porém, para Robin Sheriff, os termos classificatórios ou categóricos podem ser
classificados em dois tipos de discurso sobre a cor/ raça: a) estilo pragmático ou indicial de
discurso e; b) estilo racial de discurso. Enquanto no trabalho de Suely Kofes não existe tal
distinção, além daquela entre os termos descritivos em relação aos categóricos, concebendo
esta autora apenas estas duas classificações. Os termos que designam e remetem a uma
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classificação sobre cor/ raça são englobados em um único grupo, denominado por Kofes
como “termos categóricos”.
No diálogo com alguns interlocutores surgem relatos de relatos (de seus
ascendentes) sobre escravidão – o que sugere que nestes estejam contidas as primeiras
imagens e interpretações sobre o negro no final do século XIX/ início do XX em Belém,
apresentadas neste trabalho – pois segundo os mesmos, alguns de seus parentes chegaram a
ser escravos; ao lembrar deste fato eles nos contam:
“A minha avó que era parte da mãe do meu pai contava que eles vieram da África. Veio ela, esse filho; meu pai e o marido, que era o meu avô. Meu pai... vieram num navio grande, vieram muita gente de lá da África pra cá pro Brasil. O pai da minha mãe e a minha avó que era mãe do meu pai foi escrava. (...) Eles viviam, eles vinham no porão do navio, é que eles não tinham direito assim de ..., assim como os outros passageiros né!, vinham tudo misturado, um dormia de rede, outro dormia no chão, outro dormia assim, todo engelhado. Eles vinham no fundo do navio, embaixo... diz que eles eram mesmo que ser bicho, comiam, bebiam ali, tudinho. Mesmo o meu avô quando ele viajou pra cá, ele viajou escondido, porque lá na África tavam morrendo tudo e aí ele não sei como que ele conseguiu que eles vieram pra cá. Ela mostrava o lençol que meu pai veio embrulhado com a minha avó, o cobertor, ele veio pequenininho, veio com nove meses, o meu pai né!, já a minha avó que contava e ele se criou aqui no Brasil. (...) Diz que era muito frio lá no navio, muito frio...muito frio. Era morrendo gente de frio, aí eles vieram, vieram muita gente para cá no navio, muito negro mesmo, muito africano, tudo africano... tudo africano” 36 (Dona Olívia, 69 anos). “É que meu pai e minha mãe conversava com nós. Então, eu teve uma tia que foi escrava, ela não era preta, preta, preta, era morena assim. Então ela foi vendida prum... prum pessoal aí (...) ela era prima do meu pai, ela não era preta não, era uma clara ... não tem esses pobre quando se empregavam... tinha rico, vendia pra eles o diabo desse pessoal. (...) Chegou a ser escrava. Nova ela foi escrava, naquela época o que mandava era o dinheiro. Um dia topamos ela lá37, lavando roupa numa ponte na beira do rio. Fui lá né! Conhecemos ela, aí encostamos de modo a canoa, conversamos com ela, o que ela tinha? ‘ah eu fui vendida pra cá, faz tempo. Eu queria sair daqui, me maltratam aqui à beça. Aqui se juntaram, arrumaram dinheiro e foram comprar ela de novo. Compraram, aí foi que ela foi embora. Dorotéia o nome dela. Eu já vim conhecer ela, eu menino, eu já conheci ela meia velhota ainda (...) já
36 A partir do relato desta interlocutora podemos perceber claramente o problema relacional de tempo-espaço e memória, como constituinte da própria memória individual ou social, pois, provavelmente, os avós de Dona Olívia devem ter nascido por volta de 1890, período em que o tráfico negreiro já havia sido extinto no país, o que sugere que tais acontecimentos pertençam a um campo da memória que Pollak (1992) denominou de acontecimentos “vividos por tabela”, ou seja, fatos vivenciados pelo grupo ou pela coletividade a qual o indivíduo se sente fazer parte. Assim, os familiares de Dona Olívia podem ou não ter vivenciado tal acontecimento relatado por ela, mas, o fato é que muitos outros negros que foram escravizados vivenciaram e, é a este grupo que Dona Olívia tem um sentimento de identidade e pertencimento. 37 Em alguns casos os interlocutores relatando algum fato ocorrido, seja com familiares ou conhecidos, assumem a autoria do feito relatado, como foi observado no relato anterior.
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morreu, ela tava mais ou menos com uns mais de 40 anos já morta” (Seu Abílio, 84 anos).
“Negócio de escravidão que existia antigamente, ficar como escravos dos outros né, vivia cento e onze anos e ainda era escravo (...) e também esse negócio de escravidão, ainda existe gente por aí que ainda foram escravo né, ainda existe gente por aí que ainda foram escravo, tão tudo com cento e cinco anos, eu tô lembrando agora.... ali tem uma com cento e cinco anos, ela que falava isso, na época dos escravos ela tinha sido escravo (...) essa que morava no bairro do Guamá.... falava um bocado das coisas da época dos escravos. Ela foi escravo... ela foi escravo. Ela foi escravo de uns cara lá, passou uns anos lá aí depois se saiu. O nome dela, não me lembro o nome dela. Ela era filha de escravo, era pretinha ela, era bem moreninha. Filha de escravo ela falava que tinha sido escrava de um cara lá, maltratavam dela lá, aí passado um tempo ela se saiu deles, ficou... sei lá, por aí. Ela é lá do Guamá” (Seu Francisco, 84 anos).
É importante esclarecer que não tenho pretensão de analisar a veracidade histórica
de tais informações, ou seja, analisar se realmente vieram negros africanos em navios para
serem escravos neste período no Brasil, mais precisamente em Belém e suas redondezas,
haja vista que o tráfico negreiro já havia sido extinto, ocorrendo então comércio interno de
escravos. Portanto, como já foi mencionado, pretendo analisar as questões relativas ao
sistema de classificação racial brasileiro e; as imagens e interpretações construídas sobre o
negro na cidade de Belém, no período estabelecido pela pesquisa, através da memória
social dos velhos, sendo que alguns deles me parecem ter um sentimento de reciprocidade e
continuidade a um grupo específico, ou seja, um sentimento de identidade e pertencimento
ao grupo por eles mencionado, vivenciando pessoalmente ou não tais acontecimentos.
Neste sentido, tratando sobre os elementos constitutivos da memória individual ou coletiva
Michael Pollak diz:
“Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de ‘vividos por tabela’, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade a qual a pessoa se sente pertencer (...) Locais muito longínquos, fora do espaço-tempo da vida de uma pessoa, podem constituir lugar importante para a memória do grupo, e por conseguinte da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento a esse grupo. (...) Portanto, podemos dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” (POLLAK, 1992: 201-204).
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Assim também, os velhos que ouvi apresentam desta forma os acontecimentos
englobados de um modo (acontecimentos vividos pessoalmente), ou de outro
(acontecimentos “vividos por tabela”), às suas vidas como, por exemplo, os relatos de Seu
Abílio sobre sua tia que, supostamente, teria sido escrava, e de Dona Olívia sobre a viagem
de sua família da África para o Brasil.
Ao serem indagados sobre o que seus pais e parentes comentavam em relação a
forma como as pessoas brancas se referiam aos negros e da discriminação sofrida por estes,
alguns interlocutores dizem:
“Elas chamavam de pretos, chamavam de mulatos” (Dona Olívia, 69 anos).
“Elas chamavam de preto, pretinho...” (Dona Nair, 72 anos).
“Já, eu tenho visto já! O fulano é negro, fulano negro, fulano negro... negro. Eu acho isso feio eu não gosto” (Seu Abílio, 84 anos).
“Nunca ouvi falar, nunca ouvi falar, nunca ouvi ela falar sobre essa gente assim”(Seu Francisco, 84 anos)
Destes comentários é importante destacar alguns pontos. Podemos perceber pela
primeira vez a presença de algumas imagens formuladas sobre o negro, a partir de
informações contidas no relato dos interlocutores – adquiridas supostamente com seus pais,
parentes ou amigos, que devem provavelmente ter nascido por volta do final do século
XIX/ início do século XX. Assim, a partir daqui iremos verificar que por de trás de
categorias como: preto, pretinho, mulatos e negro, existe um conjunto de representações
sociais negativas que foram associadas ao negro, que baseadas no conceito e concepções de
“raça”, conferiam a este personagem uma inferioridade diante de outros grupos sociais.
No relato de Seu Abílio, ao falar que tem conhecimento da forma como as pessoas
têm se referido ao negro: por negro, é importante lembrar a coerência com a qual é
construído o discurso deste informante, pois ele próprio já havia dito que não gosta desta
forma para fazer referência a “pessoa de cor”, dando preferência a categorias como moreno
92
e escuro, talvez, devido as representações negativas que a categoria negro traz consigo –
um conjunto de imagens e interpretações construídas socialmente ao longo da história que
remetem a escravidão e a seu período pós-abolição, em que se conferia ao negro um caráter
eminentemente pejorativo de cunho racial, que atribuía uma inferioridade a este grupo
social em uma escala bio-psico-social, em relação a outros grupos como, por exemplo, os
brancos e os índios. Deste modo, de acordo com o esquema racial de Arthur de Gobineau
temos:
RAÇAS HUMANAS38
NEGRA AMARELA BRANCA
Intelecto Débil Medíocre Vigoroso
Propensões animais Muito fortes Moderadas Fortes
Manifestações morais Parcialmente inteligentes
Comparativamente desenvolvidas
Altamente cultivadas
De acordo com antropólogos estudiosos da questão racial no país (cf. DaMatta,
2000; Motta-Maués, 1989; Skidmore, 1976; Schwarcz, 1996) as ideologias ou doutrinas
raciais brasileiras surgem no período que antecede a proclamação da república e a abolição
da escravatura, momento de crise no país e abalo nas estruturas hierárquicas. As teorias
raciais e racistas de Gobineau e outros como: Buckle e Agassis, tem origem na Europa e
nos EUA a partir do século XIX, sendo amplamente difundidas no Brasil por intelectuais da
época como, Silvio Romero, Nina Rodrigues, entre outros que bebiam diretamente na fonte
destes teóricos do racismo (sem ao menos questioná-los), uma vez que estas teorias
possuíam respaldo científico, eram teorias do evolucionismo e do determinismo, isto é,
segundo os evolucionistas, cada raça ocupa um lugar na história da humanidade e para os
deterministas existem raças superiores a outras, todas determinadas biologicamente.
Ainda sobre as representações negativas atribuídas ao negro, quando Seu Francisco
diz: “Nunca ouvi falar, nunca ouvi falar, nunca ouvi ela falar sobre essa gente assim”
devemos observar que é um negro falando de outros negros sem identificar-se com eles, 38 Gobineau 1856: 95, 96 Apud DaMatta 2000: 72.
93
portanto, dando conotação do discurso do “Eu” versus “Outros”, em que, no caso em
questão é como se Seu Francisco não se sentisse fazendo parte deste grupo.
Outro ponto importante a ser destacado se refere a presença nos relatos destes
interlocutores do que Sheriff (op. cit) denominou de “estilo racial de discurso”, ou seja, um
discurso que é construído não mais sob a ótica do continuum de cor, sobre o qual venho me
referindo ao longo deste capítulo (não aparecendo as ambíguas e múltiplas categorias que
envolvem cor/ raça, pois não enfatizam a cor e nem a aparência), porém sob a perspectiva
de categorias raciais bipolares (branco e preto ou branco e negro) ou categorias raciais
tripartites (branco, mulato e negro), já que tal discurso ressalta não só a noção de categorias
raciais, mas também a de raça.
Porém, quando a mesma pergunta sobre discriminação vai direcionada as suas
famílias, com intuito de saber se alguma pessoa já teria se referido desta forma a um de
seus parentes e se estes já teriam passado por situação semelhante, eles respondem:
“não, nunca vi!. Nunca vi meu pai contar essas coisas, não comentava não!. Ele nunca comentava negócio, dizer assim: ‘fulano disse isso, fulano fez aquilo’. Ele nunca comentava com a gente. (...) mas no modo de serem discriminados eu não tenho o que contar pro senhor não, pra falar disso não. O meu pai era bem visto, ele tinha muitos amigos, muitos amigos comerciantes, mas que fomos discriminados não, nem de falar nessas coisas assim. Eu sei que tem aqui discriminação dos brancos sobre os negros né! Mas eu nunca vi isso, nós ter sido maltratado assim, aquele negrinho! aqueles negros! Não tenho muita coisa que contar” (Dona Olívia, 69 anos).
“Não. É isso o que eu falei, fora isso eu não me lembro mais, faz muitos anos já né, mas isso tudo foi esquecido já, eu nunca ouvi falar sobre isso, eu nunca ouvi falar sobre isso” (Seu Francisco, 84 anos).
É interessante ressaltar o fato do pai de Dona Olívia ter comentado com ela que os
brancos se referiam aos negros chamando-os de “pretos”, “mulatos” e esta interlocutora
nunca ter visto e/ ou ouvido outros falarem em relação ao seu circulo familiar desta forma;
também, no caso de Seu Francisco que no relato anterior diz nunca ter ouvido falar sobre
“essa gente assim” e depois fala “faz muitos anos já né, mas isso tudo foi esquecido já, eu
nunca ouvi falar sobre isso, eu nunca ouvi falar sobre isso”. Talvez seja porque estas
94
lembranças fazem parte do que Pollak (1989) denominou de “memória subterrânea”, no
sentido de que essas memórias, na maioria das vezes, aparecem como lembranças
proibidas, indizíveis e, no caso em questão, vergonhosas, uma vez que são memórias e
lembranças de grupos excluídos, minorias marginalizadas. É neste sentido que, Terezinha
Bernardo em seu estudo sobre velhos descendentes de africanos e de italianos em São
Paulo, retoma Pollak para dizer que tais lembranças “são zelosamente guardadas em
estruturas de comunicações informais e passam despercebidas pela sociedade englobante”
(1998: 34).
Entretanto, Dona Olívia lembra de um fato ocorrido com um garoto quando ela
morava no Estado do Rio de Janeiro; ela narra:
“já, eu já depois de grande, já faz muito tempo, eu fui morar no Rio de Janeiro. Aí eu vinha, eu ia na casa de uma senhora, lá eu conhecia ela e ela me conhecia, eu sempre ia lá. Quando eu fui no domingo, eu fui lá, aí quando eu cheguei lá ... ela morava em um apartamento em Ipanema, ela morava lá em cima, então ela tinha um menino que era filho de criação dela, filho da empregada, ele era moreno e tinha 12 anos ... ele subia no elevador. Quando foi um dia eles não deixaram ele subir no elevador, aí eles mandaram, porque tinha dois elevador, tinha o dos brancos e tinha o dos pretos, dos negros como eles chamam, aí quando ele foi subir o porteiro barrou ele: - ‘Não, você não pode subir aqui!’ Aí ele agarrou o rapazinho e ele subiu pelo outro elevador” (Dona Olívia, 69 anos).
O que nos encaminha, pelo menos, para dois pontos: para o objeto da memória/ da
lembrança (as relações, não serenas, entre negros e brancos) e para a especificidade da
memória de combinar-se sempre com ou conter nela mesma o esquecimento (cf. Pollak,
1989; Nava, 1999).
No relato acima, novamente podemos perceber o “estilo racial de discurso” quando
minha interlocutora diz: “...porque tinha dois elevador, tinha o dos brancos e tinha o dos
pretos, dos negros como eles chamam...”, que nada enfatiza de cor e aparência, ressaltando,
neste caso, identidades raciais bipolares (brancos e pretos/ negros). Além disso, nota-se,
também, no relato de Dona Olívia, que negro é a forma como os outros (brancos) chamam
os pretos, fato que também foi observado por Sheriff (op. cit) quando do relato de um de
seus informantes que dizia sobre a diferença entre preto e negro: “Não tem diferença, só
95
que negro é um apelido que os brancos deram aos pretos” (Sheriff, 2001: 223), como
também pode ser observado no caso de Seu Abílio que não gosta de ser chamado de negro.
Deste modo, cotejando meus dados com os dados da autora acima, pode-se entender que
preto e negro são categorias raciais equivalentes, apesar de que para as pessoas “de cor” a
palavra negro, quase sempre, possui uma conotação pejorativa, considerada como sendo
utilizada de maneira preconceituosa por pessoas racistas.
Ainda sobre o “estilo racial de discurso” duas interlocutoras ao lembrarem das
pessoas que trabalhavam no mercado Ver-o- Peso nos dizem:
“Era assim... uns morenos e uns brancos, assim mo... (...) Elas eram morenas, tinha umas que eram pretonas mesmo, tinha umas que eram morenas clara, assim...” (Dona Raimunda Carvalho, 92 anos).
“Tinha toda, toda espécie de gente trabalhando. Um vendia fruta, outro vendia peixe, tinha o mercado de carne...(...) eram uns morenos misturado com pretos, branco misturado com....Eram de toda a cor né! O trabalho lá na... na feira tinha gente de todo jeito lá” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos).
Então, de acordo com o relato destas informantes podemos verificar a presença de
termos categóricos e classificatórios como: brancos, pretos e pretonas mesmo que
ressaltam a concepção de categorias raciais e, sobretudo a noção de raça, a qual descreve
Robin Sheriff (op. cit). Também podemos observar a presença do termo agregado/
explicativo mesmo que ressalta, intensificando mais ainda a categoria racial pretonas, o que
indica que não eram apenas pretonas que trabalhavam no Ver-o-Peso, mas pretonas
mesmo, ou seja, pretas verdadeiramente, neste sentido.
Deste modo, retomo novamente as proposições de Patrícia Birman (op. cit) e
Yvonne Maggie (op. cit) quando indicam que no sistema de classificação racial brasileiro
existe uma certa preferência pelas gradações e por um continuum de cor, mas que isso não
implica dizer que, em determinadas ocasiões, não se faça uso de categorias raciais bipolares
ou tripartites, como nos mostra Sheriff (op. cit) e pode ser observado nos relatos acima de
minhas interlocutoras.
96
97
Porém, mesmo com a presença de termos que ressaltam categorias raciais e a
concepção de raça, o discurso destas informantes é permeado de gradações que obedecem a
lógica do continuum de cor como: morenos, morenas, morenas clara, pois como nos diz
Dona Maria Auxiliadora: “Eram de toda a cor né!(...) tinha gente de todo jeito lá”. O que
sugere novamente as considerações de Maggie de uma sociedade nacional que se
compreende misturada e não segregada, conseqüência do ideal de branqueamento, tese que
era também um projeto do Estado brasileiro, como já disse, e que, de certo modo, ainda
norteia nossa sociedade (cf. Skidmore, op. cit.). Embora se possa dizer que, mais
complexamente do que isto, mesmo se valendo do uso do continuum, ninguém deixe de
saber o que está dizendo ao falar das categorias de cor.
Neste sentido, e tratando também sobre o sistema racial brasileiro, Livio Sansone
(1996) acredita haver uma série de relações construídas sob um conjunto de regras
preestabelecidas em que existe um certo e problemático consenso, o qual ele denomina,
seguindo terminologia de Bourdieu, habitus racial. Para Sansone temos:
“um sistema racial não polar, caracterizado por um alto grau de miscigenação; uma tradição sincrética no campo da religião e cultura popular; um continuum de cor e uma norma somática que tem historicamente colocado os fenótipos negros na escala inferior da noção de ‘boa aparência’. Em torno desse sistema, como produto da tradição das relações raciais, tem-se construído um conjunto de regras sobre as quais existe um certo e problemático consenso, o qual podemos chamar de habitus racial” (1996: 207).
Desta forma, Sansone em suas pesquisas corrobora, de forma exemplar, as análises
de Birman (1989); Maggie (1996); no que se refere as inúmeras terminologias ou categorias
pertencentes ao continuum de cor. Também, porém de uma forma não explícita, podemos
pensar os termos “descritivos” e “categóricos” de Kofes (1976) e os discursos sobre raça,
cor e racismo de Sheriff (2001) a partir da noção de habitus racial proposta por aquele
autor.
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3 – Quadros sobre as gradações de cor e a forma como as categorias de cor/ raça foram utilizadas pelos informantes
Gradações de cor inseridas no Continuum de cor
branco brancos
branca branca
mesmo
claro clara moreninha moreno claro morena clara
moreno morena bem moreno
mulatos mulata escuro mais escuro mais escura muito escuro
muito escura bem escura bem escurona
mesmo
pretinho pretos preto pretonas
mesmo
bem preta
mesmo
negro
Termos Agregados/ Explicativos – indicam reforço e “intensidade” da cor/ raça
Assim quase meio bem mesmo mais muito
Categorias raciais que ressaltam a noção de raça
branco mulatos pretinho pretos preto pretonas mesmo negro
Termos equivalentes preto e negro bem escura, bem preta mesmo e preto ou negro
Termos não equivalentes
mais claro e branco
Considerações Finais
De tudo que pude apresentar até aqui, pode-se concluir que para identificação e
análise das imagens e interpretações criadas sobre o negro, construídas na cidade de Belém,
no período delimitado pela pesquisa (mesmo com poucos dados sobre a questão), o estudo
da história de vida e da memória social de velhos, homens e mulheres, negros e brancos se
revela como um instrumento importante para a apreensão da memória social de um
momento e locus específicos. Deste modo, para realização de um trabalho sobre história de
vida, o recurso metodológico do estudo da memória se revela de fundamental importância,
pois permite, talvez, melhor que qualquer outro, trabalhar com a subjetividade dos
indivíduos, pois as subjetividades tendem a ultrapassar as individualidades e atingem
características coletivas de grupos específicos (cf.; Bernardo, 1998; Bosi, 1979; Halbwachs,
1990; Pollak, 1992), possibilitando a análise de diversos temas que surgem a partir dos
relatos dos informantes, como por exemplo, arranjos familiares e de parentesco; relações de
trabalho; lembranças sobre a cidade e; principalmente, as classificações sobre raça e cor na
concepção dos brasileiros, que acabou por se constituir como o foco principal de análise
deste trabalho – porém, sem esquecer do objetivo inicialmente proposto. Além disso, a
história de vida enquanto metodologia qualitativa é de fundamental importância para
efetivação de uma pesquisa como a que faço, pelas razões já expostas.
Desta forma, a partir do relato dos interlocutores que se disponibilizaram em
participar da pesquisa, o estudo se preocupou em compreender como opera o sistema de
classificação racial brasileiro tendo como embasamento teórico as análises de Patrícia
Birman (1989) e Yvonne Maggie (1996) a respeito das inúmeras terminologias sobre cor/
raça que se conformam em gradações de cor e, estas por sua vez obedecem a lógica de um
certo continuum de cor. A diversidade de gradações de cor que permeia nosso sistema de
classificação racial, que segundo Maggie é decorrente de fatores como o ideal de
branqueamento, faz com que os brasileiros evitem termos que impliquem na diferenciação
entre negros e brancos, conseqüentemente privilegiando terminologias como: mais claro,
moreno, mais escuro, dentre outros, como pude mostrar ao longo deste trabalho.
99
Assim, devo acrescentar que as imagens e interpretações criadas sobre o negro em
Belém, no final do século XIX e início do século XX, fazem parte, e ao mesmo tempo,
ajudam a construir o complexo e ambíguo sistema de classificação racial brasileiro,
freqüentemente aparecendo no discurso cotidiano sem polarizações, apresentando inúmeras
terminologias e gradações de cor, principalmente, pelo fato das relações raciais serem
construídas sob um conjunto de regras preestabelecidas sobre o qual existe um consenso ou
habitus racial (Sansone, 1996).
Por outro lado, e pensando em outra questão pode-se dizer que, as Unidades de
Acolhimento a Pessoa Idosa – Val-de-Cans e Socorro Gabriel, onde ouvi os relatos para
meu estudo, encarnam o modelo de instituição total proposto por Goffman (1974), uma vez
que as pessoas que residem nestas instituições tem suas vidas administradas e controladas
por regras e normas estabelecidas pela equipe técnica ("equipe dirigente" para Goffman)
que as dirigem. Além disso, como aponta Foucault, as normas e as regras estabelecidas
nestas instituições se estruturam e tem como lógica de funcionamento o processo de
disciplinarização. Sendo assim, estes indivíduos acabam vivendo em estado de reclusão
social, “isolados” da sociedade maior, tendo seu único contato com esta através de outras
pessoas, apesar de não desligados por si mesmos, como mostra o exemplo dos internos da
UAPI - Socorro Gabriel, que passam a tarde inteira observando pelas frestas da parede o
que acontece do lado de fora da instituição – no “mundo de fora”.
No outro locus da pesquisa, a Associação Santa Luiza de Marillac, percebe-se que
esta instituição, além de ser uma associação sem fins lucrativos de caráter beneficente e
filantrópico, com intuito de ajudar idosos com necessidades e baixas condições de renda,
também se constitui como um espaço de convivência, interação e sociabilidade de mulheres
idosas, se configurando como um “grupo de convivência” ou de “terceira idade” como vem
sendo designados atualmente tais espaços sociais. Pode-se dizer, então, que na Associação
se comunga de valores, hábitos e gostos em comum, caracterizando-se, principalmente, a
idade e a feminilidade como fatores distintivos, fazendo com que essas mulheres idosas
tenham um sentimento de pertença a um grupo comum, ou seja, sintam-se fazer parte de
100
um mesmo grupo, onde se possui códigos e símbolos semelhantes que marcam a diferença
e o caracterizam como grupo.
Em conclusão, devo dizer que se os dados coletados na pesquisa de campo não
apontaram tão enfaticamente e de forma mais representativa para a temática das imagens e
interpretações formuladas sobre o negro em Belém, no período estabelecido pela pesquisa,
além de tais questões não serem abandonadas, foram os próprios dados que encaminharam
o desenrolar da análise para a questão que se tornou central no trabalho, pois os relatos das
histórias de vida dos informantes sobre: trabalho, cidade e, sobretudo, família apontaram
para um tema (não distanciado do problema inicial) verdadeiramente importante e até hoje
não tratado com tanta atenção, o sistema de classificação racial brasileiro. Assim, este
assunto acabou por se configurar como a discussão principal pela qual enveredei ao longo
deste trabalho.
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www.comciencia.br . Acesso em: 10/11/2003.
110
Apêndice I: Croquis UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel
111
112
Apêndice II: Cronograma de atividades das UAPI(s)∗
Cronograma de Atividades UAPI – Socorro Gabriel
Julho de 2003
Quarta-feira, 09 de julho Passeio
Quinta-feira, 10 de julho Festival de Picolés
Sexta-feira, 11 de julho Aniversariantes do mês de julho
Quarta-feira, 16 de julho Festival de Pizzas
Quinta-feira, 17 de julho Passeio
Quinta-feira, 24 de julho Festival de Açaí
Quarta-feira, 30 de julho Festival de Sanduíches
Quinta-feira, 31 de julho Aniversariantes do mês de julho
Cronograma de Atividades AUPI – Val-de-Cans
Dezembro de 2002
Dias da Semana
Manhã
Tarde
Segunda-feira
- Caminhada
- Oficina de artigos para decoração
natalina
- Oficina de artigos para exposição
Terça- feira
- Novenas às 7:30
- Oficina de fantoche e oficina de
decoração natalina
- Oficina de artigos para exposição
Quarta-feira
- Higienização
- Oficina de artigos para decoração
natalina
- Higienização
- Oficina de artigos para exposição
Quinta-feira
- Caminhada às 8:00
- Oficina de fantoche
- Oficina de artigos para decoração
natalina
- Oficina de artigos para exposição
Sexta-feira - Musicalização, dança,
brincadeiras, vídeos, etc.
- Relaxamento, jogos de salão, etc.
Sábados e Domingos
Livre para receber visitas
∗ Os cronogramas mostrados aqui foram selecionados por apresentarem uma maior variedade de atividades desenvolvidas pelas UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel, já que, esses meses que são considerados extraordinários, onde os idosos realizam outros tipos de atividades que não fazem parte do seu cotidiano.
113
Cronograma de Atividades AUPI – Val-de-Cans
julho de 2003
Quarta-feira, 02 de julho Passeio à praia de Outeiro
Quarta-feira, 09 de julho Festival do sorvete na UAPI – Lar da Providência
Quarta-feira, 16 de julho Passeio ao balneário de Neópolis
Quarta-feira, 23 de julho Festival do açaí
Quarta-feira, 30 de julho Encerramento da programação de férias no SESC
Cronograma de Atividades AUPI – Val-de-Cans
agosto de 2003
Sexta-feira, 01 de agosto Passeio no balneário de Neópolis
Sexta-feira, 08 de agosto Passeio a orla de Outeiro
Sábado, 09 de agosto Dia dos Pais
Sexta-feira, 22 de agosto Visita ao bosque Rodrigues Alves
Sexta-feira, 29 de agosto Aniversariantes do mês de agosto
114
Apêndice III: Pesquisa Bibliográfica
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