LETRAMENTO E ESCOLARIZAÇÃOPor Raimundo Nonato S. Damasceno Júnior1
1. LETRAMENTO
O termo letramento ainda é recente no Brasil. Surgiu na década de 80 e uma das
primeiras ocorrências foi no livro “No mundo da escrita: uma perspectiva
psicolingüística” de Mary Kato. Traduzido da expressão em inglês litteracy – cuja
origem etimológica é da palavra latina littera (letra) e quando adicionada do sufixo –cy,
qual em linhas gerais denota condição ou estado, significa ter a capacidade de escrever.
Em português, o sufixo –mento indica o resultado de uma ação, neste caso o de
aprender a ler e escrever.
Até pouco tempo, a palavra letramento não estava dicionarizada. De fato, são
poucos os dicionários que a trazem. Segundo Houaiss Dicionário Eletrônico da Língua
Portuguesa2, letramento é
Substantivo masculino:1. Diacronismo: antigoRepresentação da língua falada por meio de sinais; escrita2. Rubrica: pedagogiam. q. alfabetização (‘processo’)3. (déc. 1980) Rubrica: pedagogiaConjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito. (grifos meus)
Kleiman (2008) atribuiu a não dicionarização do termo a própria complexidade
do seu conceito e pelos variados cursos que ali se enquadram. A autora cita duas
situações para ilustrar: se um pesquisador faz um trabalho sobre letramento examinando
a capacidade que um sujeito analfabeto versus alfabetizado têm de refletir sobre a
própria linguagem então para esse pesquisador “ser letrado significa ter desenvolvido e
usar uma capacidade metalingüística em relação à própria linguagem.” (p. 17). No
entanto, se um pesquisador examina como um indivíduo de determinado grupo social
versus outro grupo social discutem sobre um livro, com a finalidade de se caracterizar
essa prática, então para ele “o letramento significa uma prática discursiva de
determinado grupo, que está relacionada ao papel da escrita para tornar significativa
1 Formado em Letras, Especialista em Leitura e Produção de Textos e professor do curso de Letras da Faculdade Evangélica de Brasília, atualmente, na disciplina de Língua Portuguesa IV – Introdução à Semântica.2 Extraído de http://intra/houaiss/cgi-bin/houaissnetb.dll/frame
essa interação oral, mas que não envolve, necessariamente, as atividades específicas de
ler e escrever” (p. 18)
A expressão letramento surgiu da necessidade de acompanhar mudanças que a
sociedade vem enfrentando no decorrer dos últimos anos, essas em que apenas saber ler
e escrever não é suficiente, é sim fazer o uso da leitura e escrita. Apareceu entre os
acadêmicos para distinguir o impacto social do aprendizado mecânico, escolarizado, da
escrita.
Soares (2010) define, ainda, letramento como “[...] estado ou condição de quem
não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a
escrita” (p. 47)
Contudo, letramento não está só diretamente ligada à leitura/escrita. Elementos
da oralidade também são levados em consideração. Determinadas estratégias orais
podem ser utilizadas no processo de letramento antes mesmo de o indivíduo se tornar
alfabetizado, ou até mesmo entre aqueles que não sejam alfabetizados.
Kleiman (2008) afirma que:
Uma criança que compreende quando o adulto lhe diz ‘Olha o que a fada madrinha trouxe hoje!’ está fazendo uma relação com o texto escrito, o conto de fadas. Assim, ela está participando de um evento de letramento [...]; também está aprendendo uma prática discursiva letrada, e portanto essa criança pode ser considerada letrada, mesmo que ainda não saiba ler e escrever. (p. 18)
A autora conclui ainda que outras práticas não escritas estão diretamente
ligadas às tecnologias gráficas, como o uso de aspas no ar, expressões como “deixa eu
fazer um parênteses”, etc. Tais ações indicam que quem as usam, mesmo não sendo
alfabetizadas, têm familiaridade com a escrita e, portanto, são letradas.
Fatos como esse reforçam a ideia de que o cidadão mesmo que não seja
alfabetizado, já que ele vive em uma sociedade na qual leitura e escrita têm presença
forte, é letrado. O processo de letramento vai além do processo de aquisição da leitura e
escrita e não se limita ao campo escolar.
Contudo, a similaridade dos conceitos faz com que ambos sejam confundidos.
O próximo item consiste em esclarecer a diferença entre os dois.
1.2. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: DIFERENÇAS
O processo de desenvolvimento da língua, seja oral ou escrito, é permanente,
uma vez que a aquisição do alfabeto ou o ensino do código da língua escrita não são
ações permanentes. A permanência está no uso e, consequentemente, no
desenvolvimento de tais ações.
Percebe-se a partir disso o quão aquém fica o conceito de alfabetização, tanto
etimologica quanto pedagogicamente: quanto à etimologia, é possível afirmar que
alfabetização, de acordo com Soares (2003), significa “(...) ‘levar à aquisição do
alfabeto’, ou seja, ensinar o código da língua escrita, ensinar as habilidades de ler e
escrever”. (p. 15). Quanto à pedagogia, a autora afirma que:
(...) atribuir um significado muito amplo ao processo de alfabetização seria negar-lhe a especificidade, com reflexos indesejáveis na caracterização de sua natureza, na configuração das habilidades básicas de leitura e escrita, na definição da competência em alfabetizar. (idem)
Atualmente, é possível afirmar que a alfabetização consiste em um processo de
representação de fonemas em grafemas e vice-versa, escrita e leitura, respectivamente.
Além disso, é também um processo de compreensão de significados.
Todavia, Soares também explica que:
A língua escrita não é uma mera representação da língua oral;
Os problemas da compreensão/expressão da língua escrita são diferentes
da oral.
Essencialmente, a alfabetização deve ter como foco tanto a estruturação do já
iniciado processo internalizado, isto é, a maioria dos alunos ao chegarem à escola já tem
a competência da fala, quanto à aliança das traduções (fonema/grafema) à
compreensão/expressão da língua.
Existe, ainda, uma terceira vertente. É importante considerar, também, a
influência do aspecto social – as características socioculturais e tecnológicas – durante
toda a ação.
No Brasil, por exemplo, dados do Índice Nacional de Analfabetismo Funcional
(INAF) 2009 apresentam que 20% da população que recebe até um salário mínimo é
analfabeta enquanto que essa porcentagem é nula entre os que recebem mais de cinco
salários mínimos. Entre os plenamente alfabetizados a diferença é ainda maior: no
primeiro grupo apenas 8% são alfabetizados, enquanto que no segundo o valor chega a
54%.
É perceptível que desde os primórdios as autoridades em educação, sejam de
todas as esferas governamentais sejam acadêmicos, não conseguem traçar estratégias
eficazes para combater o alto nível de analfabetismo no país.
Diversas áreas da academia – como Psicologia, Linguística e Pedagogia –
estudam as causas e consequências das elevadas taxas. Entretanto, cada uma trata da
questão de forma individual, isolada. Além disso, conforme Soares (2003) as
explicações são buscadas no aluno, no contexto cultural, no professor e metodologia ou
no material didático.
Ora, sabe-se que o processo de alfabetização não é simples, tampouco singular.
São necessárias diversas partes do conhecimento para que tal complexidade alcance o
patamar mais próximo, senão o próprio patamar, do sucesso. Todavia, tal feito só será
atingido se todas essas áreas do saber trabalharem em conjunto, com a perspectiva de
alcançar um conceito único para alfabetização, “[...] resultante da colaboração de
diversas áreas de conhecimento, e de uma pluralidade de enfoques, exigida pela
natureza do fenômeno, que envolve atores [...] e seus contextos culturais, métodos,
material e meios” (SOARES, 2003, p. 14)
Por falar em contextos culturais, é válido ressaltar a importância da
sociolinguística nessa discussão, isto é, a relação entre o processo de alfabetização e o
uso social da língua.
Em linhas anteriores, foi citado que aluno ao chegar à escola já tem certas
habilidades, como a fala, que contribuem para a alfabetização. Esse dialeto, o qual ela já
domina, pode estar, ou não, próximo da língua escrita convencional. Em outras
palavras, tal faculdade pode não seguir à norma padrão que está diretamente associada à
escrita. Daí a importância de levar em consideração, durante o processo, fatores sociais
e determinados materiais já que esses são condicionantes na aprendizagem da leitura e
da escrita, seja escolar ou não.
Com relação à alfabetização escolar é valido perguntar se a escola está
devidamente preparada para alfabetizar, no sentido de levar em consideração todo o
conhecimento prévio que o aluno traz consigo ao ingressar no meio acadêmico?
Culturalmente, a escola é uma instituição cercada por preconceitos. Ali se
entende que o processo de alfabetização é apenas o aprender a ler/escrever. Toda a ação
é como uma base mecânica para a aquisição de conhecimentos futuros, sem levar em
consideração todo conhecimento de mundo já conquistado pelo discente.
Além do preconceito linguístico, há também o preconceito social propriamente
dito: um aluno de uma camada social mais popular, ou até mesmo um que migrou da
zona rural para urbana, algumas vezes é ridicularizado pela sua forma de falar ou
pensar. Esse fator contribui negativamente para todo o processo.
Soluções políticas são fundamentais para que haja uma significativa melhora nos
resultados, entretanto sabe-se que há necessidade de reformular o processo de formação
dos professores. Soares (2003) afirma que:
A natureza complexa e multifacetada do processo de alfabetização e seus condicionantes sociais, culturais e políticos têm importantes repercussões no problema dos métodos de alfabetização, do material didático para a alfabetização, particularmente a cartilha, da definição de pré-requisitos e da preparação para a alfabetização, da formação do alfabetizador. (p.23)
Consoante à reformulação no processo de formação docente tem de existir a
mudança nas metodologias empregadas, as quais possivelmente só poderão acontecer
caso as estratégias não sejam traçadas de forma extremista e/ou polarizada. Além disso,
a formação do alfabetizador, no Brasil, não é feita de forma sistemática. A disciplina
exige uma preparação específica, pois é importante que o formando tenha a
compreensão de diversas áreas como linguística, sociolinguística e psicolinguística e
todos os condicionantes citados anteriormente, já que assim ele poderá adquirir
competência para organizar/operacionalizar estratégias na “elaboração e uso adequados
de materiais didáticos, e, sobretudo, que o leve a assumir uma postura política diante
das implicações ideológicas do significado e do papel atribuído à alfabetização”
(SOARES, 2003, p. 25).
Com relação a tudo que fora expresso em linhas anteriores é possível perceber a
diferença entre letramento e alfabetização: em resumo, enquanto o segundo trabalha
com a aquisição da leitura e da escrita, o primeiro vai adiante, trabalhando com a
perspectiva do envolvimento de tais tecnologias nas práticas sociais, pois ambas têm
“[...]consequências sobre o indivíduo, e altera seu estado ou condição em aspectos
sociais, psíquicos, culturais, políticos, cognitivos, linguísticos e até mesmo econômicos
[...]” (SOARES, 2010, p. 18).
Ao contrário do senso comum, seus antagônicos analfabetismo e iletrado
também são distintos: de acordo com Soares (idem), analfabeto é o ser que fora privado
do alfabeto, ou ainda que lhe falta alfabeto, isto é que não sabe ler ou escrever. Já o
iletrado é aquele que, por mais que seja alfabetizado, não consegue fazer o uso social da
leitura e escrita.
Pode parecer contraditório, mas é fundamental ressaltar que o processo de
alfabetização, seja escolar ou não, é extremamente relevante para o processo de
letramento. Isso porque ambas se complementam – o indivíduo já alfabetizado tem mais
facilidade para por em prática o uso da leitura e escrita. Contudo, existe uma diferença
entre saber ler e escrever e estar na condição de quem saber ler e escrever.
Quem aprende tais tecnologias e faz uso delas torna-se diferente social e
culturalmente. Lembrando que isso não está diretamente ligado à mudança no nível
social e sim na forma de pensar e de agir. Existem também consequencias linguísticas –
a pessoa fala diferente, passa a ter interpretações diferentes do material que é lido e há a
interferência da língua escrita sobre a falada, causando mudanças no vocabulário.
Transcrevendo aqui o que diversos teóricos afirmam, um indivíduo
alfabetizado não é de fato um letrado; o primeiro é aquele que sabe ler e escrever e o
segundo e o que vive em estado/condição de letramento, isto é, usa socialmente a
tecnologia da leitura e escrita.
Atualmente, é essa expressão “usar socialmente a escrita” que está
distanciando o letramento do processo de alfabetização. A forma mecânica que as
escolas utilizam para alfabetizar não desperta em seus alunos a necessidade de por em
prática o que lhes é ensinado durante o curso. Não basta somente ler e decodificar – é
importante aliar o que está sendo lido aos conhecimentos de mundo já adquiridos
mesmo antes de ingressar ao ensino regular. E é exatamente isso que o letramento
propõe.
A chave para isso está no que Soares (2010) chama de “alfabetizar letrando” –
fazer uma aliança entre alfabetização e letramento, e parar de pensar que os dois
processos estão em extremos distintos.
1.3 – OS MODELOS DE LETRAMENTO
Street (1984 apud Kleiman 1995) apresenta dois modelos de letramento:
autônomo e ideológico.
No primeiro supõe-se que existe apenas uma maneira de o letramento a ser
desenvolvido, associando-o com o progresso, a civilização e a mobilidade social. Essa é,
justamente, a ideia que prevalece na sociedade atual – a qual a primeira impressão soa
contraditória ao nome, autônomo.
A autonomia reside no fato de que o processo de letramento não está
diretamente ligado ao contexto de sua produção, afetando inclusive a maneira como
seria interpretado. A interpretação estaria determinada pela lógica do texto, sem levar
em consideração as “reformulações estratégicas que caracterizam a oralidade, pois, nela
[...] utilizam-se outros princípios que os regidos pela lógica, a racionalidade, ou
consistência interna, que acabam influenciando a forma da mensagem” (STREET, 1984
apud KLEIMAN, 1995, p. 22). A polarização da oralidade e da escrita é uma das
características desse modelo – podendo inclusive levar em consideração os textos que
mais se aproximam da fala.
Para Street (idem):
Os anunciados conversacionais tendem a ser pouco planejados, informalmente empregados, e expressam conteúdos informais. Os textos escritos, por outro lado, tendem a ser cuidadosamente planejados, utilizados seletivamente, e expressam conjuntos formais de conhecimento. (apud Kleiman, 1995, p. 28)
Inúmeros são os estudos que se contrapõem as afirmações do autor: nem todos
os textos escritos são formais, há vários gêneros que comprovam isso – tais como cartas
e bilhetes – assim como nem todos os eventos de fala são informais – tal como a
apresentação de um seminário e até mesmo uma aula.
Alguns autores trabalham com a perspectiva do paralelismo ao invés da
dicotomia entre fala e escrita. Isto é, os eventos de fala e escrita são complementares. O
que vai definir a formalização é o contexto em que estão inseridos.
Tal paralelismo se aproxima do outro modelo de letramento que contrapõe o
autônomo, chamado de ideológico. Aqui, as práticas são determinadas por
características culturais e sociais do meio, mudam segundo o contexto.
Por consequência, ao contrário do proposto no modelo anterior, o ideológico
investiga os fatos de letramento ocorridos em esferas sociais, nas quais os
funcionamentos comunicativos unirão oralidade e escrita, e esses não sendo vistos de
maneira dicotômica.
Neste modelo, o autor afirma que
qualquer estudo etnográfico do letramento atestará, por implicação, sua significância para diferenciações que são feitas com base no poder, na autoridade, na classe social, a partir da interpretação desses conceitos pelo pesquisador. Assim, já que todos os enfoques sobre o letramento terão um viés desse tipo, faz mais sentido, do ponto de vista acadêmica, admitir e revelar, de início, o sistema ideológico utilizado, pois assim ele pode ser abertamente estudado, contestado e refinado. (1993 apud Kleiman, 1995, 38).
Para ilustrar, Kleiman (1995) cita um estudo etnográfico realizado em pequenas
comunidades no Sul dos Estados Unidos. A intenção é demonstrar que o modelo
prevalente nas escolas, de orientação tradicionalmente letrada, é visto como uma
continuidade no desenvolvimento linguístico de crianças socializadas em grupos
majoritários, escolarizados – contudo, representa uma ruptura dentre aqueles que estão
fora desse grupo. Serão analisados, portanto, os eventos de letramento.
Na análise fora possível constatar que existe uma valorização acerca dos eventos
de letramento, quaisquer que fossem, já que “qualquer iniciativa da criança de começar
um evento de letramento faz com que uma interrupção de uma conversação entre os
adultos [...] sejam aceitáveis e bem-vindas”
Naturalmente desenvolvido, pode-se afirmar hoje que letramento não foca
somente a construção da escrita como fenômeno universal, sócio-culturalmente
indeterminado. O processo é determinado como um conjunto de práticas sociais, de
alguma forma e não necessariamente, ligadas à escrita, em contextos e para finalidades
específicos. As práticas escolares não devem ser diferentes, apesar da insistência no
prevalecimento do modelo autônomo. Conforme citado, tradicionalmente considera-se
que a aquisição da tecnologia da escrita está aliada e é responsabilidade da escola e do
processo que por ela se dá, a escolarização.
Não obstante a isso, surgiu o processo de letramento que na intenção de
aprimorar a alfabetização escolar acabou por tornar talvez simplório a ouvidos de
muitos o processo de aquisição mecânica da escrita. Soares3, na tentativa de apresentar
que ambos são essenciais para o processo de desenvolvimento linguístico do indivíduo
afirma que:
[...] a inserção no mundo da escrita se dá por meio da aquisição de uma tecnologia – a isso, chama-se alfabetização – e por meio do desenvolvimento de competências (habilidades, conhecimentos, atitudes) de uso efetivo dessa tecnologia em práticas sociais que envolvem a língua escrita – a isso, chama-se letramento
Daí a importância de se considerar um modelo ideológico de letramento. Ambos
os processos são distintos, porém, por mais contraditório que pareça, interligados. A
alfabetização não precede e tampouco é pré-requisito para o letramento. Soares (idem)
3 Extraído de http://www.construirnoticias.com.br/asp/imprimir.asp?id=1247. Disponível em 20/10/2011
coloca ainda que “Analfabetos podem ter certo nível de letramento: não tendo adquirido
a tecnologia da escrita, utilizam-se de quem a tem para fazer uso da leitura e da escrita”.
Essa colocação fica clara quando no cotidiano é possível perceber pessoas
analfabetas, ou alfabetizadas funcionalmente, isto é, aquelas que mesmo sabendo
ler/escrever não têm a habilidade de interpretar/elaborar textos mais longos, que
conseguem lidar com práticas simples como pegar um ônibus, utilizar caixas
eletrônicos, reconhecer placas de sinalização – e até mesmo práticas mais específicas,
relacionadas ao seu trabalho.
1.4 – TEORIA SOCIAL: EVENTOS E PRÁTICAS
Evoluindo as discussões acerca da utilização da escrita como prática social,
Barton e Hamilton (1998) e Barton, Hamilton e Ivanic (2000) desenvolveram a Teoria
Social do Letramento, a qual defende que as práticas de leitura e escrita estão
diretamente relacionadas ao setor da sociedade em que se encontra e às relações de
poder ali impostas – contribuindo efetivamente para os processos de mudança social do
individuo.
Segundo Carvalho (2006) os autores adotam dois conceitos fundamentais para a
compreensão dessa teoria: práticas e eventos de letramento. No primeiro, são levados
em consideração elementos cotidianos que envolvem a escrita, moldados por regras que
regulam o seu uso; “[...] são maneiras culturais de utilização da linguagem escrita, que
envolvem valores, atitudes, sentimentos e relações sociais, ou seja, são processos sociais
nos quais as pessoas são envolvidas e partilham ideologias e identidades sociais” (p.
25).
Além disso, o conceito de prática “[...] oferece uma maneira de conceitualizar a
ligação entre as atividades de leitura e escrita e as estruturas sociais nas quais elas estão
envolvidas e as quais elas ajudam a moldar” (BARTON, HAMILTON e IVANIC, 2000,
apud CARVALHO, 2006, p. 25).
O segundo conceito, eventos de letramento, é muito próximo do primeiro. Neste,
considera-se todos os eventos que envolvem leitura e escrita, ou apenas a escrita de
forma isolada. Nessas atividades o letramento tem uma função importante para sua
realização, estando diretamente ligados ao ambiente social em que estão inseridos.
Segundo Street (apud Carvalho 2006) a prática de letramento é uma seleção de
eventos de atividades escritas ligadas aos contextos sócio-culturais. As práticas, ainda,
“[...] estão situadas em diferentes domínios da vida social e são moldadas de acordo
com as instituições, as relações sociais e de poder, o tempo, o lugar, e podem sofrer
mudanças” (p. 27)
2. ESCOLARIZAÇÃO
Existe um vínculo perceptível entre alfabetização e escolarização, partindo do
pressuposto comum de que a aquisição de leitura e escrita é feita pelo processo escolar.
Contudo, não existe essa percepção na relação letramento e escolarização, já que a
sociedade, inclusive a escolar, não compreende – e às vezes até resistente à
compreensão – que o ambiente pedagógico é cercado por práticas sociais que são
importantes para o desenvolvimento linguístico do aluno.
Ocorre que nessa resistência, o discente é induzido a levar consigo o preconceito
que lá persiste em existir. Em contraponto, o ato, também, prejudica o processo de
alfabetização. Atualmente, é indiscutível que com o advento do Letramento Digital e
com o amplo acesso a rede de acesso à internet, a escrita não-padrão sofreu alterações.
O problema reside no fato de que a escola, por sua natureza tradicional, não
aceita tais variações, afastando o aluno cada vez mais do espaço pedagógico e
dificultando o entendimento das regras que cercam tanto o ensino de Língua Portuguesa
quanto o das outras ciências.
Talvez, a solução estaria no aproveitamento dos textos produzidos
informalmente pelo aluno e na apresentação do conceito de adaptação da fala e da
escrita, em que momento o formal e o informal devem ser usados.
Quando o assunto é Educação de Jovens e Adultos (EJA) o tema ainda é mais
delicado. Insistindo na escola como um espaço conservador, o aluno da EJA tende a
seguir o mesmo caminho. Em sua visão, o processo de aquisição da leitura e escrita, a
alfabetização, precede às práticas de letramento – ou ainda, para ele tais práticas não
devem ser levadas em consideração no ambiente escolar.
No entanto, é nesse ponto que se pode reforçar a ideia de que, por mais clara que
seja, aos olhos de muitos não é óbvia a relação entre letramento e escolarização: no
modelo de alfabetização introduzido por Paulo Freire, o círculo de cultura, o processo
de aquisição da leitura e escrita acontece por intermédio de atividades que são ligadas
ao meio social em que os alunos estão inseridos.
Talvez a relação letramento/escolarização não seja tão óbvia porque não
proporciona um resultado visível. O letramento acontece a partir de práticas, sejam elas
escolares ou sociais, que demandam, direta4 ou indiretamente, o uso da escrita. À luz da
escolarização, a alfabetização pressupõe um resultado final, atestando ou não a
eficiência do método de aquisição da leitura/escrita. O letramento, mesmo que seja sob
o mesmo ponto de vista, é um processo permanente e, consequentemente, se torna
impossível determinar quando o iletrado se torna letrado.
O que deve ser ressaltado é que os dois processos, letramento e alfabetização,
não devem ser isolados, apesar de suas particularidades, essas que a partir do momento
que são juntadas passam a ser superadas.
As superações acontecem a partir do momento em que a escola permita “o
acesso externo”, no sentido de autorizar a inserção de aprendizados ora trazido pelos
alunos, como aqueles adquiridos em espaços não acadêmicos, isto é, na família, igreja,
grupos sociais, etc.
A escolarização das práticas de leitura e escrita faz com que as instâncias do
processo de letramento escolar sobrepõem as do processo de letramento social. Todavia,
a culpa não pode recair somente para a instituição: o prestígio sobre a norma culta
imposta pela sociedade no geral e ainda a própria resistência dos pais e alunos em
aceitar que a escola desenvolva um novo papel perante o ensino de Língua Portuguesa –
4 Entende-se aqui que as práticas diretas que envolvem a escrita são aquelas realizadas pelo próprio indivíduo, seja ele plenamente alfabetizado ou alfabetizado funcionalmente. As indiretas são aquelas realizadas por terceiros, no auxílio ao indivíduo analfabeto.
seja durante o processo de alfabetização seja durante o processo de aquisição de normas
mais complexas – faz com haja esse atraso no processo de ensino/aprendizagem.
Soares5 afirma que:
[...] o conceito escolar de letramento contamina os eventos e as práticas no contexto extra-escolar, impondo comportamentos escolares de letramento e marginalizando outras variedades de letramento próprias desse contexto. [...] é como se o letramento social, passando pelo crivo da escolarização, retornasse à sociedade “corrompido” pelo letramento escolar. Ocorre aqui algo semelhante ao que ocorre com o vínculo entre alfabetização e escolarização, mencionado anteriormente, em que a alfabetização escolar se torna padrão e parâmetro para as modalidades de alfabetização não-escolar.
Na verdade, é possível concluir que tanto o letramento escolar quanto o social,
mesmo que se parta do pressuposto de que ambos ocorrem em espaços distintos, são
partes de um processo social que tem um alcance maior do que o da alfabetização e que
o contexto no qual o evento de letramento ocorre é que vai definir a prática a ser
utilizada.
5 Extraído de http://www.construirnoticias.com.br/asp/imprimir.asp?id=1247