8/9/2019 Modernizao, Mercado e Democracia: poltica e economia em sociedades complexas
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Modernizao, Mercado e
DemocraciaPoltica e Economia em Sociedades Complexas
Bruno Pinheiro Wanderley Reis
Tese de doutorado apresentada ao InstitutoUniversitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro comorequisito parcial para a obteno do grau de Doutor emCincia Poltica.
Banca Examinadora:
________________________________________Prof. Maria Regina Soares de Lima (orientadora)
________________________________________Prof. Fabiano Guilherme Mendes Santos
________________________________________Prof. Fernando Magalhes Papaterra Limongi
________________________________________Prof. Maria Hermnia Tavares de Almeida
________________________________________Prof. Renato de Andrade Lessa
Rio de Janeiro, 1997
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A meus paise memria de meu av
Luiz Pinheiro (1896-1985) exemplos.
Fatinha motivo.
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Lconomie politique est la vritable et unique fondement de la politique.
Saint-Simon(apudW. G. Runciman, Cincia Social e Teoria Poltica, p. 35)
Seek ye first the political kingdom and all things will be added unto it.
Kwame Nkrumah(apudSamuel P. Huntington, The Goals of Development, p. 10)
We are not students of some subject matter but students of problems.Karl R. Popper
(The Nature of Philosophical Problems and their Roots in Science, de 1952,em Conjectures and Refutations, p. 67)
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ndiceAgradecimentos v
INTRODUO 1
PARTE I MODERNIZAO E POLTICA 10
Captulo 1 Para um conceito de modernizao 111.1. Sistemas, estruturas e funes 161.2. Mercado e inovao tcnica: para um conceito de modernizao 25
Captulo 2 A poltica moderna 442.1. A esfera da poltica no contexto da modernizao: alguns temas centrais 45
2.1.1. A ignorncia da poltica e a modernidade idealizada: o fim (ou quase) do estado 452.1.2. Hobbes e Weber: a racionalizao como coordenao de expectativas 522.1.3. Instituies e carisma; institucionalizao e autoridade 60
2.2. A poltica nas sociedades modernas: desenvolvimento poltico? 652.2.1. Estado nacional e crises; sistema poltico e capabilities 652.2.2. Democracia e autoritarismo em sociedades complexas:
modernizao acelerada e instabilidade institucional 702.2.3. Normas e o problema da cooperao 792.2.4. Desenvolvimento poltico 88
PARTE II ECONOMIA E POLTICA:INSTITUIES E DESEMPENHO ECONMICO 98
Captulo 3 O mercado e a norma:o estado moderno e a interveno pblica na economia 99
3.1. O lugar do mercado 99
3.1.1. Sociedade moderna e mercado 1003.1.2. Mercado e democracia 1043.1.3. O mercado contra o estado? 107
3.2. Explicitando o dilema: o mercado como Dr. Frankenstein(ou, de como o estado vem a agir) 111
3.3. Democracia e desenvolvimento:public choice, capital poltico, embeddedautonomy, transies 122
Captulo 4 Poltica e economia no Brasil recentee alguns dilemas contemporneos 148
4.1. Construo nacional e construo do estado no Brasil 1484.2. O estado e a burocracia 1584.3. Intermediao de interesses e o corporativismo brasileiro 1644.4. A economia poltica do Brasil contemporneo e sua agenda pblica 176
4.4.1. O estado e a crise 1764.4.2. A funcionalidade da inflao e as dificuldades do ajuste 1784.4.3. A dinmica poltica da reforma econmica (e algumas armadilhas previsveis) 186
Notas finais ( guisa de concluso):desenvolvimentismo, esquerda, direita, mercado 196
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 206
NDICE REMISSIVO DE NOMES 224
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Agradecimentos
Um trabalho que, alm de concluir sete anos de doutorado, exprime tambm
pela cada vez menos peculiar trajetria de seu autor o resultado de dois intensos anos
de aprendizagem no mestrado certamente deve muito a mais pessoas do que seria
possvel nomear aqui.
Em primeiro lugar, creio ser meu dever expressar meu dbito com o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), que me beneficiou com
diversas bolsas de estudo (aperfeioamento, mestrado e doutorado) ao longo de sete
dos ltimos dez anos.
Minha orientadora, a Prof. Maria Regina Soares de Lima, se disps muito
gentilmente a assumir minha orientao em momento particularmente delicado de
meu doutorado (a quarenta dias do prazo para a entrega do projeto), quando eu j
sequer morava no Rio de Janeiro, e soube contornar, com seriedade e serenidade, todas
as dificuldades de comunicao e acompanhamento do trabalho advindas da distncia.
Ao Departamento de Cincia Poltica da UFMG minha casa em mltiplos
sentidos , a cujo corpo docente me orgulho de pertencer j h quase quatro anos e em
cujo interior foi integralmente redigido o presente trabalho, devo a oportunidade queme foi concedida de amadurecer as reflexes aqui contidas no interior da rotina
privilegiada de professor universitrio que nos concede tanto a sala de aula para
enunciar e submeter nossas idias ao crivo dos estudantes durante sua gestao quanto
o necessrio retiro temporrio quando chega a hora de transform-las em texto
inteligvel. Particularmente devo mencionar as pessoas de Marco Cepik, Vera Alice
Cardoso Silva, Jarbas Medeiros, Ftima Anastasia, Antonio Mitre, Leo Avritzer e
mais recentemente Renato Boschi e Eduardo Zauli, como colegas que em ocasies
distintas e de formas variadas submeteram-se pacientemente s elucubraes de um
colega doutorando s voltas com sua tese. Prof. Vera Alice eu devo tambm um
curso de Poltica Comparada que freqentei antes de minha admisso, e que
certamente exerceu papel importante nos rumos posteriormente tomados pela tese.
No Iuperj, como fartamente sabido por todos aqueles que j freqentaram
esta casa, contei com um ambiente profissional extremamente estimulante, de que
pude desfrutar sobretudo nos dois anos do mestrado: Alberto Almeida, Andr
Nogueira, Frederico Duro Brito, Leandro Piquet Carneiro e, na qualidade privilegiadade membros honorrios, Octavio Amorim, Clia Lessa, Luis Fernandes e Tereza
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Ventura compuseram o ncleo do que se pode de modo amplo denominar como
minha turma naqueles anos. Merece meno parte entre os colegas de mestrado
meu querido amigo Adriano Cerqueira, conterrneo que conheci apenas quando ambos
nos mudamos para o Rio, mas que rapidamente se tornou daqueles raros amigos que se
sabe eternos. Fomos e voltamos juntos, e dele e de Letcia eu sempre pude contar com a
amizade fraterna, a ateno desinteressada e posteriormente mesmo o carinho dos
filhos.
Ainda entre aqueles com quem convivi no Iuperj, no posso deixar de
mencionar o hoje Prof. Fabiano Guilherme Mendes Santos. Em momento importante
da elaborao do projeto desta tese, pude me valer da camaradagem que resultara de
minha permanncia anterior no Rio para obter generosas pistas que ajudaram a dar
rumo e orientao ao projeto ento em elaborao. verdade que posteriormente oprojeto sofreu novas e inesperadas inflexes, mas dessas devo dizer que ele
completamente inocente.
Eu seria gravemente injusto se no mencionasse aqui tambm a importncia
crucial do Prof. Luiz Werneck Vianna nos meus anos de formao no Iuperj. Sua grande
generosidade com o meu trabalho, sua extraordinria receptividade a um aluno que
afinal tinha formao e interesses em muitos pontos to diferentes dos seus, seu
incentivo e sua confiana manifestados de vrias formas em diferentes momentos
naqueles anos desempenharam papel profundamente marcante certamente maior do
que ele imagina no meu processo de profissionalizao.
De Leila Frischtak obtive, em decorrncia de breve contato no XVIII Encontro
Anual da Anpocs em 1994, no apenas o impulso para uma importante reorientao da
tese, a que me refiro na introduo, mas tambm o generoso envio de abundante
material resultante do projeto do Banco Mundial Comparative Research on
Governance Capacity and Adjustment por ela coordenado. Infelizmente, a orientao
terica, ou de maneira menos auto-indulgente monogrfica, que dei tese
acabou por minar minha capacidade de processamento adequado do material emprico
ali contido, ao dedicar a discusses sobre a literatura terica o tempo que teria sido
necessrio para o exame adequado dos variados casos ali contemplados. Outros
certamente sabero aproveitar com mais competncia que eu prprio as valiosas
evidncias ali agrupadas.
Tampouco hesitei em abusar do parentesco com a Prof. Elisa Reis para dela me
beneficiar em diversos momentos. Na elaborao do projeto ela foi uma interlocutoracrtica imprescindvel, que por telefone me salvou de cometer impropriedades e
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ingenuidades diversas. Tambm para a redao do primeiro captulo da tese encontrei
nela uma leitora minuciosa, que me apontou diversos erros, impropriedades e lacunas.
Esforcei-me por seguir suas recomendaes, mas bem sei que no consegui atender a
todas o que de sada deve isent-la de culpa pelo que l se encontra escrito.
A propsito, o extenso nmero de familiares prximos que tenho no Rio
tornaram minha estadia no Iuperj mais fcil de inmeras maneiras. Devo mencionar
especialmente meus tios Iracema e Dico Wanderley, que em momentos diferentes e de
maneiras diversas propiciaram-me simplesmente algum lugar onde morar.
J escrevi em outro lugar mas nunca demais repetir que a meus pais eu
devo o simples fato de algum dia ter me envolvido com cincias sociais.
Particularmente a influncia substantiva de meu pai sobre o meu trabalho pode ser
facilmente constatada por qualquer pessoa que passe os olhos sobre as referncias
bibliogrficas desta tese a despeito do fato de que ele sempre fez questo de se manter
a uma respeitosa distncia da evoluo do trabalho. Mas apenas justo dizer que de
meu pai e minha me obtive no apenas a formao humanstica mas tambm o
exemplo do trabalho dedicado, rigoroso e desinteressado. Pude aprender com eles e
com meu av Luiz Pinheiro que real a recompensa de uma dedicao desinteressada
ao trabalho e s pessoas que nos cercam. Na companhia deles alm de Slvia,
Maurcio, Clarinha, Didinha e Daniel tenho uma casa onde viver, um lugar no
mundo onde nos habituamos a discusses s vezes intensas, e que certamente me ajuda
a exercer a profisso que escolhi.
Da Fatinha, minha esposa, minha mais querida amiga j h tantos anos, posso
apenas dizer que para merec-la que me esforo a cada dia de trabalho. E a ela que
ofereo este modesto resultado, na esperana de agora finalmente livres das
obrigaes que nos impusemos nesses primeiros sete anos poder apenas
compartilhar gostosamente a aventura que se anuncia com o aumento da famlia nos
prximos meses.
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Finalmente, uma ltima palavra eu gostaria de dedicar memria de Antnio
Luiz Paixo, com quem infelizmente nunca tive um relacionamento muito mais que
ocasional ainda que sempre afetuoso. A ele eu deverei para sempre a generosa
acolhida de um projeto de aperfeioamento que lhe foi apresentado, em 1987, por um
esbaforido estudante de economia, s vsperas do esgotamento do prazo para entrega
de um projeto ao CNPq. Aquele foi, sob vrios aspectos, o ponto de partida de todo o
trabalho que encontra aqui uma sntese provisria. Contudo, jamais tendo eu passado
de um amador em sociologia, no ousarei dedicar sua memria o presente resultado.
Belo Horizonte, novembro de 1997.
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Introduo
Desde bastante cedo em minha formao profissional, quando eu apenascomeava minha graduao em Cincias Econmicas, espantava-me na
macroeconomia a sua pretenso de no apenas compreender, mas sobretudo lidar com
os fenmenos do universo econmico a partir de grandes nmeros que representavam
agregaes em larga escala de uma infinidade de pequenas aes cotidianas cumpridas
rotineiramente, muitas vezes distraidamente, por cada um de ns. Convivendo com um
processo j antigo de inflao crnica que naquele incio dos anos 80 apenas comeava
a se tornar agudo, eu ficava perplexo no com os sucessivos reveses da poltica
econmica daquele tempo, como talvez se possa imaginar, mas, ao contrrio, com ofato de que, bem ou mal, o governo pudesse de fato influir nos acontecimentos (e,
muito particularmente, na velocidade em que subiria o ndice de preos) a partir do
manejo de alguns relativamente poucos instrumentos de poltica econmica:
tarifas, juros, emisso de moeda, gastos diretos, para no mencionar a pura e simples
coero estatal atravs da qual se impem diversos mecanismos de controle de preos,
inclusive a poltica salarial e os direitos sociais e trabalhistas. Particularmente o
problema da inflao sempre me pareceu o mais intrigante: constitudo por oscilaes
variadas dos preos de uma infinidade de minsculas transaes cotidianas
empreendidas por virtualmente todos os habitantes do pas, o ndice no entanto
aparecia como um dado para quase todos os agentes tomados individualmente e
apenas o governo, por uma complexa pilotagem de uns poucos agregados
macroeconmicos, parecia ser (embora cada vez menos) capaz de influir em seu
comportamento.
Estimulado por um rpido curso de metodologia das cincias sociais, lecionado
pelo Prof. Renan Springer de Freitas para alunos de graduao em economia, obtivejunto ao CNPq, ao final de minha graduao, uma bolsa de aperfeioamento para o
desenvolvimento de um projeto ambiciosamente denominado Racionalidade
Individual, Contexto Institucional e Capitalismo: Um Plano de Estudos, em que eu
pretendia justamente atacar minhas perplexidades bsicas sobre essa interao micro-
macro, debruando-me sobre a apropriao feita pela cincia poltica e pela sociologia
do arsenal metodolgico tpico da cincia econmica, consubstanciada na lgica da
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caracteriza o conflito distributivo, e que o equilbrio subtimo dominante resultava na
reafirmao continuada de pretenses de renda mutuamente incompatveis, com
resultado inflacionrio. A soluo teria de envolver, em alguma medida, a
institucionalizao estvel do sistema poltico, de maneira a prover a necessria
instncia coordenadora a um encaminhamento negociado do conflito distributivo.
Entendo que esse argumento basicamente correto (e ele se mantm no
presente trabalho), mas nestes ltimos cinco anos operou-se um progressivo
deslocamento de nfase. Antes de mais nada, necessrio salientar que o argumento
exposto acima incorpora dois nveis de anlise: o primeiro digamos, o plano
econmico da anlise reside na especificao da estrutura lgica da situao tpica
dos atores individuais imersos no conflito distributivo a partir da utilizao de certas
estruturas de interao bastante elementares da teoria dos jogos (assim, afirma-se queo conflito distributivo poderia ser genericamente descrito como um dilema do
prisioneiro, uma soluo cooperativa estvel deveria envolver sua transformao num
jogo da garantia etc.); o segundo plano digamos, sociolgico est incorporado
no recurso a Huntington, e todo o substrato sociolgico implicitamente presente em
seu argumento sobre as razes da fragilidade institucional de pases submetidos a
processos acelerados de modernizao. Em sua forma original, o projeto conferia clara
nfase composio do plano econmico do argumento, e o recurso a Huntington
servia apenas para fornecer um tanto impressionisticamente certas
caractersticas bsicas do contexto nacional dentro do qual a inflao havia prosperado,
e que tornava sua remoo particularmente penosa.
Nos anos imediatamente seguintes, todavia, foi bastante fcil perceber que
vrios colegas tinham tido a mesma idia que eu, e a configurao do problema
inflacionrio como um dilema do prisioneiro tpico, com equilbrio subtimo, comeou
a se tornar um lugar comum e, o que pior, eventualmente configurado de maneira
formalmente mais rigorosa ou empiricamente mais fundamentada do que eu poderiafazer.5 Por outro lado, os aspectos do argumento at ali deixados em segundo plano
comeavam a dar sinais de que mereceriam mais ateno. Um primeiro sinal claro
5 O trabalho foi levado a cabo tambm por economistas, mas no s. Gustavo Franco, Inrcia eCoordenao, talvez seja at hoje o mais freqentemente citado, mas Edward Amadeo, O Desafio daEstabilizao no Brasil, pp. 1-2, tambm classificou a nossa inflao como um problema de aocoletiva. Para mencionar um no-economista, William Smith, Reestruturao Neoliberal e Cenrios deConsolidao Democrtica na Amrica Latina, pp. 211-6, tambm incluiu o comportamento free-riderem polticas de estabilizao em sua interpretao da lgica macroeconmica na Amrica Latina. Mesmomelhorias e refinamentos no tardaram a surgir: Leslie Elliott Armijo, Inflation and Insouciance,contesta diretamente a caracterizao de Franco da inflao como um problema de ao coletiva, edestaca as conseqncias perversas do fato de que nem todos os atores importantes desejam aestabilizao; e William Ricardo de S, Jogos Inflacionrios e Jogos de Estabilizao, mostra que osproblemas relacionados estabilizao vo muito alm da presena de caronas.
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nessa direo derivou da leitura atenta que uma amvel proposta de redao de uma
resenha prontamente aceita, mas jamais atendida me levou a fazer do volume
Estado, Mercado e Democracia, organizado por Lourdes Sola e publicado em 1993.6
Publicao particularmente importante no cenrio editorial acadmico brasileiro
tanto pela relevncia quanto pelo inusitado de seu contedo, congregando uma srie de
trabalhos de autores de diversas partes do mundo, a maioria inditos mesmo em seus
idiomas de origem , sua leitura me provocava, todavia, a forte sensao de que
estamos todos basicamente perdidos, tateando no escuro diante do objeto constitudo
pelas relaes entre o sistema poltico e o sistema econmico; ou entre democracia e
mercados; ou, ainda, mais especificamente, entre o processo de democratizao e o
desafio do ajuste estrutural das economias. Foi freqente a impresso de que o ncleo
duro dos argumentos dos captulos especialmente daqueles dedicados aos estudos
de casos residia sobretudo nos aspectos econmicos, apoiando-se no recurso teoria
econmica; e foi inevitvel a sensao de que nossas principais lacunas esto a
demandar reflexo em teoria poltica.
Fundamentalmente, quase todos os trabalhos me pareceram estar s voltas com
o problema huntingtoniano bsico da instabilidade poltica crnica e mais
especificamente do dficit de autoridade (ou, como mais comum se referir a ele nos
dias de hoje, de legitimidade) do estado em sociedades sob processo de modernizao
acelerada. Mas poucos o formulavam com clareza, e apenas Lourdes Sola e James
Malloy se referem explicitamente a Huntington. Seu trabalho torna-se central para o
tema por tratar precisamente dos efeitos ambguos que processos de modernizao
acelerada produzem nos sistemas polticos de sociedades tradicionais. Ambguos
porque ao mesmo tempo que estes processos costumam ao diluir distines
estamentais tradicionais engendrar algum tipo de democratizao poltica, eles
tambm invariavelmente produzem grave instabilidade poltico-institucional, ao
deslocar sistemas de dominao vigentes, em alguns casos, h vrios sculos. Em
termos clssicos, os novos sistemas polticos, criados s vezes de maneira um tanto
abrupta, se vem em dificuldades para lograr o reconhecimento de sua autoridade por
todos os cidados assim, a crise poltica deflagrada pelo processo de modernizao
no encontra soluo automtica na mera instaurao de novas regras.
O trabalho sofreu uma inflexo definitiva durante o XVIII Encontro Nacional da
Anpocs, em 1994, quando se tornou claro para mim que era este plano sociolgico o
6 Sou extremamente grato Prof. Maria Hermnia Tavares de Almeida pelo gentil convite. E ainda seu devedor.
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aspecto do argumento a ser privilegiado na anlise. L pude assistir a uma comunicao
de Lourdes Sola em que ela discutia as dificuldades enfrentadas pelo Banco Central do
Brasil para exercer seu papel de autoridade monetria nos anos recentes, e destacava a
importncia na ampliao dessas dificuldades da radical incerteza em que
mergulhava a conjuntura poltica brasileira naqueles anos, em virtude das mltiplas
transies simultaneamente enfrentadas: democratizao, reforma do estado,
combate inflao, reforma constitucional e transio tecnolgica.
Complementarmente, Leila Frischtak se dirigia frontalmente ao problema da
capacidade de governo (totalmente anlogo ao grau de governo a que se referia
Huntington) a partir do efetivo exerccio de liderana institucional pelo estado,
escapando captura pelos grupos privados mais poderosos. Em seu diagnstico, o
sucesso de um projeto de reformas do aparato estatal enfrenta o paradoxo de requerer
um estado forte (com capacidade de governar autonomamente) para contornar a
elevada taxa de desconto temporal das preferncias dos atores relevantes, decorrente
do alto grau de incerteza da conjuntura. O desafio final, portanto, era institucionalizar
as mudanas eventualmente obtidas, de modo a torn-las rotineiras e irreversveis.7
Pareceu-me claro que a questo decisiva era compreender as razes porque
alguns estados conseguiam reunir a autoridade necessria para governar e outros no.
Compreender a lgica que prendia alguns pases no interior do ciclo perverso de
instabilidade institucional crnica, violncia cotidiana e espasmos peridicos de franco
autoritarismo, sob estados que pareciam ser simultaneamente hiperdimensionados e
dbeis, centralizadores e ineficazes. Identificar condies favorveis operao eficaz
de normas democrticas impessoalmente formuladas. Compreender os mecanismos
pelos quais as mesmas instituies podem funcionar melhor em alguns lugares que em
outros. Em suma, compreender alguns mecanismos condicionantes da carncia de
governance a que se referiu Leila Frischtak to freqente nos pases perifricos,
para em seguida identificar algumas conseqncias econmicas presumveis dessa falta.
Traduzindo para o jargo de trinta anos atrs, perseguir as conseqncias econmicas
do pretorianismo de massas definido por Huntington.
impossvel perseguir seriamente essas questes sem referncia ao
macroprocesso comum com que tm tido de lidar todas as naes do globo nos ltimos
7 Leila Frischtak, A Capacidade Governamental do Estado, apresentao realizada em 26 de novembro, eLourdes Sola, Estado, Reestruturao da Economia e Governabilidade: O Brasil em PerspectivaComparada, 24 de novembro. Ambas as apresentaes foram feitas no interior do grupo de trabalhosobre Elites Polticas, coordenado por Renato Lessa (o trabalho de Lourdes Sola foi posteriormente
publicado com o ttulo Estado, Regime Fiscal e Ordem Monetria: Qual Estado?, naRevista Brasileirade Cincias Sociais n. 27, de fevereiro de 1995, e no volume Lies da Dcada de 80, organizadoconjuntamente pela prpria Lourdes Sola e por Leda Paulani, que veio a pblico no final do mesmo ano).
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sculos, e que se tornou conhecida na literatura sociolgica como modernizao.
Claro, um processo dessa magnitude tem sido experimentado com caractersticas
prprias em cada caso, condicionado por prioridades e ritmos variados, sem dvida,
mas obedecendo em toda parte a padres universalmente identificveis e produzindo
problemas bastante anlogos tanto que notrio o processo de padronizao e
uniformizao de costumes e hbitos (e problemas) por que tem passado o mundo
sobretudo ao longo do sculo XX. A modernizao, aqui, entendida em seu sentido
mais lato de inspirao weberiana como um processo macro-histrico de
racionalizao das diversas esferas da vida social deflagrado com a dinamizao da vida
econmica nos aglomerados urbanos a partir da Baixa Idade Mdia, que traz consigo
simultaneamente os processos correlatos e muitas vezes contraditrios de diferenciao
(e especializao) estrutural e diluio estamental, incorporao poltica e
burocratizao. Este tema ocupou posio central na produo da anlise poltica
comparada nos anos 60, mas curiosamente saiu de moda nos ltimos vinte anos.8
No que a abordagem feita ento estivesse isenta de contaminaes etnocntricas e
simplificaes que s vezes embora nem to freqentemente quanto lhe foi
posteriormente imputado atribuam linearidade excessiva a certos processos bastante
mais complexos e imprevisveis; mas aquele enquadramento tinha o inegvel mrito de
pelo menos propiciar ao estudioso uma viso macro-histrica que lhe permitiria
analisar os problemas sob um prisma mais ambicioso do que o acompanhamentosfrego do noticirio. Com efeito, talvez algumas das principais dificuldades da cincia
poltica contempornea derivem, em certa medida, da ambio um tanto exagerada de
prover respostas e solues imediatas agenda dos polticos, mediante uma
teorizao ad hoc que acaba fazendo com que, aps termos passado a dcada de setenta
debruados sobre o colapso das democracias e a emergncia de regimes autoritrios,
passemos a dcada seguinte escrevendo livros e mais livros sobre a transio para a
democracia em ambos os casos deixando de situar na devida perspectiva o fenmeno
geral da instabilidade poltica de determinadas sociedades (to claramente relacionadoa nossas preocupaes contemporneas com a capacidade de governo), que faz com
que paream se alternar indefinidamente regimes autoritrios com interregnos
democrticos.9
8 Hoje fala-se muito menos em modernizao que em modernidade, menos num processo do que numprojeto, e o deslocamento da nfase no deixou de se refletir no tipo de literatura que se ocupa do tema:trabalhos de orientao mais emprica passaram a se referir muito menos ao tema, que tendeu a ficarconfinado discusso de natureza mais filosfica em que, por exemplo, Jrgen Habermas tem se batidocom os arautos de uma suposta ps-modernidade precipitadamente anunciada. Ver, a respeito,
Habermas, La Modernidad: Un Proyecto Inacabado.9 Para a formulao original dessa observao, ver Fbio W. Reis, Para Pensar Transies, pp. 76-7.
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Ainda que talvez perseguindo nfases prprias, o nimo deste trabalho
compartilha integralmente a rejeio da idiofrenia etnocntrica manifestada por
Wanderley Guilherme dos Santos alguns anos atrs. Tambm aqui se parte da
presuno de que
todas as sociedades modernas enfrentam ciclicamente vrios problemas comuns: o doalargamento da participao e o da institucionalizao da competio poltica, o daformao de identidades sociais [...], o da superao dos obstculos ao coletiva, o daintegrao institucional e o do planejamento autnomo em um mundo cada vez maisinterdependente.10
Se todas as sociedades modernas enfrentam ciclicamente vrios problemas comuns,
ento em princpio admissvel a pretenso de se caracterizar uma especfica coleo
de problemas que se manifeste de modos semelhantes em todas elas mediante um
nico conceito guarda-chuva como ter sido o caso com o processo de
transformao social em largussima escala que a cincia social habituou-se a chamar
de modernizao (o que, de fato, apenas um trusmo: se todas aquelas sociedades
podem ser chamadas sociedades modernas, porque elas compartilham
caractersticas comuns expressas pelo adjetivo comum modernas). O relevante aqui
constatar que este processo bsico comum, ao compartilhar caractersticas
semelhantes, razoavelmente generalizveis, em toda parte (ainda que revestido de
formatos os mais variados, e caminhos prprios a cada coletividade que o tenha
enfrentado), produziu universalmente algumas implicaes especficas sobre a
operao da poltica e da economia em todas as sociedades a ele submetidas. As
implicaes do macroprocesso observado no plano material (ou econmico) sobre a
poltica acabaram por tornar-se, em grandes linhas, o tema central da primeira parte da
tese. Procedimento invertido na segunda parte, em que se exploram de maneira um
pouco mais contextualizada as implicaes do sistema poltico (condicionado pela
modernizao) sobre a operao do sistema econmico. Assim, para alcanar o tema
das relaes entre a poltica e a inflao no Brasil, o presente trabalho busca explorar
como problema terico-analtico central os desafios que a modernizao impe sobreas condies de exerccio do poder poltico e, reciprocamente, os efeitos que os sistemas
polticos tipicamente engendrados ao longo do processo produzem sobre a operao da
economia. O Brasil aparece, ao final, caracterizado como um caso que ilustra algumas
vicissitudes a que esto sujeitos pases precariamente institucionalizados, em processo
de modernizao acelerada.
10 W. G. dos Santos,Razes da Desordem, pp. 9-10.
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O trabalho se encontra dividido em quatro captulos, acrescidos de uma breve
concluso. O primeiro realiza o esforo de caracterizar de maneira to clara e simples
quanto me foi possvel o processo de modernizao, evitando os equvocos mais
comumente apontados em seu uso, de modo a me propiciar uma entrada segura para
o desenvolvimento posterior do argumento. Talvez dedicar todo um captulo a este
objetivo resulte em certo hiperdimensionamento do tema, mas o fato que ciente das
pesadas crticas que o recurso abusivo modernizao vem sofrendo nas ltimas
dcadas escrevi o texto como se me dirigisse a um leitor que contestasse
liminarmente a prpria existncia de semelhante processo, expondo-me
freqentemente ao risco de eleger certos moinhos de vento para combater. O segundo
captulo prossegue averiguando as implicaes da simples existncia da modernizao
para as condies de exerccio do poder poltico. Fundamentalmente, sua tendncia
centralizao burocrtica em estados nacionais (e posterior internacionalizao), bem
como a paralela e paradoxal tendncia democratizao do exerccio desse mesmo
poder, que tem sua capacidade de coagir enormemente ampliada ao longo do processo.
Estes dois primeiros captulos compem a primeira parte do trabalho, que toma a
dimenso econmica ou, mais propriamente, material do processo como varivel
independente e se pergunta acerca de seus impactos sobre a organizao institucional
da sociedade, principalmente no que toca s instituies polticas.
Na segunda parte, inverte-se o sentido da causalidade, e so analisados os
impactos que a ordem poltica engendrada pela modernizao, discutida no captulo 2,
tende a produzir sobre a economia ou seja, os efeitos das instituies polticas sobre o
substrato material e social. O terceiro captulo debrua-se sobre o momentoso
problema das relaes entre o estado e o mercado, entre a democracia e o
desenvolvimento, procurando destacar como a plena operao de uma economia de
mercado requer a existncia de um estado plenamente institucionalizado para
assegurar a operao impessoal das normas vigentes, e tambm atuar
distributivamente de maneira a minimizar as inevitveis externalidades provocadas
pela intensificao dos laos de interdependncia humana que a prpria expanso do
mercado favorece. Ao final, o ltimo captulo se volta sobre o caso brasileiro, buscando
detectar a maneira como os temas discutidos no restante do trabalho se manifestam no
contexto brasileiro, certas vicissitudes caractersticas do nosso prprio processo de
modernizao, e os principais desafios que se podem previsivelmente divisar para os
desdobramentos desse processo no futuro prximo. Ao final, algumas notas guisa
de concluso buscam explicitar muito brevemente a forma de insero do casobrasileiro dentro das caractersticas do macroprocesso de modernizao aqui descrito,
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alm de tecer algumas consideraes sobre a hegemonia desenvolvimentista observada
no Brasil ao longo do sculo e os desafios que ela nos lega.
Embora o presente trabalho no se ocupe diretamente no mximo muito
marginalmente de questes metodolgicas, eu ficaria contente se ele pudesse ser vistocomo uma ilustrao da possibilidade de se utilizarem paralelamente recursos tanto
macro quanto micro; tanto sociolgicos como econmicos. Pode-se dizer que
meu trabalho tentou talvez de maneira um tanto intuitiva utilizar conjuntamente as
abordagens economicista e sociolgica no sentido em que as identificou Fabiano
Santos h alguns anos.11 Houve sim, de minha parte, uma tentativa deliberada de
mostrar como categorias prprias sociologia poltica e aos recursos metodolgicos da
escolha racional podem ser perfeitamente utilizadas em conjunto em benefcio da
anlise efetuada. Infelizmente, um trabalho puramente metodolgico voltadodiretamente para o tema est muito acima da minha capacidade, e o intenso debate
sobre micro e macro travado na dcada passada parece-me j ter levado o assunto
prximo da saturao. De qualquer maneira, retrospectivamente posso constatar que
me vi permanentemente compelido por este tema, e o prprio objeto geral da tese
situa-se precisamente na confluncia entre o plano das interaes pessoais observadas
entre agentes privados infinitesimais, de um lado, e o plano da busca de uma
ordenao normativa dessa interao no contexto da modernizao, do outro.
11 Fabiano Santos, Por uma Teoria Poltica de Agentes Econmicos, pp. 199-200. No recorro,efetivamente, abordagem por ele descrita como institucionalista.
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Parte IModernizao e Poltica
However, it is also in the nature of historical subject matter that it demands not onlyconfigurational and situational analysis but ultimately a directional analysis. Only froma developmental perspective can we establish which individual actions have fatefulconsequences for basic social configurations. Only in this manner can we separateevents that transcend a given structure from those that preserve it, events that lead to atransformation from those that remain within the range of a given structure.
Wolfgang Schluchter,The Rise of Western Rationalism (1979), p. 176.
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Captulo 1Para um conceito de modernizao
Uma aproximao rigorosa do lugar comum segundo o qual os problemaseconmicos tm freqentemente razes polticas sugere irresistivelmente uma anlise
das condies de possibilidade da vigncia eficaz das instituies polticas, de maneira a
propiciar o adequado arcabouo normativo operao rotineira do sistema econmico.
Isto nos convida tentativa de, ao buscar analisar comparativamente os diversos
contextos teoricamente concebveis, estabelecer uma direo tpica para os processos
em curso nos ltimos sculos no que respeita constituio dos estados nacionais tal
como os conhecemos hoje j que no interior desses estados que as diversas
estruturas normativas encontraram vigncia e, em alguns casos, se solidificaram emconjuntos de instituies rotineiramente reconhecidos pelas populaes. Esta busca de
uma direo, todavia, no necessariamente tem de derivar de uma orientao,
digamos, proftico-historicista, ambiciosamente orientada para a imputao de
caminhos inapelveis histria, mas sobretudo da busca de um critrio valorativo que
possa servir de instrumento de avaliao comparativa das diversas experincias
nacionais isoladas, sem o qual a comparao corre o risco de se reduzir a um exerccio
estril de comparao de nmeros, em que as eventuais diferenas observadas nada
podero significar seno a expresso de peculiaridades locais, eventualmente
culturais, condenando-nos a um niilismo relativista incapaz de reflexo crtica.
A busca dessa direo nos impele inevitavelmente rumo ao tema geral da
modernizao, tal como interpretado originariamente no pensamento sociolgico
clssico e, depois, na literatura sobre poltica comparada, que a ele recorreu
abundantemente com erros e acertos, sem dvida, mas no geral de maneira muito
mais fecunda do que pode nos fazer crer o seu quase completo abandono por cientistas
sociais respeitveis nos ltimos anos. Se se constata que temos em alguns pases umaprecria institucionalizao poltica que produz certos efeitos danosos sobre a
economia, e se buscamos portanto estabelecer de maneira teoricamente defensvel
certas conseqncias econmicas daquela precria institucionalizao decorrente de
um processo de mudana social particularmente acelerado (na medida em que se inicia
atrasadamente em relao aos pases centrais), ento no temos escolha seno
tentar reconstruir um conceito de modernizao que possa resistir s crticas mais
procedentes feitas contra o abuso deste conceito nos anos 60 e, ao mesmo tempo, nos
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ajudar a diagnosticar o macroprocesso em curso na constituio de nossa unidade de
anlise, que ainda o estado-nao moderno.
Para um adequado tratamento do tema aqui proposto, portanto, no se pode
escapar a uma adequada elaborao prvia do prprio conceito de modernizao, ouda modernidade. Tantas vezes referidos com a naturalidade dos conceitos de
significado tido por bvio, seu significado porm resiste como foco de controvrsias
bastante acirradas. Existe, sem dvida (e a prpria cincia social moderna nasce a
partir desta percepo), uma forte opinio segundo a qual os tempos modernos se
distinguem profundamente de todo o resto da histria da humanidade. Todavia, a
especificao precisa dessa diferena tem resistido bravamente s inumerveis
polmicas que atravessaram o sculo, e segue desafiando a imaginao e a capacidade
de pesquisa dos melhores tericos de nosso tempo.
Um primeiro ponto curioso que talvez valha a pena ressaltar a observvel
migrao ocorrida nas ltimas dcadas, do uso generalizado da palavra
modernizao para sua quase extino no mbito da literatura acadmica, substituda
avassaladoramente pela referncia modernidade. Aparentemente, tal migrao
obedeceu a um propsito de se evitarem certas implicaes determinsticas, de cunho
etnocentrista, usualmente associadas, com boas razes, ao uso do termo
modernizao feito pela sociologia poltica americana dos anos 60. possvel,
todavia, que sua substituio usual pela referncia modernidade feita pela sociologia
contempornea, longe de evitar este problema, acabe por agrav-lo a partir de uma
reificao da poca contempornea que, tentando evitar apontar um estado de coisas
ideal ou, de algum modo, melhor implcito no termo modernizao, acaba por
postular de maneira simplificadora um certo estado de coisas que de alguma maneira
descreva a nossa poca e possa estar reunido por debaixo do rtulo modernidade.
Tentando evitar supor um estado de coisas ideal a ser alcanado, a adeso ao termo
modernidade acaba por supor que um certo estado de coisasj chegou.
Todavia, posta a questo nesses termos, a modernidade a Inglaterra vitoriana
ou o estado do bem-estar social do ps-guerra? O individualismo de que a sociedade
norte-americana se constituiu em arqutipo, ou o organicismo nazi-fascista (ou
comunista)? A prosperidade e a expanso das possibilidades de consumo oferecidas
pelo mercado, ou os surtos de fome recorrentes na frica? Naturalmente, a presuno
geral a de que ela tudo isso. Mas, para essa soluo, crucial a remisso a um
processo subjacente, cuja complexidade dinmica produz resultados episdicos
prprios em circunstncias distintas desde que se possam deduzir essas
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conseqncias a partir de um conjunto identificvel, minimamente parcimonioso, de
caractersticas elementares do processo, presentes ao longo de todo o percurso. O
formato de sociedade tipicamente espervel da operao desse conjunto de fatores
pode, em princpio, configurar algo a que chamemos modernidade um tipo ideal
como qualquer outro. Mas o processo estar inequivocamente presente, mesmo de
maneira implcita, pois embora se possa em princpio privilegiar a descrio por mais
complexa que se revele do estado de coisas historicamente observado ao longo da
modernizao, ele nunca poder ser caracterizado teoricamente seno como um
instantneo, num ponto qualquer do tempo, dos resultados concretos de um processo
que lhe subjacente, de uma dinmica social especfica engendrada a partir da
confluncia de um determinado conjunto de circunstncias, sculos atrs. Assistimos
ainda ao desenrolar deste processo contraditrio, tenso, muitas vezes extremamente
violento, e ainda presa de oscilaes espordicas que fazem com que tudo parea
reverter, que valores supostamente enterrados para sempre ressurjam com fora
inaudita logo adiante, adiando e, com freqncia, frustrando os sonhos otimistas dos
modernizadores mais utpicos. Concebendo, portanto, as peculiaridades da histria dos
ltimos sculos como as vicissitudes de um processo (de cuja concluso podemos
efetivamente estar muito mais distantes do que a cincia social do sculo XX tendeu a
acreditar do leninismo a Fukuyama, passando pela sociologia poltica americana dos
anos 60), podemos legitimamente nos perguntar sobre as suas caractersticas bsicas.Poderei dizer que vejo, assim, um mundo em modernizao, se puder estabelecer as
linhas bsicas deste processo, seus elementos deflagradores, suas linhas de mudana,
sua direo geral. A modernidade se caracterizar sobretudo pela extrapolao na
direo do futuro das linhas bsicas de continuidade do processo em curso. Numa
palavra, a modernidade se constitui sobretudo como utopia. No por acaso que
Habermas a ela se refere como projeto inacabado. Isto apenas outra maneira de
dizer processo em curso, buscando ao mesmo tempo desvencilhar-se de certa
teleologia objetiva.1
Do outro lado, como procura sustentar Wolfgang Schluchter,2 no h nada de
recomendvel em si mesmo em se despir a anlise sociolgica de qualquer vestgio de
uma interpretao direcional. Esta afirmao Schluchter a faz no contexto de um
extraordinrio esforo de reconstruo da teoria da histria de Max Weber, autor
comumente desvinculado de qualquer suspeita de adeso a determinismos ingnuos.
1 Jrgen Habermas, La Modernidad. Para uma crtica do recurso teleologia objetiva, ver Jon Elster,
Marxism, Functionalism, and Game Theory, pp. 454-5.2 Schluchter, The Rise of Western Rationalism, p. 176 (ver acima a epgrafe desta parte da tese).
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Segundo Schluchter, embora Weber seja usualmente tido como fundador de uma
sociologia histrica que rejeita o evolucionismo e a filosofia da histria (leitura que
encontra defensores em intrpretes como Reinhard Bendix, Guenther Roth e Johannes
Winckelmann, entre outros), podem-se tambm encontrar interpretaes da obra de
Weber que o situam como um pensador, digamos, evolucionrio e Schluchter cita o
exemplo da obra de Friedrich Tenbruck.3 De outra maneira, no h como fazer sentido
de temas weberianos clssicos tais como a constatao da mudana do critrio decisivo
de estratificao, do nascimento para a propriedade, e da para a posio ocupacional
(sucessivamente, estamento, classe e ocupao);4 tampouco haveria como fazer sentido
da tese de que as diversas orientaes estruturalmente possveis da ao (para
valores ou para o sucesso) pudessem ser sujeitas a desenvolvimento. Naturalmente,
afirmar que Weber tenha produzido uma abordagem desenvolvimental
(developmental)5 da histria no implica afirmar que sua teoria possa ser reduzida a
uma srie linear de estdios histricos sucessivos e inevitveis. Segundo Schluchter, ao
contrrio, Webers developmental history contrasts one cultural tradition with others
for the sake of identifying its distinctiveness and its specific historical course.6
No obstante, claro que a conceituao tradicional da idia de modernizao,
particularmente a que resultou dos inmeros trabalhos sobre o tema produzidos
sobretudo nos anos 60, padece de problemas flagrantes que foram corretamente
apontados por vrios crticos na dcada de 70. Reinhard Bendix talvez tenha sido o
mais influente desses crticos, e certamente ter contribudo de maneira importante
para o progressivo abandono da referncia ao conceito de modernizao nos anos que
se seguiram ao seu ataque, publicado pela primeira vez em 1967.7 A despeito do fato de
que a maior parte dos argumentos de Bendix seguramente procede (qualquer
reconstruo de um enfoque desenvolvimental deveria tomar a srio a sua crtica),
certamente aquele enfoque dos anos 60 retm importncia ainda hoje. Pois, para o
prprio Bendix, se por um lado real o perigo contra o qual nos alerta Weber de se
3 Tenbruck, The Problem of Thematic Unity in the Works of Max Weber, apudSchluchter, The Rise ofWestern Rationalism, p. 4. Tambm Charles Tilly, Western State-Making and Theories of PoliticalTransformation, pp. 603-4, considera Max Weber, assim como Marx e Durkheim, um exemplo de autordesenvolvimentalista (developmentalist) . Ele evoca o testemunho de Robert Nisbet,Social Change and
History, para a tese de que o desenvolvimentalismo constitui o mago da cincia social no Ocidentedesde a sua origem no sculo XIX.
4 Schluchter, The Rise of Western Rationalism, p. 80.
5 Pretendo recorrer ao barbarismo desenvolvimental para traduzir a palavra inglesa developmental,tendo em vista a contaminao do adjetivo desenvolvimentista, entre ns no Brasil, com polticas deindustrializao acelerada, Juscelino Kubitschek, substituio de importaes etc. (a que me refiro
brevemente no captulo final da tese).
6 Schluchter, The Rise of Western Rationalism, p. 175.
7 Bendix, Tradition and Modernity Reconsidered, esp. pp. 274-314.
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confundirem com a realidade os tipos ideais a que recorremos profissionalmente
(fenmeno anlogo clebre reificao a que Marx gostava de aludir), por outro lado
deve-se admitir que se pode por meio deles construir seqncias de desenvolvimento de
grande valor heurstico.8 O tom de Bendix sobretudo de cautela metodolgica, mais
que de rejeio frontal do recurso modernizao para a reflexo sobre a sociedade e a
poltica. Assim, ele nos adverte que a tradio e a modernidade no so mutuamente
excludentes, e persistem invariavelmente elementos tradicionais em sociedades
modernas, assim como elementos modernos so identificveis muito antes da era
moderna; que em quase todos os casos a modernizao mistura fatores endgenos e
exgenos, com forte ao governamental o que denota um processo no to
espontneo quanto eventualmente somos levados a acreditar; e, finalmente, que a
industrializao no parece ter efeitos internacionalmente to uniformes quanto
desejariam os modernizadores mais otimistas.9 Em outras palavras, ele nos alerta para
a possibilidade de que a modernizao apesar de ser quase universalmente
observvel jamais venha a alcanar uma modernidade a priori definida, mas ao
mesmo tempo insiste em que no possvel refletir sobre a mudana social sem
remisso a estruturas de compreenso apoiadas em mecanismos do tipo antes-e-
depois e, tomados todos os cuidados, ele reafirma explicitamente o contraste entre
tradio e modernidade, apoiado em traos cannicos, como o processo de
progressiva diferenciao estrutural identificado por Neil Smelser na crescentediviso do trabalho e na emergncia de estruturas sociais sempre mais especializadas
funcionalmente, bem como a interao complexa entre essa diferenciao
(potencialmente desintegradora) e a emergncia de novas formas de integrao. Bendix
observa, por exemplo, que na economia tradicional h elevada integrao dentro das
unidades domsticas e das comunidades, e baixa integrao entre elas e durante a
modernizao observa-se uma tendncia inverso desse padro, com crescente
interdependncia entre unidades produtivas diversas, entre a famlia e o mercado etc.10
Se se trata, porm, de recorrer a uma viso desenvolvimental e de implicaes
macro-sociolgicas de largo alcance histrico, seria indispensvel parar por um
momento para discutir algumas questes metodolgicas envolvidas. Assim, a primeira
parte do presente captulo (seo 1.1) buscar argumentar em favor da idia de que no
8 Bendix, Tradition and Modernity Reconsidered, pp. 275-6.
9 Bendix, Tradition and Modernity Reconsidered, pp. 290-3.
10 Bendix, Tradition and Modernity Reconsidered, pp. 280-4. O trabalho de Smelser a que ele remete o
leitor The Sociology of Economic Life, pp. 101-2, 106 e 112. O processo de intensificao dainterdependncia humana identificado tambm por Abram De Swaan, In Care of the State, pp. 2-3,apoiado em Norbert Elias (ver abaixo, seo 3.2).
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h qualquer incompatibilidade a priori entre a literatura macro-sociolgica dos anos
60 e 70 (que lidava com noes como modernizao, sistemas, estrutural-
funcionalismo) e o recurso ao arsenal terico-metodolgico da escolha racional. Na
segunda e maior parte do captulo (seo 1.2), se tentar ento construir uma
compreenso do conceito de modernizao que seja em princpio compatvel com as
principais crticas formuladas contra as teorias da modernizao em voga nos anos 60.
1.1. Sistemas, estruturas e funes
[...] there seems to be no particular reason why a concern for stability shouldbe combined with a belief that societies have built-in stabilizing tendencies [...].For example, one might take the achievement of stability as problematic andthen ask by what means it could be achieved, given rational goal-seekers.
Brian Barry,Sociologists, Economists and Democracy (1970), p. 181.
Embora nem todos os autores da teoria da modernizao em suas
variadssimas formas recorram explicitamente parafernlia metodolgica associada
ao paradigma funcionalista e teoria dos sistemas, talvez seja lcito afirmar a
existncia de certa afinidade metodolgica entre uma coisa e outra. Se no se trata de
pura narrativa histrica, mas de teorizao, parece mesmo ser difcil faz-lo sobre
processos macro-histricos sem algum funcionalismo. No se trata, claro, de
afirmar que as sociedades so sistemas e, portanto, estveis. Mas se elaboramos
tipos ideais e esperamos deles alguma utilidade, porque eles nos permitem
descolarmo-nos da realidade tal como a vemos, em contnuo e aparentemente catico
movimento, para congel-la numa idia atemporal, fictcia, que, verossmil ou no,
pode ajudar-nos a compreender melhor um determinado fenmeno a partir da
especificao de uma srie de caractersticas definidoras, inclusive suas condies
hipotticas de estabilidade e de instabilidade mesmo sem nada presumir a respeito daestabilidade ou da instabilidade intrnsecas de manifestaes histricas concretas do
tipo ideal em pauta. Entendo, portanto, que seria til proceder uma breve discusso de
alguns pontos salientes relacionados a este tpico, com o intuito de explicitar
determinados aspectos relevantes e substantivos do uso que aqui se far do
conceito de modernizao.
Para comear desde o comeo, podemos recuar at a noo matemtica do
conceito de sistema, que consiste em um conjunto de equaes em que qualquer
modificao no nmero de incgnitas ou de equaes, ou no valor de um dos
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coeficientes, modificar a soluo de todo o sistema. Assim, de maneira bem simples
temos, segundo Bertalanffy, que sistema um conjunto de elementos
interdependentes, ou, de forma um pouco menos imprecisa, conforme a viso de
Condillac, uma ordem em que todas as diferentes partes se sustentam mutuamente. 11
J aqui se poder querer ver empecilhos utilizao da idia de sistemas em teoria
social, apontando na noo de Condillac um vis conservador que se revelaria no fato
de que, se as sociedades so sistemas, ento isto implicaria afirmar que todas as suas
diferentes partes se sustentam mutuamente, ou seja, que as sociedades tm uma
tendncia intrnseca estabilidade. preciso cautela, porm.
Em primeiro lugar, o recurso a sistemas em teoria social deve claramente evitar
qualquer presuno de natureza ontolgica quanto a se estabelecer o que as sociedades
so. sempre, ao contrrio, um recurso heurstico voltado para a compreensointegrada de fenmenos complexos, em princpio decomponveis, para fins de anlise,
em partes integrantes mutuamente relacionadas. Nada disso tem de implicar a
afirmao ontolgica de que as sociedades sejam sistemas, seja l o que for que isso
queira significar.12 Para utilizar a frmula a que recorre Giuliano Urbani, trata-se
sempre de um sistema observante (um conjunto de hipteses interpretativas [...]
capazes de investigar as relaes que caracterizam a convivncia interindividual prpria
de qualquer coletividade), e no de um sistema observado (um conjunto de relaes
intersubjetivas reais, historicamente presentes numa dada comunidade e, por
conseguinte, constitutivas de um [sistema] especfico).13 Esta segunda acepo se
presta a uma srie de bem-fundadas objees metodolgicas: em teoria social, seria
necessariamente precria a determinao precisa dos limites entre o sistema e seu
meio-ambiente, bem como a distino precisa (empiricamente referida) entre, de um
lado, transformaes ocorridas no bojo de um mesmo sistema e, do outro lado, seu
colapso e completa substituio por outro. Por exemplo, em que bases podemos
11 ApudRaymond Boudon e Franois Bourricaud,Dicionrio Crtico de Sociologia (verbete Sistema), p.504.
12 De passagem, gostaria de compartilhar aqui a opinio de sabor popperiano (por seu aspecto anti-essencialista), j expressa por Fbio Wanderley Reis, Rationality, Sociology and the Consolidation ofDemocracy, pp. 15-6, de que no objetivo da cincia social explicar a sociedade como tal, ou dizer empoucas palavras o que a sociedade . Tal como a fsica ou biologia, que no explicam a matria ou a vida,mas antes postulam sua existncia para estudar suas propriedades e a sim explicar fenmenosespecficos que se relacionam matria ou reproduo da vida, tampouco a sociologia tem de explicara sociedade, mas sim, postulada sua existncia, debruar-se sobre suas propriedades para melhorcompreender e, naturalmente, explicar diversos fenmenos que tm lugar na sociedade.
13 Urbani, Sistema Poltico, p. 1164. Embora esta oposio entre observante e observado no deva serlevada longe demais (j que qualquer referncia emprica supe a possibilidade de estabelecercorrespondncia entre ambos), a referncia formulao de Urbani tem aqui o propsito exclusivo de
explicitar a rejeio idia de que o mero recurso noo de sistema em cincias sociais traga consigo,necessariamente, a implicao ontolgica de que as sociedades so sistemas. Sou grato ao Prof. Fbio W.Reis por ter-me alertado para esta dificuldade.
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afirmar que tenha havido colapso de um sistema social e sua substituio por outro
sistema, digamos, na Frana de 1789? Ou na Rssia de 1917? Ou, alternativamente, ter
havido apenas transformaes mais ou menos profundas no interior de um mesmo
sistema social, que sobrevive na medida em que sobrevivem costumes e tradies
diversas do sistema anterior? Em suma, ser de todo possvel falar no colapso de um
sistema em teoria social? Salta aos olhos aqui a impropriedade da analogia entre
sociedade e sistema, j que a prpria sociedade uma construo conceitual ad hoc,
freqentemente associada de maneira mais ou menos arbitrria a estados nacionais de
modo a atribuir a cada estado a representao de uma sociedade que lhe seria
subjacente.14
J primeira acepo (sistema observante) no podemos renunciar sem que
praticamente nos impossibilitemos de teorizar. Por exemplo, se podemos falar decapitalismo, ou feudalismo, ou sociedade moderna, porque lhes atribumos
determinadas caractersticas tpicas e assim estipulamos as condies (ideais) de seu
funcionamento adequado, de sua manuteno no tempo, de sua reproduo ou
equilbrio.15 Se essas condies se observam ou no, de maneira a podermos
descrever as sociedades que estudamos a partir daqueles modelos, ou ainda se o
sistema tal como o definimos descreve adequadamente o conjunto de fenmenos que
pretendemos analisar, so questes empricas, que ora responderemos
afirmativamente, ora negativamente. Mas podemos perfeitamente, em bases
puramente lgico-analticas, discutir se tais ou tais condies so mesmo ou no
necessrias reproduo de um sistema tal como definido em determinada obra.
Assim, como afirmam Boudon e Bourricaud, em sociologia, qualquer efeito de
agregao pode ilustrar um mecanismo de sistema,16 desde que possamos estipular as
condies em que o referido efeito ir se estabilizar e se manter, bem como por
oposio suas condies de instabilidade. Assim, portanto, perfeitamente
admissvel recorrer-se a noes como sistema social, e pode-se perfeitamenteconceber esse sistema como uma rede complexa de subsistemas. Mas importante
reter que, assim como todos os demais conceitos, as noes de sistema e de meio
correspondem a distines sempre convencionais,17 e que, portanto, o recurso noo
14 Para uma breve discusso deste ponto, ver Charles Tilly, Big Structures, Large Processes, HugeComparisons, esp. pp. 20-6.
15 Para uma aproximao entre os conceitos de reproduo, de origem marxiana, e equilbrio, to caro economia neoclssica, ver Boudon e Bourricaud, Dicionrio Crtico de Sociologia (verbeteReproduo), pp. 473-8, esp. p. 477.
16 Boudon e Bourricaud,Dicionrio Crtico de Sociologia (verbete Sistema), p. 505.17 Boudon e Bourricaud,Dicionrio Crtico de Sociologia (verbete Sistema), p. 506.
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de sistema ao recortar de maneira inevitavelmente arbitrria determinados
aspectos do mundo real para fins de anlise no pode pretender implicar em
princpio qualquer presuno apriorstica de equilbrio ou de estabilidade relativamente
a esse mesmo mundo real.
Falar em sistemas do modo como os compreendo aqui falar em
estruturas que desempenham determinadas funes. falar num todo
funcionalmente articulado cujas estruturas componentes cumprem determinadas
funes tidas como necessrias e/ou suficientes preservao daquele todo, o
sistema.18 A noo de funo, por sua vez, somente incorpora um tipo peculiar de
explicao sociolgica (funcionalista) se implica a assimilao da estrutura em pauta
por um tipo de mecanismo coordenado sistmico que estabelea algum tipo de
causalidade objetiva que produza continuadamente o desempenho dessa funo. Casocontrrio, o desempenho de uma funo incorporar necessariamente um modo de
explicao de tipo teleolgico, ou intencional. Ou seja, h uma dependncia recproca
entre a busca da interpretao do funcionamento das sociedades como sistemas
compostos por estruturas mutuamente dependentes e o modo de explicao
funcionalista. O problema que a estrutura lgica da explicao funcionalista
razoavelmente complexa e, portanto, os requisitos do recurso vlido a uma explicao
funcionalista so relativamente exigentes.19 No basta, por exemplo, identificar suas
presumveis funes latentes (funes no reconhecidas pelos atores) para dar uma
estrutura como funcionalmente explicada.20 Podemos, todavia, preservar o
funcionalismo como uma modalidade valiosa de anlise interpretativa, que especifica
modos ideais de operao de determinadas estruturas, dentro de contextos especficos.
Assim, podemos concordar com G. A. Cohen em que pode fazer sentido constatar que
A funcional paraB e que esta constatao pode nos ajudar na compreenso e anlise
18 Boudon e Bourricaud, Dicionrio Crtico de Sociologia (verbete Estrutura), pp. 221-3, enumeramnada menos que seis acepes sociolgicas correntes do termo estrutura. Embora elas nonecessariamente sejam mutuamente excludentes (e tampouco me parea provvel que a lista sejaexaustiva), parece-me que a terceira acepo por eles apresentada (p. 222) a que melhor se encaixagenericamente no sentido que persigo aqui:
a noo de estrutura designa freqentemente os elementos estveis de um sistema [...] emoposio a seus elementos variveis. A noo de estrutura de um modelo, por exemplo, designa ouos parmetros [coeficientes] do modelo, ou o conjunto das funes que ligam as variveis entre si,ou ainda o conjunto dos parmetros e das funes.
19 Para a estrutura lgica da explicao funcional, a referncia clssica Carl Hempel, The Logic ofFunctional Analysis. Pode-se tambm recorrer, para uma apresentao bastante didtica, a ArthurStinchcombe, Constructing Social Theories, cap. 3, esp. pp. 80-101.
20 A posio contrria usualmente atribuda a Robert Merton (ver, por exemplo, Elster, Marxism,Functionalism, and Game Theory, p. 455). No conheo a obra de Merton o suficiente para emitir um
juzo sobre a sua opinio acerca desse ponto. Todavia, emSocial Theory and Social Structure, p. 108, n.
55, ele d a entender uma postura cautelosa a respeito, ao considerar a anlise funcional as a method forthe interpretation of sociological data (nfase dele), ao invs de falar na explicao de fenmenossociolgicos.
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sociolgica do fenmeno A, mesmo que no estejamos em condies de demonstrar
cabalmente que B explica funcionalmenteA.21 Poderemos, no obstante, conceber de
maneira articulada um determinado contexto social a partir da pesquisa em torno do
cumprimento de um elenco de funes tidas como bsicas.
Voltando-nos agora um pouco mais diretamente para a cincia poltica, cumpre
reconhecer que o estrutural-funcionalismo tomado de emprstimo da sociologia ao
longo do sculo foi contribuio crucial para a converso realista freqentemente
notada quando se contrasta a cincia poltica do sculo XX com o estudo da poltica que
predominava antes. H um claro deslocamento de nfase, da anlise da estrutura
normativa que caracteriza as instituies polticas para a observao das funes que
elas desempenham. Esta mudana talvez seja particularmente evidente em boa parte da
produo terica dos anos 60 (particularmente no trabalho de autores ligados ao meiouniversitrio norte-americano, tais como Almond e Powell, Deutsch, Easton etc.),22 mas
como atentamente sublinha Bobbio est presente com bastante nitidez tambm nos
trabalhos pioneiros dos fundadores da cincia poltica contempornea no final do
sculo XIX e incio do sculo XX, como Gumplowicz, Mosca, Pareto, Michels, Schmitt
etc., sendo claramente este contedo sociolgico o que distanciar a cincia poltica
produzida dali em diante da matriz jurdica observada at ento.23 Naturalmente, deve-
se reconhecer que a abordagem ciberntica (usualmente associada sobretudo com os
nomes de Karl Deutsch e David Easton) constitui uma exacerbao muito particular da
nfase numa ramificao sociolgica especfica, que tributria das elaboraes de
Talcott Parsons em torno do sistema social se apoiar pesadamente na teoria dos
sistemas, tendo levado sua utilizao a um nvel talvez despropositado. Com nfase na
anlise da resposta a estmulos (input-output), a abordagem procurava valer-se do
aparato mais tcnico da teoria ciberntica apostando na sua presumvel utilidade em
comparaes complexas, em que as diversas peculiaridades dos diferentes sistemas
polticos em questo pudessem ser substitudas com proveito analtico pelo melhor ou
pior desempenho das vrias funes tpicas de qualquer sistema poltico moderno.
Todavia, a promessa era maior do que o que se acabou por realizar. Talvez porque,
quando se trata de poltica, ou, genericamente, de sistemas sociais, h uma srie de
problemas relacionados basicamente com a j referida dificuldade da especificao
precisa dos limites do sistema no tempo e no espao, bem como as dificuldades
21 Cohen, Reply to Elster on Marxism, Functionalism, and Game Theory, pp. 490-2.
22 Aqui ocorrem-me particularmente Almond e Powell, Comparative Politics; Easton, A Framework for
Political Analysis; e Deutsch, The Nerves of Governmente Politics and Government.23 Ver N. Bobbio, Cincia Poltica, p. 165, para as referncias a Mosca e Gumplowicz.
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envolvidas na especificao precisa de critrios objetivos de funcionalidade e
desfuncionalidade que impem relativa arbitrariedade anlise.24 Semelhantes
imprecises na especificao de um sistema em teoria social acabam provavelmente
por anular o presumvel ganho em rigor e objetividade que se alcanaria com o recurso
linguagem dos sistemas.
Naturalmente, resta a outra ponta da anlise. Estamos aqui falando
insistentemente de sistema social, de estruturas e funes, e tudo isso poderia levar o
leitor a acreditar que se busca aqui uma desqualificao do papel do indivduo e de suas
escolhas na conformao do tecido social. Tudo isto pode, de fato, dados os termos em
que se coloca o debate metodolgico atual nas cincias sociais, soar como abandono ou
crtica velada das teses do individualismo metodolgico, hoje em voga nos modelos de
interao elaborados pela teoria da escolha racional. No se trata disso, porm. Secertamente no plausvel a tarefa de deduzir a sociedade a partir do procedimento
metodolgico radicalmente individualista da generalizao e agregao do
comportamento de um indivduo racional calculador (sequer possvel caracterizar um
comportamento como sendo ou no racional na ausncia do contexto da ao
propiciado pelo ambiente em que o indivduo se encontra, ou seja, na ausncia de
alguma configurao da sociedade),25 por outro lado podemos compartilhar com
Parsons a determinao do foco do sistema social: the social-system focus is on the
conditions involved in the interaction of actual human individuals who constitute
concrete collectivities with determinate membership.26 Uma afirmao como esta
seguramente atribui lugar crucial na construo do sistema a modelos que busquem
estabelecer de maneira formal os nexos porventura existentes entre determinados
padres de interao entre indivduos dotados de estruturas de preferncias (ou
normas internalizadas) tomadas como dadas, de um lado, e certas conseqncias
socialmente presumveis destes padres de interao, do outro.27 E isto precisamente
o que fazem (ou procuram fazer) os diversos modelos de interao derivados da
24 Sobre dificuldades relacionadas com o problema da especificao emprica da funcionalidade e dadesfuncionalidade, ver Alvin Gouldner, Reciprocity and Autonomy in Functional Theory, apudGabriel
Almond, A Developmental Approach to Political Systems, p. 99.
25 Ver, a respeito, Fbio W. Reis, Identidade, Poltica e a Teoria da Escolha Racional. Pode-se recorrertambm a outro trabalho do mesmo autor, Rationality, Sociology and the Consolidation of Democracy,esp. seo IV, Rationality as Related to Identity and Autonomy, pp. 22-7, onde se apia a discusso dotema da racionalidade sobre a tenso contida na idia de ao informada.
26 Parsons, An Outline of the Social System, p. 34.
27 Raymond Boudon, La Place du Dsordre, p. 39, tambm situa Parsons juntamente com Weber,
Simmel, Pareto, Mosca e Merton dentro do ramo que ele chama de sociologia da ao, e que compe,com a economia, o paradigma geral da ao dentro das cincias sociais, derivadas diretamente da filosofiailuminista francesa e da filosofia escocesa do sculo XVIII.
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abordagem da escolha racional, que nada mais faz que oferecer a esta tarefa uma
tcnica formal adequada, em princpio, sobretudo para aplicao nos
(numerosssimos) casos que envolvem interao estratgica. Como sugere John
Roemer em seu comentrio ao clebre debate entre Jon Elster e G. A. Cohen sobre
marxismo, funcionalismo e teoria dos jogos, nada nos impede de montar um sistema
conceitual funcionalmente articulado apreendendo suas condies de estabilidade
para em seguida descobrir suas tendncias dinmicas atravs do detalhamento micro
da interao de estratgias individuais que a teoria dos jogos propicia.28 Para Roemer, o
arcabouo funcionalista nos auxilia num tipo de anlise eminentemente esttica.
Configura um sistema e delineia suas condies de estabilidade. Ocorre, todavia, que os
padres de comportamento necessrios estabilidade de um sistema social nem
sempre so mantidos, dando lugar a crises, convulses sociais, revolues enfim,
mudana. E a compreenso da mudana, portanto, certamente requerer um esforo
analtico que inclua a dimenso estratgica contemplada pela teoria dos jogos,
complementarmente a um bom diagnstico macro do contexto em que esto imersos
os atores, eventualmente esboado por que no? em moldes funcionalistas.
Precisamente neste ponto encontra-se, portanto, uma chave importante para a
reflexo terica sobre mudana sociopoltica. Seria necessrio um esforo de
integrao, ou mesmo meramente de utilizao conjunta, de um arcabouo terico
macro funcionalmente articulado com o instrumental analtico formal (micro) da
teoria dos jogos. E a teoria da modernizao aqui pode ser bastante valiosa, pois j traz
em si mesma e nisso se distingue da teoria dos sistemas estritamente considerada a
compreenso de um processo de mudana, de um processo de mudana sistmica, e
secular, macro-histrico. No se ocupa, todavia, de atores e conjunturas especficos
pois bvio que atores especficos no agem ao longo de sculos, nem conjunturas
especficas duram sculos , o que pode tornar precria sua utilizao para o estudo de
determinados eventos e casos empricos concretos. Da a elevada contribuio, repito,
que um esforo de integrao desse material poderia significar para as cincias sociais
em geral.29
28 Roemer, Methodological Individualism and Deductive Marxism, pp. 513-4. A polmica entre Elster eCohen a que me refiro encontra-se em Elster, Marxism, Functionalism, and Game Theory e no j citadotrabalho de Cohen, Reply to Elster....
29 necessrio deixar claro, todavia, que no estou imaginando reinventar a roda ao propor essa
integrao. A proliferao de esforos anlogos j era detectada h mais de dez anos por JeffreyAlexander, O Novo Movimento Terico o que tampouco tem necessariamente de implicar que eusubscreva integralmente as teses ali propostas por Alexander.
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Alentada corroborao desta empreitada pode-se encontrar num conhecido
comentrio de David Lockwood, publicado em 1956, ao The Social System de Parsons,
que havia aparecido quatro anos antes. A partir da distino sociolgica entre norma
e substrato, e do reconhecimento da prioridade atribuda por Parsons estruturao
normativa da ao,30 Lockwood ir apropriar-se da problemtica ali envolvida tendo
em vista seus desdobramentos na rea da poltica, alcanando algumas concluses de
especial interesse aqui. Paralelamente ao estabelecimento da oposio entre norma e
substrato na cincia social em geral, Lockwood ir chamar ateno para o fato de que
a prpria problemtica geral da teoria poltica moderna tal como originariamente
constituda por Hobbes no sculo XVII trata, a rigor, do mesmo problema, ao debruar-
se, em seu plano mais geral, sobre o problema das relaes entre escasseze poltica.
Escassez, aqui, deve ser entendida no no sentido forte de falta absoluta de recursos
suficientes para que todas as pessoas possam assegurar sua sobrevivncia cotidiana
mas num sentido tcnico mais preciso, de que necessrio alocar recursos escassos
entre fins alternativos; de que no possvel se atingirem, simultaneamente, todos os
fins; que nem todas as vontades, de todas as pessoas, podem ser satisfeitas ao mesmo
tempo. A constatao deste problema agregada paixo humana fundamental que o
medo da morte violenta o que basta, no esquema hobbesiano, para consagrar a
necessidade da norma, e a necessidade da norma reclama a necessidade da imposio
da observncia da norma no limite, pela fora , donde a necessidade do poderpoltico. A relao de subordinao lgica da guerra de todos contra todos do estado
de natureza hobbesiano frente a um estado de escassez bastante evidente: se todos os
desejos de todos os homens podem ser simultaneamente satisfeitos sem que a
realizao do desejo de um interfira na possibilidade de realizao dos desejos dos
demais, ento claro que no haver guerra alguma e no haver necessidade de
ordem alguma, de estado civil algum, de sociedade alguma.31 Esta , a propsito,
30 Lockwood, Some Remarks on The Social System, p. 136. Na p. 143, n. 11, Lockwood atribui adistino entre norma e substrato a Karl Renner, Mensch und Gesellchaft: Grundriss einer
Soziologie (1952), pp. 230-3.
31 Luiz Eduardo Soares, A Inveno do Sujeito Universal, p. 216, afirma no ser necessrio invocar aescassez de recursos para explicar a generalizao da agresso mtua no estado de natureza hobbesiano.Mas ele claramente tem em mente a escassez no sentido forte que descartei acima: falta absoluta derecursos suficientes para que todas as pessoas possam assegurar sua sobrevivncia. Isto fica evidente noexemplo que ele emprega logo a seguir (pp. 216-7):
O cenrio do mundo natural pode ser abundante, dotado de recursos ilimitados. Ainda assim,no se pode excluir a hiptese de que o agente, sem trair sua razo, prefira eliminar quem estprximo e desprevenido a ter de caminhar para alcanar o bem, to mais facilmente acessvel pelomtodo mais cruel.
Soares et correto em afirmar que o cenrio descrito perfeitamente compatvel com a existncia derecursos suficientes para assegurar a sobrevivncia de todos. No se trata, portanto, de um cenrio deescassez em seu sentido forte. No obstante, ainda se trata, sim, de um cenrio de escassez tal como odefini. Se para se obter pacificamente um bem qualquer for necessrio caminhar uma determinadadistncia, que deve ser grande o suficiente para que o assassinato de um vizinho nos requeira menor
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precisamente a situao que configura o estado natural desenhado por Rousseau no
Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens: um
estado primitivo (entendido o primitivo aqui como a ausncia de normas; no como
primeiro, original, ou inicial) sem a hiptese da escassez. Donde o bom
selvagem, o relativo torpor da vida natural. Mas onde quer que haja coexistncia, h
escassez e o estado de natureza de Hobbes nada mais que um estado primitivo
com a hiptese da escassez. Da conjuno entre escassez e ausncia de normas
(portanto, da conjuno entre coexistncia e ausncia de normas), nada mais se pode
esperar seno a guerra.32 Donde a implicao mtua entre poder e conflito que
Lockwood detecta em Hobbes; a dependncia funcional da norma em relao ao
conflito. Dando eco ao argumento marxiano a respeito do contratualismo jusnaturalista
ao mesmo tempo que estabelece uma ponte entre as formulaes parsonianas em
torno do sistema social, de um lado, e a subordinao lgica da poltica escassez, do
outro , Lockwood afirmar:
[...] the presence of a normative order, or common value system, does not mean thatconflict has disappeared, or been resolved in some way. Instead, the very existence of anormative order mirrors the continual potentiality of conflict. [...] when we talk of thestability or instability of a social system, we mean more than anything else the successor failure of the normative order in regulating conflicts of interest.33
Assim, Lockwood, que desconsidera qualquer especulao marxiana em torno
da superao da escassez (e, assim, do estado ver discusso abaixo, subseo 2.1.1),
pde acompanhar Parsons em considerar que Marxs fundamental insight into the
dynamics of social systems foi demonstrar o fato de que interests of a non-normative
kind are not random in the social system, but systematically generated through the
social relations of the productive process. Assim, sublinha Lockwood, Marx agrees
esforo, e ainda mais importante o vizinho prefira combater por seu bem, com o risco da prpria vida,a caminhar ele prprio a distncia depois de nos t-lo cedido pacificamente, ento no podemos falarrigorosamente de recursos ilimitados. Impe-se a cada um a necessidade de uma economia derecursos (entre os quais deve-se incluir o prprio esforo fsico), de um clculo, de uma escolha entre
alocaes alternativas de recursos, sim, escassos.32 Uma compreenso da poltica como a economia da coexistncia encontra-se em Fbio W. Reis,Poltica e Polticas, pp. 173-4, e ser referida mais abaixo, subseo 2.2.4.
33 Lockwood, Some Remarks on The Social System, p. 137. Uma exposio rpida da crtica marxiana steses contratualistas sobre a origem e a natureza do estado civil pode ser encontrada em Bobbio,Marxismo, p. 740:
O que para os escritores precedentes, a sociedade pr-estatal, ou seja, o reino da fora irregulare ilegtima seja este o bellum omnium contra omnes de Hobbes, ou o estado de guerra ou deanarquia que, segundo Locke, uma vez iniciado no pode ser abolido seno atravs de um saltopara a sociedade civil e poltica, ou a societ civile de Rousseau, onde vigora o pretenso direito domais forte, direito que na realidade no direito, mas mera coao, ou o estado de natureza deKant, como estado sem nenhuma garantia jurdica e, portanto, provisrio para Marx, aocontrrio, o Estado, que, como reino da fora ou conforme a conhecida definio que ele d em Il
Capitale, como violncia concentrada e organizada da sociedade (vol. 1, p. 814), , no a abolionem a superao, mas o prolongamento do estado de natureza como estado histrico (ou pr-histrico), no tanto imaginrio ou fictcio mas real da humanidade.
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with Hobbes that conflict is endemic to social interaction, mas pode dar um passo
adiante com a introduo da diviso social do trabalho na anlise, e transformar a
guerra de todos contra todos na guerra de uma classe contra outra, que (mesmo que
a ela no se possam reduzir todas as disputas, como eventualmente sugere a escatologia
marxista) certamente conforma clivagens sociais decisivas que no podem ser
ignoradas num esboo apropriado do sistema social34 ou tampouco na configurao
do contexto em que se movero os atores individuais de um modelo apoiado na
escolha racional.
Essa ubiqidade do problema da escassez, apontada acima, pode converter-se
em argumento decisivo em favor do ponto de vista metodolgico aqui defendido. Se
considerarmos a identificao, feita por Olson, da microeconomia como uma teoria do
comportamento racional, aplicvel sempre que tenhamos um problema de utilizaode meios escassos para a consecuo de objetivos de qualquer natureza,35 ento o
recurso ao aparato rational choice se impe como parte irrecusvel da anlise poltica,
condio do rigor dedutivo de nossas anlises acerca da interao estratgica entre
atores inseridos num ambiente de escassez independentemente da natureza macro
ou micro dos argumentos que nos levam a identificar o estado de escassez como
constitutivo do campo geral da poltica.
1.2. Mercado e inovao tcnica: para um conceito de modernizao
Any study of social change, defined even in terms of change in institutionalizedvalue patterns, must be based on concepts which can interrelate the realisticand normative structure of the situation with the resultant actions ofindividuals and groups.
David Lockwood,Some Remarks on The Social System (1956), p. 141.
Um dos primeiros desafios de quem se prope apoiar-se no recurso a umconceito como o de modernizao dispor-se a defender a plausibilidade de certa noo
de desenvolvimento histrico que resulte, em ltima anlise, na imputao de uma
direo histria (mesmo que se pretenda evitar a postulao, na mesma escala
temporal, de qualquer evoluo da espcie humana em seu sentido biolgico). A
34 Lockwood, Some Remarks on The Social System, p. 137. Para a opinio de Parsons sobre acontribuio de Marx, Lockwood se apia em Parsons, Social Classes and Class Conflict in the Light ofRecent Sociological Theory.
35 Mancur Olson, As Relaes entre a Economia e as Outras Cincias Sociais, apud Fbio W. Reis,Solidariedade, Interesses e Desenvolvimento Poltico, p. 17.
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presuno em favor da existncia do progresso na histria da humanidade
certamente um dos preconceitos mais arraigados da tradio intelectual do Ocidente
e muitas vezes insuficientemente demonstrado, como insistentemente tem sublinhado
Robert Nisbet.36 Meramente afirmar, por exemplo, que no apenas Marx, mas tambm
Weber era desenvolvimentalista, ou mesmo que toda a cincia social contempornea
desenvolvimentalista, no chega a constituir um argumento em favor de uma
abordagem desenvolvimentalista. necessrio, antes, demonstrar aplausibilidade de
uma interpretao desenvolvimentalista da histria bem como a fecundidade das
interpretaes e explicaes que possam dali ser extradas perante as fortes crticas
que a linearidade histrica ingnua muitas vezes inferida a partir das teorias da
modernizao merecidamente atraiu para si. necessrio delinear um conjunto de
hipteses explicativas sobre o processo de modernizao que possa responder s
crticas feitas ou, pelo menos, incorpor-las numa nova interpretao dos
acontecimentos dos ltimos sculos.
De sada, todas as tentativas de teorizao da modernizao (ou da sociedade
moderna, ou da modernidade, como queiram) partem claramente e apiam-se no caso
europeu. O risco de se produzirem teorias que sejam apenas uma generalizao
descuidada da experincia europia inclusive com referncia a estdios ou etapas
definidos conforme a aproximao de cada caso em relao ao europeu
inevitavelmente grande. No so infundadas as acusaes de etnocentrismo
freqentemente dirigidas contra certos delineamentos de etapas necessrias que
infestaram o discurso predominante sobre o tema da modernizao. Como destaca
corretamente John Goldthorpe, foi freqente na literatura o pecado historicista bsico
tal como especificado por Popper, ou seja, a produo de proposies que pretendiam
ser ao mesmo tempo tericas e histricas.37 Todavia evidente como reconhece o
prprio Charles Tilly, que um dos mais destacados crticos da literatura dos anos 60
sobre modernizao e desenvolvimento poltico o papel central desempenhado pela
Europa na criao do sistema internacional em que todos os estados hoje operam, o
36 Ver, por exemplo, Nisbet,Social Change and History.
37 Goldthorpe, Employment, Class, and Mobility, pp. 139-40. Para Popper uma proposio pode ser outerica ou histrica, mas nunca ambas ao mesmo tempo. Assim pode-se afirmar que o mundo evoluiunuma certa direo (proposio histrica); podem-se tambm produzir hipteses explicativas potencialmente generalizveis daqueles acontecimentos (proposies tericas), que podero ou no
tornar plausveis certas previses futuras sobre o mundo; mas no se pode simplesmente postular, semmais, que o mundo se move numa determinada direo (proposio ao mesmo tempo terica e histrica).Para a posio de Popper, ver seuA Misria do Historicismo, esp. parte IV, caps. 30-2, pp. 112-24.
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que pode justificar, em princpio, a centralidade do caso europeu nos estudos sobre os
modernos processos de state-building.38
Se a mera possibilidade de se falar em leis gerais na sociologia objeto de
questionamento frontal por muitos autores respeitveis,39
pode-se antever uma srieconsidervel de problemas a se anteporem tentativa de se caracterizar genericamente
a modernizao. De minha parte considero que, embora a prudncia no enunciado de
leis cientficas potencialmente generalizveis seja certamente bem-vinda, a
compreenso de qualquer fenmeno isolado, local ou especfico que seja envolve
necessariamente uma generalizao. Assim, mesmo a afirmao estrita de que o
fenmeno especfico b foi provocado pelo fenmeno especfico a envolve
necessariamente a presuno de que fenmenos do tipo A provocam fenmenos do
tipo B.
Por sua vez, a postulao de leis evolutivas seria certamente ainda mais
problemtica, para comear pelo simples fato de que parecem ser necessariamente elas
mesma