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Lua Nova, São Paulo, 89: 135-168, 2013 O presente artigo pretende discutir a questão da apatia política que, segundo um diagnóstico comum, domina em nossas democracias. Para tanto, confrontaremos dois discursos dominantes com dois discursos antagônicos. Pri- meiramente, oporemos ao modelo constitucionalista de democracia o modelo de soberania popular. Em segundo lugar, oporemos ao discurso tecnocrático a ideia de uma democracia radical. O problema de partida: apatia política nas democracias contemporâneas Nos últimos anos formou-se um consenso surpreendente entre muitos autores sobre a crise do sistema democrá- tico. A surpresa deriva do fato de que, depois da Que- da do Muro de Berlim, a democracia ocidental parecia triunfar definitiva e incontrastavelmente. De fato, havia tempo que alguns teóricos já tinham alertado para pro- blemas irresolvidos e dilemas que caracterizam nossas sociedades democráticas. Já na década de 1970, Jürgen Habermas e Claus Offe tinham chamado atenção para DEMOCRACIA VERSUS TECNOCRACIA: APATIA E PARTICIPAçãO EM SOCIEDADES COMPLEXAS Alessandro Pinzani

Democracia Versus Tecnocracia: Apatia e Participação Em Sociedades Complexas

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Democracia Versus Tecnocracia: Apatia e Participação Em Sociedades Complexas

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  • Lua Nova, So Paulo, 89: 135-168, 2013

    O presente artigo pretende discutir a questo da apatia poltica que, segundo um diagnstico comum, domina em nossas democracias. Para tanto, confrontaremos dois discursos dominantes com dois discursos antagnicos. Pri-meiramente, oporemos ao modelo constitucionalista de democracia o modelo de soberania popular. Em segundo lugar, oporemos ao discurso tecnocrtico a ideia de uma democracia radical.

    O problema de partida: apatia poltica nas democracias contemporneasNos ltimos anos formou-se um consenso surpreendente entre muitos autores sobre a crise do sistema democr-tico. A surpresa deriva do fato de que, depois da Que-da do Muro de Berlim, a democracia ocidental parecia triunfar definitiva e incontrastavelmente. De fato, havia tempo que alguns tericos j tinham alertado para pro-blemas irresolvidos e dilemas que caracterizam nossas sociedades democrticas. J na dcada de 1970, Jrgen Habermas e Claus Offe tinham chamado ateno para

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    os desafios que o Estado democrtico de bem-estar social tinha que enfrentar na Europa (Habermas, [1973] 1980; Offe, [1972] 1984). Com o desenvolvimento da econo-mia capitalista e o multiplicar-se das crises econmicas e financeiras, provocadas na leitura marxista desses auto-res pela prpria lgica do sistema capitalista, o Estado se viu na obrigao de encontrar remdios para os efeitos negativos de tais crises e para obviar s correspondentes crises de legitimao que ameaavam o sistema econmi-co e poltico. Um dos instrumentos utilizados para esse fim foi a adoo de polticas de segurana social, que foram aprofundando-se e transformando-se em polticas de bem-estar social. Ora, apesar de considerar esse pro-cesso em geral de maneira positiva, Habermas em vrias obras alerta para um efeito negativo: o cidado tende a transformar-se em cliente, renunciando participao ativa e assumindo a atitude passiva de quem se limita a aguardar servios do Estado (Habermas, 1973, pp. 9 e ss., 2012, pp. 626 e ss.).

    Mais ou menos na mesma poca, Niklas Luhmann, ao discutir a noo de democratizao da poltica, afirma-va que as sociedades contemporneas so to complexas que as teorias clssicas da democracia parecem ultrapas-sadas e incapazes de entender adequadamente a realida-de poltica (Luhmann, [1965] 1983, p. 153). A ideia de uma vontade popular inspirada por uma analogia com os indivduos, mas no se deixa aplicar a sistemas altamen-te complexos. Essa complexidade faz com que o nvel de informao do pblico seja extremamente baixo. At em casos que dizem respeito ao interesse pessoal dos cida-dos, como no do direito tributrio, ou daqueles relativos aos seguros e s penses, improvvel que o indivduo conhea as leis em questo. Longe de considerar isso lamentvel, Luhmann pensa que ignorncia e apatia so as condies mais importantes para uma mudana das leis,

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    que segue passando despercebida, e para a variabilida-de do direito e, portanto, so funcionais para o sistema (Luhmann, [1965] 1983, p. 191).

    Como se v, o diagnstico de uma crescente apatia poltica por parte dos cidados das democracias avanadas fora formulado, j na dcada de 1970, a partir de pers-pectivas diferentes ou at opostas (Habermas lamenta o fato, Luhmann o considera positivo). Nas ltimas dcadas, esse diagnstico no foi desmentido, ao contrrio, tornou--se um lugar comum na anlise sociolgica e poltica. Muitas vezes utilizado para se lamentar o individualis-mo que caracterizaria nossas sociedades, como no caso da crtica dos comunitaristas e dos neorrepublicanos1, cujos argumentos apresentam uma forte analogia com os dos crticos reacionrios ou conservadores Revoluo Fran-cesa (acusada justamente de fomentar esse individualismo dissolvendo os laos sociais tradicionais e isolando os indi-vduos, fazendo deles egostas desenraizados2).

    No nossa inteno neste artigo averiguar se o diag-nstico em questo de fato demonstrado pelas observa-es empricas ou se existem fenmenos de engajamento poltico que o desmintam ao menos parcialmente. Tam-pouco pretendemos discutir as crticas ao individua-lismo democrtico, embora pretendamos voltar a um aspecto delas na seo O que soberania popular?. Interessa-nos, antes, pensar acerca de possveis solues ao problema da apatia poltica nas sociedades democrti-cas, qualquer que seja sua difuso e gravidade.

    1 Refiro-me a autores como Michael Sandel, Amitai Etzioni, Philip Pettit e Quen-tin Skinner.2 Uma eficaz reconstruo dessa crtica antirrevolucionria est presente no clssico Hirschman (1991) e, mais recentemente, em Rancire (2005).

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    desejvel uma maior participao poltica?3Poder-se-ia observar que a prpria definio de demo-cracia implica a necessidade de tal participao, mas, de fato, no assim. Sabemos que existem inmeras defi-nies de democracia e a expresso governo do povo, que frequen temente usada como definio, na realida-de representa uma tautologia, pois a mera traduo da palavra grega (que deriva do verbo = governar, dominar e do substantivo = povo). Alm disso, essa expresso ambgua e apresenta, pelo menos, dois problemas.

    O primeiro deles: quem o povo? Habitualmente se pensa que o povo seja constitudo por indivduos que, no momento especfico, formam o corpo poltico dos cida-dos; mas possvel incluir em tal conceito tambm as gera-es passadas e futuras de cidados. O povo pode ser pensa-do, ento, nas formas sincrnica ou diacrnica. primeira perspectiva corresponde um conceito de vontade popular assimilvel volont de tous mencionada por Rousseau no livro II, captulo III do Contrato social, isto , vontade de todos os indivduos concretos que formam neste momento o corpo dos cidados. segunda perspectiva corresponde mais o conceito (tambm rousseauniano) de vontade geral (volont gnrale), que transcende as vontades particulares de tais indivduos. Deparamo-nos aqui com uma viso em paralaxe, na qual o mesmo objeto, se observado por pers-

    3 Nosso ponto de partida oposto ao de Luhmann, naturalmente. Para o soci-logo alemo, uma participao mais ativa no somente desnecessria: ela se-quer desejvel, pois atrapalharia o funcionamento do sistema, ou seja, repre-sentaria um fator de instabilidade. Se nossa preocupao for com a estabilidade, portanto, deveramos ou considerar a participao ativa dos cidados como dese-jvel, se ela aumentar a estabilidade do sistema, ou seguir Luhmann e consider--la inoportuna. Se, ao contrrio, partimos da ideia de que a democracia deve ser preferida aos outros sistemas por outras razes que no sua maior estabilidade, devemos nos perguntar se uma participao ativa dos cidados nos processos deci-srios necessria ou no.

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    pectivas diversas, assume contornos e formas diferentes4: ou tomar a perspectiva do Povo com P maisculo, pen-sado diacronicamente que vai alm daqueles que so os cidados atuais; ou a do povo, com p minsculo, pensado sincronicamente. A dificuldade em assumir a primeira pers-pectiva consiste na quase impossibilidade de definir a vonta-de popular ou geral. O Povo se tornaria uma entidade qua-se mstica; sua vontade, algo a ser atingido por uma espcie de iluminao, ao se escutar a voz da prpria conscincia, como afirma Rousseau no livro IV, captulo I do Contrato Social, ou, ainda pior, uma vontade que s alguns poucos podem conhecer e impor aos demais. O risco da segunda perspectiva (a do povo pensado sincronicamente) , nota-velmente, o de uma tirania da maioria. Se o povo sincr-nico decidisse discriminar alguns cidados, no haveria razo para negar-lhe esse poder a no ser a existncia de direitos individuais subtrados ao arbtrio dele. Assim, che-garamos ao conflito entre direito e poltica, entre Poder Judicirio e Poder Legislativo, entre direitos individuais e soberania popular. Cabe salientar que ambos os conceitos (mas especialmente o diacrnico, por razes bvias) ten-dem a fazer do povo um indivduo dotado de uma vonta-de nica, seja esta ltima pensada como vontade geral ou como vontade de todos, como unanimidade ou como von-tade de uma maioria. Rousseau e a maioria dos pensadores modernos acreditam ser possvel falar em um povo, no povo, como se este fosse algo unitrio e compacto. Veremos na seo Democracia radical que esse conceito est longe de ser bvio.

    O segundo problema implicado na ideia de um gover-no do povo diz respeito s formas em que tal governo rea-lizado concretamente. De que maneira o povo exerce seu poder? Em outras palavras: como se manifesta a soberania

    4 O conceito de viso em paralaxe aplicado filosofia utilizado por iek (2008).

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    popular? Como se v, trata-se de uma questo essencial para responder questo da participao popular, pois corres-ponde a perguntar-se em que consiste concretamente tal participao. Respondendo a esse segundo problema, por-tanto, teramos dado um passo importante em relao questo central que nos ocupa aqui.

    O que soberania popular?Em seu recente livro ber Volkssouvernitt [Sobre a sobera-nia popular], Ingeborg Maus critica a prxis de substituir a formao democrtica da vontade popular pelo recurso aos tribunais, em particular, ao tribunal constitucional (Maus, 2011, p. 27 et passim). A autora lembra que as teorias demo-crticas do sculo XVIII insistiam na ideia de que a vontade soberana do povo deveria expressar-se livremente em uma ao continuada de legislao, enquanto as instituies criadas pela Constituio s revestiriam o papel secundrio (embora necessrio) de implementar tal vontade por meio de atos de governo e sentenas jurdicas. Essa ideia, ainda dominante em Rousseau e em Kant, assim como na teoria e na prxis dos revolucionrios franceses, substituda nos Estados Unidos dos founding fathers pela concepo segundo a qual o ato constituinte, no qual o povo exerce diretamen-te sua soberania, nico: uma vez criada a Constituio, o poder constituinte passaria ao tribunal constitucional, que avocaria para si o poder de interpretar a vontade soberana, inclusive em ocasio de modificaes prpria Constituio (como acontece no Brasil). Em vez de limitar-se a verificar a conformidade formal das leis emitidas pelo Parlamento, o tribunal constitucional assume um papel de colegislador, ou impondo ao Parlamento determinada interpretao das normas constitucionais e dos valores nelas refletidos, ou decidindo diretamente sobre questes concretas em lugar do Parlamento. Dessa maneira, diz a autora, referindo-se situao alem com argumentos que, contudo, poderiam

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    ser aplicados tambm ao Brasil, o Tribunal Federal Cons-titucional [Bundesverfassungsgericht] trata a lei fundamental [Grundgesetz, isto , a Constituio alem] como se fosse um cdigo de direito civil formulado de maneira ambgua (Maus, 2011, p. 47). Por isso, comea a decidir sobre questes pontuais como a composio dos rgos decisrios das uni-versidades, assumindo, de fato, funes legislativas.

    Segundo Maus (2011, p. 48 e ss.), h duas maneiras de pensar a Constituio. A primeira dominada pela ideia (originria em Montesquieu) do controle recproco dos poderes e da distino entre estes, sem que haja, contudo, uma separao das competncias, de modo que um poder pode interferir nas competncias de outro para control--lo, como quando o tribunal constitucional anula uma lei do Parlamento em nome de diferente interpretao de certa norma constitucional. Esse modelo, que Maus chama de constitucionalista, compartilhado pelos pensadores norte-americanos anteriormente mencionados. Eles veem na existncia do poder poltico o problema principal e nos direitos individuais somente instrumentos para controlar tal poder. Da uma viso negativa das liberdades: elas defi-nem os limites que o poder poltico no pode ultrapassar sem cair no abuso5. No segundo modelo, o da soberania popular, as liberdades so vistas, em primeiro lugar, como instrumento que garante a participao do indivduo no processo decisrio. Nesse modelo, separao dos poderes corresponde uma separao das competncias: s o Legisla-tivo tem a faculdade de fazer leis, enquanto o Executivo e o Judicirio se limitam a implement-las.

    5 Maus (2011, p. 52) lembra que, no caso da Constituio estadunidense, os direitos individuais no so enunciados no prprio corpo do texto originrio, mas so garantidos por uma emenda constitucional (a primeira) que foi in-troduzida por iniciativa dos chamados antifederalistas, que eram contrrios aprovao da nova Constituio de 1788 em substituio dos antigos Artigos da Confederao, de 1777.

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    Maus explica o triunfo do primeiro modelo em anos recentes apontando para a crescente complexidade da sociedade, que faz com que seja difcil entender em que lugares e por quais atores so tomadas as decises relevan-tes, tais como, por exemplo, as que regem a vida econmica. Dessa forma, a prpria ideia de participao perderia senti-do e os indivduos prefeririam servir-se de seus direitos para garantir um espao de iseno da ao do Estado, em vez de us-los para influenci-la diretamente. Isso leva a atribuir um peso sempre crescente ao Poder Judicirio e a ampliar o conceito de Constituio, conferindo carta fundamental o papel de elencar objetivos materiais que devem ser reali-zados independentemente da ao do Legislativo: quando este no o fizesse, caberia aos tribunais impor tal realiza-o. Destarte, a prpria noo de direito acaba mudando seu sentido, pois o direito passa assim a regulamentar a normalidade do comportamento social, enquanto sua tare-fa deveria ser a de regulamentar a anormalidade de um conflito pontual, no qual os indivduos, no representveis, se confrontam como partes num processo civil ou so iso-lados literalmente como rus num processo penal (Maus, 2011, p. 59 e ss.). Longe de entrar em ao nessas situaes anormais, o direito acaba por oferecer os critrios com base nos quais organizamos nossa vida cotidiana, substi-tuindo assim as normas sociais.

    Essa tendncia j foi descrita por inmeros autores, frequentemente com o nome de juridificao ou judicia-lizao, mas uma das anlises mais interessantes foi feita por Axel Honneth em seu livro mais recente, Das Recht der Freiheit [O direito da liberdade], no qual o autor, ao ana-lisar a liberdade jurdica como uma das diferentes formas de exerccio da liberdade individual, afirma que nela esta-ria presente o risco de uma patologia social, a saber: a total identificao, pelos indivduos, de sua liberdade com a liberdade jurdica, isto , com seus direitos negativos, fazen-

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    do com que tais direitos acabem tornando-se os elementos constitutivos do plano de vida de seus titulares. Assim, os sujeitos tendem a retirar-se para a gaiola de seus direitos subjetivos e a pr-se perante os outros exclusivamente como pessoas jurdicas, demandando a resoluo de todos os seus conflitos unicamente aos tribunais. A pessoa se reduz assim soma de suas pretenses jurdicas (Honneth, 2011, pp. 161, 164), fechando-se ao fluxo comunicativo que a une s outras pessoas. Os direitos so usados, portanto, como uma barreira s exigncias de justificao que provm dos outros indivduos. Isso, por um lado, protege os indivdu-os da tirania tica da comunidade na qual vivem, mas, por outro, os isola dos outros membros de tal comunidade, que passam a ser vistos como meros obstculos prpria liber-dade individual. Mais uma vez, assistimos tendncia de os cidados se fecharem em sua esfera privada, considerando sua liberdade somente no sentido negativo de uma prote-o da ingerncia alheia (in primis por parte do Estado), e no no sentido positivo da possibilidade de participar ativa-mente no processo decisrio democrtico. Tal participao pressupe, segundo Honneth (2011, pp. 219 e ss.), que os indivduos concebam sua liberdade como liberdade social, ou seja, como algo que s pode ser exercido em conjun-to com outros indivduos e que s se realiza na dimenso comunitria ou social. Experimentamos nossa liberdade individual somente no contexto de obrigaes sociais que surgem do fato de desempenharmos certos papis sociais (por exemplo, enquanto parceiros, pais, amigos, agentes econmicos, produtores, consumidores, cidados etc.). Essa liberdade social, pois, longe de isolar o indivduo do contexto social no qual se encontra, s vivida em tal con-texto, isto , na interao com outros indivduos. O mode-lo constituinte ameaa obscurecer essa dimenso social da liberdade individual, reduzindo-a mera defesa de uma esfera privada subtrada ao poder estatal e deixando que

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    este ltimo se controle autonomamente por meio de meca-nismos de checks and balances (quase em analogia ao modelo sistmico de Luhmann). O modelo da soberania popular, pelo contrrio, torna explcito em que sentido a liberdade individual s pode ser exercida no contexto social da parti-cipao no processo decisrio.

    Em consequncia do exposto anteriormente, o primeiro ponto sobre o qual construir a resposta questo da parti-cipao poltica nas democracias contemporneas o de que no h democracia sem exerccio concreto da sobera-nia popular e que este se d em forma de atividade legislati-va continuada, no somente no exerccio pontual do poder constituinte. Em segundo lugar, se quisermos repensar a participao democrtica, particularmente em vista a um aprofundamento da democracia em nossa sociedade, seria necessrio primeiramente resgatar essa dimenso social da li - berdade individual, que justamente a primeira vtima da mencionada judicializao ou juridificao, isto , enfim, do modelo constitucionalista. Em outras palavras, seria neces-srio fortalecer as formas de participao direta no processo decisrio. Ao mesmo tempo, contudo, no devemos pensar que a participao cidad se esgote em atos como o de votar em uma eleio ou referendo. H outras formas de participa-o democrtica que devemos agora considerar.

    Desconfiana democrtica e ativismo cidadoRosanvallon (2006) identifica um problema que consi-dera caracterstico de toda democracia real: a dissociao entre legitimidade e confiana. Em outros termos, os cida-dos reconhecem a legitimidade das principais instncias de deciso democrtica (parlamentos, governos, partidos, administraes pblicas, tribunais etc.), mas no confiam nelas, ou melhor, desconfiam que abusem do poder que lhes democrtica e legitimamente atribudo. Segundo Rosanvallon, essa desconfiana no um fenmeno novo

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    ou tpico das democracias contemporneas, mas perten-ce prpria democracia desde seu nascimento e se exer-ce de trs formas: como ao de vigiar (surveillance), como impeachment e como questionamento de juzos (polticos e jurdicos). No se trata de formas institucionais de exerccio da desconfiana, embora no tenham faltado tentativas de institucionaliz-las, como, por exemplo, no plano de Cons-tituio elaborado por Condorcet [no prelo]. Por isso, o termo contrademocracia, utilizado por Rosanvallon para designar essas trs formas de controle, no aponta para o eventual carter antidemocrtico das mesmas, mas indica a forma de democracia que contraria a outra, a democracia dos poderes indiretos disseminados no corpo social, a demo-cracia da desconfiana organizada oposta democracia da legitimidade eleitoral (Rosanvallon, 2006, p. 16). Sob essa perspectiva, o povo no se limita a escolher seus represen-tantes por meio de eleies ou, onde isso esteja previsto, a participar diretamente de escolhas por meio de plebiscitos, referendos e iniciativas populares; ele efetua uma atividade continuada de controle no s sobre os governantes eleitos, mas tambm sobre os tcnicos no eleitos tais como juzes, funcionrios pblicos etc. O povo exerce, assim, o que pode ser chamado de soberania social negativa no contexto daquela que, por sua vez, pode ser denominada, alm de contrademocracia, de democracia negativa (Rosanvallon, 2006, p. 21); de democracia da recusa (dmocratie de rejet) enquanto oposta democracia de projeto (dmocratie de projet), j que o poder de veto do povo (isto , o poder de rechaar polticas pblicas ou homens polticos) prevalece sobre a capacidade dos estadistas de ganhar a confiana dos eleitores por meio de suas propostas; de democracia de imputao (na qual os governantes esto sob contnua ameaa de serem chamados a responder juridicamente por suas aes) enquanto oposta democracia de confronta-o (na qual a luta poltica no acontecia nos tribunais ou

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    por meio de acusaes recprocas de improbidade e cor-rupo, mas pela oposio de diferentes vises polticas). Rosanvallon ainda tenta mostrar como nenhuma dessas diferentes faces da democracia completamente nova e defende a ideia de que nelas o povo demonstra uma pre-sena ativa e permanente (2006, p. 37). Nosso autor cita um manifesto de 1790 elaborado pelo Cercle Social (um crculo poltico ao qual pertenciam, entre outros, Brissot e o prprio Condorcet), no qual se afirma: O poder de vigiar e de expressar sua opinio (o quarto poder, o da censura, do qual no se fala nunca), enquanto pertence a cada indi-vduo e enquanto cada indivduo o pode exercer por si, sem representao e sem perigo para o corpo poltico, constitui de maneira essencial a soberania nacional (apud Rosanvallon, 2006, p. 44). Como se v, estamos alm da tradicional opo-sio entre pouvoir constituant e pouvoir constitu , pela qual a soberania popular se exerce plenamente no ato consti-tuinte e, depois, somente de forma irregular (nas emendas constitucionais submetidas a referendo) ou indireta (por meio dos tribunais constitucionais, por exemplo). Na viso da democracia negativa ou contrademocracia, a soberania segue, ao contrrio, sendo exercida diretamente pelo povo em formas no institucionais, isto , no pertencentes ao mbito do poder constitudo, mas estritamente polticas.

    Contudo, essas formas de controle direto no so isentas de riscos. Colin Crouch (2004) aponta para um deles em par-ticular, ao distinguir duas formas de ativismo dos cidados. H uma cidadania positiva que visa desenvolver identida-des coletivas, definir seus interesses e, baseando-se nestes, formular exigncias6; e h um ativismo negativo que se limi-ta a acusar e a lamentar-se, que tem como fim principal o de exigir prestao de contas aos polticos. Segundo Crouch, a democracia precisa de ambas aproximaes cidadania, mas

    6 Exemplos de tal ativismo por baixo so descritos em Chatterjee (2004).

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    no momento presente a negativa est recebendo uma nfase consideravelmente maior (2004, p. 13). No modelo nega-tivo, a poltica segue sendo exclusividade das elites, embora estas possam ser acusadas e culpadas por uma multido rai-vosa de espectadores, quando se descobre que fizeram algo errado (Crouch, 2004, p. 14). Essa raiva pode levar, porm, ao cinismo e desiluso em relao poltica e prpria democracia algo muito diferente da desconfiana democr-tica de Rosanvallon. Crouch lamenta, nesse contexto, uma degradao da comunicao poltica de massa (2004, p. 26), marcada por vrios fenmenos: a crescente personali-zao da poltica eleitoral (vota-se na pessoa e no no par-tido ou em certo projeto de sociedade); o sensacionalismo da mdia (interessada em descobrir escndalos para aumen-tar seus lucros em termos de cpias vendidas ou de espaos publicitrios, mais do que para exercer a funo de vigilante da transparncia); a crescente complexidade do mundo, em particular da economia, que torna quase impossvel aos cida-dos identificar claramente seus interesses e formular seus pedidos classe poltica, que, por sua vez, parece incapaz de uma gesto eficaz da realidade. Por essa razo muito mais simples, para os polticos, promoverem imagens de sua integridade e retido, para seus opositores, pesquisar suas vidas privadas para encontrar evidncias do contrrio e para os cidados permanecerem simples espectadores, prontos a indignar-se quando tais provas forem exibidas (Crouch, 2004, p. 28). No somente a participao democrtica reduzida ao momento eleitoral, pela incapacidade de os cidados se organizarem de maneira positiva para exigir polticas liga-das aos prprios interesses, como tambm a competio eleitoral assume a forma de uma busca de indivduos dota-dos de carter e integridade (Crouch, 2004, p. 28), como se isso em si fosse garantia de bom governo. Essa atitude no leva em conta dois aspectos fundamentais. O primeiro a no transparncia dos mecanismos econmicos impessoais

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    que operam na vida de uma sociedade. Constatar tal car-ter no transparente e impessoal no significa, contudo, afir-mar a inevitabilidade da ao desses mecanismos. Por mais obscuros que sejam, eles representam a consequncia de determinadas escolhas polticas, como, por exemplo, a libe-ralizao do mercado financeiro, as privatizaes dos anos de 1980 e das dcadas seguintes, a criao da OMC etc. O segun-do aspecto diz respeito ao fato de que, em muitos casos, o poder segue sendo exercido de forma no transparente por atores que so capazes de impor sua agenda aos governos e, ao mesmo tempo, permanecem nos bastidores, imunes ao escrutnio do pblico. A transparncia que o cidado exige dos representantes eleitos no exigida em igual medida dos representantes dos lobbies, dos executivos de empresas e gru-pos econmicos, dos banqueiros ou dos donos dos meios de comunicao de massa. Em outras palavras, a desconfiana democrtica que anima o modelo da contrademocracia pode rapidamente transformar-se na postura negativa que carac-teriza, segundo Crouch, a ps-democracia, a saber: cinismo e desiluso com a poltica; atitude passiva de simples indig-nao; renncia capacidade de influenciar ativamente o processo democrtico, que o relega, assim, influncia de outros atores, mais organizados, e que transforma a democra-cia, de fato, em oligarquia.

    Um dos desafios centrais com o qual nossas democra-cias hoje se deparam consiste em encontrar equilbrio entre as legtimas exigncias de transparncia e controle da con-trademocracia, por um lado, e a conscincia de que existem formas de exercer o poder que, por sua natureza, tendem a permanecer opacas e a escapar ao controle democrtico, por outro. As foras que se servem de tais formas aumentam seu poder justamente medida que, desviando a opinio pblica de suas manobras e de seus interesses, conseguem debru-la sobre escndalos dos polticos. Nisso so ajuda-das muitas vezes por uma mdia cmplice ou cointeressada,

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    que considera seu dever vigiar a moralidade dos polticos, mas no os negcios e as atividades de empresas, bancos, grupos financeiros etc. E frequentemente so ajudadas tam-bm por elementos do prprio sistema institucional que, por vrias razes e s vezes de boa f, acabam solapando totalmente a confiana nas instituies democrticas, con-tribuindo assim para que os cidados identifiquem o grau de legitimidade democrtica de um governo com o grau de moralidade pessoal de seus membros. Isso no significa, natu-ralmente, justificar a corrupo ou endossar o ditado, tris-temente popular no Brasil, rouba, mas faz. Como vimos anteriormente, controlar a ao dos polticos e cham-los a responder por seus atos uma forma fundamental de exercer a soberania popular j que o carter democrtico de nossas sociedades assegurado por formas no institu-cionais de exerccio da soberania. Tais formas, contudo, no deveriam limitar-se ao controle dos governantes pelos governados, mas estender-se a todas as formas de poder, em especial as que se prestam ao abuso e que ameaam esvaziar o sentido da prpria participao democrtica, uma vez que so exercidas de maneira opaca e so subtra-das ao escrutnio dos cidados.

    Por outro lado, como j observamos, em sociedades complexas como a nossa, operam mecanismos impessoais que so dificilmente controlveis pelas instituies demo-crticas, cujo funcionamento permanece obscuro at para os indivduos neles envolvidos. No necessrio seguir aqui Luhmann ou o prprio Habermas e falar de sistemas auto-poiticos, que se tornaram autnomos uns em relao aos outros, portanto, tambm em relao esfera da poltica e, sobretudo, ao mundo da vida dos indivduos que perten-cem a uma sociedade7; suficiente constatar que as interco-

    7 Este um tema que perpassa a obra habermasiana desde os anos de 1970. Ver particularmente Habermas (2012, p. 205 e ss.).

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    nexes e as influncias recprocas que caracterizam nosso mundo globalizado e, em particular, a economia globa-lizada atingiram um nvel de complexidade que as tornam praticamente incompreensveis, at na reconstruo ex post de acontecimentos como a crise de 2008 da qual foram dadas as explicaes mais divergentes. Nesse sentido, ao preocuparmo-nos com as consequncias do ativismo nega-tivo, no podemos cair no erro (simtrico quele de quem se indigna com os polticos) de atribuir a culpa dos pro-blemas que assombram nossa sociedade exclusivamente aos sujeitos econmicos mais poderosos. Tal erro foi cometido, por exemplo, por boa parte da mdia estadunidense, que preferiu culpar os banqueiros e sua ganncia pela crise eco-nmica de 2008, ao invs de identificar as causas sistmicas que levaram a ela. Ora, refletir sobre essas causas no tarefa fcil para economistas profissionais, muito menos para cidados comuns. Isso parece sugerir que esses pro-blemas com os quais se deparam nossas democracias sejam complexos demais para serem resolvidos democraticamen-te, isto , por meio da participao ativa dos cidados. Tal impresso , contudo, profundamente equivocada. Os pro-blemas em questo no so de natureza meramente tcnica e exigem respostas polticas. As medidas tomadas para com-bater a crise econmica atual so quase todas medidas pol-ticas, ainda que sejam apresentadas como medidas tcnicas. Tanto a escolha entre austeridade e investimento pblico, quanto aquela entre cortes nas despesas estatais e aumento da presso fiscal sobre os cidados mais ricos, tratam-se de escolhas polticas que pressupem no apenas o conheci-mento de dados macroeconmicos, mas tambm certa viso da sociedade e certos conceitos de justia social. Ora, esses elementos so precisamente aqueles que deveriam ser obje-to do escrutnio popular: os cidados devem poder esco-lher entre diferentes vises da sociedade e os candidatos a govern-los deveriam explicitar qual a sua, ao invs de

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    esconder-se atrs da personalidade de seus lderes ou dos defeitos pessoais dos adversrios. A escolha entre vises e valores polticos diversos mais relevante do que a escolha entre indivduos dotados de caractersticas diferentes.

    Diante do exposto, o terceiro ponto da nossa resposta questo da participao poltica diz respeito ao fato de que tal participao se d de vrias formas alm daquelas insti-tucionais previstas na Constituio, mas pode rapidamen-te degenerar em atitudes negativas de cinismo, desiluso, moralismo cego etc. Para evitar isso, seria necessrio man-ter viva nos cidados a conscincia de que eles, apesar da existncia de mecanismos no transparentes e impessoais, podem contribuir para decidir os destinos de sua socieda-de atravs de escolhas polticas concretas. H uma srie de fatores que, porm, dificultam essa tomada de conscincia, quer do ponto de vista objetivo de representar obstculos implementao da vontade popular, quer do ponto de vista subjetivo de desmotivar a participao ativa dos cidados. O primeiro a mencionada presena de mecanismos impes-soais que parecem obedecer a uma lgica prpria, indepen-dente de qualquer tentativa de controle poltico. Trata-se da tendncia a naturalizar tais mecanismos e os fenmenos que deles se originam. O segundo fator consiste na ideia, derivada de tal naturalizao, de que a poltica se reduz mera administrao do existente, visando minimizar os efeitos negativos de fenmenos socioeconmicos naturali-zados. Disso nasce o discurso tecnocrtico, que considera-remos na prxima seo. Um terceiro fator o interesse de determinados sujeitos sociais a minimizar a participao popular. No novidade que tambm nas sociedades mais democrticas existem grupos ou indivduos que tentam uti-lizar o poder poltico para perseguir seus interesses parti-culares. As estratgias utilizadas por tais sujeitos consistem justamente em defender a mencionada naturalizao dos fenmenos socioeconmicos e em servir-se do discurso tec-

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    nocrtico, que nega qualquer valor participao democr-tica. Por fim, h um quarto fator que diz respeito mais teoria da democracia do que prxis democrtica concreta: a ideia de que a poltica deve basear-se no consenso ou ter este como seu fim. J que todos esses fatores esto entre-laados, nas prximas sees os tratarei sem muitas distin-es, comeando por uma anlise do discurso tecnocrtico que, a meu ver, representa o maior obstculo democratiza-o de nossa sociedade por ser compartilhado no somente por quase todos os polticos, mas tambm por boa parte dos cidados comuns (contrariamente a teorias tais como a de Luhmann, que so excessivamente complexas).

    a produo do discurso tecnocrticoNo ano de 1976, portanto oito anos depois do movimento estudantil de 1968, foi publicado na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales um estudo que teve grande repercusso e que, apesar de ser assinado por Pierre Bourdieu e Luc Boltanski, era o resultado de um trabalho de grupo, como o prprio Boltanski (2008) salientou. O estudo, cujo ttulo era La production de lidologie dominante consistia em uma anlise de diferentes textos que compartilhavam uma mesma ideia de fundo: a de que a poltica, em particular a poltica econmica, seria uma espcie de cincia que pode ser exer-cida unicamente por experts, j que somente eles conhecem as leis que regulamentam a vida da sociedade e seu sistema econmico (Bourdieu e Boltanski, 1976).

    As fontes, nas quais se baseia aquela pesquisa, so de natureza variada: publicaes acadmicas, discursos de polticos, entrevistas com estadistas e experts, pesquisas de opinio, artigos de peridicos e de revistas, mas tambm manuais usados em institutos de formao da elite polti-co-econmica como o Institut dtudes Politiques (IEP), conhecido tambm como Science Po, e o Institut National de la Statistique et des tudes conomiques (INSEE). Os

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    autores pretendem mostrar, a partir desses textos, a existn-cia de um discurso annimo ( impossvel determinar sua origem ou quem o utilizou primeiro), que se desenvolveu at tomar forma de uma verdadeira ideologia dominante. Mas o que entendem os autores por ideologia? E o que seria uma ideologia dominante?

    O termo ideologia deve ser entendido, em primeiro lugar, em sentido neutro: como expresso de uma viso da sociedade que se compe de uma pluralidade de elemen-tos heterogneos entre si, os quais, contudo, formam um conjunto coerente. Dessa forma, entre esses elementos h uma determinada concepo de cincia, uma determina-da teoria do agir humano, uma determinada doutrina do Estado e, sobretudo, um sistema de valores e de finalidades sociais principais que no apenas no so questionados, mas tambm, na verdade, considerados inquestionveis, como, por exemplo: crescimento econmico ilimitado, estabilidade financeira, aumento constante do PIB etc. Tra-ta-se da ideologia da classe dominante em duplo sentido: de ideologia da classe dominante in primis, torna-se tambm o discurso mais influente ou at o mais utilizado no interior da prpria sociedade (na mdia, na academia, na poltica etc.). Para obter uma aceitao desse tipo, contudo, deve demonstrar ser neutra, isto , no ser uma ideologia no sentido mais restrito do termo (ou seja, uma viso da socie-dade que possui um vis especfico e , por definio, par-cial e no objetiva). Esse discurso deve apresentar-se como representao sbria, objetiva, at cientfica do mundo social, que se eleva acima dos cotidianos conflitos ideol-gicos e polticos. Por simplicidade, em seguida, utilizarei o termo ideologia dominante tambm quando no me refe-rir ao ensaio de Bourdieu e Boltanski, embora me parea que simplifique excessivamente algo muito mais complexo.

    Antes de prosseguir na anlise da pesquisa feita pelos dois autores franceses, gostaria de responder de antemo a

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    algumas possveis objees. A primeira diz respeito ao fato de que a ideia de classe dominante pode parecer obsoleta nos dias de hoje. Contudo, essa impresso poderia ser interpreta-da justamente como uma prova de que o discurso dominan-te segue cumprindo sua funo. Ele nega, nesse caso, no simplesmente a existncia da luta de classe nos moldes do marxismo tradicional, mas antes a prpria existncia das clas-ses sociais. Destarte, negada tambm a existncia de confli-tos em sentido prprio. As tenses sociais so descritas como resultado a se lastimar de uma srie de atitudes erradas: igno-rncia das verdadeiras leis sociais, ms interpretaes da situ-ao social e posies ideolgicas (no sentido de vises no cientficas e parciais). A ideologia dominante apresenta a sociedade como uma totalidade relativamente homognea, na qual possvel harmonizar os interesses divergentes entre si que, inegavelmente, esto presentes nela. H divergn-cia de opinies somente sobre a questo da melhor manei-ra para chegar a essa harmonizao: se por meio da sbia direo de um governo de experts ou da plena liberdade aos interesses, na convico de que o equilbrio resultar deste livre- jogo de opostos (no podemos cometer o erro de con-fundir a ideologia expertocrtica ou tecnocrtica com outra ideologia, a neoliberal: apesar de possuirem algo em comum, e de ambas poderem ser chamadas de dominantes, elas se distinguem medida que os tecnocratas confiam na ao dirigente das instituies estatais e os neoliberais na capaci-dade autoreguladora do livre-mercado).

    Para seu estudo, Bourdieu e Boltanski reuniram uma coletnea de definies, afirmaes e declaraes que pos-suem natureza ideolgica (tomada em sentido neutro, a saber, como expresso de uma viso complexa e coerente da sociedade entre as vrias vises possveis), mas que so apresentadas pelos indivduos ou pelos textos que as formu-lam como sendo obviedades triviais, constataes objetivas, resultados cientficos ou pura e simplesmente expresses da

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    nica verdade. A essa coleo eles deram, inspirando-se no Dicionrio das ideias feitas de Flaubert, o ttulo de Enciclop-dia das ideias feitas e dos lugares comuns usados nos lugares neutros (Bourdieu e Boltanski, 1976, p. 9 e ss.). Nela esto presentes pensadores e polticos que pertencem s mais dife-rentes correntes: de esquerda e de direita, conservadores e progressistas. Em seguida, apresentaremos quatro exemplos (dos mais de cem itens que compem a coleo), que me parecem particularmente relevantes para nosso assunto.

    No item Cooperao citada a seguinte declarao de Louis Armand8: Este tipo de trabalho, que eleva o esprito (como dizia Saint-Exupry: Faam com que eles construam uma catedral e eles se amaro), completamente diferente do trabalho de negociao antes, praticamente o seu contrrio (apud Bourdieu e Boltanski, 1976, p. 15). Em outras palavras: as negociaes entre interesses divergentes de diferentes grupos sociais so uma atividade que avilta o esprito e ameaa a coeso social. A vida social deveria antes ser vista como a cooperao espiritual e comunitria entre parceiros sociais.

    No item Ideologia citado, entre outros, Michel Poniatowski, que foi vrias vezes ministro: As ideologias que se apresentam como contemporneas o marxismo, o socialismo, o capitalismo, o liberalismo etc. so superadas pela civilizao que est se desenvolvendo perante nossos olhos (apud Bourdieu e Boltanski, 1976, p. 21). notvel que o capitalismo seja definido aqui como uma ideologia. Destarte, no se nega que a sociedade contempornea seja capitalista; ela se situa, antes, acima de qualquer ideologia e se encontra num processo de transformao que deixa pare-cer anacrnicas e inadequadas todas as ideologias. Quem a denomina de capitalista no somente se serve de um concei-

    8 Engenheiro, primeiro presidente da Comunidade Atmica Europeia (Euratom) e membro da Acadmie Franaise.

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    to ideolgico (no sentido ruim do termo), mas demonstra que seu pensamento completamente inatual e obsoleto.

    No item Informao citado o clebre economista Jean Fourasti:

    De fato preciso convencer as pessoas a fazer algo, mas isso [deveria ser feito] somente apresentando-lhes a situao, ou seja, fazendo que tomem conscincia da realidade, e no por meio de regras. No se trata de obrigar as pessoas a agir, mas de inform-las sobre certa realidade, de lev-las constatao de que est no seu interesse, na sua natureza, agir conforme certas linhas de ao e conforme certos mtodos (apud Bourdieu e Boltanski, 1976, p. 23).

    Em outras palavras: trata-se de abrir os olhos das pessoas para a realidade, para que tomem conscincia dela. Essa obra de esclarecimento deveria ser realizada pelo expert, que informa as pessoas simples quais so os verdadeiros interesses delas e quais os mtodos certos para persegui-los.

    Por fim, e ainda mais relevante para nossa discusso, no item Parlamentarismo citado o texto de uma ques-to da prova de admisso escola de elite cole Nationale dAdministration (ENA) do ano 1966: O parlamentaris-mo, em cujo centro est a assembleia popular, parece no ser mais adequado s necessidades do mundo hodierno (apud Bourdieu e Boltanski, 1976, p. 26). O parlamentaris-mo representaria uma viso obsoleta do mundo, segundo a qual a poltica tem a ver com a barganha entre interesses divergentes e a busca de acordos. Os tecnocratas da ENA criticam o parlamentarismo em nome de uma forma mais eficiente de governo, a saber, em nome do governo dos especialistas, que no precisa submeter-se a negociaes desgastantes que custam tempo e energia, mas pode tomar suas decises conforme critrios cientficos objetivos.

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    Esse ltimo ponto decisivo. Para Bourdieu e Boltanski (1976), a ideologia dominante produzida em lugares que se apresentam como neutros universidades, institutos de pesquisa, mdia que do a ela o aspecto de ser cientfica e imparcial, o qual deveria negar o carter ideolgico do saber produzido em tais lugares. Destarte, o expert, em seus vrios avatares (cientista poltico, jurista, economista, cien-tista social, especialista em estatstica etc.), se torna o pro-ttipo do sbio imparcial, que se situa acima dos conflitos cotidianos e cuja posio se funda sobre uma avaliao neu-tra de fatos objetivos. Se ele for chamado a influenciar ou at a tomar diretamente decises polticas (por exemplo, no caso de ser indicado para um cargo de governo), servir--se- presumidamente de seus conhecimentos cientficos, sem seguir motivaes partidrias ou ideolgicas.

    Embora essas anlises sejam de 1976 e as afirmaes sobre as quais se baseiam datem das dcadas de 1960 e 1970, elas parecem incrivelmente atuais se considerarmos alguns acontecimentos recentes (a formao do governo Monti na Itlia, por exemplo). Contudo, o que me interessa aqui menos a aplicao concreta da ideologia dominante na Europa atual e antes a concepo de poltica e de comuni-dade poltica que lhe subjaz.

    Antes de tudo, devemos constatar que estamos diante de um grave dficit epistemolgico: o debate sobre o esta-tuto das cincias sociais da discusso sobre o positivismo dos anos de 1960 discusso metaterica atual, conduzida, entre outros, pelo prprio Boltanski simplesmente dei-xado de lado. No discurso tecnocrtico no se coloca em dvida em momento nenhum se sua prpria viso social, econmica e poltica possui carter cientfico (naturalmen-te, esta no a posio de todos os cientistas sociais, mas somente dos que defendem o discurso tecnocrtico). Isso possibilita que os experts ativos politicamente vejam suas decises luz de nexos causais necessrios, segundo os

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    quais os efeitos almejados deveriam sempre ser alcanados. Ainda mais problemtica, do ponto de vista da teoria ou da filosofia poltica, a viso social e poltica que subjaz ide-ologia dominante dos tecnocratas. Tal viso se fundamen-ta sobre cinco premissas, todas questionveis e todas com conse quncias prticas muito graves.

    A primeira premissa consiste em uma viso implicita-mente normativa da sociedade, que v nela um jogo har-mnico de interesses diferentes, pois estes nunca chegam (melhor: nunca deveriam chegar) a entrar em conflito. A ideologia dominante parte da imagem utpica de uma sociedade pacfica e sem conflito e oferece tal imagem como mera descrio, embora seja evidente que esta impli-ca tambm uma avaliao positiva. Segundo essa imagem, na sociedade no haveria conflito social se seus membros entendessem a maneira como ela realmente funciona. Se todos dispusessem do saber necessrio, aceitariam pacifi-camente aquilo que lhes aparece como o resultado inquo de injustias sociais e de ilegtimas assimetrias de poder. Da ignorncia das verdadeiras leis sociais deriva a incapa-cidade de reconhecer que o desmantelamento das garan-tias oferecidas pelo Estado no campo social representa um ingrediente necessrio do crescimento econmico, ou que a retirada de direitos trabalhistas torna, por um lado, mais precrios os empregos, mas, por outro, os asseguram con-tra a concorrncia dos mercados de trabalho estrangeiros etc. Em suma, se os membros da sociedade dispusessem do conhecimento correto das leis que regem a economia e a vida da sociedade, isso eliminaria inteis tenses sociais e no somente facilitaria a ao dos governos tecnocrticos, mas a tornaria at mais eficiente.

    A segunda premissa fundamental estritamente ligada primeira e consiste em negar a natureza conflituosa da poltica. Esta deveria fundar-se no consenso, entendido como condio prvia de qualquer poltica democrtica e

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    no como resultado de confrontaes e negociaes (isto , como o resultado final da poltica democrtica).

    A terceira premissa da ideologia dominante concerne ideia da ao poltica como exerccio de cincia aplica-da. Os problemas que a poltica enfrenta seriam de natu-reza meramente tcnica, cuja soluo consistiria na corre-ta aplicao prtica do saber especializado fornecido pelas cincias sociais. Correspondentemente, do homem poltico no se espera que disponha de vises prprias acerca desses problemas e da organizao da sociedade, mas que siga as indicaes dos experts. Destarte, a poltica perde o carter de uma atividade que tem a ver com os desejos, anseios, sonhos e sentimentos das pessoas e se torna antes uma for-ma aplicada de saber a qual se fundamenta em pressupo-sies antropolgicas. Estas, por sua vez, so bastante pro-blemticas, pois, a ideologia dominante parte da ideia de que possvel identificar fortes regularidades ou at leis do comportamento humano e, nesse sentido, formular prognsticos suficientemente exatos sobre o futuro. Por exemplo, ela parte da ideia de que determinadas medidas tomadas por um governo provocariam automaticamente determinadas consequncias nos mercados financeiros internacionais (suscitando a confiana ou a desconfiana dos investidores estrangeiros, favorecendo ou retardando o crescimento econmico etc.). Isso pressupe uma viso antropolgica segundo a qual o ser humano se comporta sempre de maneira racional no sentido de uma raciona-lidade econmica , perseguindo seus interesses e esco-lhendo sempre as estratgias de ao que os maximizam. Essa viso aplicada tambm a macroatores como institu-tos bancrios, empresas, Estados etc. Sem esse pressuposto seria extremamente complicado falar do carter cientfi-co de disciplinas como a macroeconomia. Cabe duvidar, contudo, que tal pressuposto seja correto e no faltam estu-dos que o pem em questo, a partir dos trabalhos clssi-

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    cos de Albert Hirschman (2002) at chegar aos estudos mais recentes de Elster (1999a, 1999b), de Sousa (1987), Lakoff (2008) e Green e Shapiro (1994). Mark Taylor avanou a tese sugestiva de que haveria uma relao estrita entre f religiosa e racionalidade econmica, que vai muito alm da influncia analisada por Weber (2004) do calvinismo sobre o esprito capitalista e que torna a prpria economia uma espcie de religio sucednea (Taylor, 2004). Por fim, vrios autores tentam demonstrar com base em dados de pesquisas empricas que as decises tomadas nos merca-dos e na esfera poltica no so racionais, mas obedecem a fatores emocionais dificilmente previsveis (Caplan, 2007; Haidt, 2012). No obstante isso, o discurso dominante afirma que a poltica deve seguir a lgica dos mercados e tomar medidas racionais, ainda que estas possam causar descontentamento e sofrimento social. A resistncia con-tra tais medidas representada, ento, como irracional e carente de objetividade.

    A quarta premissa deriva da terceira e consiste na ideia de que o homem poltico que toma suas decises com base no saber especializado dos experts no responsvel pessoal-mente por elas, pois so a consequncia lgica da aplicao prtica de tal saber. Isso significa, em primeiro lugar, a des-personalizao da poltica. O poltico se torna um simples tcnico que reage a fatores externos ao adotar as medidas necessrias. Seu espao de manobra extremamente redu-zido e seu lugar pode ser tomado, a qualquer momento e sem nenhum problema, por outro tcnico sob condio de que este disponha do mesmo saber que aquele. Isso sig-nifica tambm, em segundo lugar, a definitiva desvincula-o entre poltica e tica. Medidas que resultam em sofri-mento evitvel socialmente (se polticas diferentes tivessem sido adotadas) so apresentadas como resposta inelutvel a problemas que surgem por causa dos mecanismos impesso-ais da economia. O processo inteiro descrito como moral-

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    mente neutro: os mecanismos em questo obedecem a leis annimas, representadas como uma espcie de leis natu-rais. A naturalizao da economia (isto , a ideia de que na esfera da economia tudo acontece de maneira necessria, segundo leis imutveis e independentemente da vontade dos atores) leva ao mencionado fatalismo, pelo qual os pol-ticos enquanto tcnicos se limitam a tomar decises inevit-veis. A tarefa principal destes passa a ser a de convencer os cidados dessa inevitabilidade.

    A quinta premissa consiste em aceitar que have-r sempre e inevitavelmente vtimas do progresso, ou seja, vtimas das leis frreas que regem os fatos sociais, em particular os econmicos. Trata-se, em certo sentido, de uma variante do darwinismo social, que condiz parti-cularmente com a naturalizao da economia. A exclu-so social vista como o resultado inevitvel de uma lei natural eticamente neutra e no como o resultado de decises polticas que poderiam ter sido diferentes. O dis-curso tecnocrtico leva, portanto, a uma forma de fatalis-mo poltico e moral, pelo qual a poltica tem unicamente a tarefa de tornar mais palatvel o inevitvel e de mini-mizar suas consequncias negativas, sem, porm, poder impedi-las. Em outras palavras, seu espao de manobra extremamente reduzido. O discurso tecnocrtico repre-senta, portanto, a definitiva naturalizao da poltica e, enfim, da prpria vida social. Ele trata os fenmenos como fenmenos naturais e presumidamente os descre-ve com exatido, para tirar deles as leis que permitam operar prognsticos certos e ofeream orientao aos tecnocratas. O Parlamento e os cidados servem somente para garantir uma legitimidade formal a decises que so tomadas acima deles. A prpria legitimidade formal almejada somente por razes de eficcia: decises formal-mente legitimadas por rgos decisrios democrticos sero mais provavelmente aceitas e obedecidas.

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    viso tecnocrtica, que parece prevalecer no momen-to atual em muitos pases industrializados, que est pre-sente tambm no discurso de alguns polticos brasileiros e na lgica de certas polticas pblicas (cujos efeitos so calculados estatisticamente como se a realidade social pudesse ser modificada de maneira clara e certa por quem conhea suas leis), se contrapem vrios discursos teri-cos. Em seguida, faremos algumas consideraes a partir de uma destas teorias: a da democracia radical defendida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.

    Democracia radicalEssa teoria se caracteriza por questionar diretamente a ideia de que a realidade social obedece a leis imutveis e , por-tanto, planificvel. Podemos dizer que seu ponto de partida o de que o nico consenso necessrio em uma democracia refere-se existncia de certas regras que impeam a trans-formao de conflitos de interesse em conflitos armados, que os cidados recorram violncia fsica para implemen-tar suas vises de sociedade. Nesse sentido, a constituio democrtica no pressupe homogeneidade social ou iden-tidade coletiva alm daquela criada pela adeso s prprias instituies democrticas9. Em outras palavras, os cidados de uma democracia no precisam compartilhar entre si inte-resses materiais ou ideais, valores ticos ou morais, vises do mundo ou da natureza humana. Muito menos esto vincu-lados aos interesses, valores e vises prprios da gerao dos pais constitucionais. A constituio define a arena na qual interesses, valores e vises diferentes ou at opostos podem se enfrentar, sem que isso resulte em conflito aberto ou em guerra civil exatamente como defendido por Laclau e Mou-ffe (1985), Laclau (1996) e Mouffe (2000).

    9 Nos moldes do patriotismo constitucional defendido, entre outros, por Habermas (2003). A esse respeito, ver tambm Bunchaft (2011).

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    Mouffe critica as teorias tradicionais de democracia (inclusive as teorias de democracia deliberativa de cunho rawlsiano e habermasiano) por oferecerem uma imagem negativa do conflito de interesses presente na sociedade e por privilegiarem a racionalidade dos sujeitos, deixando de lado elementos centrais tais como as paixes e os afetos (Mouffe, 2000, p. 95). Essas teorias concebem o indivduo como anterior sociedade, portador de direitos naturais, e como um agente que maximiza sua utilidade ou como um sujeito racional; assim fazendo, eles desconsideram rela-es sociais e de poder, linguagem, cultura e todo o conjun-to de prticas que possibilita o fato de tornar-se um agente (Mouffe, 2000, p. 95). Em outras palavras, desconsideram as condies que permitem a existncia de sujeitos concretos em uma sociedade e em uma democracia. Contrariamente a essas teorias, Mouffe insiste na importncia das prticas, mais do que dos argumentos: juzos polticos e regras jur-dicas so aceitos porque esto inscritos em formas compar-tilhadas de vida e porque h um consenso sobre valores, vises do mundo etc. (Mouffe, 2000, p. 97).

    Contudo, contrariamente aos comunitaristas, com os quais ela compartilha a crtica viso individualista liberal, Mouffe no coloca a nfase nos traos comuns (valores etc.), mas antes nas diferenas entre distintas vises e interesses. Sua crtica principal ao modelo deliberativo o fato de esta negligenciar a dimenso do poder ao postular a possibilida-de de se chegar livremente a um consenso racional. Segundo Mouffe, as relaes assimtricas de poder que caracterizam a vida socioeconmica de uma dada sociedade no podem ser canceladas quando se entra em uma argumentao racional; o melhor argumento reconhecido como tal somente porque naquela sociedade prevalecem determinados valores e deter-minadas vises que levam a esta concluso. Mas esses valores e essas vises no so neutros e so, antes, expresso de certa hegemonia ideolgica inevitvel. A realidade social constitu-

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    da por relaes de poder e , portanto, sempre de natureza poltica. Este ponto de convergncia [...] entre objetividade e poder o que entendemos por hegemonia (Mouffe, 2000, p. 99). O poder constitui a prpria identidade dos sujeitos sociais e, portanto, no eliminvel. Nas prticas polticas, no h identidades pr-formadas em busca de poder para realizar seus interesses, mas h, antes, identidades que se constituem de maneira precria e sempre vulnervel por intermdio de relaes de poder (Mouffe, 2000, p. 100). Nesse processo de formao de identidade, os indivduos se orientam por con-ceitos e valores que, embora tenham se tornado hegemnicos (o de liberdade individual, por exemplo), eles prprios podem colocar em questo. O carter democrtico de uma sociedade dado justamente pelo fato de que nenhum ator social pode reclamar para si representar a totalidade da sociedade (Mou-ffe, 2000, p. 100), como, pelo contrrio, acontece quando uma minoria se autoproclama opinio pblica (como no caso da chamada classe mdia no Brasil) e pretende impor seus inte-resses como o interesse geral de toda a sociedade.

    As prticas democrticas implicam, portanto, uma luta de poder para estabelecer os valores hegemnicos e/ou para estabelecer as identidades dos sujeitos sociais. A viso agni-ca de democracia defendida por Mouffe requer que as par-tes em luta se vejam como adversrias, cujos direitos devem ser respeitados, mas no como inimigos a serem destrudos (como numa viso de mero antagonismo). Tal viso mantm ao mesmo tempo firmemente a ideia de que as prticas polti-cas so conflituosas e que dizem respeito a relaes de poder, a comear pelo poder de certos sujeitos sociais definirem a si mesmos, em vez de terem que aceitar uma definio imposta de fora (por exemplo a de marginais, de ral).

    A viso radical de democracia, assim como Laclau e Mouffe a defendem, se ope, portanto, ao discurso tec-nocrtico, que quer eliminar de vez a ao poltica, substi-tuindo-a por uma atividade presumidamente cientfica de

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    administrao e de gesto da vida social e econmica de uma dada sociedade, que, por essa perspectiva, deveria ser subtrada vontade popular, pois esta desconhece as leis objetivas que regram a esfera da economia. Em lugar disso, a teoria da democracia radical reconhece que as prticas democrticas tm como objeto relaes de poder, que aca-bam definindo a identidade dos sujeitos sociais e os valores dominantes em uma sociedade (e, portanto, a racionalida-de dos argumentos usados nas deliberaes pblicas).

    Em consequncia do exposto, podemos formular os seguintes pontos relativos questo central deste escrito: para que os cidados participem ativamente do processo decisrio, necessrio mostrar o carter ideolgico (no sentido negati-vo do termo) do discurso tecnocrtico e da correspondente naturalizao do status quo. Ao mesmo tempo, necessrio pr em questo aquelas que so apresentadas como finalidades bvias, indiscutidas e indiscutveis da sociedade: crescimento econmico ilimitado, privatizao indiscriminada do setor pblico, incentivos pblicos s empresas etc. Pr em questo no significa aqui negar a importncia de tais finalidades, mas repensar suas modalidades, estabelecer novas prioridades10. Tudo isso tarefa de uma crtica social inspirada nos mtodos da teoria crtica (como no caso de Boltanski). Naturalmente, esse trabalho de crtica ser intil se no conseguir alcanar a maioria dos cidados. Isso pressupe a existncia de uma mdia plural e aberta a todos uma circunstncia praticamen-te inexistente no Brasil, onde os rgos de comunicao de massa esto nas mos de poucos grupos que os usam para per-seguir seus interesses econmicos e, portanto, polticos (sem, contudo, admitir isso abertamente)11.

    10 Exemplos de como repensar as modalidades seriam privilegiar uma distribuio mais justa da riqueza j existente no pas, antes de fomentar a produo de nova riqueza destinada a uma minoria; ou ainda, ao fazer privatizaes, estabelecer con-dies favorveis ao Estado, e no apenas aos sujeitos privados.11 Sobre esse ponto, ver Reprteres Sem Fronteiras (2013)

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    Como se v, os desafios so muitos e os obstculos democratizao real (a qual se daria por meio de uma maior participao ativa dos cidados no processo decisrio) so aparentemente insuperveis. Os cidados tm a percepo de que sua voz no ouvida e de que seu engajamento no possui relevncia nenhuma para influenciar os mecanismos globais e impessoais que dominam suas vidas. Tal percepo est correta medida que, de fato, a participao se reduz ao voto ou indignao pblica perante os escndalos dos pol-ticos. Dessa forma, os cidados preferem se refugiar na esfera privada a qual garantida por direitos individuais: os sujeitos entendem sua liberdade como mera liberdade jurdica, iso-lando-se ainda mais do conjunto dos concidados e renun-ciando ainda mais faculdade de exercer seu poder sobera-no, o que s pode ser feito conjuntamente a tais concidados. Essa contrao da participao abre espao para outros sujei-tos, cujo poder e cuja influncia nos processos decisrios se tornam cada vez maiores. O discurso tecnocrtico e a naturali-zao do status quo, que se tornaram dominantes, contribuem a desincentivar ainda mais os indivduos e a suscitar neles a ideia de que a poltica um mbito reservado aos tcnicos, no qual no h espao para novidades e experimentos sociais. Nesse contexto, a participao se limita escolha de polti-cos que possuam as qualidades consideradas necessrias para implementar as medidas tcnicas inevitveis. Em tudo isso, a mdia deixa de exercer um papel verdadeiramente crtico e se limita tendenciosamente a defender interesses particulares ou a denunciar polticos em vez de discutir polticas. Perante essa situao, no fcil pensar em formas de restituir aos cidados a confiana em sua capacidade de tomar decises e de influenciar a realidade, e tampouco era nossa inteno apontar para sadas concretas desse dilema no espao limi-tado de um artigo cientfico. Faz-se mister, contudo, refletir sobre essas questes, se quisermos que nossa sociedade se tor-ne uma sociedade verdadeiramente democrtica.

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    Alessandro Pinzani

    alessandro pinzani professor de filosofia poltica da UFSC e livre-docente em filosofia pela Universidade de Tbingen.

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    Resumos / Abstracts

    DEMOCRACIA vERSUS TECNOCRACIA: APATIA E PARTICIPAO EM SOCIEDADES COMPlExAS

    AlessAndro PinzAniResumo: Discutimos no presente artigo a questo da apatia pol-tica em nossas democracias no do ponto de vista emprico, mas por meio da anlise de vrios discursos e modelos teri-cos que resultam ser, respectivamente, dominantes e anta-gnicos tanto na academia quanto na prpria esfera pbli-ca. A primeira oposio analisada aquela entre o modelo constitucionalista da democracia e o modelo da soberania popular. A partir dessa anlise, passamos discusso dos fen-menos sociais de judicializao e de indignao por parte dos cidados. Indignao esta, que, por sua vez, se ope ao ativis-mo positivo de quem est disposto a participar diretamente do processo decisrio, inclusive em formas no instituciona-lizadas de participao. Por fim, analisamos a oposio entre o discurso tecnocrtico, caracterizado pela nfase no consen-so sobre leis socioeconmicas presumidamente formulveis de maneira cientfica, e a ideia de uma democracia radical, caracterizada por uma viso de agonismo democrtico.

    Palavras-chave: Democracia Radical; Tecnocracia; Apatia Pol-tica; Constitucionalismo; Soberania Popular.

    DEMOCRACY vERSUS TECHNOCRACY: APATHY AND PARTICIPATION IN COMPlEx SOCIETIESAbstract: We discuss in this article the topic of political apathy in our democracy; it does it not from an empirical perspective, but through an analysis of several discourses and theoretical models, which are considered to be, alternately, dominant or antagonist both in academy and in public sphere. The first opposition to be analyzed is that between constitutionalist model and popular sovereignty model. From this analysis, we start the discussion about the social phenomena of judicialization and of indignation among citizens,

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    Resumos / Abstracts

    which stands opposite to the positive activism of those, who are willing to participate directly in decisional processes, including through not institutionalized forms of participation. Finally, we analyze the opposition between technocratic discourse and the idea of a radical democracy, with its vision of a democratic agonism.

    Keywords: Radical Democracy; Technocracy; Political Apathy; Constitutionalism; Popular Sovereignty.