O CASO DOS
DENUNCIANTES INVEJOSOS
DIMITRI DIMOULIS
O CASO DOS
DENUNCIANTES INVEJOSOS
Introdução prática às relações
entre direito, moral e justiça
Com a tradução de texto de LON L. FULLER,
parte da obra The morality of law
4ª edição revista e atualizada
O CASO DOS
DENUNCIANTES INVEJOSOS
Introdução prática às relações
entre direito, moral e justiça
Com a tradução de texto de
LON L. FULLER,
parte da obra The morality of law
4.ª edição revista e atualizada
Original da edição The morality of law,
revised edition, p. 245 a 253, Lon L. Fuller,
New Haven and London, Yale University Press, 1969
© 1964 byYale University, revised edition copyright
© 1969 byYale University
1.ª edição- 2003; 2.ª edição - 2005; 3.ª edição - 2006.
© desta edição
[2007]
EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.
CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO
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Impresso no Brasil
[07-2007]
Universitário
(complementar)
Revisto e atualizado até [06-2007]
ISBN 978-85-203-3106-4
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO - DIMITRI DIMOULIS ............................................................................. 7
1. Lon Fuller: dos Exploradores de Cavernas aos Denunciantes Invejosos ............................... 7
2. Punir ou perdoar os crimes de uma ditadura? Sobre a “justiça de transição” ...................... 10
3. Direito positivo ou direito justo? .......................................................................................... 16
NOTA EXPLICATIVA - DIMITRI DIMOULIS .................................................................... 25
PRIMEIRA PARTE
O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS - LON L.FULLER .......................................... 29
Primeiro Deputado ................................................................................................................... 35
Segundo Deputado ................................................................................................................... 37
Terceiro Deputado ................................................................................................................... 39
Quarto Deputado ..................................................................................................................... 43
Quinto Deputado ..................................................................................................................... 45
SEGUNDA PARTE
CINCO NOVAS OPINIÕES SOBRE O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS -
DIMITRI DIMOULIS ................................................................................................................... 49
Opinião do Prof. Goldenage ..................................................................................................... 53
Opinião do Prof. Wendelin ....................................................................................................... 61
Opinião da Profa. Sting ............................................................................................................ 67
Opinião do Prof. Satene ............................................................................................................ 73
Opinião da Profa. Bernadotti .................................................................................................... 81
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... 89
APRESENTAÇÃO1
1. Lon Fuller: dos Exploradores de Cavernas aos Denunciantes Invejosos
Lon Luvois Fuller (1902-1978) nasceu em Hereford no Estado do Texas.2 Estudou
economia e direito em Stanford e atuou como professor de teoria geral do direito, inicialmente
nas Faculdades de Direito de Oregon, Illinois e Duke e, a partir de 1940, na renomada
Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, onde trabalhou até 1972.
Fuller publicou muitas obras de direito civil, de filosofia e de teoria do direito.
Deve, porém, sua fama a um breve ensaio intitulado O caso dos exploradores de cavernas.
Esse trabalho, publicado pela primeira vez em 1949, foi lido e comentado por estudantes e
professores de direito em todo o mundo, tendo sido inclusive traduzido para vários idiomas. A
tradução para o português, publicada pela primeira vez em 1976, obteve um considerável
sucesso editorial.3 [pg. 7]
No referido ensaio, Fuller apresenta um caso imaginário. Cinco cientistas ficam
presos em uma caverna sem alimentos suficientes para sobreviver até que o resgate desobstrua
a entrada. Quatro entre eles decidem matar o quinto colega para que possam se alimentar,
sendo esta a única possibilidade para salvar as próprias vidas. Será que eles devem ser
punidos por homicídio doloso?
A história lembra mais o roteiro de um filme do que um sóbrio estudo de filosofia
do direito. Na realidade, Fuller não quer divertir nem apavorar o leitor. Seu objetivo é
provocar uma discussão sobre o que é justo e injusto, ou seja, uma discussão sobre o que é
direito. O autor não oferece uma resposta definitiva. Limita-se a expor várias opiniões sobre
uma possível condenação dos quatro exploradores e nos convida a refletir sobre o caso,
discutindo estas opiniões.
Lon Fuller publicou em 1964 sua mais profunda e original obra, intitulada The
morality of law (A moralidade do direito). Essa publicação causou um grande interesse, tendo
sido comentada pelos mais importantes filósofos do direito e reeditada diversas vezes.4
Nessa obra encontramos uma inovadora análise das relações entre o direito e a
moral. Fuller adotou uma posição moralista, propondo a definição e aplicação do direito
positivo à luz das aspirações morais. Segundo o autor, as normas de conduta e de sanção que
1 Pela leitura crítica do presente volume e pelas preciosas sugestões agradeço à professora Ana Lucia Sabadell e
aos professores André Ramos Tavares e Theodomiro Dias Neto. 2 Sobre a vida e a atuação acadêmica de Lon Fuller, cf. SUMMERS, Robert. Lon L. Fuller. Stanford: Stanford
University Press, 1984. p. 3-13. 3 FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Fabris, 1999. Nova tradução em:
FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. São Paulo: Leud, 2003. 4 Utilizamos a 29.ª reimpressão da segunda edição da obra: FULLER, Lon L. The morality of law. New Haven:
Yale University Press, 1969. Sobre os posicionamentos teóricos de Fuller cf. SUMMERS, Robert. Lon L. Fuller.
Stanford: Stanford University Press, 1984; ALDAY, Rafael Escudero. Positivismo y moral interna del derecho.
Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2000.
são criadas pelo Estado só merecem [pg. 8] o nome “Direito” quando satisfazem certos
requisitos de qualidade que ele denominou moralidade interna do direito (publicidade das
normas, generalidade, estabilidade no tempo, não retroatividade etc.).
Fuller destacou-se, assim, como um dos principais contestadores do filósofo do
direito Herbert Lionel Adolphus Hart (1907-1992) que sustentava, no mesmo período, as
posições do positivismo jurídico.5
Em A moralidade do direito Fuller incluiu um texto intitulado O problema do
Denunciante Invejoso. O autor informa que utilizou esse texto como material de apoio em
seus cursos de teoria do direito e também como introdução à problemática jurídica,
distribuindo esse mesmo texto entre os alunos de primeiro ano da Faculdade de Direito de
Harvard, onde ele ministrava a disciplina de introdução ao direito.6 [pg. 9]
Fuller apresenta nesse texto um caso que é bastante diferente do caso dos
Exploradores de Cavernas. Durante uma ditadura, muitas pessoas denunciaram seus inimigos
sabendo que os tribunais do país, aplicando a legislação da época, pronunciariam a pena de
morte para delitos que, objetivamente, não eram graves. Após a queda do regime ditatorial, os
denunciantes, que Fuller chama de “invejosos”, foram objeto de execração popular. Ainda que
os denunciantes não tivessem cometido nenhum delito, pois só levaram a conhecimento das
autoridades fatos puníveis segundo a legislação em vigor, muitas pessoas exigiram sua
punição.
2. Punir ou perdoar os crimes de uma ditadura? Sobre a “justiça de transição”
O caso dos Denunciantes Invejosos é imaginário. Foi pensado por Fuller que
possuía um “talento mitopoético”, como observou Herbert Hart.7 Mesmo assim, Fuller
elaborou o caso com base na experiência das ditaduras do século XX e, principalmente, do
regime nazista na Alemanha.8 Essas ditaduras se apresentavam formalmente como Estados de
Direito, possuindo uma Constituição e um sistema de leis não muito diferentes daquelas dos
países democráticos.
Os regimes democráticos que sucederam às ditaduras enfrentaram o dilema que
aponta Lon Fuller no caso dos De- [pg. 10] nunciantes Invejosos: perdoar ou punir os crimes,
os excessos de violência e as injustiças ocorridas durante as ditaduras? Temos aqui um
problema conhecido como justiça de transição (transitional justice).
A justiça de transição se define como “um processo de julgamentos, depurações e
reparações que se realizam após a mudança de um regime político para um outro”.9
5 HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994; Essays
in jurisprudence and philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983. A polêmica entre Hart e Fuller iniciou-se com
a publicação do seguinte texto: HART, Herbert Lionel Adolphus. Positivism and the separation of law and
morals. Harvard Law Review, v. 71, n. 4, 1958. p. 593-629. A resposta de Fuller encontra-se em: FULLER, Lon
L. Positivism and fidelity to law. A reply to professor Hart. Harvard Law Review, v. 71, n. 4,1958. p. 630-672.
Sobre a controvérsia entre juspositivistas e moralistas em relação à validade do direito injusto, cf. MERTENS,
Thomas. Radbruch and Hart on the grudge informer: a reconsideration. Ratio juris, v. 15, n. 2, 2002. p. 186-205;
HALDEMANN, Frank. Gustav Radbruch vs. Hans Kelsen. A debate on Nazi law. Ratio juris, v. 18, n. 2, 2005.
p. 162-178. 6 FULLER, Lon L. The morality of law. New Haven: Yale University Press, 1969. p. vii.
7 HART, Herbert Lionel Adolphus. Essays in jurisprudence and philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983. p. 363.
8 Cf. a análise de casos similares que foram levados a julgamento na Alemanha após a queda do nazismo em:
MERTENS, Thomas. Radbruch and Hart on the grudge informer: a reconsideration. Ratio juris, v. 15, n. 2,
2002. p. 186-205; FREUND, Christiane. Rechtsbeugung durch Verletzung übergesetzlichen Rechts. Berlin:
Duncker und Humblot, 2006, p. 129-134. 9 ELSTER, Jon. Closing the books. Transitional justice in historical perspective. Cambridge: Cambridge
University Press, 2004. p. 1.
Dependendo do país e do momento histórico, foram adotadas várias soluções, analisadas em
uma longa série de recentes estudos.10
Em alguns países os responsáveis decidiram “esquecer” o passado, colocando
“um ponto final”. Foi assim concedida uma ampla anistia, ou seja, um perdão geral aos
responsáveis e aos colaboradores dos regimes ditatoriais. Esse foi o caminho seguido em
alguns países da Europa e da América Latina, incluindo o Brasil. [pg. 11]
Em outros países foi decidido processar os golpistas e os responsáveis pelos
males causados durante as ditaduras. Quem foi acusado como colaborador do regime se
defendeu com cinco argumentos básicos:
• o réu simplesmente aplicava o direito em vigor (argumento da legalidade);
• o réu acatava ordens dadas por seus superiores hierárquicos, cumprindo com
seus deveres; não cabia a ele examinar a legalidade das ordens ou as verdadeiras intenções de
seus superiores (argumento do dever legal);
• se o réu não tivesse colaborado aos crimes do regime, teria sido gravemente
punido ou exposto a perseguições junto a seus familiares, algo que ninguém pode exigir de
uma pessoa comum (argumento da inexigibilidade de conduta diversa);
• se o réu não tivesse executado as ordens dadas os ditadores poderiam encontrar
facilmente outras pessoas que teriam atuado da mesma forma ou até com maior dureza
(argumento da fungibilidade);
• a conduta do réu é um verdadeiro detalhe diante das incontáveis atrocidades de
uma ditadura; sua punição significaria simplesmente que se encontrou um bode expiatório
(argumento da insignificância).
Ora, esses argumentos deveriam levar à absolvição de praticamente todos os
acusados, considerando como únicos culpados o restrito grupo dos chefes da ditadura dos
quais emanavam todas as ordens!
A problemática foi tratada na Alemanha em uma ampla jurisprudência após o fim
da Segunda Guerra Mundial, em 1945. A maioria dos tribunais alemães descartou o
argumento [pg. 12] da legalidade do regime nazista com dois argumentos. Em primeiro lugar,
foi considerado que as normas jurídicas que contrariam o sentimento de humanidade e de
justiça não possuem validade jurídica. Em segundo lugar, foi considerado que as graves
violações dos direitos humanos, e principalmente os crimes de guerra e os crimes contra a
humanidade (exemplos: genocídio; perseguição por motivos religiosos, étnicos, políticos ou
de orientação sexual; guerra imperialista), devem ser punidos por tribunais nacionais e
internacionais. Para tanto, foi necessário criar algumas leis penais retroativas, violando o
princípio da legalidade e provocando críticas e reações. Mesmo assim, as estatísticas indicam
que a maioria dos colaboradores do regime permaneceu impune, já que grande parte dos
políticos e dos integrantes do poder judiciário não considerou adequada a punição, em parte
porque tinham simpatias com o regime nazista, em parte porque consideravam preferível
pacificar o país.11
10
Ver a apresentação das soluções dadas em vários países em: KRITZ, Neil (Org.). Transitional justice: how
emerging democracies reckon with former regimes. Washington: United States Institute for Peace Press, 1995. 3
vol.; ESER, Albin; SIEBER, Ulrich; ARNOLD, lorg (Orgs.). Strafrecht in Reaktion auf Systemunrecht.
Freiburg-Berlin: MPI-Duncker und Humblot, 2000-2006, 10 vol.. Cf. as discussões em: ELSTER, Jon. Closing
the books. Cambridge: Cambridge University Press, 2004; TEITEL, Ruti. Transitional justice. Oxford: Oxford
University Press, 2000; MINOW, Martha. Between vengeance and forgiveness. Boston: BeaconPress, 1999;
MCADAMS, A. lames (Org.). Transitional justice and the rule of law in new democracies. Notre Dame:
University of Notre Dame Press, 1997; AMBOS, Kai. Impunidad y derecho penal internacional. Buenos Aires:
Ad hoc, 1999; SMITH, Gary; MARGALIT, Avishai (Orgs.). Amnestie oder die Politik der Erinnerung in der
Demokratie. Frankfurt: Suhrkamp, 1997. 11
GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg. 1945-1946. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; NINO,
Carlos Santiago. Radical evil on trial. New Haven: Yale University Press, 1998; RATNER, Steven; ABRAMS,
Uma situação em parte semelhante verificou-se após a queda do regime socialista
da Alemanha Oriental em 1989 e a incorporação daquele país na Alemanha Ocidental. Os
tribunais ocidentais decidiram sobre centenas de casos de responsáveis [pg. 13] políticos,
militares, juízes, outros funcionários e colaboradores do regime socialista, acusados de terem
provocado a morte, privado a liberdade ou causado graves prejuízos materiais e morais a
opositores políticos.
O caso mais notório foi aquele dos “atiradores do Muro” (Mauerschützen).
Tratava-se de soldados responsáveis pela guarda do Muro de Berlim que separava a parte
ocidental da parte oriental da cidade. Os soldados do Muro recebiam ordem de atirar contra
qualquer pessoa que tentasse passar, sem autorização, para o setor ocidental da cidade de
Berlim. Dezenas de pessoas morreram ou foram feridas na tentativa de atravessar
“ilegalmente” esta fronteira.
Processados após a anexação da Alemanha socialista (DDR), os soldados
defenderam sua inocência alegando que: primeiro, executavam ordens de seus superiores;
segundo, a obrigação de atirar contra quem tentasse fugir do país era prevista em lei; terceiro,
eventual descumprimento dos deveres militares os exporia a duras punições.
Mesmo assim, muitos tribunais da Alemanha Ocidental, incluindo o próprio
Tribunal Constitucional Federal, consideraram que as leis e as ordens dadas nesse sentido
eram nulas. Primeiro, porque eram manifestadamente injustas e, segundo, violavam tratados
internacionais assinados pela Alemanha socialista e assegurando o direito à vida e à livre
circulação das pessoas. Houve assim condenações de soldados e funcionários do regime
socialista.
Esses casos reanimaram o debate acerca da postura do aplicador do direito perante
“leis injustas” e provocaram novas polêmicas entre os estudiosos. Existe um direito superior
ao direito legislado (“direito supralegal”) ou mesmo um direito superior a todo o direito
positivo (“direito suprapositivo”)? O [pg. 14] que ocorre exatamente se esse direito entrar em
conflito com o direito positivo? Alguns juristas aplaudiram a postura dos tribunais alemães
por terem posto a justiça acima do direito em vigor. Outros se mostraram mais céticos,
considerando que seria preferível perdoar. Como podia o soldado que acatava ordens legais
pensar que após uma mudança de regime viria a ser punido por ter obedecido às leis de seu
país? Outros, finalmente, formularam duras críticas contra essa jurisprudência. Sustentaram
que, quando há mudança de regime, os atuais donos do poder querem simplesmente se vingar
de seus adversários derrotados e aplicam uma “justiça dos vencedores” (Siegerjustiz) com o
pretexto de que só eles criam e aplicam o verdadeiro direito, o direito justo.12
Jason. Accountability for human rights atrocities in international law. Beyond the Nuremberg Legacy. Oxford:
Oxford University Press, 2001; HANKEL, Gerd; STUBY, Gerhard. Strafgerichte gegen
Menschheitsverbrechen. Hamburg: Hamburger Edition, 1995; REDAKTION KRITSCHE JUSTIZ (Org.). Die
juristische Aufarbeitung des Unrechts-Staats. Baden-Baden: Nomos, 1998. p. 265-322 e 383-687; MIQUEL,
Mare von. Ahnden oder amnestieren? Gottingen: Wallstein, 2004. 12
Sobre as posições sustentadas na doutrina e na jurisprudência alemã acerca da questão cf,: ALEXY, Robert.
Mauerschützen. Zum Verhältnis von Recht, Moral und Strafbarkeit. Hamburg: Joachim Jungius-Gesellschaft der
Wissenschaften, 1993; ALEXY, Robert. Derecho injusto, retroactividad y principio de legalidad penal. Doxa,
23/197 - 230, 2000; JAKOBS, Günther. Crímenes del Estado- ilegalidad en el Estado. Doxa, 17-18/445-
467,1995; JAKOBS, Günther. Superación del pasado mediante el derecho penal? Anuário de derecho penal y
ciencias penales, 2/137 -158, 1994; NEUMANN, Ulfrid. Positivismo jurídico, realismo jurídico y moralismo
jurídico en el debate sobre “delincuencia estatal” en la antigua RDA. Doxa, 17-18/435-444, 1995; SEIDEL,
Knut. Rechtsphilosophische Aspekte der “Mauerschützen” -Prozesse. Berlin: Duncker & Humblot, 1999;
MARXEN, Klaus; WERLE, Gerhard (Orgs.). Die strafreehtliche Aufarbeitung von DDR-Unrecht: Eine Bilanz.
Berlin: Walter de Gruyter, 1999; FREUND, Christiane. Reehtsbeugung dureh Verletzung übergesetzliehen
Rechts. Berlin: Duncker und Humblot, 2006; DIECKMANN, Hubertus-Emmanuel. Überpositives Reeht als
Prüfungsmabstab im Geltungsbereich des Grundgesetzes? Berlin: Duncker und Humblot, 2006.
O texto de Fuller discute a rica e complexa temática da “justiça de transição” e
pode ser de grande utilidade para os [pg. 15] estudantes de direito.13
Com efeito, o problema
dos Denunciantes Invejosos permite refletir sobre uma questão de particular importância,
analisada nas aulas de introdução ao estudo do direito e, com maior profundidade, nos cursos
de filosofia e de teoria do direito. Trata-se da relação entre direito, justiça e moral.
3. Direito positivo ou direito justo?
Em tomo da definição da justiça e da moral se desenvolvem intermináveis
controvérsias.14
Mesmo assim, a maioria dos doutrinadores modernos considera que a questão
da justiça se confunde com a questão da moral. A moral estabelece os comportamentos
'justos”, ou seja, os comportamentos adequados e aceitos em determinada sociedade. Nesse
sentido, a moral impõe aos membros da sociedade determinados padrões de comportamento,
seguindo o critério do justo. Por sua vez, a pessoa que é moralmente correta deve fazer o justo
adotando regras de comportamento conforme o ideal da justiça social.15
[pg. 16]
Em palavras mais simples, a moral se identifica com a justiça no campo jurídico
porque nunca aquilo que é imoral pode ser considerado justo, nem aquilo que é visto como
injusto pode ser considerado como moralmente correto.
Dessa maneira, um dos principais problemas da teoria e da filosofia do direito
envolve as relações entre o comportamento legalmente imposto (ou permitido) e o
comportamento que é considerado moralmente justo. O que deve acontecer quando uma
norma jurídica se revela injusta porque contraria as opiniões da sociedade sobre o correto e o
adequado? O que deve fazer o intérprete do direito quando as normas em vigor levam a
resultados injustos ou inaceitáveis? O que deve ocorrer quando o direito do passado passa a
ser considerado como injusto ou imoral? Deve ser punido quem criou e aplicou esse direito
tido como injusto?
Muitas vezes constatamos um forte descompasso entre os mandamentos do
legislador e a solução que é considerada justa pelo intérprete do direito ou pela maioria da
população.
Em primeiro lugar, o descompasso pode ser devido às insuficiências do legislador.
Isso ocorre quando o regulamento genérico não se ajusta a um caso concreto16
ou quando a
evolução social tomou insatisfatório o próprio regulamento.17
[pg. 17]
13
No Brasil foi realizado um limitado debate sobre a validade de leis criadas pela ditadura militar e, em particular,
da Lei 6.683 de 28.08.1979 que concedeu anistia para todos os crimes de natureza política cometidos durante a
ditadura. Cf. os artigos de Fábio Konder Comparato, José Carlos Dias e Hélio Bicudo em: TELES, Janaína (Org.).
Mortos e desaparecidos políticos. Reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas, 2001. p. 55-63, 65-67, 69-72,
77-79, 85-87. Uma profunda análise encontra-se em SWENSSON Jr., Lauro Joppert. Anistia penal. Problemas de
validade da lei de anistia brasileira (Lei 6.683 de 1979). Curitiba: Juruá, 2007 (no prelo). 14
Cf. as referências em DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: RT, 2007.
p. 104-118, 130-155. 15
DAUCHY, Pierre. Moral. In: ARNAUD, André-Jean (Org.). Dicionário enciclopédico de teoria e de
sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 506-508; JESTAZ, Philippe. Le droit. Paris: Dalloz,
2002. p. 33; KOLLER, Peter. Theorie des Rechts. Eine Einführung. Wien: Bühlau, 1997. p. 255-316; ATIENZA,
Manuel. El sentido del derecho. Barcelona: Ariel, 2003. p. 173, 184; ALEXY, Robert. La institucionalización de
la justicia. Granada: Comares, 2005. p. 22. 16
Exemplo: o legislador pune o furto mesmo quando o valor da coisa é pequeno (art. 155, § 2. o, do Código
Penal). Devemos considerar que comete esse crime mesmo quem furta um objeto de valor ínfimo, por exemplo,
um chiclete?
Em segundo lugar, o descompasso entre o legalmente imposto e aquilo que é
considerado justo pode ser devido a uma legislação que protege os interesses políticos e
econômicos de determinados grupos sociais, prejudicando a maioria da população.18
Finalmente, esse descompasso pode ser devido ao exercício do poder por
governos autoritários que oprimem os direitos fundamentais da maioria. Esse é o caso das
ditaduras do século XX, que causaram injustiças e discriminações por meio de leis e decisões
administrativas.19
Os problemas não terminam por aqui. Mesmo quando as decisões do legislador
parecem justas e adequadas, encontramos na sociedade opiniões divergentes sobre o exato
conteúdo das leis. Todos concordam, por exemplo, que o homicídio é um ato de extrema
gravidade e o legislador atuou corretamente quando o tipificou como crime. Não há, porém,
acordo geral sobre a pena adequada. Cada vez que a mídia noticia um homicídio grave, uma
parte das autoridades políticas e dos cidadãos pede uma punição muito mais dura do que
aquela prevista pela lei penal, existindo, inclusive, propostas de introduzir a [pg. 18] prisão
perpétua e a pena de morte, ambas vetadas no Brasil pela Constituição Federal de 1988 (art.
5.º, XLVII).
Segundo uma outra opinião as penas criminais não resolvem os problemas sociais;
impõem aos condenados inúteis sofrimentos, não ressocializam e, muitas vezes, o meio
carcerário transforma o condenado em criminoso profissional. Por isso, sustenta-se que,
mesmo em caso de crimes graves, seria necessário aplicar penas alternativas, priorizando a
reeducação dos infratores. Seria também necessário oferecer apoio às vítimas e, sobretudo,
aplicar políticas sociais para diminuir a marginalização de certos grupos da população, que
em última instância, é o que propicia ações violentas e desesperadas. Nessa perspectiva, o
único que não resolve os problemas e os conflitos é a punição.
Constatamos, assim, que em muitos casos o sentimento de justiça encontra-se em
descompasso com as previsões legais. Isso pode decepcionar quem inicia o estudo do direito,
tendo o desejo de atuar para que a justiça triunfe e para que os conflitos sociais sejam
resolvidos da melhor forma possível. Esse desejo de justiça é louvável, mas não pode ser
realizado na vida real. Vivemos em sociedades complexas, em que se constatam contínuos
conflitos entre interesses e ideologias. É impossível encontrar soluções que satisfaçam a
todos: a solução que é considerada justa (e agradável) por determinadas camadas da
população recebe, necessariamente, as críticas das demais...
Isso não deve causar estranheza, já que as leis são editadas após negociação
política e votação nas casas legislativas, existindo uma minoria que “perde” e, portanto, tem
seus interesses prejudicados. O legislador deve sempre decidir. E decidir [pg. 19] significa
escolher entre opiniões contrárias, descontentando uma parte dos cidadãos.20
Nesse sentido, sempre haverá um descompasso entre o direito em vigor (direito
positivo) e as opiniões de cada pessoa ou grupo sobre a justiça. O problema torna-se mais
agudo quando a aplicação de uma lei não só desagrada alguns, mas se revela claramente
injusta ou inadequada. O que fazer, por exemplo, quando uma ditadura priva os cidadãos de
suas liberdades, quando um governo conservador cria leis que discriminam os negros ou as
17
Exemplo: o art. 124 do Código Penal, em vigor desde 1940, pune o aborto mesmo quando for realizado a
pedido de uma gestante que enfrenta sérios problemas psicológicos, financeiros etc. e não pode criar o filho. Em
nossos dias, as autoridades do Estado praticamente deixaram de perseguir quem realiza aborto em tais condições. 18
O mais conhecido exemplo é a legislação tributária, criticada por distribuir os impostos de forma injusta. Essa
crítica é pertinente, já que, no Brasil, os trabalhadores assalariados assumem a maior parte da carga tributária. 19
Exemplo: o Ato Institucional 5, de 13.12.1968, que conferiu ao Presidente da República o poder de “suspender
os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos”, quando isso estivesse “no
interesse de preservar a Revolução” (os militares denominavam a ditadura de “Revolução”). 20
O verbo “decidir” provém do latim decido, que significa cortar. Quem decide toma uma posição definitiva no
conflito de interesses e de opiniões. “Dá um corte” e põe um termo às controvérsias.
mulheres ou, ainda, quando um governo, na tentativa de enfrentar uma verdadeira ou suposta
“crise econômica”, corta os benefícios sociais dos trabalhadores, aumentando a miséria?
Diante desses problemas os filósofos do direito adotam duas posições principais:
alguns optam pela “tese da separação” entre o direito e a moral; outros consideram que existe
uma forte relação entre o direito e a moral, abraçando a “tese da conexão”.21
A tese da separação encontra-se nas abordagens positivistas. O positivismo
jurídico afirma que o direito é um fenômeno normativo diferente das obrigações morais.
Quando o operador do direito interpreta as normas jurídicas, não deve [pg. 20] levar em
consideração as exigências morais. Deve interessar-se exclusivamente pelas normas que
possuem validade dentro do sistema jurídico, fundamentando-se na Constituição e nas demais
normas criadas pelas autoridades estatais. Em outras palavras, o direito em vigor deve ser
aplicado de forma rígida, sem que o operador jurídico se deixe influenciar pela sua opinião
pessoal ou mesmo pela opinião da maioria da sociedade sobre o correto, o justo e o adequado.
Os partidários do positivismo jurídico lembram que, em cada sociedade, existem
muitos sistemas de regras morais e muitas opiniões divergentes sobre o justo e o correto. Isso
significa que se o direito fosse aplicado conforme a opinião de cada intérprete, teríamos um
verdadeiro caos, sendo destruída a segurança jurídica.22
Cada um aplicaria o direito segundo
sua visão subjetiva. Os positivistas pensam que, quando o direito se revela injusto ou
inadequado, a solução está na sensibilização do legislador e na luta política para que sejam
reformadas ou abolidas as leis injustas ou inadequadas.
A tese da conexão entre direito e moral caracteriza as abordagens moralistas.
Seus partidários entendem que o operador do direito deve harmonizar os preceitos morais com
as normas jurídicas, já que a finalidade do sistema jurídico é encontrar em cada caso uma
solução justa e aceita pelos membros da sociedade. Segundo essa visão, o direito não é
simplesmente um conjunto de normas criadas pelo legislador, mas integra os mandamentos
morais aceitos pela sociedade. [pg. 21]
A abordagem moralista chega a duas conclusões. Em primeiro lugar, sustenta que
uma norma jurídica é válida somente quando respeita os princípios básicos da moral. Em caso
de forte contradição entre a norma jurídica e as exigências de justiça, a norma deve ser
considerada inválida. Esse é o moralismo da validade, que faz depender a validade de uma
norma jurídica de sua concordância com as exigências básicas da moral.
Em segundo lugar, os moralistas sustentam que o direito deve ser interpretado em
conformidade com os preceitos morais. Fica a cargo do intérprete e, sobretudo, do juiz a
harmonização das normas em vigor com as exigências da moral e com os ideais da justiça.
Esse é o moralismo da interpretação que propõe interpretar e aplicar as normas jurídicas
segundo exigências morais.
Existe, também, uma terceira abordagem sobre o direito, que é conhecida como
realismo jurídico.23
Os realistas concordam em um ponto fundamental com o positivismo
jurídico. Admitem que a aplicação do direito não constitui assunto da moral, mas depende da
21
Proponho assim a classificação das teorias jurídicas em função da posição adotada no debate sobre as relações
entre direito e moral. Para uma apresentação da distinção entre positivismo e moralismo jurídico, cf.
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico. São Paulo: Método, 2006. p. 85-165. Para uma análise das escolas
jurídicas com base nessa distinção, cf. SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica. São Paulo: RT,
2005. p. 19-46. 22
A segurança jurídica é uma característica importante dos sistemas jurídicos modernos que prometem a
aplicação das normas de forma coerente, evitando surpresas e descompassos na prática do direito. Cf. LUNO,
Antonio-Enrique Pérez. La seguridad jurídica. Barcelona: Ariel, 1994; DIMOULIS, Dimitri. Positivismo
jurídico. São Paulo: Método, 2006. p. 196-199. 23
Sobre essa visão cf. MICHAUT, Françoise. Realismo jurídico americano. In: ARNAUD, André-Jean (Org.).
Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 667 -670;
SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica. São Paulo: RT, 2005. p. 36-38.
vontade de quem tem o poder para impor determinada decisão. Ao mesmo tempo, os realistas
criticam a tese positivista tradicional, segundo a qual o juiz deve simplesmente aplicar as leis.
Na opinião dos realistas, os juízes possuem ampla liberdade de decisão: aplicam o direito
conforme suas opiniões pessoais, recebem influências do meio social no qual vivem e também
são influenciados pela situação social e política do momento histórico. [pg. 22]
Os partidários do realismo jurídico sustentam, pois, que direito é aquilo que os
juízes consideram como direito, não se vinculando nem pela suposta justiça, nem pela vontade
do legislador, que muitas vezes é formulada de maneira abstrata e obscura e impossibilita a
aplicação objetiva da norma.
Os doutrinadores e os filósofos do direito discutem com paixão sobre esses
problemas, existindo uma contínua polêmica entre os partidários das várias abordagens. Essas
controvérsias podem parecer muito abstratas e de difícil entendimento para quem inicia o
estudo do direito. Justamente aqui está o grande mérito do texto de Lon Fuller sobre os
Denunciantes Invejosos que traduzimos em seguida. Em vez de se limitar a análises teóricas,
Fuller apresenta um caso concreto em que a aplicação do direito positivo leva a resultados
injustos.
O caso dos Denunciantes Invejosos é um dos assim chamados “casos difíceis”
(em inglês: hard cases). A solução não pode ser dada pela simples aplicação de uma norma
jurídica. É necessário fazer uma profunda reflexão que envolve o problema da definição do
direito em suas relações com a moral e a justiça.
Através da apresentação de várias opiniões sobre o problema da punição dos
Denunciantes Invejosos, Fuller introduz o leitor em um debate teórico e filosófico,
convidando-o a elaborar sua própria solução. Esse exercício permite refletir sobre a definição
do direito, sobre suas funções na sociedade e sobre os caminhos que permitem sanar possíveis
injustiças, causadas pela aplicação do direito.
Para responder a essas questões não existe nenhuma “receita” pronta e certa. Cada
um possui a liberdade de formar a própria opinião. [pg. 23]
DIMITRI DIMOULIS
NOTA EXPLICATIVA
A primeira parte do livro compreende a tradução do texto de Fuller. Ele apresenta
o caso dos Denunciantes Invejosos e elabora cinco diferentes propostas de solução. Na
segunda parte do livro, incluímos cinco novos pareceres sobre o mesmo caso, todos de nossa
autoria.
A idéia de redigir novos pareceres sobre um problema formulado por Fuller não é
original. Nas últimas décadas, vários autores de língua inglesa se prestaram ao exercício de
estudar o caso dos Exploradores de Cavernas, propondo novas análises. A Stanford Law
Review publicou, em 1980, três novas opiniões sobre o tratamento dos Exploradores
homicidas, de autoria de Anthony D' Amato.1 Em 1993, sete estudiosos apresentaram na
George Washington Law Review suas opiniões sobre o mesmo caso, tendo modificado alguns
dos dados originais.2 Peter Suber publicou em 1998 um livro sobre o caso dos Exploradores,
[pg. 25] tendo redigido nove pareceres.3 Finalmente, a Harvard Law Review, que tinha
publicado em 1949 o texto original de Fuller, convidou em 1999, na ocasião do
qüinquagésimo aniversário desta publicação, seis juristas para redigir novos pareceres,
publicados com uma introdução de David Shapiro.4 No total, foram redigidos nos últimos
anos 24 pareceres sobre o caso dos Exploradores de Cavernas, acrescidos aos cinco pareceres
originais de Fuller.
Curiosamente, ninguém até o presente momento fez o mesmo em relação ao caso
dos Denunciantes Invejosos, não obstante o grande interesse que este estudo suscitou entre o
público especializado.5
Em nossa opinião, a elaboração de novos pareceres, como os cinco que foram por
nós redigidos e que se encontram na segunda parte deste livro com os nomes de cinco
imaginários professores de direito, se justifica pelo mesmo motivo que levou muitos
estudiosos a fazer uma “revisão criminal” do caso dos Exploradores de Cavernas.
A particularidade do texto sobre os Denunciantes Invejosos é a retomada da antiga
controvérsia sobre a validade e a [pg. 26] moralidade do direito, tema este que permite a
realização de uma ampla discussão. Isto é o que nós tentamos fazer, por meio da inserção de
novos pareceres.
N as últimas décadas foram realizadas novas abordagens dos problemas clássicos
da teoria e da filosofia do direito. Mesmo os adeptos de antigas correntes de pensamento,
como o positivismo e o moralismo jurídico, enriqueceram suas argumentações, tendo
publicado novos estudos e formulado novas propostas. Os nossos pareceres propõem soluções
do caso dos Denunciantes Invejosos a partir de abordagens teóricas que encontramos em
recentes obras de filosofia e teoria do direito, sobretudo na Alemanha e nos Estados Unidos.
1 D' AMATO, Anthony. The speluncean explorers - Further proceedings. Stanford Law Review 32/467-485,
1980; cf. D' AMATO, Anthony (Org.). Analytic jurisprudence anthology. Cincinnati: Anderson, 1996. p. 21-35. 2 CAHN, Naomi; CALMORE, John; COOMBS, Mary; GREENE, Dwight; MILLER, Geoffrey; PAUL, Jeremy;
STEIN, Laura. The case of the speluncean explorers. Contemporary proceedings. George Washington Law
Review 61/1.754-1.811,1993. 3 SUBER, Peter. The case of the speluncean explorers. Nine new opinions. London: Routledge, 1998, p. 35-107.
4 SHAPIRO, David; BUTLER, Paul; DERSHOWITZ, Alan; EASTERBROOK, Frank; KOZINSKI, Alex;
SUNSTEIN, Cass; WEST, Robin. The case of the speluncean explorers: a fiftieth anniversary symposium.
Harvard Law Review 112/1.814-1.923, 1999. 5 Duas obras didáticas em língua espanhola apresentam o caso dos Denunciantes Invejosos, limitando-se a
reproduzir os argumentos apresentados por Fuller: NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho.
Barcelona: Ariel, 1983. p. 18-27; ATIENZA Manuel. El sentido del derecho. Barcelona: Ariel, 2003. p. 96-99.
Após ter lido as dez diferentes opiniões sobre o caso dos Denunciantes Invejosos,
o leitor terá entendido que nada é pacífico no campo jurídico. Sempre existem controvérsias,
não sendo possível encontrar uma única resposta certa nem uma solução simples e justa, como
poderia pensar quem ingressa na faculdade de direito.
A comparação das opiniões redigidas por Fuller com aquelas que elaboramos
meio século depois indica que os estudiosos do direito fizeram progressos, oferecendo novas
respostas às questões clássicas da filosofia e teoria do direito.
Finalmente, para quem deseja acompanhar o debate contemporâneo, incluímos no
presente volume uma lista bibliográfica, na qual o leitor encontra referências a obras das
últimas décadas que estudam o problema da definição do direito em suas relações, nem
sempre harmônicas, com os ideais da moral e da justiça. [pg. 27]
DIMITRI DIMOULIS
PRIMEIRA PARTE
O CASO DOS DENUNCIANTES
INVEJOSOS1
1 Texto traduzido, por Dimitri Dimoulis, do original inglês: Lon L. Fuller, The morality of law, New Haven, Yale
University Press, 1969, p. 245-253 (Appendix: The problem of the grudge informer).
Você foi triunfalmente eleito como Ministro de Justiça de seu país, uma nação de
aproximadamente vinte milhões de habitantes. Já no início de seu mandato, você enfrentou
um grave problema, que será descrito em seguida. Antes de tudo deve ser apresentado o
contexto no qual surgiu esse problema.
Seu país teve o privilégio de viver, por muitas décadas, sob um regime pacífico,
constitucional e democrático. Infelizmente, há algum tempo começaram os problemas. A vida
normal foi interrompida por uma profunda crise econômica e por graves conflitos entre
grupos que seguiam diferentes linhas econômicas, políticas e religiosas. O salvador da pátria
apareceu na figura do chefe de um partido político ou sociedade que se autodenominava
“Camisas-Púrpuras”.
Em uma disputa eleitoral marcada por sérios conflitos e irregularidades, esse
Chefe foi eleito Presidente da República e seu partido obteve a maioria das vagas na
Assembléia Nacional. O sucesso eleitoral desse partido ocorreu em razão de uma campanha
com promessas insensatas e falsificações engenhosas e com a intimidação física causada por
patrulhas noturnas de Camisas-Púrpuras, motivo pelo qual muitos adversários do partido não
tiveram coragem de votar.
Quando os Camisas-Púrpuras chegaram ao poder não tomaram nenhuma
providência no sentido de revogar a Constituição do país ou de reformar algumas partes da
mesma. Deixaram igualmente intactos o Código Civil, o Código Penal e os códigos
processuais. Tampouco foram tomadas providências oficiais para demitir funcionários
públicos ou afastar juízes de seus cargos. Continuaram as eleições periódicas e os votos [pg.
31] eram contados de forma aparentemente honesta. Apesar disso, o país vivia sob um regime
de terror.
Juízes que contrariavam os desejos do governo eram agredidos e assassinados. Ao
Código Penal foram dadas interpretações perniciosas para permitir o encarceramento dos
adversários políticos. Foram estabelecidos regulamentos secretos, conhecidos somente entre
os altos escalões da hierarquia partidária. Foram também editadas leis que criminalizavam
retroativamente determinados comportamentos plenamente legais.
O governo não respeitava as obrigações impostas pela Constituição, pelas antigas
leis ou mesmo por suas próprias leis. Todos os partidos da oposição foram desmantelados.
Milhares de opositores políticos foram assassinados, seja nas prisões, seja em ondas de
repressão noturna. Foi concedida anistia geral a favor de todos os acusados “que cometeram
atos para a defesa da pátria contra a subversão”. Essa anistia permitiu a libertação de todos os
presos que eram membros do partido dos Camisas-Púrpuras. Entre os beneficiários da anistia
não estava ninguém que não fosse membro deste partido.
Os Camisas-Púrpuras adotaram uma política que permitia flexibilidade na ação.
Algumas vezes agiam como partido político “nas ruas”. Outras vezes atuavam por meio dos
aparelhos estatais que eles mesmos controlavam. A escolha do método de atuação era questão
de pura conveniência. Quando, por exemplo, o restrito grupo da diretoria do partido decidiu
aniquilar os ex-socialistas republicanos, membros de um partido que fez uma última e
desesperada tentativa de resistência contra o novo regime, criou-se uma controvérsia sobre o
método que seria mais indicado para confiscar as propriedades desse partido. [pg. 32]
Uma facção dos Camisas-Púrpuras, que parecia estar sob a influência de
concepções pré-revolucionárias, queria realizar este confisco por meio de um regulamento
que declarasse os bens do partido confiscados por ter este cometido ações criminosas.
Outros queriam alcançar o mesmo resultado, obrigando os proprietários a doarem
seus bens sob a ameaça de armas. Essa facção criticou a solução do regulamento, dizendo que
provocaria comentários desfavoráveis ao partido. O Chefe optou pela solução da ação direta
do partido, acompanhada por um regulamento secreto que ratificou sua legalidade,
confirmando os títulos de propriedade obtidos pelo emprego de violência física.
Agora os Camisas-Púrpuras foram derrotados e se estabeleceu de novo um
governo democrático e constitucional. O antigo regime deixou, porém, alguns problemas
particularmente espinhosos. A responsabilidade de resolvê-los recai sobre você e seus colegas
do governo. Um desses problemas é conhecido como caso dos Denunciantes Invejosos.
Durante o regime dos Camisas-Púrpuras, muitíssimas pessoas, movidas por
inveja, denunciaram seus inimigos pessoais ao partido ou a autoridades governamentais. Entre
as atividades que foram objeto de denúncias estava a crítica ao governo formulada em
discussões particulares, a escuta de estações de rádio estrangeiras, o relacionamento com
notórios vândalos e baderneiros, o armazenamento de saquinhos de ovos em pó em
quantidade maior do que a autorizada, a omissão de informar a perda de documentos de
identidade no prazo de cinco dias etc.
Dada a situação do Poder Judiciário nesse período, qualquer uma dessas infrações,
se fosse comprovada, poderia [pg. 33] levar à aplicação da pena de morte. Em alguns casos,
as condenações à pena capital foram autorizadas por regulamentos de “emergência”. Em
outros casos, foram impostas sem tais regulamentos, por meio da decisão de juízes
regularmente nomeados em seus cargos.
Após a derrota dos Camisas-Púrpuras, formou-se um movimento de opinião que
exigiu a punição dos Denunciantes Invejosos. O governo interino, que antecedeu o seu,
contemporizou a decisão. No entanto, o assunto tornou-se um problema político explosivo e a
decisão não pode ser mais postergada.
Em decorrência disso, sua primeira iniciativa como Ministro de Justiça foi estudar
o problema. Você pediu a cinco deputados para refletirem sobre o caso e apresentarem suas
opiniões em uma conferência. Nessa conferência, os deputados tomaram sucessivamente a
palavra, fazendo as seguintes ponderações.
PRIMEIRO DEPUTADO
Não tenho a menor dúvida de que nada pode ser feito em relação aos chamados
Denunciantes Invejosos. As denúncias versavam sobre fatos que realmente eram ilícitos, isto
é, contrários às regras estabelecidas pelo governo que, nessa época, exercia o poder do
Estado.
As sentenças de condenação das vítimas dessas denúncias foram pronunciadas em
conformidade com os princípios legais então vigentes. Esses princípios apresentam tamanhas
diferenças em relação aos nossos, que podemos considerá-los como detestáveis. Mas isso não
impede reconhecer que tais leis estavam vigentes no país.
Uma das principais diferenças entre o direito daquele período e o nosso está
justamente no fato de que o nosso reconhece ao juiz uma liberdade de decisão muito menor
no âmbito penal. Para nós, o respeito a essa regra (e às suas conseqüências) é muito mais
importante do que o respeito à reforma introduzi da pelos Camisas-Púrpuras no direito de
herança, segundo a qual para a redação de testamento são necessárias duas e não mais três
testemunhas. Sem dúvida alguma, a norma que reconhecia ao juiz uma liberdade de decisão
quase ilimitada no âmbito penal, nunca foi oficialmente promulgada. Foi aplicada, de forma
tácita, na prática. Mas o mesmo vale em relação à regra contrária - por nós aceita - que
restringe muito a discricionariedade dos magistrados. [pg. 35]
A diferença entre nós e os Camisas-Púrpuras não está no fato de que eles
formaram um governo sem leis. Isso constituiria, aliás, uma contradição nos termos. A
diferença é de natureza ideológica. Ninguém acha os Camisas-Púrpuras mais repugnantes do
que eu. Devemos, porém, reconhecer que a fundamental diferença entre a filosofia deles e a
nossa está no fato de que nós permitimos e toleramos a expressão de pontos de vista
divergentes, e eles tentaram impor a todos o próprio código monolítico.
Nosso sistema de governo considera que o direito é flexível, capaz de expressar e
alcançar distintas finalidades. O ponto principal do nosso credo é que qualquer objetivo,
devidamente incorporado nas leis ou nas decisões dos tribunais, deve ser provisoriamente
aceito, mesmo por aqueles que o rejeitam categoricamente. A esses últimos deve ser dada a
oportunidade de conseguir um reconhecimento legal de seus próprios objetivos, por meio de
eleições ou no âmbito de um novo processo judicial.
Os Camisas-Púrpuras fizeram o contrário. Simplesmente descumpriram as leis
com as quais não estavam de acordo, e nem mesmo se deram ao trabalho de revogá-las. Se
tentarmos, agora, fazer uma triagem entre os atos desse regime, anulando determinados
julgamentos, invalidando certas leis ou considerando como produto de abuso de poder
algumas condenações, estaríamos fazendo exatamente aquilo que mais rejeitamos na atuação
dos Camisas-Púrpuras.
Reconheço que a tarefa de realizar o programa que proponho será árdua e
sofreremos fortes pressões da opinião pública. Deveremos, também, tomar as medidas
cabíveis para evitar que as pessoas façam justiça com as próprias mãos. Acredito, no entanto,
que o caminho que estou indicando é o único que permitirá fazer triunfar, a longo prazo, as
concepções sobre direito e governo nas quais acreditamos. [pg. 36]
SEGUNDO DEPUTADO
Curiosamente chego à mesma conclusão de meu colega, indo pelo caminho
exatamente oposto. Na minha opinião, é absurdo considerar o regime dos Camisas-Púrpuras
como governo legal. Para que um sistema jurídico possa existir não é suficiente que os
policiais continuem patrulhando nas ruas e vistam uniformes, nem que a Constituição e as leis
permaneçam formalmente em vigor e bem guardadas nos armários.
Um sistema legal pressupõe a existência de leis que sejam conhecidas ou pelo
menos possam ser conhecidas pelos seus destinatários. Pressupõe, também, uma certa
uniformidade na atuação: em casos semelhantes deve ser dado um tratamento semelhante.
Pressupõe, finalmente, a ausência de poderes atuando fora da lei, tal como o Partido dos
Camisas-Púrpuras, que estava acima do governo e podia, a qualquer momento, interferir na
administração da justiça, particularmente quando esta não funcionava de acordo com os
desígnios e os caprichos desse poder.
Todos esses pressupostos fazem parte do conceito do ordenamento jurídico e não
têm nada a ver com as ideologias políticas e econômicas. Na minha opinião, quando os
Camisas- Púrpuras conquistaram o poder, deixou de existir o direito, independentemente da
definição que será dada a esse termo. Durante esse regime, ocorreu, na realidade, uma
suspensão do Estado de Direito. [pg. 37]
Em vez de ter um governo que respeita as leis, tivemos uma guerra de todos
contra todos, feita atrás de portas fechadas, em parques obscuros, em intrigas de palácio, em
conspirações nos pátios das prisões.
Os atos dos assim chamados Denunciantes Invejosos nada mais eram do que uma
fase dessa guerra. Se julgássemos e condenássemos tais atos como criminosos, isso seria tão
inadequado quanto a tentativa de avaliar juridicamente a luta pela sobrevivência na selva ou
no oceano.
Devemos tentar deixar atrás de nós, tal como um pesadelo, esse capítulo da nossa
história tão obscuro e fora do império da lei. Se continuarmos a agitar os ódios desse período,
seremos contaminados pelo espírito destrutivo e pelo potencial infeccioso de seus miasmas.
Por isso concordo plenamente com meu colega na sugestão de deixar o passado
no passado. Não façamos nada em relação aos chamados Denunciantes Invejosos. Seus atos
não eram nem legais nem ilegais, já que eles não viviam em um Estado de Direito, e sim em
um regime de anarquia e de terror. [pg. 38]
TERCEIRO DEPUTADO
Considero muito suspeitos os raciocínios que se baseiam em dilemas. Não é
adequado admitir que o regime dos Camisas- Púrpuras estava completamente fora da lei, nem
considerar que todos os seus atos merecem ser classificados como atos de um governo
respeitoso da lei. Sem dúvida alguma, os meus dois colegas apresentaram argumentos
poderosos contra essas duas posições extremas, demonstrando que ambas levam à mesma
conclusão absurda, ou seja, a uma conclusão moral e politicamente inaceitável.
Quem reflete sobre o assunto de forma não emocional percebe claramente que
durante o regime dos Camisas-Púrpuras não tínhamos uma “guerra de todos contra todos”.
Abaixo da superfície política continuavam a ser realizados muitos atos que fazem parte da
vida humana normal: celebravam-se casamentos, bens eram vendidos, redigiam-se e
executavam-se testamentos.
Essa vida normal enfrentava os habituais contratempos: acidentes de automóvel,
falências, testamentos nulos, panfletos difamatórios publicados na imprensa. Uma grande
parte da vida normal e dos contratempos, igualmente normais, não foi afetada pela ideologia
dos Camisas-Púrpuras. Os problemas jurídicos relacionados com esses assuntos eram tratados
pelos tribunais daquele período de forma muito semelhante ao período anterior e ao atual. Se
quiséssemos declarar como [pg. 39] privado de fundamento legal e nulo tudo aquilo que
ocorreu sob o regime dos Camisas-Púrpuras, criaríamos um caos intolerável.
Por outro lado, é impossível sustentar que os assassinatos cometidos nas ruas
pelos membros desse partido, sob as ordens de seu chefe, eram atos legais, simplesmente
porque o partido conseguiu controlar plenamente o governo e seu chefe tornou-se Presidente
da República.
Se devemos condenar os atos criminosos do partido e de seus membros, seria
absurdo legitimar todos os atos avalizados pela autoridade do governo, já que esse governo
identificou-se completamente com o partido dos Camisas- Púrpuras. Por essa razão, devemos
fazer algumas distinções, como acontece na maioria dos problemas sociais. Devemos intervir
nos casos em que a filosofia dos Camisas-Púrpuras penetrou na administração da justiça,
afastando-a de suas finalidades e procedimentos habituais.
Em minha opinião, devemos considerar como uma das perversões da justiça o
caso daquele homem que se enamorou de uma mulher casada e provocou a morte do cônjuge,
denunciando-o por um delito totalmente trivial, como o fato de não informar as autoridades da
perda de seus documentos de identidade dentro do prazo de cinco dias.
Esse denunciante cometeu homicídio, segundo a definição do Código Penal que
continuava em vigor no momento da denúncia, já que os Camisas-Púrpuras não procederam à
sua revogação. Esse homem causou a morte de uma pessoa que impedia a satisfação de sua
paixão ilícita. Utilizou os tribunais como instrumento para realizar suas intenções criminosas,
sabendo que os tribunais satisfaziam com presteza qualquer [pg. 40] ordem política que os
Camisas-Púrpuras consideravam adequada em determinado momento.
Existem outros casos igualmente claros. Mas devo admitir que também há casos
muito menos claros. Não podemos, por exemplo, avaliar com facilidade o caso daqueles
curiosos que observavam a vida dos outros e denunciavam às autoridades qualquer coisa que
lhes parecia suspeita. Alguns desses denunciantes não atuavam com a finalidade de se livrar
das pessoas denunciadas, mas com o desejo de prestar serviço e agradar o partido, de diluir
suspeita contra eles (algumas vezes infundadas) ou por pura e simples subserviência ao
governo.
Não posso opinar sobre o tratamento de tais casos nem fazer recomendações a
esse respeito. Seja como for, a existência de casos complicados e de difícil tratamento não
deve servir como pretexto para impedir uma atuação imediata em casos plenamente claros, já
que ambas as categorias são diferentes e inconfundíveis. [pg. 41]
QUARTO DEPUTADO
Tal como meu colega desconfio muito de qualquer raciocínio em forma de
dilema. Penso, porém, que sobre esses casos deve ser feita uma reflexão muito mais profunda
daquela que o meu colega apresentou. A proposta de escolher determinados casos entre todos
os acontecimentos durante o regime deposto encontra sérias objeções. Na realidade, constitui
um puro e simples camiso-purpurismo. Gostamos desse direito, então podemos implementá-
lo. Gostamos desse julgamento, então podemos admiti-lo. Aquele direito, porém, que não é de
nosso agrado deve ser considerado como inexistente. Aquele ato governamental que
reprovamos deve ser tachado de nulidade.
Se adotássemos essa forma de pensamento, teríamos perante as leis e atos do
governo dos Camisas-Púrpuras exatamente a mesma atitude que eles adotaram diante das leis
e atos do governo que os precedeu.
O resultado seria caótico, permitindo a cada juiz e a cada promotor de justiça criar
sua própria lei. Em vez de pôr um fim aos abusos do regime dos Camisas-Púrpuras, meus
colegas propõem, na substância, dar continuidade ao mesmo.
Existe somente um caminho para lidar com esse problema de modo que seja
coerente com a nossa filosofia sobre o direito e o governo. Devemos atuar em conformidade
com normas jurídicas devidamente editadas. Isso significa criar uma lei especial voltada para
o tratamento da questão. Devemos es- [pg. 43] tudar de forma abrangente e detalhada os
vários aspectos do problema dos Denunciantes Invejosos, coletar todos os dados importantes
e elaborar uma lei para regulamentar todos os desdobramentos do problema.
Dessa forma, não necessitaremos aplicar antigas leis a assuntos que elas não
pretenderam tratar. Devemos estabelecer penalidades apropriadas para as infrações cometidas
pelos Denunciantes Invejosos e não tratá-los indiscriminadamente como assassinos, pelo
único motivo de que a vítima da denúncia foi executada após uma condenação criminal.
Admito que os encarregados da preparação dessa lei enfrentarão problemas
particularmente complicados. Entre outras coisas, deverá ser dada uma definição legal da
“inveja” e isso não será fácil. Não devemos, porém, nos desanimar diante dessas dificuldades,
abandonando a única solução que permitirá sair de um regime de dominação não
fundamentado em leis, e sim na vontade de algumas pessoas. [pg. 44]
QUINTO DEPUTADO
Considero que essa última proposta não carece de ironia. O meu colega deseja pôr um
termo definitivo aos abusos dos Camisas-Púrpuras e propõe fazê-lo empregando um dos mais
odiosos procedimentos do regime dos Camisas-Púrpuras, ou seja, a edição de leis penais retroativas.
Meu colega teme que, sem possuir um regulamento específico a tentativa de
validar e implementar os atos “lícitos” do regime deposto e anular ou reparar os atos
“viciados” criará uma situação caótica. Parece-me que ele não entende o quanto a sua
proposta de lei é um remédio perigoso para essa Insegurança.
Não é difícil defender de forma convincente uma legislação que ainda não foi
criada. Todos concordamos que seria maravilhoso ter os fatos fixados no papel de forma clara
e definitiva. O que deve, porém, constar nessa legislação?
Um dos meus colegas comentou o caso da pessoa que deixou de notificar às
autoridades a perda de seus documentos de identidade no prazo de cinco dias. Esse colega
entende que a decisão que condenou essa pessoa à pena de morte deve ser reprovada, porque
era evidentemente desproporcional à infração cometida. Devemos, porém, lembrar que
naqueles momentos crescia muito o movimento clandestino de resistência contra os [pg. 45]
Camisas-Púrpuras e o regime enfrentava agressões contínuas por parte de pessoas com falsos
documentos de identidade.
Avaliando a situação do ponto de vista dos Camisas- Púrpuras, percebemos que
eles enfrentavam um sério problema. A única objeção que pode ser feita à solução por eles
dada (além do fato de que nós não gostaríamos que eles resolvessem o problema) é que eles
atuaram com um rigor maior do que aquele que pareciam exigir as circunstâncias.
Como pensa o colega, tratar em sua lei o caso em discussão e outros parecidos?
Queremos negar que durante o regime dos Camisas-Púrpuras existia a necessidade de
preservar a ordem pública? Não preciso continuar a análise das dificuldades que provocaria a
elaboração dessa proposta legislativa, pois são evidentes para quem quer refletir sobre o
assunto. Gostaria de indicar agora a minha própria proposta.
Um autor particularmente respeitado afirmou que a finalidade principal do direito
penal é a de permitir que se manifeste o instinto humano da vingança. Há períodos históricos
nos quais devemos permitir que esse instinto se exprima diretamente, sem a mediação das
formas jurídicas.
Acredito que vivemos em um desses períodos. Aliás, o problema dos
Denunciantes Invejosos começou a se resolver na prática. É cada vez mais freqüente ler nos
jornais que um destes lacaios do regime dos Camisas-Púrpuras recebeu sua justa punição em
um lugar deserto. A população trata do assunto da forma que considera adequada. Decidindo
deixá-la atuar e dando a mesma orientação às autoridades policiais e às promotorias, o
problema será prontamente resolvido sem nenhuma intervenção oficial. [pg. 46]
Sem dúvidas, haverá certas confusões e alguns inocentes serão machucados. A
vantagem é que o nosso governo e o nosso sistema jurídico não serão envolvidos no caso e,
assim, evitaremos entrar em um labirinto sem saída, tentando separar o certo do errado no
regime dos Camisas-Púrpuras.
___oooOooo__
Qual dessas recomendações será adotada por você em sua qualidade de Ministro de Justiça?
LON L. FULLER [pg. 47]
SEGUNDA PARTE
CINCO NOVAS OPINIÕES SOBRE
O CASO DOS DENUNCIANTES
INVEJOSOS
Um mês após a conferência com a participação dos cinco deputados, você,
Ministro de Justiça, ainda está em dúvida, não podendo decidir sobre a melhor solução para o
problema dos Denunciantes Invejosos.
Discussões com funcionários do Departamento de Assuntos Legislativos de seu
Ministério mostraram que as soluções propostas pelos deputados podem causar problemas
jurídicos. Foi-lhe apontado que a edição de uma lei retroativa, que definiria o comportamento
“denunciação por inveja”, prevendo penas criminais para os Denunciantes, poderia ser
declarada inconstitucional, já que a Constituição em vigor proíbe as leis penais retroativas.
A proposta de não fazer nada a respeito desses Denunciantes, além de criar
problemas políticos, expõe o governo ao risco de ser processado. Os tribunais poderiam
condenar o Estado a pagar altíssimas indenizações por ter deixado sem reparação a patente
injustiça que sofreram as vítimas das denunciações invejosas.
Diante desse impasse, você decidiu convocar uma nova conferência para ouvir,
dessa vez, a opinião de alguns renomados juristas, dos quais se esperava uma adequada
orientação.
Duas semanas depois, no salão nobre do antigo prédio da faculdade de direito,
você deu início aos trabalhos dessa conferência. Participaram do debate cinco professores de
direito, que opinaram da seguinte maneira. [pg. 51]
OPINIÃO DO PROF. GOLDENAGE
Não posso esconder uma certa mágoa pelo fato de o senhor Ministro ter
convidado exclusivamente personalidades políticas na primeira conferência sobre o problema
dos Denunciantes Invejosos, apesar de ser esse um problema exclusivamente jurídico.
Sabemos que as pessoas não têm uma boa impressão sobre os juristas. Na Idade
Média, o povo alemão dizia “advogados, cristãos malvados” (Juristen, böse Christen) e o
próprio Lutero repetiu muitas vezes essa frase. Em nossos dias, devemos ouvir críticas duras e
até piadas sobre a moralidade e a capacidade dos juízes e dos advogados.
Tenho, porém, a certeza de que o senhor Ministro não excluiu os profissionais do
direito por preconceito ou antipatia. A decisão inicial de consultar os políticos foi ditada por
considerações práticas. Nós, juristas, temos a tarefa de estudar e aplicar o direito, mas não o
criamos. As normas jurídicas são estabelecidas por aqueles que exercem o poder político.
Isso é realmente estranho. Confiamos a construção de casas a arquitetos e
engenheiros, pedimos ao contador para fazer a declaração do imposto de renda e quando há
vazamentos chamamos o encanador. Por que as leis são feitas pelos políticos, ou seja, por
pessoas sem preparação técnica para essa tarefa? Alguém pediria conselhos médicos a um
comerciante pelo simples fato de este ter sido eleito deputado federal? Por [pg. 53] que o
mesmo comerciante deve ser considerado idôneo para a elaboração das leis, podendo
inclusive opinar, como foi o caso dos cinco deputados, sobre o delicado problema jurídico dos
Denunciantes Invejosos?
Essa situação é o resultado histórico das grandes revoluções ocorridas nos séculos
XVIII e XIX, quando vários povos do mundo, liderados pela classe burguesa, decidiram
abolir o monopólio jurídico dos juízes e advogados, considerando que o direito deveria ser
criado pelo próprio povo, por meio de seus representantes.
Assim sendo, os juristas perderam a oportunidade de utilizar seus conhecimentos
para elaborar as regras que organizam o convívio social. As opiniões e a experiência dos
professores e dos operadores do direito parecem não valer mais nada. Devemos nos alinhar à
vontade do legislador e aplicá-la sem questionamento.
A última batalha foi travada no começo do século XIX pela escola histórica do
direito, liderada pelo grande jurista alemão Savigny. Todos sabem que Savigny, em um
escrito de 1814, defendeu um direito que seria baseado nos costumes e nas tradições
particulares de cada povo e elaborado nas obras dos juristas e não em códigos criados pelos
políticos.
Savigny não conseguiu impor suas opiniões e os juristas aceitaram a derrota.
Ensinamos, hoje, nas nossas faculdades, o direito criado pelos políticos. Não ensinamos a
técnica de redação de leis nem tratamos dos problemas de seu conteúdo. Com as famosas
palavras que usou em uma publicação de 1848 o Promotor de Justiça alemão Julius von
Kirchmann, o operador do direito foi escravizado pelo direito imposto pelo legislador e
tornou-se um verme que se nutre de madeira podre. [pg. 54]
Os problemas cruciais da justiça social e os conflitos políticos em tomo da
elaboração das leis não despertam mais interesse nas faculdades de direito. São examinados
em poucas aulas de sociologia e de filosofia do direito perante alunos desinteressados, que só
querem saber quais são as últimas reformas do processo civil e quais as recentes leis sobre a
biotecnologia e a proteção ambiental.
Por isso, a decisão do Ministro foi certa. Ele consultou os políticos que trabalham
como legisladores, já que eles decidem sobre o direito. Porque então essa consulta não foi
satisfatória e o Ministro decidiu recorrer a nós, simples estudiosos do direito?
A resposta é evidente. O tratamento que merecem os Denunciantes Invejosos é
uma questão de aplicação do direito. As denúncias foram feitas segundo o direito em vigor e
os tribunais aplicaram sanções previstas pelas leis da época. Por isso, a avaliação das referidas
denunciações depende da interpretação do direito que estava em vigor naquele período. Antes
de pensar em fazer uma nova legislação, devemos examinar se o direito em vigor permite
reagir de forma adequada, satisfazendo o sentimento de justiça da maioria da população que
está indignada com os Denunciantes Invejosos.
Permitam-me fazer, inicialmente, uma leitura jurídica das propostas dos
deputados, explicando aquilo que propuseram esses senhores, leigos na ciência do direito. Em
seus discursos encontramos três propostas:
a) Deixar impunes os Denunciantes Invejosos (opinião do primeiro, do segundo e
do quinto deputado).
b) Criar uma legislação retroativa, definindo quem deve ser considerado como
Denunciante Invejoso e quais as sanções merecidas (opinião do quarto deputado). [pg. 55]
c) Perseguir por homicídio quem fez a denúncia para se vingar ou se livrar de
uma pessoa e não castigar quem denunciou por convicção política ou por simples covardia
(opinião do terceiro deputado).
Essas propostas são fundamentadas, por sua vez, em três diferentes argumentos
jurídicos:
a) Todas as leis em vigor durante o regime dos Camisas-Púrpuras devem ser
consideradas válidas, pois a norma que entra em vigor de forma correta não pode ser anulada
retroativamente. Para quem aceita essa posição, os Denunciantes atuaram de forma legal,
seguindo o direito vigente. Esse argumento permite propor três diferentes soluções: o primeiro
deputado constata o caráter legal das denunciações invejosas, propondo a impunidade; o
quarto deputado considera que estes atos não eram puníveis quando foram cometidos, mas
devem ser castigados, hoje, após a criação de uma lei retroativa; o quinto deputado propõe
tolerar os linchamentos e a vingança popular, já que os atos dos Denunciantes não podem ser
definidos de forma satisfatória por meio de uma lei retroativa.
b) Durante o regime dos Camisas-Púrpuras não houve direito válido, já que o
regime era profundamente injusto, renegando a idéia mesma de justiça. A situação era
parecida com aquela de uma selva. Punir um Denunciante Invejoso não é menos absurdo do
que punir um animal selvagem porque devorou um outro (segundo deputado).
c) Devem ser consideradas inválidas somente aquelas normas do regime dos
Camisas-Púrpuras que não se conciliam com os ideais da justiça. Os Denunciantes [pg. 56]
aproveitaram-se de uma perversão da justiça durante esse regime e por isso devem ser
castigados (terceiro deputado).
Quais desses argumentos e soluções são corretos? Para decidir devemos tomar
posição sobre um lancinante dilema: Pode existir um direito injusto?
Pelo menos desde a Roma antiga o direito sempre se identificou com a justiça.
Nos séculos II e III d.C. os jurisconsultos romanos Ulpiano e Celso afirmavam que o termo
direito (ius) provém do termo justiça (iustitia). Na opinião desses autores, o direito é a ciência
que distingue o justo do injusto: iusti atque iniusti scientia. Em outras palavras, o direito é a
arte do bom e do équo: ius est ars bani et aequi.
Nada diferente dizia, quase quinze séculos depois, Rugo Grotius, quando, no
início de seu famoso livro Direito da guerra e da paz, publicado em 1625, definia o direito
como regulamentação do comportamento humano que obriga a fazer o justo.
Depois vieram os iluministas e os positivistas e a vinculação entre o direito e a
justiça foi negada. A nefasta influência dessas teorias fez os juízes acreditarem que sua
profissão não os obrigava a encontrar e ordenar o justo, mas simplesmente executar as leis
vigentes. Isso ensinava, por exemplo, o filósofo Immanuel Kant sustentando, em 1798, na
obra O conflito das faculdades que o jurista deve aplicar as normas jurídicas impostas pelas
autoridades políticas e não aquilo que ele mesmo considera razoável, verdadeiro e justo.
Quem sustenta hoje que devemos cegamente respeitar e executar as ordens dos
políticos, mesmo quando sabemos que [pg. 57] essas ordens são injustas, cai na armadilha do
iluminismo e do positivismo e desacredita ainda mais a nossa profissão.
Os operadores do direito não são caixas de ressonância que reproduzem a vontade
do legislador. O jurista não é um ajudante de carrasco que aplica as ordens de seu mestre, nem
um cínico que respeita a vontade do legislador mesmo quando esta viola os sagrados
sentimentos de justiça.
Sei que os meus colegas Wendelin e Bernadotti tomarão a palavra para propor
mais uma vez suas teorias destruidoras da justiça. Por minha parte, obedecerei à voz da
consciência. Somos membros de uma comunidade política que deseja preservar os seus
valores: a liberdade, a dignidade e a igualdade. Nunca conseguiremos alcançar isso se
ficarmos reféns de leis, decretos e portarias. Devemos pensar e agir como cidadãos maduros e
responsáveis que sabem distinguir o justo do injusto.
Quem denuncia um homem porque não gosta dele comete um crime hediondo no
sentido originário da palavra, que provém do latim foetibundus e significa “fedorento”.
Denunciar por inveja é um crime fedorento que merece a mais severa punição. O mesmo vale
para os assim chamados juízes que se prestaram aos projetos criminosos dos Camisas-
Púrpuras, condenando à pena capital os autores de inócuas contravenções, que incomodavam
o sistema de terror.
O direito injusto não é direito. Eis a minha posição. O direito objetiva impor a
justiça, como sustentam, retomando a antiga tradição, os juristas alemães, que desde Gustav
Radbruch até Robert Alexy tiraram lições da dramática história daquele país, onde o nazismo
apresentou como direito as piores barbaridades e injustiças do mundo. [pg. 59]
Assim sendo, a lei injusta não é válida. Quem não aceita essa premissa não pode
distinguir um Estado de Direito de um bando de criminosos. Da mesma forma, a aplicação
injusta e perversa de uma lei não constitui aplicação do direito. É um ato reprovável e
criminoso. Adotando essa posição, vislumbro duas possibilidades para tratar juridicamente os
casos de condenações injustas durante o regime dos Camisas-Púrpuras.
Se a condenação se baseou na aplicação correta da legislação da época, devemos
concluir que essa legislação não era direito. Era um odioso produto de mentes criminosas.
Isso ocorreu nos casos de condenações com base em regulamentos emergenciais sem o devido
processo legal. Quem participou da criação ou da aplicação de tais regulamentos merece ser
castigado como destruidor de nossos mais valiosos bens: do sentimento de justiça e do
sagrado direito à vida. Quem foi autor ou cúmplice desses atentados ao direito e à moralidade
deve ser punido como autor de uma perniciosa traição do Estado e da sociedade.
Nos demais casos, as condenações injustas são devidas a uma aplicação falsa e
perversa do direito. Quem denuncia seu adversário ou concorrente porque deseja sua morte e
quem impõe pena para agradar o governo não aplica o direito. Ambos cometem atos de
barbárie. Utilizam -se da força do Estado para satisfazer sua perversão (não digo que usam o
direito, porque sabemos que as ordens injustas e criminosas não merecem o nobre nome
“direito”). Esses criminosos devem ser punidos, descartando a desculpa “eu só apliquei a lei”
que seguramente apresentarão perante o tribunal.
Concluo então que os Denunciantes Invejosos, junto às autoridades estatais que
deram seguimento a tais denúncias, cometeram o crime de subversão da ordem política e
social. [pg. 59]
Por isso, devem ser castigados, já que a nossa comunidade restabeleceu um
sistema jurídico fundamentado na justiça.
Desculpem minha veemência e emoção, mas acho que o jurista não é um
subserviente da política; é um servidor da justiça. Por isso, devemos reagir imediatamente,
punindo os Denunciantes Invejosos, por meio da aplicação do direito justo e eterno, gravado
em nossos corações. [pg. 60]
OPINIÃO DO PROF. WENDELIN
Escutando o discurso do colega Goldenage, pensei que me encontrava em uma
das faculdades medievais descritas pelo historiador Jacques Le Goff. Nelas os professores
organizavam as temíveis disputationes sobre problemas jurídicos, debatendo com paixão
perante um público de professores, bacharéis, alunos e curiosos. Por meio da retórica e da
habilidade no manuseio dos argumentos, os debatedores tentavam derrotar os adversários e
convencer o auditório. Naquela época os juristas se sentiam donos do direito e da verdade;
resolviam as questões polêmicas pensando que existia uma solução certa, contida nos
sagrados textos jurídicos e religiosos.
O colega Goldenage, apoiando-se em autores contemporâneos, como Paolo Grossi
na Itália, que sentem saudades do poder do jurista medieval, sustenta que existe o justo e o
injusto. Para reconhecê-los bastaria escutar a voz da consciência e, principalmente, confiar
nos pareceres do jurista sábio que punirá os injustos e protegerá as vítimas.
O colega omitiu a parte mais interessante da história. Os juristas medievais, que se
consideravam apóstolos da justiça e se sentiam todo-poderosos, foram, com toda a razão,
acusados de bárbaros e inumanos pelos autores do iluminismo. Na realidade, os juristas
medievais eram fiéis servidores de reis autoritários e de latifundiários vorazes, que oprimiam
e exploravam o povo, mantido na superstição e na ignorância. [pg. 61]
O iluminismo destruiu o mito do jurista como anjo da justiça. O problema é que o
iluminismo difundiu um novo mito. Aquele que fala do legislador iluminado, escolhido pelo
próprio povo para fazer leis racionais, simples e claras, que todos possam entender e aplicar
automaticamente. Santa ilusão que encontramos, por exemplo, no opúsculo Dos delitos e das
penas de Cesare Beccaria, publicado em 1764 e até hoje estudado nas faculdades de direito.
O século XX abalou essas certezas. As ilusões da justiça e da verdade que não
foram destruídas pelas guerras e pelas ditaduras, acabaram sendo desmontadas pelas reflexões
de grandes filósofos. Estes comprovaram que não existem critérios para distinguir o
verdadeiro do falso. A nossa linguagem é parecida com a areia movediça do deserto. Os
significados das palavras são instáveis e múltiplos e dependem do entendimento das pessoas
que se comunicam em determinado momento.
Tudo é relativo e mutável. Alguns pensam que o significado dado às palavras
depende do interesse dos poderosos, que denominam “verdadeiro” aquilo que lhes convém.
Outros sustentam que tudo depende do aleatório, do acaso. Outros dizem, finalmente, que o
entendimento das palavras é influenciado pelo papel social que a pessoa exerce em
determinada situação.
Não fui convidado para analisar as correntes de pensamento que sustentam a
incerteza e a mutabilidade da comunicação humana. Considero, porém, que a consciência
desses dados fundamentais tira a esperança de que alguém poderá encontrar um dia a verdade,
separar o justo do injusto e fixar o sentido das normas jurídicas.
A única verdade é que não sabemos nada; não existem certezas. Mas o
ordenamento jurídico não pode viver com a [pg. 62] contínua incerteza. O Poder Judiciário
deve resolver os conflitos com determinação e presteza para pacificar a sociedade. Mesmo se
os filósofos nunca encontrarem uma resposta satisfatória à pergunta “o que é vida”, os
tribunais devem decidir se o aborto provocado por uma mulher deve ou não ser punido. Não
podem alegar que não sabem quando começa a vida humana ou que não têm certeza se o
aborto em questão foi natural ou provocado.
Por tal motivo, o ordenamento jurídico confiou aos tribunais o poder de decisão.
Mesmo quando todos acham que determinada decisão foi errada, esta não perde sua validade:
põe um fim ao debate e corta a controvérsia. Torna-se “coisa julgada”. A decisão do juiz deve
ser considerada como verdade: res judicata pro veritate accipitur, afirmava o jurisconsulto
Ulpiano, já lembrado pelo colega Goldenage.
Decidir sobre a “verdade” no direito é um exclusivo privilégio dos juízes. Os
políticos que atuam como legisladores e nós, doutrinadores, não temos o poder de decidir
sobre o que é direito. Quem fala do direito sem ser juiz parece com aqueles debatedores das
emissões esportivas de domingo que discutem por horas e horas sobre pênaltis e
impedimentos, sem poder alterar em nada as decisões dos árbitros.
O positivismo jurídico ensinou que o direito depende da vontade do legislador,
sendo aleatório e mutável. O realismo jurídico avançou muito mais. Demonstrou que o direito
realmente aplicado, o “direito em ação”, não depende das palavras do legislador. Tampouco
depende dos livros dos doutrinadores. Depende única e exclusivamente da vontade do juiz
que dá sentido às palavras dos legisladores e dos doutrinadores, podendo mesmo invertê-las
por completo. [pg. 63]
Por essa razão, as propostas formuladas nessa mesa, assim como as eventuais leis
retroativas sobre os Denunciantes Invejosos, não passam de meros desejos. O poder de
decisão pertence aos juízes que criam o direito. Eles dirão se aquele que fez uma denúncia
para se livrar de um inimigo foi um cidadão respeitoso da lei ou um criminoso que merece
castigo. Nenhuma lei e nenhuma reflexão teórica serão mais poderosas do que a decisão do
magistrado mais humilde.
Se não existe nem verdade, nem justiça, nem certeza na aplicação do direito, se
esses conceitos são propagandas enganosas dos juristas que querem enaltecer sua profissão,
devemos concluir que é inútil estudar o direito? Penso que não.
Estudar os regulamentos do legislador e a jurisprudência permite prever as futuras
decisões e explica como decidem os juízes, quais são os elementos sociais, políticos e
psicológicos que os fazem tomar determinada decisão. Em outras palavras, o direito é uma
questão da prática que depende das circunstâncias, dos interesses em jogo e da personalidade
de quem decide. Quanto mais estudamos esses elementos, maiores são as chances de prever as
decisões do Judiciário.
Além disso, me parece que os doutrinadores devem formular propostas sobre a
correta aplicação do direito, já que eles possuem um valioso conhecimento técnico sobre os
conceitos e os métodos de interpretação do direito que pode ajudar o Judiciário em suas
decisões.
Quais são os critérios para formular essas propostas? Alguns doutrinadores
simplesmente querem defender os interesses de seus clientes; outros fazem propostas
acreditando que falam em nome da verdade e da justiça; há também juristas que defendem as
interpretações socialmente úteis. Eu sigo [pg. 64] essa última orientação, porque considero
que o direito é um instrumento para melhorar a vida social.
Acredito que a proposta mais adequada é aquela que sugere deixar impunes os
Denunciantes Invejosos. Vejamos o porquê. O regime dos Camisas-Púrpuras não era uma
catástrofe natural nem um mal que, de repente, se abateu sobre a sociedade. Esse regime foi
eleito pelo voto popular e gozou de um amplo apoio social. A esmagadora maioria da
população o aceitou, por medo, por passividade, por interesse ou por convicção. Não faltaram
intelectuais, jornalistas e mesmo professores de direito que elogiavam o Chefe dos Camisas-
Púrpuras como salvador da pátria e se apressaram em filiar-se a este partido.
Houve também adversários do regime que resistiram de várias formas, tomando-
se alvo da repressão. Eu mesmo, que na época era simpatizante do partido dos socialistas
republicanos, fui cassado da Universidade por “indignidade nacional”. Exilei-me na França,
onde vivi em situação precária, trabalhando como restaurador de livros. A profunda rejeição
que sinto por esse regime é ditada por motivos pessoais e ideológicos. Mas isso não vale para
a maioria da sociedade que se acomodou com o regime dos funestos ditadores.
Hoje os Camisas-Púrpuras perderam o poder e são tratados como traidores e
criminosos. Quem não foi linchado pelo povo e não conseguiu fugir, aguarda seu julgamento
na prisão. Na época, porém, quem seguia as orientações do regime aplicava leis que não
somente estavam formalmente em vigor (como disse o primeiro deputado), más também eram
consideradas legítimas pela maioria da população. Castigar quem atuou em conformidade
com o direito vigente significa instigar a atos de vingança. [pg. 65]
Sabemos que o direito é muito maleável. Qualquer norma pode ser criada e
imposta. E os juízes podem interpretá-la conforme sua ideologia e as pressões que recebem
em cada momento. Podemos também mudar o sentido das palavras, chamando hoje de ilegal
aquilo que ontem era legal!
Considero, porém, que o legislador e o juiz devem pensar na utilidade social de
suas decisões. As árvores cortadas nunca podem reflorescer e os mortos da ditadura não
podem ser ressuscitados, seja qual for a punição dos responsáveis. Porque insistir então no
círculo da violência e do sofrimento? No momento atual, o mais conveniente é encerrar esse
triste capítulo, sinalizando o início de uma nova época, sem violência e sem atos de vingança.
A vingança é sempre um ato de barbárie.
O episódio dos Denunciantes Invejosos não nos deve fazer acreditar no mito da
justiça, considerando o novo governo como portador da luz da verdade. Nem devemos
acreditar que a aplicação do direito depende da vontade dos legisladores e dos doutrinadores.
Esse episódio mostra simplesmente que (o direito é um instrumento que cada grupo social
utiliza para alcançar suas finalidades. Tentemos configurar o nosso direito segundo aquilo que
consideramos mais conveniente, não esquecendo que, afinal de contas, tudo dependerá da
decisão dos juízes. [pg. 66]
OPINIÃO DA PROFA. STING
Escutei meus colegas e li os pareceres dos deputados. Todos dissertaram com
erudição e paixão sobre o problema, analisando vários aspectos e desejando propor a melhor
solução. Confesso que esses pareceres me causaram um profundo mal estar.
Os deputados e os meus colegas que tomaram a palavra são homens. O mesmo
vale para o Ministro, para o Chefe dos Camisas-Púrpuras e para todos os dirigentes de sua
quadrilha que se tomou governo. Sabemos também que quase todos os Denunciantes
Invejosos eram homens.
Onde estão as mulheres? N as discussões sobre os Denunciantes Invejosos
encontrei uma única referência à mulher. Trata-se daquela mulher casada, cujo admirador ou
amante denunciou o marido para que este fosse preso, condenado e executado e a mulher
caísse em seus braços!
Muito bem! Quando dois homens querem uma mulher eles entram na disputa.
Quem sai vencedor ganha a mulher-objeto como presente. Diante desse caso, os senhores
deputados e professores tiveram uma única preocupação. Saber se o suposto amante deve ou
não ser punido. Em outras palavras, a pergunta foi se é legal e justo aproveitar-se de uma lei
para conquistar uma mulher causando a morte de seu marido.
Sabemos que as nossas leis escritas não discriminam mais as mulheres. Graças às
lutas das próprias mulheres o [pg. 67] direito deixou de privilegiar abertamente os homens.
Utiliza uma linguagem neutra, estabelecendo os mesmos direitos e obrigações para todos.
Mas, na realidade, o direito continua exprimindo uma ideologia machista e defende os
interesses dos homens que querem sujeitar as mulheres ao seu poder. O direito funciona como
instrumento do poder masculino, como instrumento do patriarcado.
Esse direito masculino permite aos homens terem acesso ao trabalho e ao corpo
das mulheres. A mulher ganha menos do que o homem no mercado de trabalho, mesmo
quando executa as mesmas tarefas. A mulher trabalha de graça em casa, arruma, prepara as
refeições, cuida dos filhos, do marido, dos pais e sogros. O direito não se opõe a essas
situações escandalosas e, freqüentemente, trata a mulher como objeto que pertence ao homem.
O espaço privado, onde vive a família, é protegido como “asilo inviolável”. O
povo diz que nas brigas entre homem e mulher ninguém deve se meter. O mesmo pensam a
polícia e o Poder Judiciário que deixam as mulheres abandonadas à violência dos homens. O
homem pode estuprar, maltratar e humilhar sua companheira, como se isso fosse seu direito.
Quase nunca será punido, porque o direito protege a vida privada. Mesmo nos países onde as
feministas conseguiram reformar o direito no sentido da proteção da mulher, os aplicadores
não fazem quase nada para conter e punir a violência masculina.
O homem quer, ao mesmo tempo, proteger sua propriedade. Quando alguém, na
rua, estupra ou maltrata “sua” mulher, a lei protege sua propriedade “particular” e pune o
agressor, que utilizou a mulher-objeto sem o acordo do “proprietário”.
Alguém pensou que mais de 95% dos presos são do sexo masculino? Isso
acontece porque a mulher fica confinada em casa, submetida ao controle e às punições dos
homens. Quando [pg. 68] se rebela é considerada “louca”, sendo enviada aos psiquiatras. Mas
não devemos achar isso estranho. O direito é criado por homens para garantir seus direitos e
para punir aqueles que agridem a propriedade de outros.
Os senhores deputados e professores parecem ter uma idéia muito nobre sobre o
direito e querem encontrar a solução “justa” no caso dos Denunciantes. Mas seus pareceres
são formulados do ponto de vista masculino. Vejamos o que acontece no caso do suposto
amante, que foi citado como o exemplo mais repugnante de inveja assassina. Se este
Denunciante ficar impune, os homens se rebelarão porque o direito não protege o marido
como legítimo proprietário da esposa. Ninguém perguntou o que essa mulher queria, nem se
ela foi maltratada pelo marido porque tinha um admirador. Aquilo que incomoda foi a ousadia
de um homem que usou os tribunais para satisfazer suas paixões “ilícitas”, como disse o
quarto deputado. Se o Denunciante for punido, a ordem social será restabelecida.
Quem adota esse raciocínio não percebe que pensa exatamente como o amante-
denunciante. Ele usou a lei e os tribunais como instrumentos para se apoderar de uma mulher.
Alguns dos deputados e dos meus colegas querem fazer o mesmo: utilizar o direito como
instrumento para punir o amante, confirmando o direito de propriedade do cônjuge perante os
estranhos!
Considero que o ato desse Denunciante foi de um machismo repugnante. Mas a
sua punição nos deixaria presos no círculo vicioso da visão masculina do direito que manda
punir um homem porque violou os direitos de um outro ou porque ofendeu uma mulher
lesando “legítimos” interesses do pai ou do marido.
Não posso entrar aqui em detalhes. Basta estudar a teoria feminista do direito,
apresentada, por exemplo, nos estudos das [pg. 69] professoras Catharine MacKinnon e
Robin West, para adquirir consciência do profundo machismo do direito.
Os que se manifestaram até agora consideraram a punição ou a absolvição dos
Denunciantes como ato de justiça. A pergunta-chave é saber por que eles cometeram atos
execráveis. A verdadeira causa não foi a inveja ou qualquer outro sentimento. As vítimas das
denúncias não morreram devido à inveja, mas porque o direito em vigor castigava com pena
capital infrações de pouca ofensividade. Alguns usaram esse argumento para eximir de
responsabilidade os Denunciantes, dizendo que estes simplesmente levaram ao conhecimento
das autoridades condutas que contrariavam as leis em vigor.
Quem argumenta dessa forma parece esquecer a existência do direito
internacional. Nosso país assinou e ratificou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos de 1966. O art. 6.°, inciso 2.°, desse Pacto permite a aplicação da pena de morte só
excepcionalmente e “apenas nos casos de crimes mais graves”. Ninguém pode sustentar
seriamente que armazenar comida ou não informar a polícia sobre a perda da carteira de
identidade sejam condutas que se classificam entre os “crimes mais graves”. Assim sendo, as
leis que permitiram as denunciações invejosas estão em descompasso com as normas de
direito internacional, ratificadas em nosso país. Contrariam o direito internacional público e
criam a responsabilidade das autoridades do Estado que as estabeleceram e as aplicaram.
Tenho plena consciência dos problemas do direito internacional. Sei que os nossos
tribunais ainda consideram que uma lei interna pode derrogar um tratado internacional. Sei
também que o direito internacional é, até hoje, um direito muito “fraco”. Na maioria dos casos
não prevê sanções e, mesmo quando as prevê, quase nunca consegue aplicá-las se o Estado
violador não quiser colaborar. [pg. 70]
Esses problemas de implementação não impedem, porém, reconhecer que
algumas penas previstas em leis camiso-purpuristas violavam tratados internacionais. Isso
indica a ilegalidade da própria legislação daquele regime e permite entender que a verdadeira
causa das injustiças não foi o Denunciante, mas o quadro jurídico e político, em que ele atuou.
Encontramos aqui a situação que os colegas alemães denominam ilegalidade do próprio
sistema jurídico e político, Systemunrecht.
Não podemos esquecer que, na Argentina, o Congresso Nacional anulou em 2003
as leis de anistia que beneficiavam os colaboradores, da ditadura. Em 2005, a Suprema Corte
confirmou a constitucionalidade da anulação e abriu o caminho para processar e punir os
responsáveis. É interessante que tanto o Congresso Nacional como a Suprema Corte daquele
país decidiram que a impunidade contraria tratados internacionais que vigoram na Argentina
dando destaque ao papel do direito internacional.
Diante de tudo isso, revela-se altamente equivocada a tese segundo a qual a
punição de indivíduos invejosos permite pacificar a sociedade e fazer justiça. O caminho
indicado é, ao contrário, reexaminar esse sistema corrupto e violento que, inclusive, violou
normas fundamentais do direito internacional.
Por esses motivos sugiro abandonar a perspectiva limitada das propostas até agora
formuladas. A mudança no regime político oferece a oportunidade de refletir sobre problemas
muito mais importantes. Permite fazer um estudo crítico das regras jurídicas e políticas, das
ideologias e mentalidades que levaram a desvios e injustiças. Nessa pauta deve ser incluído o
problema crucial do tratamento das mulheres pelo direito.
O novo governo promete instaurar um regime de liberdade, pondo um termo às
injustiças e à opressão. Isso não pode [pg. 71] acontecer nos moldes do direito em vigor, que
não reflete as experiências das mulheres, não satisfaz suas necessidades, nem as protege. A
visão masculina do direito significa liberdade para que os homens continuem oprimindo as
mulheres.
Se o governo deseja realmente cumprir suas promessas de liberdade, não deve se
preocupar tanto com a punição de uns poucos Denunciantes, que, afinal de contas, serão
bodes expiatórios. Devemos levar a sério a questão das mulheres, eliminando os mecanismos
que inferiorizam o gênero feminino, tanto nas ditaduras como na democracia.
Vislumbro duas medidas que podem ser realmente úteis.
Em primeiro lugar, o governo deve elaborar uma declaração, condenando a
utilização do direito para oprimir e explorar seres humanos, homens e mulheres, sob o
pretexto de exercer um direito. Essa declaração deve citar como exemplo odioso o caso do
Denunciante e suposto amante que indica como o ordenamento jurídico permite controlar e
dominar as mulheres.
Em segundo lugar, o governo, em vez de gastar energias com o detalhe dos
Denunciantes, deve convocar com urgência uma comissão de juristas, políticos e
representantes da sociedade civil para realizar uma completa reforma do ordenamento
jurídico.
Essa comissão deverá expurgar o sistema jurídico das normas que garantem a
dominação masculina, situação que meus colegas homens mascaram com as palavras
“justiça” e “liberdade”. Deverá, também, procurar caminhos para que a aplicação do direito
possa permitir que o sexo feminino adquira sua autonomia.
Agradeço a atenção e espero que a voz e as legítimas queixas das mulheres sejam
finalmente ouvidas. [pg. 72]
OPINIÃO DO PROF. SATENE
A professora Sting apresentou um violento requisitório contra o sexo masculino.
Seduzida pela própria retórica, esqueceu de se referir a um episódio que é crucial para tratar
com serenidade, ponderação e coerência o problema dos Denunciantes Invejosos e que
também oferece um importante argumento a favor da solução que gostaria de propor.
Sabemos que, muito antes da ditadura dos Camisas-Púrpuras em nosso país, a
Alemanha vivenciou a barbaridade do período nazista. Após a restauração da democracia
naquele país, um tribunal enfrentou o caso da esposa Denunciante. Uma mulher que tinha um
relacionamento extraconjugal decidiu se livrar do marido denunciando-o por ter criticado, em
conversas particulares, o governo de Hitler. O marido foi condenado à morte e após um
indulto parcial foi mandado para a guerra, sendo incorporado em uma unidade militar na qual
serviam criminosos em condições particularmente duras.
Essa mulher utilizou-se do direito para se livrar do marido, ou seja, fez
exatamente aquilo que a professora Sting considera como típico dos homens! Não vou
discutir a fundamentação da análise feminista do direito. Interessa aqui avaliar a solução dada
ao caso da esposa Denunciante.
O tribunal alemão que julgou o caso após a queda do regime nazista decidiu que
os juízes que condenaram o marido à pena de morte não mereciam punição, por terem
simplesmente [pg. 72] aplicado o direito em vigor. Ao contrário, a esposa deveria ser
condenada por ter causado a detenção ilegal de seu cônjuge. O tribunal considerou que essa
denunciação contrariava a lei moral e o sentimento de justiça de qualquer ser humano decente.
Concordo com essa última posição. Não interessa se o autor da denunciação é
homem ou mulher, idoso ou jovem, branco ou negro. Só interessa saber se seu
comportamento constitui uma violação do direito.
Eis o verdadeiro problema. Não podemos decidir o que é “violação do direito”
sem saber antes o que é o direito. Todos usamos esse termo, mas cada um entende algo
diferente. A maioria dos doutrinadores entende que direito é o conjunto de normas colocadas
em vigor pelo legislador. Outros consideram que o direito está contido nas decisões dos
tribunais. Outros dizem que é direito aquilo que contribui para o progresso social e para a
felicidade da maioria. Não faltam também os cínicos que dizem que o direito é simplesmente
a violência e a ganância dos poderosos transformada em lei. Há, finalmente, juristas que vêem
o direito como manifestação de mandamentos eternos e imutáveis estabelecidos por Deus ou
pela razão humana.
Penso que todas essas definições são errôneas. Nenhuma delas exprime aquilo que
todos nós consideramos, no nosso dia-a-dia, como direito realmente válido. Seguindo os
ensinamentos do professor Ronald Dworkin, afirmo que o direito deve ser definido como
resultado de sucessivas interpretações dos princípios que fundamentam a vida social e são
aceitos pela comunidade.
O primeiro passo da interpretação é dado pelo legislador que cria as normas jurídicas.
Essas normas não são produto de uma “vontade”. O legislador não faz o que ele quer, como [pg.
74] pensam os positivistas, adotando uma posição totalmente ingênua. As leis decorrem da
interpretação dos princípios fundamentais que norteiam a sociedade. Quando a Constituição
proclama a soberania do povo, o respeito à dignidade humana e a liberdade, isso não deve ser
considerado como uma simples vontade do poder constituinte. Os constituintes simplesmente
exprimem e adotam os princípios e os valores da democracia e da dignidade da pessoa humana
que todos nós aceitamos. Por isso afirmo que as normas jurídicas decorrem de princípios e de
convicções políticas fundamentais, que o legislador interpreta e fixa em suas normas.
O segundo passo da interpretação é dado pelos tribunais que aplicam as normas
estabelecidas pelo legislador. Essas normas são abstratas e não oferecem automaticamente
uma solução. Mas o juiz não é um tirano que pode decidir a seu bel-prazer, como parecem
dizer os realistas, adotando uma posição cínica.
Para encontrar a solução adequada, os juízes devem interpretar as normas legais
de acordo com os princípios e os valores que estão em sua base. Ou seja, os juízes recorrem
novamente aos princípios fundamentais para encontrar a solução correta. Nessa oportunidade,
os juízes podem mesmo corrigir leis que se revelam contrárias aos princípios fundamentais.
Nenhum legislador consegue estabelecer de uma vez por todas a solução certa, nem pode
prever todos os casos que se apresentarão no futuro. Fica a cargo do juiz concretizar, atualizar
e até corrigir as normas legais.
Permitam-me citar um exemplo. Uma portaria do Ministro da Educação exige para
a aprovação dos estudantes universitários uma freqüência mínima de 75%. Este regulamento
não [pg. 75] foi feito ao acaso, nem simplesmente porque tal foi a vontade do Ministro.
O regulamento procura conciliar os dois princípios que regem a matéria. A
obrigação de presença, que é necessária para o aproveitamento do aluno, e a possibilidade de
ele faltar em casos de doença, acidentes e outros imprevistos da vida familiar e profissional. O
regulamento parece, à primeira vista, razoável. A experiência de sua aplicação demonstrou,
porém, que em alguns casos era necessário introduzir modificações.
A necessidade de garantir o aproveitamento escolar, sem ignorar os imprevistos
da vida, obriga a aprovar um aluno que, apesar de só ter freqüentado 65% das aulas devido a
uma grave doença, conseguiu uma excelente nota no exame final. Inversamente, seria justo
reprovar o aluno que esgotou o número de faltas permitidas sem nenhuma justificativa e
obteve nota mínima nos exames.
Percebemos, assim, que a criação do direito não termina com a edição de uma
norma. Os juízes resolvem casos concretos e imprevisíveis no momento da criação da norma,
por meio de sua aplicação criativa, sensível e inteligente.
Não vivemos no império dos caprichos do legislador. Vivemos em uma sociedade
civilizada, solidária e fundamentada em princípios que dão sentido à vida social. Cada vez
que for chamado a decidir, o juiz deve seguir esses princípios. Isso ocorre quando as decisões
do Judiciário satisfazem algumas exigências.
Em primeiro lugar, as decisões devem ser fundamentadas de forma detalhada e
com argumentos racionais que possam ser aceitos pela maioria das pessoas. [pg. 76]
Em segundo lugar, as decisões devem ser coerentes com aquilo que foi
anteriormente decidido em casos parecidos. Nada impede que o juiz inove. Mas, nesses casos,
ele tem a obrigação de justificar a nova solução. Com efeito, a interpretação do direito parece
com a redação de sucessivos capítulos de uma novela por autores diferentes. Cada um escreve
aquilo que considera adequado. Mas a novela não pode ser caótica. Todos devem respeitar sua
trama e seu estilo, introduzindo inovações somente quando for absolutamente necessário.
Em terceiro lugar, as decisões sobre um caso concreto devem ser coerentes com
aquelas que o mesmo juiz tomou no passado. O juiz que hoje dá preferência ao princípio da
liberdade e amanhã ao princípio da igualdade, alegando que ambos encontram-se no
ordenamento jurídico, se expõe a uma contradição que invalida seu trabalho.
Resumindo: interpretar o direito de forma criativa e responsável significa oferecer
aos cidadãos soluções racionais, convincentes e coerentes. Significa, antes de tudo, dar o
sentido mais adequado às palavras utilizadas pelo legislador para fazer jus aos princípios que
norteiam o convívio social.
Já constatamos que o caso dos Denunciantes Invejosos não é sem precedentes na
história do direito. Como indica o caso da mulher Denunciante e outros parecidos, os tribunais
alemães tiveram a ocasião de condenar os autores de denunciações que se aproveitaram do
delírio de uma ditadura para satisfazer instintos de ódio e vingança. O princípio moral que
justifica estas condenações é claro. Ninguém pode se prevalecer de uma norma em vigor para
realizar um projeto criminoso, que nem o mais cruel ditador teria aprovado.
Aos Denunciantes Invejosos deve ser imposta uma grave punição, proporcional ao
mal que causaram e à sua conduta [pg. 77] inescusável. Essa solução satisfaz as nossas
exigências éticas e o bom senso e apresenta coerência com a condenação de Denunciantes
Invejosos no passado. Fundamento legal das condenações deve ser o Código Penal que pune
como crimes o homicídio, a privação da liberdade e os demais danos sofridos pelas vítimas
das denunciações.
Os meus colegas da área do direito penal podem explicar melhor os detalhes
técnicos. A princípio não vejo nenhuma dificuldade em punir os Denunciantes Invejosos
como partícipes ou mesmo como autores desses crimes. Certamente nenhum deles matou ou
seqüestrou as vítimas com as próprias mãos. Mas eles podem ser considerados autores desses
crimes, se aceitarmos a teoria da autoria mediata ou indireta.
Eles utilizaram outras pessoas (policiais, promotores, juízes) como instrumentos
para alcançar seu objetivo. Quem tinha o verdadeiro domínio do fato, como dizem os
penalistas eram os Denunciantes. As autoridades do Estado eram tão somente os
“instrumentos legais” desse plano criminoso, como bem explica o colega Claus Roxin. Isso
permite aplicar o direito, castigando quem o perverteu.
Considero, finalmente, que os casos em exame devem ser tratados de forma que
diverge, em parte, da solução dada na Alemanha aos processos que envolviam denunciações. Já
disse que, naqueles processos, foram absolvidos os juízes que aplicavam o direito nazista, porque
foi considerado que o juiz tem sempre a obrigação constitucional de aplicar as leis em vigor.
Na minha opinião, o juiz que condena pessoas com base em leis corruptas e
injustas merece também ser castigado. É claro que no caso das denúncias invejosas os juízes
não devem ser responsabilizados pelos homicídios, já que eles não [pg. 78] participaram do
plano criminoso dos Denunciantes. Mas o fato de terem aplicado sistematicamente a
legislação da ditadura torna-os responsáveis. Eles também atuaram de forma dolosa, lesaram
o princípio da dignidade humana e violaram a obrigação política e moral de não colaborar
com regimes ditatoriais.
Espero que a justa punição dos artífices e dos partícipes dessas injustiças seja feita
mediante uma aplicação conseqüente do nosso direito penal e possa marcar o início de uma nova
era, que estará sob o signo dos princípios de justiça que regem a nossa comunidade. [pg. 79]
OPINIÃO DA PROFA. BERNADOTTI
Os colegas Goldenage e Satene repetiram aquilo que desde décadas sustentam em
dou tas publicações e brilhantes conferências. Peço vênia para expressar minha plena
discordância. Os colegas dizem que somos membros de uma comunidade política, tendo
valores comuns nos quais devem se fundamentar as leis e as futuras decisões do Judiciário.
Dessa forma, adotam a opinião do jusnaturalista francês Michel Villey, segundo o qual o
aplicador do direito não deve cumprir as ordens do Estado, mas interpretar os textos de forma
que permita encontrar a solução “justa”.
Para falar em “justo” devemos ter valores aceitos por todos. Mas quais foram os
valores comuns a brancos e negros nas sociedades escravocratas do século XIX? Onde está a
comunidade de valores e interesses entre os pobres e os ricos nos países do terceiro mundo,
onde, ao lado de mansões luxuosas, encontramos favelas que abrigam centenas de milhares de
desesperados? Onde está a comunidade entre os homens e as mulheres, uma vez que ô direito
funciona como instrumento de sujeição do gênero feminino, como bem indicou a colega Sting?
Os juristas raramente tratam desse problema e, às vezes, querem ocultá-lo. Um
exemplo deu o professor Satene. Fala do justo e do correto, esquecendo as enormes diferenças
de mentalidade e interesses entre pessoas e grupos. Como se isso [pg. 81] não bastasse, o
referido professor fez uma crítica superficial e equivocada à professora Sting, que mostrou o
caráter machista do direito, ou seja, sua parcialidade. O professor Satene não quer admitir que
o sistema jurídico, quase sempre, toma o partido dos mais poderosos: dos brancos, dos ricos,
dos homens.
Na realidade, não temos nenhuma comunidade de valores e interesses. Temos
exploração, violência, discriminação e opressão. Qual é o papel do direito na sociedade? Os
meus colegas moralistas fecham os olhos diante da realidade ou consideram que os poderosos
e opressores violam o “verdadeiro” direito. Isso não passa de um sonho. Na realidade, os
opressores e exploradores simplesmente aplicam o direito em vigor. Se o direito permite
pagar um salário de fome, por que deve ser punido aquele que paga esse salário?
Por que então castigar pessoas invejosas que, afinal de contas, denunciaram fatos
reais e por que perseguir os juízes que puniram os infratores, seguindo o direito em vigor?
Eles simplesmente aplicaram o direito, tal como faz qualquer respeitada família que paga um
salário mínimo à sua empregada doméstica ou especula na Bolsa de Valores.
Foi dito que os Denunciantes Invejosos instrumentalizaram o direito para se
vingar de inimigos pessoais. O professor Satene baseou-se nisso para apresentá-los como
autores de homicídios e seqüestros, adotando teorias de doutrinadores conservadores como
Claus Roxin. Quem utiliza esse argumento esquece que o nosso direito é um direito formal.
Avalia aquilo que a pessoa faz e não examina o porquê faz. Quem pensou em matar seu
concorrente e não o fez porque tinha medo da pena pode ser um indivíduo moralmente
desprezível. Não deixa de ser um cidadão respeitoso da lei, já que o direito simplesmente [pg.
82] pune o homicídio, sem se interessar pelos desejos e os pensamentos das pessoas.
Isso é uma característica de todos os ordenamentos jurídicos modernos que se
fundamentam na separação entre o direito e a moral. O direito moderno não exige que a
pessoa seja um “bom cristão” ou um “bom pai de família”, como acontecia no direito
medieval que pouco distinguia entre as regras jurídicas, as obrigações morais e os
mandamentos religiosos. Hoje o Estado avalia as ações e omissões das pessoas
exclusivamente com base no direito em vigor e não leva em consideração os méritos e
deméritos morais de cada um.
Os Denunciantes Invejosos levaram ao conhecimento das autoridades crimes
tipificados pelo direito em vigor. Não interessa juridicamente se isso foi feito por motivos
“baixos”, como a vingança, ou por opção política, porque o Denunciante era camiso-
purpurista e queria combater os opositores do regime. As intenções que levam alguém a fazer
um ato legal não podem ser punidas com base no direito moderno que, como já afirmei, é
formal e estranho a juízos de valor de cunho moral.
Quem sustenta o contrário deve também propor que sejam punidos aqueles que
sentem a tentação de furtar um produto de beleza no supermercado, mas não o fazem porque
percebem a câmera que grava seus movimentos.
Já que não devemos castigar quem respeita as normas válidas e não segue as
idéias sobre o direito “justo”, expostas nas obras do professor Goldenage, devemos admitir
que o direito em vigor não se orienta ao justo nem aos supostos princípios fundamentais,
caros ao professor Satene. Na nossa sociedade existem valores contraditórios e interesses
contrários. Não se impõe a opinião mais justa e coerente; impõe-se a vontade dos [pg. 83]
poderosos, uma vez que o direito é produto de lutas políticas, de compromissos e de
manipulações ideológicas.
Os Camisas-Púrpuras criaram e aplicaram um direito que correspondia aos seus
interesses. Isso pode ser desagradável para nós. Mas o direito deles não era nem mais nem
menos “direito” do que o atual. Como dizia Hans Kelsen, o direito pode ter qualquer conteúdo
e até mesmo autorizar condutas moralmente repugnantes.
Significa isso que estamos de mãos atadas e devemos aceitar as decisões desse
odioso regime? Penso que não. A solução é oferecida por uma singela reflexão sobre os
mecanismos de criação do direito. Sabemos que nos Estados modernos a Constituição é o
texto normativo supremo. O fundamento da supremacia da Constituição é exclusivamente
político. Basta ter a capacidade política de exercer o poder constituinte originário e impor uma
nova Constituição para que o direito anterior seja completamente anulado.
O movimento que derrubou a ditadura dos Camisas-Púrpuras exerceu o poder
constituinte originário e criou um novo ordenamento jurídico. A atual Assembléia Nacional
continua exercendo esse poder, já que ainda não resolveu as pendências do passado e continua
legislando para estabelecer as bases da nova organização do Estado e da sociedade. Esse
ordenamento não se vincula pelo direito anterior, já que houve uma ruptura revolucionária,
impondo uma nova vontade política fundamentada em novos princípios. Os titulares do novo
poder constituinte devem resolver os casos pendentes como eles consideram melhor.
O problema ora enfrentado não é jurídico, como sustentam os colegas Goldenage
e Satene. Não discutimos aqui sobre técnicas jurídicas que permitem punir um homicídio.
Estamos [pg. 85] diante de um problema de pura conveniência política. Devemos punir os
responsáveis do regime anterior, os juízes e os cidadãos que colaboraram com este? A decisão
depende da Assembléia Nacional, detentora do poder constituinte originário. Penso que a
punição é oportuna por dois motivos. Primeiro, porque permitirá marcar ainda mais
claramente a ruptura com o passado. Segundo, porque é uma medida adequada para pacificar
a sociedade, tão revoltada pelos crimes e abusos cometidos durante a ditadura.
Isso deve acontecer por meio de um ato constituinte que estabelecerá as medidas
cabíveis. Este ato constituinte não estará sujeito ao controle dos tribunais, como teme o senhor
Ministro, já que não se trata de uma simples lei do poder legislativo, mas decorre do poder
constituinte originário, que é superior a qualquer autoridade do Estado.
Qual deve ser o conteúdo deste ato constituinte? Em primeiro lugar, devem ser
previstas sanções para todos os colaboradores do antigo regime. Os policiais, juízes e demais
funcionários que colaboraram com o regime permitindo que suas nefastas ordens fossem
executadas estarão sujeitos à penalidades. Punir somente os Denunciantes Invejosos é uma
hipocrisia, já que a responsabilidade deles é muito menor do que a dos funcionários públicos
que se tornaram obedientes instrumentos da ditadura.
Em segundo lugar, penso que o ato constituinte não deve prever sanções penais
para os casos em exame. O novo poder constituinte pode, certamente, criar delitos e
estabelecer penas de forma retroativa. Mas isso seria uma péssima idéia, já que as leis penais
retroativas violam um princípio fundamental do direito moderno: “não haverá crimes nem
penas sem lei prévia”. Criar leis penais retroativas significa seguir o exemplo [pg. 85] dos
Camisas-Púrpuras e perpetuar o círculo da violência que eles inauguraram.
Os Denunciantes Invejosos não cometeram ilegalidades. Demonstraram falta de
civismo colaborando com um regime antidemocrático. Portal motivo, a sanção adequada deve
ser de natureza claramente política. Suspendam os direitos políticos dos Denunciantes e de
todos os colaboradores dos Camisas-Púrpuras por um período que dependerá da gravidade
dos fatos cometidos. Essa sanção deverá receber a mais ampla publicidade, demonstrando a
todos que os inimigos da democracia são indignos de ser cidadãos.
Dessa forma, o novo regime mostrará seu desprezo pelos colaboradores da
ditadura e oferecerá uma satisfação às vítimas. Evitando a pena criminal, dará também a todos
uma lição de civismo, deixando claro que os regimes democráticos são vigilantes sem ser
vingativos.
Sei que muitos ouvintes ficarão com o gosto amargo da decepção. Afirmei que o
direito é uma simples questão de poder. Mantenho essa tese, típica do positivismo jurídico, e
considero necessário abandonar as ilusões do direito moral e justo. Mas isso não significa que
devemos aceitar qualquer regime político e qualquer lei. Quando os cidadãos acham que o
governo é corrupto e o sistema jurídico opressor e injusto, devem encontrar a coragem de
lutar para que seja tomada, democraticamente, a decisão política de criar um novo direito,
conforme os anseios e ideais da população.
__oooOooo__
Após ter tomado conhecimento de todas essas opiniões, qual será sua decisão
como Ministro de Justiça? Procure en- [pg. 86] tender a lógica e as conseqüências práticas de
cada uma das opiniões sugeridas e de cada argumento utilizado e indique a opção que
corresponde ao seu pensamento.
É necessário prestar atenção em um ponto. Quem considera que os Denunciantes
(e, eventualmente, os integrantes do Poder Judiciário que participaram das condenações)
devem ser punidos não pode só afirmar, de maneira emocional, que eles “merecem” um
castigo. Sabemos que não há crime nem pode ser aplicada uma sanção sem lei. Por isso, quem
considera necessária a punição deve indicar com base em quais normas deverá ocorrer. As
opções são duas.
Primeiro, afirmar que essas pessoas cometeram crimes tipificados na legislação
penal comum (homicídios, seqüestros), sendo suficiente aplicar tais normas.
Segundo, considerar que deve ser criada uma legislação específica e aplicável de
maneira retroativa, prevendo sanções penais ou de outra natureza (perda de direitos políticos,
indenização etc.).
Da mesma forma, quem considera que essas pessoas não devem ser punidas, deve
explicar e justificar sua opção. É muito diferente, do ponto de vista jurídico, afirmar que eles
não cometeram crimes ou, ao contrário, considerar que eles violaram normas penais
(indicando quais são essas normas), mas é preferível, por motivos políticos e sociais, conceder
uma anistia.
Finalmente não se pode esquecer que, seja qual for a solução proposta, os
responsáveis políticos e a população inteira desejam ouvir a argumentação. Só se esta for
convincente, a solução contará com o apoio dos demais.
DIMITRI DIMOULIS[pg. 87]
BIBLIOGRAFIA
As obras contidas nesta bibliografia permitem ao leitor estudar com maior
profundidade o problema da definição do direito em suas relações com a justiça e a moral.
Além disso, incluímos na bibliografia as referências completas, das obras citadas
nos “pareceres” dos cinco professores, assinalando-as com um asterisco.
As opiniões dos jurisconsultos romanos Ulpiano e Celso, mencionadas nos
“pareceres” dos professores Goldenage e Wendelin, encontram-se no Digesto de Justiniano,
disponível na internet <http://webu2. upmf-grenoble.fr/Haiti/Cours/Ak/Corpus/d-01.htm>.
A decisão da Suprema Corte da Argentina sobre a nulidade das leis de anistia,
mencionada no parecer da professora Sting encontra-se em:
<http://www.derechos.org/nizkor/arg/doc/nulidad.html>.
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KAT MARTINS