O LEGADO DE UM SANTO
Roger X. P.
O LEGADO DE UM SANTO
Primeira Edição
São Paulo
2013
Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com
nomes de indivíduos e eventos narrados terá sido mera
coincidência.
Todos os direitos reservados ao autor
Capa: Roger Xavier Pinto
Diagramação: Roger Xavier Pinto
Revisão: Isabelle Cunha
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Prólogo
A todos os humanos que estas palavras alcançarem, eis a
verdadeira história que não fora revelada por outros meios.
Com a aproximação do novo milênio, o mundo espiritual
alvoroçava-se de modo a interferir constantemente no mundo
material. A maioria dos humanos, incrédulos, não sabia e nem
buscava entender os sinais à sua volta. Outros sugeriam teorias
absurdas tentando explicar o inexplicável aos olhos carnais e
aos corações endurecidos.
Nada do que está escrito aqui é falso, pois estas palavras
revelam o que presenciei pessoalmente. Felizmente, caminhei
por uma estrada por onde poucos mortais passaram, traçando
assim o destino do Universo.
Começarei relatando as ocorrências que presenciei na
noite de 20 de junho de 1997 e as ações tomadas por membros
do Clero e por bravos guerreiros a respeito de estranhos
acontecimentos que os rondavam.
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1997
I – Roma, Itália
O vento forte soprava e uma chuva sem fim caía sobre
Roma, montando o cenário ideal para o que haveria de acontecer
ao decorrer daquela noite de horror. Em uma paróquia afastada
do centro da cidade, gritos e gemidos misturavam-se ao som da
ventania, da chuva e dos trovões. A responsável pelos clamores
era uma mulher amarrada pelos pulsos e pés a uma cadeira
próxima ao altar da paróquia. Suas roupas eram comuns de uma
jovem de classe média alta, mas sua face não aparentava ser de
uma pessoa normal. Seus olhos tinham escleras amareladas e
sua pele parecia pálida: eram sinais claros de possessão
demoníaca.
Os dois padres residentes daquela paróquia permaneciam
próximos a ela enquanto realizavam o ritual de exorcismo. Um
deles era mais velho e responsável pela paróquia, o outro era
jovem e havia chegado há pouco tempo, e, perante aquela cena,
não conseguia esconder sua expressão de medo. De repente, o
padre ancião parou o ritual de exorcismo.
– Espere aqui, Rault. – disse o padre ancião, voltando-se
para a porta do escritório.
– Aonde o senhor vai, Pe. Lucas?
– Não lhe parece óbvio? Irei telefonar para alguém da
Santa Sé. Precisamos de ajuda. – respondeu Pe. Lucas,
cabisbaixo, pois entendia que a situação pela qual passava não
era comum. Logo, ele dirigiu-se ao escritório apressadamente.
Rault continuava o ritual de exorcismo mesmo com o
pavor estampado em seu rosto. Suas mãos tremiam a ponto de
exibir seu medo ao balançar o Rituale Romanum que segurava.
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Poucos padres estariam preparados para lidar com uma situação
semelhante.
A mulher parou de gritar subitamente e voltou o olhar para
o jovem padre. Ela fixou os olhos nele, dando um pequeno
sorriso. – Você é fraco, sacerdote. – falou o demônio através da
mulher. Sua voz era quase tão grave quanto os trovões que
bradavam no céu.
– Você não tem poder na casa de Deus! – exclamou Rault
ao aspergir água benta sobre a mulher, fazendo com que o
demônio gritasse de dor por ter seu templo atingido. A água
benta mais parecia um líquido escaldante para aquele anjo caído.
No escritório, Lucas falava ao telefone enquanto corriam
gotas de suor em seu rosto. Tinha uma preocupação considerável
pelo perigo de não receber apoio da Santa Sé. – Mas,
Excelentíssimo, eu não lhe incomodaria telefonando a essa hora
da noite se a situação não tivesse tal magnitude. – dizia Lucas,
enquanto os gritos voltavam a ecoar no interior na paróquia. –
Certo. Muito obrigado.
Lucas, após encerrar o telefonema, voltou às pressas para
o lugar onde estavam seu companheiro e a mulher possuída. A
situação não mudara nesse meio tempo. Ambos os padres não
tinham conhecimento suficiente para realizar o exorcismo.
– Um dos bispos da Santa Sé virá para nos ajudar, Rault. –
falou Lucas com uma expressão de ânimo.
– Ótimo, Pe. Lucas. – respondeu Rault, enquanto a mulher
possuída gargalhava em diferentes tons de voz.
– Deus tenha misericórdia dessa alma! – dizia Lucas
enquanto fazia o sinal da cruz.
Os dois padres continuaram o ritual incessavelmente, a fim
de expulsar o demônio que atormentava aquela mulher. Não
demorou muito para que um táxi parasse em frente àquela
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paróquia. Um homem, após descer do carro, andou
apressadamente sob a chuva até a entrada do prédio e bateu na
porta com força. Enquanto aguardava, protegia-se da chuva com
um guarda-chuva e carregava consigo uma maleta.
– Ele chegou, Rault. – falou Lucas ao se apressar para abrir
a porta e receber o bispo da Santa Sé.
Lucas abriu a porta e sorriu ao ver que recebia alguém que
realmente poderia lhe ajudar, um bispo especialista em
exorcismos e fenômenos paranormais. Era um homem de setenta
e quatro anos de idade e de muita experiência. Tinha cabelos
grisalhos e volumosos. Apesar de seu título, suas roupas não
eram típicas de um bispo a trabalho, seu terno marrom e sua
camisa preta eram trajes comuns. Seu olhar fixo e expressão
confiante transmitiam um alívio aos dois padres.
– Vim assim que pude. Queria ver isto com meus próprios
olhos. – disse o homem ao entrar e fechar o guarda-chuva,
escorando-o na porta.
– Excelentíssimo Reverendíssimo Bpo. Samuel, é uma
honra recebê-lo aqui. – Lucas reverenciou-o beijando seu anel
episcopal. – Queria que a ocasião fosse mais agradável, mas
devo lhe mostrar o que nos faz infelizes nesse momento. – dizia
Lucas, conduzindo o bispo em direção ao altar.
Chegando perto da mulher, Samuel não conteve a reação
de surpresa seguida do sinal da cruz. Logo pôs sua maleta no
banco próximo a eles, tirando de dentro uma estola a qual beijou
e pôs em seu pescoço. Também tirou um crucifixo e um pequeno
frasco com óleo sagrado. Ele ungiu a testa da mulher traçando
uma cruz e, após guardar o frasco, começou o ritual de
exorcismo com o crucifixo voltado para a mulher. Samuel nem
mesmo tirou o Rituale Romanum de sua maleta, pois já havia
memorizado a maioria dos rituais, sendo o ritual de exorcismo
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um dos primeiros que havia memorizado em sua vida. Os dois
padres rezavam enquanto o bispo encarregava-se do exorcismo.
No dia seguinte, o sol brilhava no céu sem nuvens, e uma
suave brisa soprava sobre a cidade. Muitas pessoas apressadas
andavam pelas calçadas a fim de começar mais um dia de
trabalho, enquanto outras andavam calmamente aproveitando o
ótimo clima de junho. Dentre essas pessoas estava um jovem
padre vestido com uma batina preta, de cabelos negros e curtos.
Sua expressão de seriedade era acentuada pelos seus olhos azuis
penetrantes. Ele andava calmamente com as mãos nos bolsos da
calça, sem muito importar-se com o movimento à sua volta. Sua
aparência acusava-o ter cerca de vinte anos, porém ele não
demonstrava toda sua juventude através de suas atitudes e de sua
maneira de agir.
O jovem padre era um dos funcionários da Congregação
para o Clero, uma das congregações da Cúria Romana, na
Cidade do Vaticano. A Congregação para o Clero contava com
um cardeal como prefeito e dois bispos na vice-liderança.
No escritório da congregação havia um homem, um bispo
idoso, sentado em uma cadeira voltada para a mesa. Seus poucos
cabelos grisalhos e sua pele enrugada combinavam com sua
idade avançada, e sua atenção estava voltada por completo para
a leitura de alguns papeis que eram assinados por ele. Em
seguida, ouviram-se batidas na porta do escritório.
– Entre. – disse o bispo, olhando para a porta.
– Bpo. Giovanni, bom dia. Posso falar com senhor? –
falou o jovem que antes andara pelas ruas até chegar ali.
– Bom dia, Charllys. – disse o bispo ao jovem, apontando
para a cadeira à sua frente. – Sente-se. Preciso lhe entregar
alguns requerimentos, se possível me traga os resumos antes do
almoço.
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– Sim, deixe-me vê-los. – respondeu Charllys e logo
sentou-se.
– Já entreguei para o Pe. Andrei alguns requerimentos
mais cedo. Mas eu duvido que vá terminar de examiná-los ainda
hoje. Ele conseguiu atrasar relatórios de dois dias atrás.
– Verdade? Ele parece sempre ocupado... – respondeu
Charllys com um leve sorriso.
– Voltando ao nosso trabalho... Me diga, sobre o que você
queria falar? – disse Giovanni ao entregar os requerimentos a
Charllys.
– Bpo. Giovanni, eu fiquei sabendo do que aconteceu
ontem. Esses casos estão ficando cada vez mais frequentes.
– Sim, mas nada que seja motivo para alarme. – respondeu
Giovanni com um tom de despreocupação. – Mas, afinal, quem
lhe contou?
– Foi o... – Charllys interrompeu sua fala ao ouvir batidas
na porta.
– Entre. – disse Giovanni em voz alta.
Logo após um homem entrou, um padre funcionário da
Congregação para o Clero. Aparentava ser um pouco mais velho
que Charllys, porém se destacava pelos seus cabelos negros e
longos que eram presos por uma fita branca. Sua expressão
descontraída e seus olhos castanhos e alegres produziam um
contraste com a seriedade do ambiente.
– Olá de novo, colega. – disse o jovem, dando dois leves
tapas nas costas de Charllys. – Bpo. Giovanni. – reverenciou a
Giovanni.
– Pe. Andrei, achei que já estava a caminho da paróquia de
San Giovanni Bosco . – disse Giovanni ao jovem padre.
– Eu pretendia, mas acabei encontrando Charllys no
corredor e começamos a conversar, sabe como é, né? – dizia
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Andrei de forma distraída enquanto gesticulava. – Bem, depois
disso Charllys veio para cá e eu segui meu caminho até os
portões do pátio e...
– E o que aconteceu? – perguntou Charllys a Andrei,
curioso pelo o que havia acontecido.
– Bem, eu voltei para ver se você não queria vir comigo, e
depois poderíamos passar em algum fast food. – respondeu
Andrei com um leve sorriso, enquanto fazia sinal de positivo.
– Ora, Andrei. Ao invés de ficar de conversa nos
corredores, deveria tratar de cumprir suas tarefas. – exclamou
Giovanni com severidade. – Presumo que foi você quem
informou a Charllys sobre o ocorrido de ontem à noite na
paróquia.
– Sim, Excelentíssimo Reverendíssimo Bpo. Giovanni. –
Andrei voltou o olhar a Charllys. – Charllys, por que você não
vem comigo?
– Bem, confesso que tenho interesse em ouvir os relatos
dos padres residentes da paróquia, mas tenho trabalho a fazer.
Desculpe. – respondeu Charllys, mostrando os papeis que lhe
haviam sido entregues. – Além disso, eu já tomei meu café da
manhã.
– Então está certo. Até mais. – falou Andrei,
encaminhando-se até a porta e saindo.
– Você não tem com o que se preocupar, Charllys. Agora
vá, logo receberei o Bpo. Samuel. – disse Giovanni.
– O Bpo. Samuel virá até aqui? Achei que ele iria à
Espanha para uma conferência. – perguntou Charllys, surpreso.
– Ele cancelou a viagem e insistiu em falar comigo, disse
que viria essa manhã.
– Entendo. Acha que ele quer comentar sobre o que houve
ontem à noite?
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– Eu não tenho certeza. Gostaria muito de ouvir o relato
de Samuel sobre os acontecimentos de ontem à noite. Mas ele
pediu para que eu enviasse alguém até a paróquia a fim de obter
um relatório sobre o caso, disse que não teria tempo para toda
essa burocracia no momento. De qualquer forma, Andrei já está
a caminho.
– É claro. Bem, irei até minha sala. – Charllys levantou-se
e dirigiu-se até a porta.
– Até mais tarde.
– Até mais tarde, bispo.
Charllys saiu do escritório e encaminhou-se ao corredor
que o levava até sua sala.
– “O que está acontecendo?” – pensava Charllys. – “Já é
o quinto caso só nas duas últimas semanas. Algo está errado.
Entendo que o Bpo. Giovanni não demonstre sinais de
preocupação devido à minha presença, mas tanto ele quanto eu,
e até mesmo o Bpo. Samuel, sabemos que há algo errado.”
Os pensamentos de Charllys deixavam-no cada vez mais
curioso e preocupado com o que acontecia em Roma, sua
inquietude era acentuada pela suposta despreocupação de
Giovanni. Uma despreocupação que Charllys suspeitava ser
fingida, pois, para ele, Giovanni e Samuel sabiam que esses
casos de possessão não eram normais, não só devido à
frequência com que estavam acontecendo, mas também à
dificuldade da consumação dos rituais de exorcismo.
Ao entrar em sua sala, Charllys sentou-se na cadeira em
frente à mesa e começou a mexer nos papeis que Giovanni o
havia entregado. Entre esse papeis havia um pedido de
autorização para a formação de um curso de rituais de
exorcismo para clérigos. O requerimento estava no nome de
Samuel, tinha como data dois dias atrás.
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– Isso foi redigido um dia depois do terceiro exorcismo
em que a Santa Sé teve que intervir. – sussurrou Charllys.
O requerimento tinha como motivo principal o preparo de
clérigos para a realização de rituais de exorcismo, expondo os
rituais ortodoxos e outros pouco conhecidos para os alunos
matriculados. Não era uma ação precipitada, segundo os
pensamentos de Charllys, mas ainda assim ele duvidava que tal
requerimento tivesse também a aprovação de Giovanni.