ENTREVISTA: DR. OMAR FERRI*
Apresentação O Programa de História Oral do Memorial do Judiciário do Estado do Rio Grande
do sul está formando um Banco de História Oral, cujas entrevistas vêm sendo publicadas
nesta revista, com também, na série Histórias de Vida, que reúne coletâneas de
depoimentos. A formatação da rede de depoentes e a formulação dos questionamentos
aos entrevistados coincidem com as demandas animadas pelas pesquisas desenvolvidas no
Memorial. Os depoimentos, depois de degravados pelo Departamento de Taquigrafia e
Estenotipia do Tribunal de Justiça, são textualizados pela equipe técnica do Programa e
devolvidos aos depoentes para eventuais ajustes e aprovação final. Aprovados, os
depoimentos são indexados, de forma a facilitar o acesso aos consulentes, e, em seguida,
são devidamente arquivados.
Todas as declarações constantes nas entrevistas são de responsabilidade exclusiva
dos depoentes, que assinam um termo de cessão de direitos para o Memorial do
Judiciário, autorizando ou não a divulgação da entrevista. O Memorial do Judiciário
garante total liberdade de expressão aos depoentes, procurando, ainda, ouvir todos os
lados interessados em uma determinada polêmica. Por isto, entendemos os fatos narrados
nas entrevistas não como verdades históricas em si, mas como representações e opiniões
individuais sobre o processo histórico e sobre fatos do passado. Recomendamos que as
entrevistas coletadas e divulgadas pelo Memorial do Judiciário, por este motivo, sejam
lidas sempre em seu contexto, comparativamente a outras entrevistas, publicadas nesta
revista ou na série Histórias de Vida.
Omar Ferri formou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUC), em 1957. Neste mesmo ano, a convite de líderes ligados ao
Presidente da República João Goulart, passou exercer o cargo de Procurador da Fundação
Brasil Central, com sede em Brasília. Em 1964, com o advento do regime militar, foi
demitido da função pública por determinação do Comando Militar de Brasília e passou,
então, a atuar em causas penais que tiveram repercussão internacional, dentre as quais
* Entrevista concedida à historiadora Márcia de la Torre e à estagiária Carine Medeiros Trindade,
em 07 de junho de 2004, no Escritório do entrevistado. Degravação do Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do TJ-RS. Textualização Gunter Axt.
2 destaca-se o caso do seqüestro de “Lílian Celiberti e Universindo Dias”, tornando-se
conhecido como especialista em causas criminais. Em 1985, foi anistiado e ocupou vários
cargos públicos. Foi Vereador em Encantado e Porto Alegre e Deputado Estadual. É
autor de diversas obras, dentre as quais destaca-se o Manual de Direito Tributário.
Atualmente é Procurador Autárquico aposentado e exerce a advocacia.
A entrevista aborda aspectos da vida partidária do antigo PTB, nos anos 1950,
bem como a trajetória do entrevistado na Fundação Brasil Central, na condição de
Procurador, até 1964. Comenta o golpe de 1964 e o processo de cassação que vitimou o
depoente, bem como, mais tarde, depois da anistia, o processo de expulsão do PSB, que o
atingiu. Sobretudo, Ferri descreve sua experiência profissional como advogado, junto ao
Tribunal do Júri – cujo sistema critica –, referindo-se a diversos casos ruidosos, como o
“Caso do Disco” e o “Caso Nina Gualdi”, esposas que mataram os maridos, o “Caso do
Seqüestro dos Uruguaios”, dentre outros. Apresentando detalhes sobre este ruidoso
episódio, Ferri critica o sistema judicial, mas exalta a coragem de alguns Magistrados e
Promotores, cuja ação ajudou a escrever um importante capítulo da luta pelos direitos
humanos no Cone Sul. Conhecido polemista, Ferri, nesta entrevista, revela sua idealização
do período de 1946 a 1964 e mostra-se pessimista em relação ao desenvolvimento social
no Brasil. Critica, finalmente, o que entendeu por conservadorismo do Ministério Público
gaúcho durante o regime militar.
Memorial - Dr. Omar, o senhor nasceu em Encantado?
Dr. Omar Ferri - Nasci em Encantado, no dia 30-04-33. Portanto, hoje estou
com 71 anos de idade.
Memorial - O senhor passou sua infância e adolescência na cidade?
Dr. Omar Ferri - Vivi cinco anos em Encantado. Meu pai era funcionário da
Exatoria Estadual.
Em 1938, vagou a Escrivania Distrital de Ilópolis, como era a denominação da
época. Então, meu pai foi nomeado – por portaria assinada pelo Governador, Flores da
Cunha -, Escrivão Distrital de Ilópolis.
Com 5 anos, fui morar em Ilópolis, onde, teoricamente, morei por 20 anos. Digo
teoricamente porque foi, nessa época, que estudei em um internato de Guaporé por três
3 anos, num internato de Lajeado por um ano, onde conclui o Ginásio. Posteriormente, em
Porto Alegre por três anos, quando cursei o Clássico no Colégio Rosário, além do período
em que cursei a Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul.
No 4º ano, retornei para Encantado, pois, naquele tempo, podíamos fazer apenas
os exames, já que a freqüência não era obrigatória. Sendo assim, em 1956, já comecei a
advogar em Encantado. Concomitantemente, eu era o Secretário do Prefeito Municipal.
Logo depois, fui eleito Vereador. Em Encantado, naquela época, havia quase oito mil
eleitores, e não fiz campanha para mim. Eu era secretário do partido e tinha uma posição
de absoluta independência. Em todos os locais em que havia candidatos a Vereador, eu
pedia votos para eles. Não gastei dinheiro algum. Era outra época, havia outra concepção
política, incrivelmente melhor do que a de hoje, em que há uma inversão de valores. Dos
quase oito mil votos, existentes no município, obtive 804 votos. Nas cinco primeiras
urnas, já estava eleito. Fui, de longe, o Vereador mais votado.
Memorial - Por qual legenda?
Dr. Omar Ferri - Pelo Partido Trabalhista Brasileiro cujos grandes líderes da
época eram Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola, Alberto Pasqualini, Rui Ramos,
Temperani Pereira, entre outros. Era um grupo político, muito bem dotado
intelectualmente. Não só em relação ao PTB, mas também quanto aos demais partidos.
Aquela era uma época de políticos descentes, honestos, e com bom nível cultural. Não era
como hoje, em que a política se abastardou, e os candidatos vulgarizaram-se.
Quando me formei já estava advogando em Encantado.
Memorial - Em que ano o senhor iniciou o mandato de Vereador?
Dr. Omar Ferri - Foi de 1958 a 1962.
Memorial - Na época em que Leonel Brizola era o Governador?
Dr. Omar Ferri - Quando ele era Governador, eu era Vereador em Encantado.
Quando o Jango tomou posse como Presidente da República, em decorrência da renúncia
de Jânio Quadros, um amigo meu, que também era amigo do Jango – chamado Pedro
Tassis Gonçalves, que havia sido Delegado de Polícia de São Borja, Secretário dos
Transportes em Porto Alegre, no tempo em que o Manoel Vargas foi Prefeito Municipal –
, foi convidado para ser o Presidente da Fundação Brasil Central, que tinha uma área de
4 atuação de, mais ou menos, 3 milhões de quilômetros quadrados. Naquela época, o
Centro-Oeste brasileiro não estava desenvolvido em nenhum aspecto, apenas havia alguns
postos avançados da Fundação Brasil Central, em algumas cidades incipientes, como era o
caso de Aragarças e Jacareacanga, tanto que se tornaram importantes historicamente, por
causa de uma rebelião que houve contra o Juscelino Kubitschek.
Alguns coronéis udeno-lacerdistas da Aeronáutica rebelaram-se contra o governo
de Juscelino Kubitcheck. Eles seqüestraram um avião e fizeram pousos em Aragarças e
Jacareacanga, que eram postos avançados da Fundação Brasil Central, como era também
Vale dos Sonhos, estrada de ferro Madeira-Mamoré, Serra do Cachimbo, Ilha de Bananal,
onde havia um hotel administrado pela FBC e que, vez ou outra era ocupado pelo
Presidente da República, ou por personagens importantes da administração federal.
Era uma área de grande importância, pois a Fundação Brasil Central foi fundada
em 1944, na ocasião em que o General, depois Marechal Rondon comandou uma
expedição em direção ao oeste do País. Então, realmente, era um órgão muito importante
para o País, pois estava planejando o desenvolvimento de agrovilas, com a urbanização de
certas regiões, tendo por objetivo principal a ocupação e desenvolvimento de terras
devolutas do Brasil Central, porque eram regiões de florestas inóspitas, com
concentrações populares ínfimas e inexpressivas.
Memorial - Ela foi criada durante o Governo de Getúlio Vargas, se não estou
equivocada, sob inspiração da Expedição Roçador/Xingu.
Dr. Omar Ferri - Aconteceu que, na Fundação Brasil Central, só havia um
advogado, que se chamava Fuchsiter, que era um “lacerdista” de superdireita e já estava
fazendo, sorrateiramente, a campanha que todo o lacerdista fazia antes, contra o Getúlio
Vargas; depois, contra o João Goulart.
Pedro Tassis Gonçalves, vendo que estava rodeado por adversários – a rigor, por
inimigos – políticos, e falando com alguns políticos importantes do Rio Grande do Sul,
alguns Deputados Federais, lembrou-se de mim. Ele, então, pediu que um deles fizesse
um contato comigo para ver se eu aceitava sair de Encantado para ir para Brasília.
Obviamente, aceitei ser Procurador.
Memorial - O senhor foi Procurador da Fundação Brasil Central?
5 Dr. Omar Ferri - Sim, da Fundação Brasil Central. Fui para Brasília em 1962 e
fiquei lá até 1964, quando houve o golpe militar.
No dia 20-04-64, por ordem do Comando Revolucionário de Brasília, o
interventor federal da Fundação Brasil Central, que era um Coronel do Exército, Cel.
Bolívar Oscar Mascarenhas, baixou uma portaria que dizia mais ou menos o seguinte:
“Nomeado pelo Comando Revolucionário de Brasília e dando cumprimento ao que me
foi determinado, resolvo demitir, como, de fato, demito, o Bacharel Omar Ferri de suas
funções de Procurador da Fundação Brasil Central”. Fui, assim, expurgado e vim para
Porto Alegre.
Memorial - O senhor terminou o mandato em Encantado?
Dr. Omar Ferri - Como Vereador, não. Nos últimos cinco meses, fui chamado
para Brasília e renunciei. Um companheiro assumiu minha vaga. Não houve prejuízo, já
que ele era um ótimo cidadão, além de grande correligionário.
Entre dezembro de 1963 e janeiro de 1964, fui para Cuba como convidado
especial do governo cubano para as comemorações do quinto aniversário da revolução
socialista. Evidentemente que eu estava com essa marca, mesmo porque, chegando de lá,
dei duas entrevistas meio pesadas contra as forças conservadoras e até contra o próprio
Exército Brasileiro, chamado por mim de reacionário e contrário aos interesses do povo
brasileiro.
Memorial - Antes do golpe então?
Dr. Omar Ferri - Sim, dois meses antes. Eu era bastante ativo. Com o golpe a
situação complicou, a nossa turma estava se exilando em embaixadas, alguns estavam indo
para o Exterior. Fiquei com um pouco de medo, mas pensei que eu tinha pouca expressão
para que se preocupassem comigo. De qualquer maneira, voei para o Rio de Janeiro e
hospedei-me em um hotel de quinta categoria – Hotel Caju, a 200 metros do Palácio do
Catete, no qual consegui que não registrassem o meu nome.
Depois, fui para São Paulo, onde havia famílias que ficavam em quartos. Aluguei,
então, um quarto e fiquei dois meses em São Paulo. Nessa época, ouvi falar que um
Coronel esteve aqui no Rio Grande do Sul perguntando por mim, mas, como a minha avó
ficou muito mal, fui obrigado a vir de São Paulo para Porto Alegre.
Memorial - Em que época foi isso?
6 Dr. Omar Ferri - Por volta de julho de 1964.
Memorial - Com o regime militar já instituído?
Dr. Omar Ferri - Com o regime militar funcionando a todo o vapor vim para cá e
fui para Encantado no outro dia. A minha avó morreu no dia em que cheguei lá.
Naquele tempo, um Prefeito de Caxias viajou com Pedro Simon, que era
Deputado Estadual, para Brasília a fim de terem uma entrevista com o João Goulart. Ele
conseguiu 20 milhões de cruzeiros para construir casas populares em Caxias. O Simon,
que sempre foi um grande amigo meu, encarregou-me de pegar o cheque com o secretário
do Jango, cujo nome não lembro, e, mais ou menos um mês depois, recebi esse cheque de
20 milhões, nominal ao Prefeito de Caxias do Sul, e o entreguei para o Deputado Estadual
Osmani Veras, do PTB de Osório, tio do Romildo Bolzan. O Osmani entregou para o
Simon, que foi a Caxias e o entregou para o Prefeito. Este, evidentemente, construiu as
casas populares, de acordo com a verba recebida, mas eles queriam saber quem era o Ferri
e onde estavam os 20 milhões. Então, o Coronel veio para cá e se dirigiu ao Banco do
Brasil de Caxias do Sul.
Acontece que o advogado do Banco do Brasil de Caxias do Sul era um grande
amigo meu, Renan Falcão de Azevedo, um dos melhores advogados do Rio Grande do
Sul, um dos maiores civilistas do Estado, hoje falecido. Eu, que era suplente de Deputado,
voltei de Encantado e assumi na Assembléia Legislativa, porque cassaram seis ou sete
Deputados Estaduais para eleger o governador Walter Peracchi de Barcellos,
indiretamente, pela Assembléia Legislativa. O Coronel falou para o Renan Falcão de
Azevedo que estava me procurando. Ele abriu o jornal e mostrou que eu estava
assumindo na Assembléia Legislativa. O Coronel voltou para Brasília e nunca mais se
interessou por mim. Quer dizer, passei em brancas nuvens.
Mais tarde fui preso duas vezes: três dias pelo Exército, no Chuí, numa ocasião em
que eles descobriram que fui visitar o Leonel Brizola (eu era “pombo-correio”); e outra
vez por 24 horas, quando fui preso pelo DOPS. Na primeira ocasião, eles queriam que eu
afirmasse que tinha ido visitar o Brizola, que eu era um elemento perigoso. Respondi, em
primeiro lugar, que não tinha de dizer se tinha ou não ido visitar o Brizola, que eles é que
teriam de provar isso; em segundo lugar, perguntei se visitar o ex-Governador do Estado
tipificaria algum crime. Dessa maneira, fiquei discutindo com eles por três dias.
7 Um Procurador do Estado telefonou para o Cel. Cid, que comandava o
destacamento do Chuí. Ele era de Rio Grande e depois foi até Prefeito de Rio Grande.
Memorial - Cid Scaroni Vieira?
Dr. Omar Ferri - Exatamente. Então, o Procurador Nuno Carpena, que era de
Pelotas e, portanto, amigo dele, avisou o Coronel sobre a minha prisão e disse que meu
único crime foi ter ido visitar o Brizola. O Cel. Cid perguntou se havia mais alguma coisa
contra mim, e o Procurador respondeu que não. Depois disso, por ordem do Cel. Cid,
soltaram-me.
Vou dizer por que nunca fui preso: na verdade, o meu habeas corpus era enfrentar
aquelas pessoas respondendo a verdade na cara delas, e elas me respeitavam. Era incrível,
mas esse era o meu jeito de atuar. Por isso me respeitaram sempre. Depois, não me
incomodaram mais, ou melhor, incomodaram de outras maneiras: assustando-me,
fazendo-me ameaças de morte, dizendo que iriam matar a minha família. O DOPS fez
tudo isso na época do seqüestro de Lilian e Universindo e na época em que eu era, um dos
maiores defensores dos direitos humanos no Rio Grande do Sul, pelo que fui agraciado
com o Prêmio Direitos Humanos, com menção honrosa, pelo Centro Alceu Amoroso
Lima para a Liberdade, em 1987. O prêmio me foi entregue pelo Presidente da CNBB,
bispo Luciano Mendes de Almeida em solenidade patrocinada pela Universidade Cândido
Mendes, do Rio de Janeiro.
Depois de demitido da função pública mudei-me para Porto Alegre, onde montei
banca de advocacia, em 1964. Comecei a advogar, o que estou fazendo até hoje.
Memorial - Durante a Campanha da Legalidade o senhor não estava ainda em
Brasília?
Dr. Omar Ferri - Não, estava em Encantado.
Memorial - Como foi aquele momento, como o senhor assistiu aos
acontecimentos em 1961?
Dr. Omar Ferri - A minha atuação foi mínima no tempo da Campanha da
Legalidade. Eu era um dos personagens de alguma importância do PTB do Vale do
Taquari. Assinamos alguns documentos de solidariedade ao Leonel Brizola, colocando-
nos à sua disposição inclusive em caso de enfrentamento, estávamos prontos para lutar.
Evidentemente que nos pronunciávamos na rádio e também nas reuniões de Vereadores,
8 atacando os militares, chamando-os de “gorilas”, de golpistas. Aqui em Porto Alegre,
todos sabem, o centro de irradiação da resistência ao golpe foi o Palácio Piratini e o
microfone da Guaíba nas mãos do Brizola. Nós estávamos no interior, dando o apoio,
fazendo em menor proporção o que o Brizola fazia em Porto Alegre. Fizeram-se
movimentos em todo o Interior do Rio Grande do Sul com os companheiros: líderes do
PDT, políticos, Vereadores, Deputados. Assim, fizemos nosso movimento lá de
Encantado.
Memorial - O senhor militou no PTB, acompanhou-o desde a sua fundação?
Dr. Omar Ferri - Sempre, até que o extinguiram em 1966, quando, pelo Ato
Institucional nº 2, foram extintos os partidos.
Passei, então, para o MDB, depois para o PMDB. Fui eleito Vereador pelo PSB.
Depois retornei ao PDT do Brizola. Hoje o PDT é o PTB daquela época.
Memorial - O senhor também foi Vereador em Porto Alegre?
Dr. Omar Ferri - Sim, fui Vereador eleito pelo PSB e dele fui expulso sem que
me tivessem dado direito à defesa. São incríveis esses partidos que se dizem democratas e
só sabem praticar atos de cunho autoritário!
Naquela época, na Câmara de Vereadores, estávamos apreciando uma lei que tinha
por objetivo a instituição do “sábado inglês” no Município de Porto Alegre. “Sábado
inglês” significa fechar o comércio no dia de sábado. Como eu não tinha uma opinião
formada, pedi uma reunião do partido. Reunimo-nos no Diretório Regional do PSB.
Expliquei a minha situação, e eles me responderam que aquele assunto não envolvia
questionamento ideológico algum e que eu tinha plena liberdade de votar de acordo com a
minha consciência.
Respondi que era exatamente aquilo o que eu faria, que votaria pelo não-
fechamento do comércio aos sábados – nem se falava em fechamento aos domingos
ainda. Essa é uma velha luta, e há muita demagogia em torno dela.
Enfim, no dia da votação, recebi um telegrama quilométrico do presidente do
partido, que andava meio embriagado naquela época e que era um cidadão de muito mau
caráter, dizendo que, como presidente do partido, determinava que eu, como Vereador,
cumprisse o ordenamento do ideal socialista em defesa do trabalhador, em defesa disso e
daquilo, etc., determinando-me que eu votasse pelo fechamento do comércio aos sábados.
9 Eu não tinha visto esse telegrama, mas o meu assessor de imprensa o trouxe para
mim em plenário no momento em que o Lasier Martins estava me entrevistando. Ele o leu
na Rádio Gaúcha, que estava transmitindo naquele momento, e perguntou qual era a
minha posição face ao telegrama. Respondi que não admitia patrulhamento ideológico e
que votaria contra o projeto de lei, como já havia feito na semana anterior, pois se tratava
de uma renovação de votação.
Por isso, fui expulso do PSB. Fiz um recurso de 30 páginas.
A partir daquele momento – e eu nem tinha entrado no PSB –, já sabia que estava
sendo expurgado, porque o partido, na sua maior expressão, que era seu presidente, estava
temendo, não sei se a minha concorrência, mas sei que não gostava de mim. Isso ficou
muito claro.
O meu recurso foi aceito por unanimidade pelo Diretório Nacional. Anularam a
minha expulsão e pediram que eu fosse intimado para me defender. Quando vieram-me
intimar para a defesa, eu disse, brincando, que: “ninguém me expulsa de nenhum partido,
quem saía era eu”. Pedi demissão e, um ano depois, retornei ao meu antigo quadro
político, que é o PDT.
Memorial - O senhor chegou a ser Vereador pelo PDT?
Dr. Omar Ferri - Fui Vereador pelo PDT no fim. No último ano, e,
incrivelmente, elegeram-me líder do partido.
Memorial - Em que ano isso ocorreu?
Dr. Omar Ferri - Em 1993. Depois fui candidato à reeleição e, como não me
reelegi, retirei-me da política. Para mim, uma eleição não-vitoriosa já é um aviso de que
basta. Não concorro duas vezes à coisa alguma.
Memorial - Quando o senhor cursou a universidade, os diretórios acadêmicos
eram centros de efervescência política. O senhor fez militância universitária? O Pedro
Simon parece-me, também participou desses movimentos.
Dr. Omar Ferri - O Simon foi presidente e eu o secretário do Centro Acadêmico
Maurício Cardoso.
Memorial - E como era aquele momento?
Dr. Omar Ferri - Muito bom e muito diferente.
10 Memorial - O que era diferente?
Dr. Omar Ferri - Um pouco de tudo. O nível dos estudantes, o comportamento
deles, a maneira de se trajarem em geral. Era um centro acadêmico: limpo, bonito, com
livraria, mesas. Hoje está tudo atirado, tudo desordenado. Acredito que baixou o nível em
todos os sentidos, político, estudantil. Aliás, a UNE hoje nem existe mais. Hoje carecemos
de conscientização política, que naquela época existia.
Não que eu seja elitista, mas acho sempre que temos que salvar a moral, quer
dizer, temos que ter princípios éticos, objetivos sociais condizentes, dignidade.
Também fiz parte do secretariado do Diretório Central de Estudantes da PUC em
que sistema de administração era parlamentarista.
Memorial - Era parlamentarista na escolha?
Dr. Omar Ferri - Na administração, na escolha, em tudo. O Romildo Bolzan era
o presidente, e tinha chefiado o secretariado. Era uma beleza aquele sistema
parlamentarista. Eu sou parlamentarista. Isso aconteceu também na UEE, com o Flávio
Tavares e o Lauro Hagemann, e fiz parte dessa diretoria.
Memorial - Então, o senhor fez parte de três diretorias estudantis?
Dr. Omar Ferri - Sim, do Centro Acadêmico Maurício Cardoso, com o Pedro
Simon; do Diretório Central de Estudantes da PUC, com o Romildo Bolzan e da UEE,
União Estadual de Estudantes, no tempo do Flávio Tavares e do Lauro Hagemann.
Memorial - Os estudantes da época faziam política, tinham partidos políticos?
Dr. Omar Ferri - Sim, fazíamos política partidária, numa posição, digamos, de
esquerda desenvolvimentista, progressista. Nossos parâmetros eram o Governo do João
Goulart, do Getúlio Vargas, do Juscelino Kubitschek. Essa era a nossa linha. O PSD
nacional entendia-se muito bem com o PTB; o PSD do Rio Grande do Sul, não.
Era uma época muito boa. Nunca me esquecerei de que a conscientização popular
era fantástica, muito diferente de hoje. Nós perdemos a referência e os parâmetros da
conscientização política do povo. A pessoa do Interior de Ilópolis, por exemplo, ouvia o
rádio, posicionava-se, tinha o partido, sabia por que estava nele e não se vendia a troco de
nada. Hoje o voto ficou abastardado, ele é mais comprado do que conseguido. O
parâmetro do voto é o interesse ou a fisiologia.
11 Memorial - Na sua opinião, por que isso aconteceu?
Dr. Omar Ferri - Há uma série de fatores. Isso é muito importante e deveria ser
analisado por quem entende de sociologia política. Em primeiro lugar, penso que o golpe
militar de 1964 entronizou neste País uma espécie de obscurantismo medieval cultural.
Em segundo lugar, como decorrência do golpe, houve muito medo do povo, em geral,
para fazer manifestações. Tenho a impressão de que houve a imposição de novos dogmas,
de nova filosofia, tudo se modificou. Perdemos a linha nacionalista, a luta pelo
patriotismo, pelas reformas de base. Esse era o nosso patrimônio, o nosso ideal daquela
época. Perderam-se essas referências todas. E o homem, perdendo isso, perde também a
posição política.
Parece-me que é assim. Hoje, é vergonhosa a situação político-cultural das
pessoas que vivem na pobreza, nas periferias das cidades e na colônia também. Não existe
mais referência alguma. Existem interesses, e apenas isso. Antes se votava por um ideal,
por um objetivo, por uma conquista social; agora é por interesse e nada mais, tanto que se
elegem hoje aqueles que mais aplicam o dinheiro na campanha política, os que mais
compram cabos eleitorais e os que mais fundam comitês. Quanto mais comitês eleitorais
fundar e quanto mais cabos eleitorais pagar, mais votos o candidato fará. Quanto mais
demagogo, mentiroso e hipócrita for o candidato, maior será a sua votação.
Há indivíduos que estão na política há dezenas de anos. Muitos, penso, até
roubando sempre, como é o caso do Paulo Maluf, do “filhote dele”, o Celso Pitta, do
Jader Barbalho ex-governador do Pará. São ladrões famosos, há muito tempo e ainda
continuam fazendo política, infelizmente.
Memorial - Isso é um problema que acarreta na preservação do processo
democrático, pois o povo também começa a ficar descrente nas mudanças.
Dr. Omar Ferri - Certa vez, o Pelé disse uma frase que muita gente criticou: “o
povo brasileiro não sabe votar”. E não sabe mesmo! Tenho para mim que ele tem razão
em parte. O povo brasileiro perdeu referências, perdeu as ligações mais puras com o
partido. Acho que, naquela época, a pessoa entrava para um partido porque via nele a
expressão do seu ideal, do seu pensamento, da sua luta política. Em qualquer canto de
município, naquela época, havia gente do PSD, do PTB, da UDN. Embora existissem
12 conflitos, que eram salutares, no sentido de que eles marcavam o nicho de cada eleitor.
Hoje não existe mais isso.
Sinto isso porque vivi aquela época. O Brasil, de 1946 a 1964, foi um dos países
mais ricos do mundo, mais tranqüilo, mais feliz, mais democrático. Foi um período
fantástico. Só quem viveu naquela época é que pode sentir isso. Só quem viveu e teve
consciência política é que pode avaliar o que foi o Brasil de 1946 a 1964. Foi um País
espetacular!
Aqui em Porto Alegre havia uma ou duas favelas. Hoje deve haver em torno de
700 vilas. Quase não existia miséria. Em Encantado, havia duas ou três famílias pobres
que moravam na beira do rio. Hoje, há um cinturão de miséria em todas as grandes
cidades do Rio Grande do Sul.
Nós ficamos miseráveis, sofremos pela vida de todos os jeitos, passamos fome,
não temos acesso à educação, a hospitais, à sanidade social, vivemos ao lado de arroios
podres, numa miscigenação de miséria e doenças que não existia no Brasil de 40 ou 50
anos atrás. Havia apenas em alguns locais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Quando eu
morava no Rio, íamos a qualquer lugar sem problemas. Havia o Mangue, a zona da
prostituição, e só. Podia-se passear no Centro da cidade, na Zona Norte, em Ipanema, em
qualquer lugar, assim como em São Paulo, e não havia assaltos. O Brasil mudou, piorou.
Não sei como vai terminar. Não vejo luz no fim do túnel. Sou pessimista, só vejo que as
coisas estão piorando cada vez mais.
Ninguém está tendo a noção do que está acontecendo hoje no Rio de Janeiro. A
violência, a miséria e o crime organizado já estão imbatíveis. Nem dentro das prisões o
Governo consegue ter controle, e isso é um mau sinal. Aquela violência que existia no Rio
há 20 anos, contra o que lutávamos para que não existisse no Rio Grande do Sul, já está
começando a aparecer por aqui.
Em Ilópolis, há poucos dias, um cidadão com sobrenome italiano e outro de
origem alemã operário da Prefeitura de Putinga, reuniram-se numa gangue para seqüestrar
uma dentista. Isso não existia, não se podia imaginar que gente nativa daquela região fosse
preparar um seqüestro. Não havia nem como conceber isso, não passava pela cabeça de
ninguém.
13 No entanto, em Ilópolis, já houve dois assaltos a estabelecimentos bancários; em
Anta Gorda, também; em Putinga, mataram o sogro e a sogra do Prefeito Mário Seixas há
cerca de 10 ou 12 anos. Ele hoje é médico e reside em Santa Maria. Na casa da minha avó,
não havia chave na porta. Largávamos as roupas em um fio no meio de uma rua pela qual
não transitavam carros naquela época, só havia aquele caminho feito pelas carretas que
iam para a roça, com grama de um lado e de outro, onde fazíamos um campinho de
futebol. Minha avó estendia as roupas, camisas, cuecas, calças, lençóis, toalhas, tudo, e
ficavam lá a noite toda sem que ninguém as roubasse. Hoje você não deixa nem cinco
minutos, e qualquer coisa desaparece.
Em Encantado, há cerca de dois anos, dois homens entraram na casa do meu tio,
às 3h da manhã, e colocaram a navalha no seu pescoço e no da minha tia. Levaram em
torno de mil dólares e mais algum dinheiro. Já fazem esse tipo de assalto em cidades
pequenas como Encantado. Não sei onde vamos parar.
Memorial - Como o senhor, que militou na resistência à ditadura, interpreta a
necessidade de encontrarmos respostas institucionais eficazes dentro do quadro
democrático de direito? Se estas respostas não vierem não será pior o risco de um
retrocesso conservador?
Dr. Omar Ferri - Muito pior. Acho que, depois disso, não há mais direita nem
esquerda, é anarquia mesmo, é o caos, tipo Colômbia. Ninguém é dono de nada. O crime
manda. É o caso do Cendero Luminoso, daqueles grupos ligados ao terrorismo ou à
revolução social, como alguns dizem. Só que, para mim, essa época passou. Não há por
quê fazer uma revolução social. Para instaurar o quê? Um regime socialista que já faliu em
todas as partes do mundo? Temos que domar o sistema capitalista. Esse é o mal, mas é ele
que deve permanecer. Não adianta querer viver numa utopia irrealizável.
Memorial - O senhor chegou a ser cassado na Assembléia Legislativa?
Dr. Omar Ferri - Não, só na função pública, na Fundação Brasil Central. Fui
expurgado, e não cassado. Fui demitido por ordem do Comando Revolucionário de
Brasília. Mas, na Assembléia Legislativa não assumi em caráter definitivo. Fiquei próximo,
porque era suplente e, de vez em quando, eu assumia.
Memorial - Sim, entendi, o senhor ficou suplente da bancada e, quando alguém
saía, o senhor assumia.
14 Dr. Omar Ferri - Exatamente.
Memorial - Dr. Omar, e a carreira do Direito?
Dr. Omar Ferri - Vim para Porto Alegre em 1964 com uma “mão na frente e
outra atrás”, como popularmente se diz. Desempregado, com mulher, três filhos,
empregada e aluguel para pagar. Comecei a trabalhar com dois colegas, o Jaime Paz e a
Cléa Carpis, que depois foi Presidente da OAB-RS, no escritório deles, de favor. Fui
melhorando e, após dois ou três anos, aluguei um escritório no Edifício Comendador
Azevedo, no 13º andar, onde fiquei até 1993 ou 1994. O escritório permaneceu neste
endereço por mais de 20 anos.
Em Encantado, advogava muito no Crime e fazia muitos inventários. O meu
sustento era basicamente retirado do trabalho que exercia em Encantado. Modéstia à
parte, eu era considerado um dos melhores advogados de Encantado na época. Éramos
dois, a rigor, bons advogados.
Aqui em Porto Alegre, comecei a trabalhar muito no direito do trabalho, no
direito criminal, depois no direito civil e administrativo. Aos poucos, fui me afastando do
direito trabalhista e fiquei com o direito criminal, direito civil e direito de família.
Ultimamente, estou praticamente aposentado. Não quero mais trabalhar, mas tenho ações
que tenho que levar até o fim. Estou me dedicando mais a ações cíveis, de família e uma
ou outra ação penal.
Houve, entretanto, muitas ações de repercussão. Eu fazia muito Júri. Com o Pedro
Simon, fiz uns dois ou três.
Memorial - O senhor lembra de algum em especial?
Dr. Omar Ferri - Um dos mais falados na época em Porto Alegre foi o “Crime
do Disco”. Ele era gerente de um banco. A esposa comprou o disco Dominique, quando
foram ouvir começaram a discutir. A mulher pegou o revólver e matou o marido pelas
costas. Foi um crime muito comentado, estampado nas paginas dos jornais todos os dias,
principalmente, porque, um ano ou dois anos antes, uma mulher, Nina Gualdi matou um
Promotor Público, marido dela, e ela ia prestar solidariedade a essa outra senhora.
Memorial - A Nina Gualdi era esposa de um Promotor?
Dr. Omar Ferri - Exatamente. Matou-o. O Simon e eu defendemos essa segunda
mulher. Não tinha defesa – matou pelas costas –, mas lutamos para diminuir a pena de
15 todas as formas: violenta emoção, muita briga entre o casal, aquelas coisas todas. No fim,
ela foi condenada a cinco ou seis anos, não recordo, consegui diminuição da pena. Foi um
bom Júri. Naquela época, os jornais interessavam-se pelos Júris, agora não, mudou tudo.
O Júri é um processo enganador. No Júri, o advogado quer ser vitorioso, custe o
que custar. Essa é a lei, e a justiça que vá às favas. Eu não achava isso correto, não sou
favorável ao Júri porque, nele, o que menos interessa para o advogado é a causa, por isso
que me decepcionei, pois o importante é fazer justiça. Dizem que é a maneira mais
democrática de fazer justiça, porque há a participação do povo. Só que os jurados estão
sujeitos a uma série de condicionamentos e injunções, e o que menos se faz é justiça. Essa
minha opinião possivelmente será contraditada pela maioria dos advogados que atuam na
faixa do Direito Criminal, mas essa é a impressão que tenho depois de largos anos e de
algumas dezenas de Júris que fiz em Guaporé, Encantado, Roca Sales, Porto Alegre, São
Leopoldo, Canoas, São Lourenço, Paraná, entre outros.
Defendi um médico no Paraná. Foi um fato muito bizarro. O médico era sócio de
uma plantação de soja. A sociedade, não deu certo. Ficaram devendo para alguém, e esse
alguém contratou duas pessoas para matarem o sócio do médico. Eles mataram e, por
coincidência, os criminosos voltaram para a cidade de Cascavel e foram vistos sentados
num banco defronte ao hospital do qual o médico era o dono. Não me lembro bem o que
é que houve, mas acusaram o médico de ser o mandante do crime, porque, por problemas
da lavoura, médico, e vítima tinham brigado. O médico me contratou e disse que não
havia matado o sócio, mas havia uma testemunha contra ele, que precisava ser vencida.
Enfim, ele era acusado como mandante do crime, mas não havia uma prova direta.
Destaquei-me bem, e ganhei o Júri por sete a zero. Uns dois ou três anos depois,
encontro-me com o médico em Porto Alegre e ele disse: “lembra-se daquele cara que foi
testemunha falsa contra mim? Aquele eu mandei matar”. No Paraná, é assim! Lá como no
Mato Grosso tudo é incrível.
Também atuei na defesa de um rapaz, filho de um empresário em Cuiabá, que
tinha sido denunciado pelo Promotor pelo fato de ter levado uma arma para um sobrinho
de um Senador e um ex-Governador do Mato Grosso, de uma família das mais poderosas,
os Campos. Aconteceu que dois carros colidiram numa esquina, e houve uma briga. Um
dos motoristas, pobre coitado, estava num Volkswagen, bastante usado, com o filho de 9
16 ou 10 anos, e o outro, com um carro, último modelo, conversível. Eles tinham sido
aprovados no vestibular e fizeram uma festa, uma feijoada, em Cuiabá, para a qual foi
convidada a Monique Evans para enfeitar o ambiente. Eles tomaram muita caipirinha e
posteriormente saíram com o carro Mitsubishi Eclipse, vermelho para ir a um
determinado local em Cuiabá. Numa esquina houve a colisão, coisa de pouca repercussão,
pouco dano. O sobrinho do Senador pegou o celular e telefonou para o irmão, que tinha
16 anos, e pediu que trouxesse o revólver. O irmão dele foi lá entregou o revólver e ele
matou o cara na frente do filho. O meu cliente, o rapaz que tinha passado no vestibular
com ele, foi denunciado também, porque uma testemunha viu eles chegarem juntos de
moto. O carro era desse meu cliente, que o emprestou ao acusado. Ele, o meu cliente. Ele
chegou de moto no local do acidente e alguém disse que ele havia entregado a arma,
quando, na realidade, foi o irmão do assassino.
Memorial - O próprio irmão do assassino?
Dr. Omar Ferri - O próprio irmão levou a arma. Fizemos reuniões em Porto
Alegre, fizemos reuniões em Cuiabá. Eles queriam tirar fora esse rapaz de 16 anos. O
advogado de Cuiabá dizia que conseguia tudo, inclusive engavetar. Como é que se vai
engavetar um processo de homicídio? Eu não concordo com tal estratagema.
Então, orientei o meu cliente para que dissesse o que havia acontecido, o que era
fácil de provar. A família Campos, que era poderosa, pressionou a mãe dele, e cinco
minutos antes do interrogatório ela chegou no fórum e disse: “Dr. Omar, eu assumo toda
a responsabilidade. O meu filho não vai dizer que foi o irmão dele que trouxe o revólver,
senão eles me destroem economicamente”. Respondi que iria fazer o interrogatório
naquele dia, mas que depois ela deveria procurar outro advogado.
Isso realmente aconteceu. No ano passado, em Santa Catarina, na cidade de
Garopaba fui procurado pela família. Tinham matado o pai dele. “Empresário gaúcho
morto, assassinato na pousada de sua propriedade em Florianópolis”. Saiu nos jornais de
Porto Alegre.
Memorial - E era o mesmo?
Dr. Omar Ferri - Era o pai do meu cliente. A mãe depois me disse que tiveram
que pegar um outro advogado, mas que tudo aquilo que eu tinha dito aconteceu. Não
engavetaram o processo de homicídio, e já estava na fase do despacho de pronúncia, em
17 que o Juiz manda os réus para o Júri. Eles queriam contratar-me para ser advogado deles
de novo, mas eu não quis.
Memorial - E quando é que foi esse caso?
Dr. Omar Ferri - Faz uns 4 ou 5 anos. É recente. De tal maneira que você vê
como é que está a Justiça neste País. É pressão de um lado, pressão do outro.
Memorial - Dr. Omar, o senhor chegou a se inscrever para um concurso do
Ministério Público, não é?
Dr. Omar Ferri - Essa história é muito boa. Inscrevi-me no concurso para
Promotor Público. Naquele tempo, o art. 529 do Código de Organização Judiciária, no
capítulo do Ministério Público, dispunha que o Conselho Superior do Ministério Público
poderia recusar a inscrição imotivadamente, sem precisar justificar, atendendo as
qualidades morais e à vista dos documentos apresentados. Isso significava o seguinte: um
candidato com antecedentes criminais inscrevia-se e eles, consultando a sua folha-corrida,
o recusavam imotivadamente. Esse era o objetivo. Só que o meu era político. Recusaram a
minha inscrição, e eu não fiquei sabendo.
Memorial - Dr. Omar, em que ano ocorreu este fato? Foi durante o regime
militar?
Dr. Omar Ferri - Sim, ainda no regime militar, logo depois de 1964, quando
comecei a residir e advogar em Porto Alegre.
Eu tinha desistido do concurso, porque já estava indo bem profissionalmente e
não queria mais ir para o Interior. Pois me mandariam para Erechim, depois para São
Borja, depois para Torres, para só depois de uns 15 anos retornar para Porto Alegre. Isso
mexeria com a estrutura da minha família. Falei com a minha mulher que com o que eu
ganhava dava para sobreviver, e decidimos que eu não faria o concurso.
O Dante, Promotor de Justiça, era o secretário do concurso. Não me lembro do
sobrenome dele, mas era casado com a Nair Bergamaschi, tia do Décio Freitas. Agora
lembro seu nome, Dante Gabriel Guimarães. Naquela época, íamos, todo sábado e
domingo, para a Rua da Praia, na frente do Rian e no Largo dos Medeiros. Lá
encontrávamos todo mundo, Deputados, Senadores, políticos, doutores. Eram as reuniões
dos domingos de manhã. Era uma beleza! Encontrei-me com o Dante e ele disse: “como
é, Ferri, tudo bem?” Eu disse-lhe: “vou desistir do concurso”.“Então, vamos lá, faz o
18 requerimento de desistência”. Depois liguei os fatos. Fui, num sábado de manhã, no
Ministério Público, onde era o Colégio Júlio de Castilhos, e agora o Arquivo Público, e
efetivei a desistência.
Dias depois encontrei o Ney Faiet e um outro inscrito de nome Solon, de Santa
Maria, cujas inscrições haviam sido, também, impugnadas. Eles me convenceram a
recorrer. Desisti da desistência e recorri. O recurso deles foi aceito; o meu não. Eu era um
político muito comprometido contra o golpe militar, contra o Governo Meneghetti. Nos
meus discursos eu criticava fortemente o governo.
Recorri da recusa da minha inscrição e abordei, dentre outras coisas, razões de
ordem legal. Naquele tempo, o artigo 529 era acionado para evitar que mulheres fizessem
concurso para Juiz de Direito e Promotor Público.
Memorial - O seu caso enquadrou-se nesse artigo, que foi criado exatamente para
impedir as mulheres?
Dr. Omar Ferri - Exatamente. Ninguém podia discutir sobre os documentos
apresentados e as qualidades morais. Resolvi abordar isso. Pedi direito à sustentação oral.
Negaram o direito à sustentação oral, como também ao recurso. Impetrei um mandado de
segurança redigido por quem fez a lei: Floriano Maia D’Ávila, que havia sido Procurador-
Geral de Justiça do Estado. Surpreendentemente! Perdi por 21 a 0 no nosso Excelso e
Egrégio Tribunal. Claro, perdi pelas minhas convicções políticas e pela própria atmosfera
política da época.
Briguei muito com o Ministério Público. Numa ocasião, as violências e as
arbitrariedades da Polícia do Rio Grande do Sul eram fantásticas, e o Ministério Público
encolheu-se de tal forma que foi até um escândalo. O mundo estava caindo, aconteciam
violências, arbitrariedades, lesões aos direitos humanos. Num belo dia, o Procurador-
Geral de Justiça baixou uma portaria dizendo que, nas regiões de plantação de laranja, eles
deveriam estar preparados para auxiliar as comunidades no combate ao cancro cítrico.
Denunciei a Instituição, desinteressada pelas funções para as quais fora criada para se
envolver no combate ao cancro cítrico. Devo ter ainda qualquer coisa sobre isso, muita
coisa desapareceu, outras coisas expurguei.
Memorial - Dr. Omar, isso foi nos anos 70?
19 Dr. Omar Ferri - Nos anos 70, fim da década de 60, nesse tempo da ditadura
militar. Foram os Juízes os primeiros a resistir. Talvez, o primeiro Juiz que deu uma
sentença corajosa contra os abusos do governo chamava-se Dr. Ruy Rubem Ruschel. Foi
uma sentença tão corajosa – ele era Juiz de uma Vara da Fazenda Pública – que o Décio
Freitas e eu fomos cumprimentá-lo. Estávamos em evidência na época. Eu defendendo
Lilian Celiberti e Universindo Dias, e juntamente com o Décio, defendendo a Flávia
Schilling. Foram duas campanhas memoráveis.
Memorial - O senhor advogou em importantes processos, como o caso de Lilian
e Universindo. Dá para contar como esse processo chegou até o senhor?
Dr. Omar Ferri - Isso está dito no meu livro, mas nele existe uma inverdade. Fiz
isso para preservar o nome da pessoa que me telefonou, que vou revelar agora. Recebi um
telefonema, conforme o primeiro capítulo do meu livro, do Luís Eduardo Greenhalgh,
hoje Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, Deputado Federal
do PT. Ele era membro do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do
Cone Sul, entidade vinculada à Arquidiocese de São Paulo e conhecida pela sigla
CLAMOR.
Na realidade, ele não me telefonou, mas combinamos que o nome dele deveria
surgir, porque a pessoa que me ligou não queria aparecer. Ela era muito ligada ao grupo
CLAMOR (Comitê de Defesa dos Direitos Humanos ligada à Diocese de São Paulo), mas
era também a correspondente da BBC de Londres e não queria que a emissora ficasse
sabendo que estava envolvida em problemas políticos de defesa de direitos humanos no
País. Ela estava aqui para ser jornalista, e não para participar como ativista. Efetivamente,
ela participava como ativista. Seu nome era Jan Deirdre Rocha, Rocha porque ela casou
com um advogado de São Paulo, Plauto Rocha, um velho amigo meu. Então,
encontramos o nome do Luís Eduardo Greenhalgh, que se prestou para isso com muita
galhardia e coragem.
O que me estavam informando esses telefonemas de São Paulo? Que morava, na
Rua Botafogo, aqui em Porto Alegre, um casal, Lilian Celiberti e Universindo Dias. Ela
tinha dois filhos, e eles tinham desaparecido fazia quatro ou cinco dias. Os companheiros
(exilados uruguaios) de São Paulo não conseguiam comunicar-se com o casal. Como isso
nunca tinha acontecido, estavam muito preocupados. Isso foi numa quarta ou quinta-feira.
20 Na sexta-feira, fiz um Júri, eu era advogado de um Oficial de Justiça chamado Delaro
Severino, que, por uma dessas coincidências inexplicáveis, quase surrealistas, era irmão de
Elenira Faustina Severino, funcionária do DOPS, que o DOPS matou para evitar que ela
fosse ouvida na Comissão de Inquérito instaurada na Assembléia Legislativa do Rio
Grande do Sul. Ele havia matado a amante com um disparo e depois se jogou do alto do
Morro da Polícia com o carro, que ficou preso a uma árvore, e ele se salvou.
Quando terminou o Júri, a sala ficou cheia de jornalistas. Eu conhecia alguns: “o
que vocês querem aqui? O réu foi condenado a cinco anos de cadeia, decisão do Júri.
Estou contente com a decisão, diminuí até onde foi possível”. Nada tenho a acrescentar.
Eles disseram: “queremos saber sobre isto aqui”. Eles tinham um bilhete meu. Quando eu
recebi aquele telefonema de São Paulo, saí do escritório um dia antes do Júri, passei pelo
apartamento, não encontrei o casal e deixei um bilhete embaixo da porta: “Lilian, me
chamo Omar Ferri, moro em tal lugar, o meu telefone do escritório, e o telefone de casa.
Preciso entrar em contato urgente com vocês. Por favor, me liguem”. É claro que eles
nunca me ligaram!
Então fiquei sabendo que dois jornalistas também tinham ido ao apartamento e
encontrado lá dentro o Pedro Seelig com o Didi Pedalada e outros policiais, mas eles não
sabiam quem eram. Os policiais praticamente prenderam os dois jornalistas, revistaram e
quando souberam que eram jornalistas disseram: “aqui nós estamos tratando de coisas de
subversão. Vão embora! Não queremos ver vocês!” Liberaram os jornalistas, que
amedrontados foram embora. Eles me disseram então que, possivelmente, tinha ocorrido
um seqüestro e pediram minha opinião.
No contato com São Paulo, fui informado desse tipo de “desaparecimento”. Eles
diziam que isso acontecia no Uruguai, na Argentina, no Paraguai. Possivelmente, as forças
repressivas do Cone Sul, como tantas vezes aconteceu, tenham vindo aqui e seqüestrado o
casal e seus filhos. E toda a história encaixou-se de tal forma, pela pesquisa que fiz
naqueles dois ou três dias, que denunciei que tinha havido um seqüestro e que as polícias
políticas do Cone Sul eram as responsáveis. E acertei na mosca!
Tenho convicção que salvei o casal da condição de desaparecimento perpétuo.
Memorial - E descobriu a Operação Condor.
21 Dr. Omar Ferri - Era o início da Operação Condor, pelo menos com relação ao
Brasil. Isso estourou na imprensa de todo o Brasil, e a Polícia começou a negar: “não é
verdade, não temos nada a ver com isso”.
Dois episódios me deram certeza do seqüestro e de seis outros. Primeiro, parei
para pensar no que eu deveria fazer, porque, logo depois, à mãe da Lílian me passou uma
procuração. Representei em nome do casal no DOPS, na Polícia Federal. Eu solicitava
oficialmente a investigação policial em relação ao “desaparecimento”. Estava fazendo o
que era possível, estava sozinho no caso. Resolvi enfrentar os homens no DOPS. Fui lá
com o requerimento embaixo do braço para falar com o seu Diretor, que se chamava
Leônidas Reis. Sentei na sala de espera e fiquei aguardando. De repente, entram dois
cidadãos que eu conhecia. Um era o ex-Prefeito de Uruguaiana, Chiarello, e outro era o
Agamenon Wladimir Silva, que era assessor do MDB na Assembléia Legislativa, estavam
no DOPS para buscar declarações de que não havia nada contra eles lá. A época quem
pretendia emprego público tinha de conseguir um documento no DOPS, uma espécie de
salvo-conduto para possibilitar a nomeação.
Memorial - Ficha corrida do DOPS.
Dr. Omar Ferri - Isso. O Chiarello foi lá e o Wladimir acompanhou o ex-Prefeito.
O Wladimir era um amigo fraternal, desde dos tempos de Deputado Estadual.
De repente, chegou o Marco Aurélio e disse: “O senhor é o Dr. Ferri?” “Sou. O
que o senhor deseja?” Disse para ele o que desejava. Expliquei que o casal havia
desaparecido, que eu estava lá com uma representação. “Podes me dar à representação um
momentinho? Depois tu protocolas!” Entreguei-lhe a petição, e ele atendeu o Agamenon
e o Chiarello. Antes de os dois saírem, ele chegou para mim e disse: “telefonei para a
Polícia Federal. A Polícia Federal não tem conhecimento de nada. Nós não temos nada
registrado. Para nós, isso é um mistério tanto quanto é para você. Não temos nada com
isso”. “Não, mas eu insisto em deixar aqui esse pedido de providências, porque o casal
está desaparecido.” “Isso você tem direito!” Então, protocolei tudo direitinho.
Fiquei lá fora e esperei a saída do Agamenon. “Agamenon, só vou te fazer uma
pergunta: tu ficaste o tempo todo com o Leônidas?” “Fiquei”. “Ele deu algum
telefonema?” “Não deu nenhum.” “Nem para a Polícia Federal?” “Não deu nenhum.”
Conclui que o Diretor do DOPS mentiu. Então, comecei a pisar em terreno firme.
22 No mesmo dia, a tarde fui para a Polícia Federal. Protocolei a mesma
representação, exigindo providências, porque eram estrangeiros, e a Polícia Federal tem de
responder pelos estrangeiros. Percebi que os policiais se atrapalharam, eles estavam
nervosos. Contudo, havia lá um Delegado amigo meu, que ao passar por mim e disse em
voz alta: “só pode ser coisa do Pedrão”. O Pedrão era o Pedro Seelig. E eu arquivei na
memória essas coisas todas, elas não aconteceram por acaso.
Concomitantemente, o DOPS pegou a Lilian, que tinha, calçados italianos
maravilhosos, uma roupa bonita, e se apropriou de tudo. Junto havia uma caderneta de
endereços dela. E o Seelig, do gabinete dele, obrigou a Lilian a telefonar a Paris para saber
quando eles viriam fazer reunião no Brasil. Eles queriam prender os outros, porque o
Universindo já estava preso no Uruguai. Era uma armadilha para pegar o restante do PVP,
Partido por la Vitória del Pueblo. E a Lilian fez questão de dizer que ia haver essa reunião,
porque era a única maneira dela cair fora do Uruguai e não ser morta, não ser assassinada.
O plano era matar, mas foi estratégia dela, ela voltou. O Seelig telefona para Paris e fala
com o Prieto. Escrevi esses fatos no último capítulo do meu livro, sob o título: “Operação
Zapato Roto”. E ele obriga Lílian a falar com o Gordo. Ela falou de forma estranha,
perguntando por que eles não tinham vindo. Ele, sabendo que eles vieram e falaram com
ela, desconfiou. No que ela termina de falar, o Prieto pega o telefone e liga para Milão, fala
com a Mirta, que liga para o Uruguai e comunica à mãe. A mãe dela embarca em um
ônibus, vem para Porto Alegre e diz para o chofer de praça: “quero ir para este jornal”.
Era à Zero Hora. Quando chega na Zero Hora é atendida pelo Mílton Galdino, que,
sendo meu amigo, sabia que eu estava completamente envolvido com esse “affair” e
telefonou para o meu escritório. Fui à Zero Hora.
Na Zero Hora, ela dá uma entrevista, que repercutiu em todo Brasil. Ela disse
chorando: “entreguem, pelo menos, os meus netos!” A súplica dolorosa foi publicada em
tudo quanto foi jornal brasileiro. Aí começamos a desmontar o negócio, porque tínhamos
certeza do que tinha acontecido.
O telefonema do Seelig tinha desmoronado a estratégia policial e serviu para que o
Juiz Mario Rocha Lopes viesse a condená-lo. Foi um voto corajoso, contra dois
Desembargadores que o absolviam.
23 Agora, vem a parte final disso tudo. Eu tinha sido advogado do Delaro Severino
naquele Júri. A Faustina Elenira Severino telefona para minha casa e não diz quem é, mais
tarde tivemos certeza que havia sido ela. A minha filha atende ao telefone, e ela diz: “devo
favores ao Dr. Ferri”. Ninguém me devia favores, a não ser ela, porque era irmã do
Delaro. Fiz o Júri a pedido dos Oficiais de Justiça e não cobrei nada dele. Tenho uma
placa de agradecimento dos Oficiais de Justiça por causa daquele Júri.
A Faustina disse: “devo favores ao Dr. Ferri”. Diz para ele agir rapidamente,
porque o objetivo é matar o casal e entregar as crianças para famílias de militares
Uruguaios”. Eles faziam isto na Argentina também: eliminavam os pais, e as crianças eram
entregues aos militares.
Então convoquei uma coletiva de imprensa. Telefonei para os jornais. Todos
compareceram, inclusive as televisões. Então claramente denunciei a polícia política do
Rio Grande do Sul (Departamento de Ordem Política e Social – DOPS), como
responsável pelo seqüestro, a pedido da Companhia da Contra-Informações do Exército
Uruguaio. Por sua vez acusei os militares uruguaios de ter invadido o território brasileiro,
para que, numa operação conjunta praticarem o hediondo crime de seqüestro. A seguir,
com o Jair Krischke, o Agustino Veit, o Desembargador aposentado Celso Franco Gaiger
e o Padre Jesuíta Albano Trinks e outros fundamos o Movimento de Justiça e Direitos
Humanos. Por causa da invasão dos esbirros da ditadura Uruguaia, a Seccional do Rio
Grande do Sul da OAB me prestou solidariedade, o mesmo tendo acontecido com a
Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. O que sucedeu foi uma verdadeira
explosão. O seqüestro ecoava em todo o Brasil. Aí então começou a verdadeira luta,
política, jurídica e parlamentar. Infelizmente, apenas um réu foi condenado o Didi
Pedalada. Quanto aos outros, a Justiça que responda, somente ela poderá dizer porquê da
absolvição do Seelig e seus companheiros.
De qualquer maneira um fato espantoso repercutia em todo o Cone Sul da
América Latina. Ficava provado consumativamente, por sentença transitada em julgado,
que as polícias políticas do Cone Sul se entendiam, se mancomunavam na promoção de
ações de seqüestros. E esse fato inusitado a Nação deve a Juizes do porte de Moacir
Danilo Rodrigues, Carlos Mangabeira e o Desembargador Mário Rocha Lopes, que
proferiu o voto vencido que condenou Pedro Carlos Seelig.
24 Mais tarde, o Ministério das Relações Exteriores admitiu que a polícia brasileira
agiu com torpeza, todavia não tendo ficado comprovado que os agentes estrangeiros
participaram da operação, o Ministério das Relações Exteriores dava o caso por encerrado.
A verdade é que eles queriam vir aqui seqüestrar, mas um Coronel disse que não poderia
ser assim, que existia autoridade no Brasil. Eles então se acertaram com o Coronel
Rohrzetzer, que pediu o concurso do DOPS. O DOPS seqüestrou o casal e os filhos e os
entregou aos uruguaios, senão caracterizaria violação de nossas fronteiras, agressão à
nossa soberania, iria criar um problema internacional entre o Brasil e o Uruguai. Foi o
momento em que entrou o DOPS. Quem prendeu a Lilian, na rodoviária, às 9h da manhã
de um domingo, 12 de outubro, foi o Seelig.
Memorial - O senhor acredita que outros casos, além do da Lilian, ocorreram da
mesma forma, quer dizer, outras pessoas foram retiradas do Rio Grande do Sul desse
modo?
Dr. Omar Ferri - Sim, ouvíamos falar que era muito comum, na Fronteira, as
Polícias se aliarem. Quando um cidadão que a Polícia procurava do outro lado vinha para
cá, a Polícia pegava e entregava, sem o atendimento das formalidades legais. Recebemos
muitas denúncias. É que a prova desses fatos era muito precária, não havia como provar.
Todo mundo sabia, mas como provar?
Agora, com relação ao Uruguai, Argentina e Paraguai, eram dezenas de casos. Com
relação à Argentina, foram casos famosíssimos. O Deputado Federal Gutierrez Ruiz, e o
Senador Zelmar Micheline, foram assassinados. Os argentinos os prenderam, os uruguaios
foram buscá-los em Buenos Aires e os mataram. Foram dezenas de casos. Tanto que o
Senador Aldunate, por questão de horas, conseguiu exilar-se numa embaixada e foi para a
França. Assim foi que ele se salvou. Depois foi candidato a Presidente da República pelo
Partido Blanco. Conheci pessoalmente vários Senadores, que estiveram em minha
residência – jantei com Aldunate –, houve vários relatos.
No Memorial do Rio Grande do Sul está toda a documentação dos desaparecidos
no Uruguai (uns 40 ou 50), temos todas as declarações, as fotografias e o histórico de
como as coisas aconteceram. Doei o material para o Memorial.
Memorial - A sua participação e da imprensa foram decisivas.
25 Dr. Omar Ferri - Foram decisivas. No início, somente minha, em questão de
denúncia. A imprensa, evidentemente, publicava essas denúncias, mas posso dizer que
salvei o casal pela denúncia vigorosa que fiz.
Memorial - Quem encontrou o seu bilhete?
Dr. Omar Ferri - O jornalista do Globo e o Mitchell, do Jornal do Brasil.
Memorial - Eles encontraram o bilhete no apartamento, ou seja, entraram no
apartamento.
Dr. Omar Ferri - Coloquei o bilhete em baixo da porta. Quando os repórteres
estiveram lá, a dona do apartamento estava limpando. Ela foi quem entregou o meu
bilhete e foram me procurar no meu escritório. A minha secretária comunicou que eu
estava fazendo o Júri do Delaro Severino. Eles se dirigiram para o Tribunal do Júri, onde é
hoje o Memorial do Judiciário, local de trabalho de vocês. Foi nesse momento que o
seqüestro foi denunciado.
Memorial - Com relação à Assembléia Legislativa, qual foi o seu papel na ocasião?
Dr. Omar Ferri - Foi decisivo. A Assembléia Legislativa ouviu testemunhas,
juntou documentos, fez um relatório muito bom. O primeiro relatório foi feito pelo Jarbas
Lima. Ele contratou o Manoel Braga Gastal, PL, cujo parecer fez o jogo da Polícia e o
jogo da Arena que negavam a existência do seqüestro.
Memorial - Era o Governo de Sinval Guazzelli, e o Amaral Vice.
Dr. Omar Ferri - Exatamente. Coloco no livro que o Jarbas Lima concluiu que,
não havendo provas do delito, não haveria autoria e não houve o episódio. Dessa forma
não havia como o relatório apontar responsáveis. Então, pediu arquivamento. O parecer
dele foi rejeitado. A Assembléia Legislativa designou o Ivo Mainardi, que era Promotor,
Deputado e que deu um parecer excelente que foi aprovado, e remetido ao Ministério
Público. Isso serviu de base para a denúncia ou entrou como prova na Ação Penal que,
enfim, resultou apenas na condenação de Didi Pedalada.
Memorial - O senhor chegou a ir para o Uruguai? Veio a conhecer a Lilian depois
do episódio. A encontrou pessoalmente?
Dr. Omar Ferri - Sim, fui com a Assembléia Legislativa, o Deputado Carlos
Araújo requereu uma comissão (eu e o Dilamar Machado) para visitar os familiares.
26 Memorial - Ela estava presa?
Dr. Omar Ferri - Não, ela já tinha sido solta. Nós fomos lá pedir desculpas em
nome do Rio Grande do Sul. Dei um discurso em frente à casa dos pais dela: “ainda há
uma ditadura de pé e nós temos o dever de derrubá-los”. As pessoas se apavoraram
porque estavam em plena ditadura no Uruguai. Foi incrível!
Memorial - Foi neste momento que o senhor a encontrou pela primeira vez?
Dr. Omar Ferri - Foi aí que a encontrei pela primeira vez, pessoalmente. Depois,
ela veio para Porto Alegre e se hospedou em minha casa, muitas vezes. Você viu os
bilhetes dela?
Memorial - Vi, ela os redigia sobre o papel alumínio das carteiras de cigarros, em
uma letra miudíssima, cinzelada.
Dr. Omar Ferri - É, o pai ia lá com uma carteira de cigarros. Ela tinha a mesma
carteira de cigarros e escrevia isso, dobrava e colocava dentro da carteira de cigarros o
bilhete. Então, foram esses os bilhetes, e todos eles vieram parar nas minhas mãos. Por
meio deles, eu tinha a segurança do meu trabalho, eles garantiam a verdade das coisas, a
verdade do seqüestro.
Memorial - O senhor falou do caso do Doge.
Dr. Omar Ferri - Estou muito esquecido, mas fui advogado de pessoas que eram
presas e não sabíamos por quem. Eram denunciadas por terrorismo, subversão, e
apareciam os familiares dizendo que haviam desaparecido. Essas coisas eram comuns na
época. Lembro-me do nome de um deles, um tal de Carbone. O pai, com 80 anos, veio de
Pelotas para Porto Alegre, dizendo que o seu filho havia desaparecido depois de ter sido
denunciado como terrorista. O DOPS, a Secretaria de Segurança e o Exército negavam
qualquer envolvimento. Então, íamos para esses locais, como advogados contratados pela
família, (não recebíamos pagamento por estes trabalhos) para pedir informações.
Representamos sobre tortura muitas vezes. Todos negavam, os Delegados de Polícia
também negavam, como é, possivelmente, até hoje. Eu denunciava os engavetamentos de
inquéritos, as torturas, tudo o que a Polícia fazia, com prazer, até porque era verdade.
Memorial - O senhor gostaria de acrescentar mais alguma coisa ao seu
depoimento?
27 Dr. Omar Ferri - Foram muitos processos de lesão aos direitos individuais de
muitas pessoas humildes, que depois foram assassinadas, como foi o caso do Cleber Leal
Goulart e do Doge. Infelizmente, não conseguíamos uma prova mais robusta, mais
concreta, e os réus, na maioria das vezes, terminavam sendo absolvidos, algumas delas
com a conivência do Ministério Público e com a fraqueza, uma vez ou outra, de um ou
outro julgador. Infelizmente, isso aconteceu naquela época. Mas acho que fizemos muita
coisa, pelo menos eu e outros companheiros meus, como o Jair Krischke. Um herói que
anda lutando por aí, o Agostino Veit, o Padre jesuíta Albano Frink. Tínhamos algo
diferente dos outros. Nós nos jogávamos à luta, as denúncias e ao trabalho contra as
violações dos direitos humanos, como apaixonados. Nós “quebrávamos a casa”, ma esse
era o nosso sistema de luta.
Apareceram muitos defensores dos direitos humanos oficiais, havia até membros
da Comissão de Direitos Humanos da ONU, como uma senhora de Pelotas, que não vou
citar o nome, personagens que se diziam defensores de direitos humanos, só que nós
éramos os únicos, enfrentávamos mesmo, denunciávamos sem temor, buscávamos a
verdade em primeiro lugar. Não sei se isso foi virtude ou defeito, porque isso resultou em
muita inimizade, em muito processo, em muito dissabor. Entretanto, esta é a nossa vida, e
assim foi que vivemos nesse “período medieval”, obscurantista da ditadura militar
brasileira.
Memorial - Obrigada.