Obra Incompleta.
Prefácio
Quando a edição original deste livro foi publicada (em 1973), o novo movimento
libertário nos Estados Unidos estava em sua infância. Em cinco anos, o movimento
amadureceu com espantosa velocidade e se expandiu grandemente tanto em quantidade
quanto em qualidade. Assim, embora a discussão do libertarismo neste livro tenha sido
fortalecida e completamente atualizada, a maior mudança está em nosso tratamento do
movimento libertário. O primeiro capítulo original, "O novo movimento libertário",
tornou-se irrelevante e obsoleto e foi transformado num apêndice, que delineia a
complexa estrutura do atual movimento. O novo capítulo I, "A herança libertária", faz
uma breve, porém necessária, apresentação histórica da tradição americana e ocidental
de liberdade, de seus sucessos e fracassos, abrindo caminho para nossa discussão de seu
renascimento no movimento atual. Um novo capítulo 9 foi adicionado, sobre o tópico
vital da inflação e dos ciclos econômicos e do papel do governo e do livre-mercado em
aliviar esses males. Finalmente, no capítulo final, sobre estratégia, foi adicionada uma
apresentação e uma explicação de minha recente convicção de que a liberdade vai
triunfar, e de que vai dar grandes passos não apenas no longo prazo mas também de
imediato — em suma, de que a liberdade é uma idéia cuja hora chegou.
Devo a origem e a inspiração deste livro ao meu primeiro editor, Tom Mandel, que foi
capaz de antecipar o enorme crescimento em tempos recentes do interesse no
libertarismo. O livro não teria sido concebido nem escrito sem ele. Para esta edição
revisada, Roy A. Childs, Jr., editor da Libertarian Review, foi extremamente útil ao
sugerir as mudanças necessárias. Eu gostaria também de agradecer a Dominic T.
Armentano, do departamento de economia da Universidade de Hartford, Williamson M.
Evers, editor da Inquiry, e Leonard P. Liggio, editor da Literature of Liberty, por suas
bem-vindas sugestões. O entusiasmo sem limites de Walter C. Mickleburgh para com
este livro foi de importância vital para a preparação da edição revisada; e Edward H.
Crane III, presidente do Cato Institute, de São Francisco, foi uma indispensável fonte de
auxílio, encorajamento, conselhos e sugestões.
Murray N. Rothbard
Palo Alto, Califórnia
Fevereiro de 1978
1. A herança libertária: A Revolução Americana e o liberalismo
clássico
No dia da eleição de 1976, a chapa do Partido Libertário de Roger L. MacBride para
presidente e David P. Bergland para vice conseguiu 174.000 votos em trinta e quatro
estados por todo o país. O sóbrio Congressional Quartely foi levado a classificar o
inexperiente Partido Libertário como o terceiro maior partido político dos Estados
Unidos. O notável crescimento deste novo partido pode ser percebido ao se considerar
que ele foi fundado apenas em 1971, por um punhado de pessoas reunidas numa sala de
estar no Colorado. No ano seguinte, sua chapa presidencial chegou às cédulas de dois
estados. E agora ele é o terceiro maior partido da América.
O que é ainda mais notável é que o Partido Libertário conseguiu esse crescimento com
uma adesão consistente a um novo credo ideológico — "libertarismo" —, trazendo
assim ao cenário político americano, pela primeira vez em um século, um partido
interessado em princípios e não meramente no ganho de dinheiro ou de cargos públicos.
Comentaristas e cientistas políticos já nos disseram inúmeras vezes que a beleza da
América e de nosso sistema partidário é sua ausência de ideologias e seu "pragmatismo"
(uma amável palavra para o enfoque exclusivo no ganho de dinheiro e empregos às
custas dos infelizes pagadores de impostos). Como, então, explicar o crescimento
incrível de um novo partido que é franca e ardentemente dedicado à ideologia?
Uma explicação é a de que os americanos nem sempre foram tão pragmáticos e não-
ideológicos. Pelo contrário, os historiadores agora percebem que a própria Revolução
Americana não foi somente ideológica, mas foi também o resultado de uma devoção ao
credo e às instituições do libertarismo. Os revolucionários americanos se apoiavam no
credo libertário, uma ideologia que os levou a resistir com as próprias vidas, fortunas e
dignidades às invasões de seus direitos e liberdades cometidas pelo governo imperial
britânico. Os historiadores debateram por muito tempo as causas precisas da Revolução
Americana: teriam sido constitucionais, econômicas, políticas ou ideológicas? Nós
agora percebemos que, como libertários, os revolucionários não viam qualquer conflito
entre os direitos morais e políticos e a liberdade econômica. Pelo contrário, eles
consideravam a liberdade civil e moral, a independência política e a liberdade de
produção e comércio como partes de um só sistema, o qual Adam Smith chamaria, no
mesmo ano em que a Declaração de Independência foi escrita, de "óbvio e simples
sistema de liberdade natural".
O ideário libertário emergiu dos movimentos "liberais clássicos" dos séculos XVII e
XVIII no mundo ocidental, mais especificamente a partir Revolução Inglesa do século
XVII. Esse movimento libertário radical, embora apenas parcialmente bem sucedido em
sua terra de origem, a Grã-Bretanha, foi capaz de inaugurar lá a Revolução Industrial,
através da liberação das sufocantes restrições do controle estatal e das guildas urbanas
apoiadas pelo governo. Pois o movimento liberal clássico foi, por todo o mundo
ocidental, uma grande "revolução" libertária contra o que podemos chamar de Velha
Ordem — o ancien régime que dominou seus súditos por séculos. Este regime havia, no
começo da era moderna no século XVI, imposto um Estado central absoluto e o governo
de um rei pelo direito divino sobre uma rede mais antiga de monopólios feudais de
terras e restrições e controles de guildas urbanas. O resultado foi uma Europa estagnada
sob uma pesada rede de controles, impostos e privilégios monopolísticos para a
produção e venda conferidos pelos governos centrais (e locais) a produtores
favorecidos. Esta aliança do novo burocrático e beligerante Estado com mercadores
privilegiados — uma aliança que seria chamada de "mercantilismo" por historiadores
posteriores — e com uma classe de senhores feudais constituía a Velha Ordem, contra a
qual o novo movimento de liberais clássicos e radicais se rebelou nos séculos XVII e
XVIII.
Os liberais clássicos defendiam a liberdade individual em todos os seus aspectos
interrelacionados. Na economia, os impostos deveriam ser drasticamente reduzidos, os
controles e as regulações, eliminados, e a energia, a empresa humana e os mercados,
liberados para produzir e beneficiar toda a massa de consumidores. Os empreendedores
deveriam ser, por fim, livres para competir, produzir, criar. A liberdade pessoal e civil
deveriam ser garantidas contra a depredação e a tirania do rei e de seus asseclas. A
religião, fonte de sangrentas guerras por séculos, quando diferentes facções lutavam
pelo controle do Estado, seria liberada da imposição e interferência estatais, de forma
que todas as religiões — ou não-religiões — pudessem coexistir em paz. A paz,
inclusive, era a política externa do liberalismo clássico; a velha política imperial de
engrandecimento do Estado, em busca de poder e riqueza, deveria ser substituída por
uma política estrangeira de paz e livre comércio com todas as nações. E, uma vez que a
guerra era engendrada por exércitos e marinhas permanentes, pelo poder militar em
busca de expansão, esses establishments militares deveriam ser substituídos por milícias
locais voluntárias, por cidadãos-civis que apenas desejariam lutar em defesa de seus
lares e comunidades particulares.
Assim, a tão conhecida "separação da Igreja e do Estado" era apenas uma das muitas
idéias interrelacionadas que poderiam ser sumarizadas como a "separação da economia
e do Estado", a "separação da imprensa e do Estado", a "separação das terras e do
Estado", a "separação da guerra e das questões militares e do Estado" — de fato, a
separação do Estado de virtualmente tudo.
O Estado, em suma, deveria ser mantido extremamente pequeno, com um orçamento
muito baixo, quase insignificante. Os liberais clássicos nunca desenvolveram uma teoria
da taxação, mas todo aumento de impostos era combatido fervorosamente — na
América, dois aumentos de impostos foram a faísca que desencadeou, ou quase, a
Revolução (o imposto sobre os selos e o imposto sobre o chá).
Os primeiros teóricos do liberalismo clássico foram os Levelers, durante a Revolução
Inglesa, e o filósofo John Locke, no final do século XVII, seguidos pelos "verdadeiros
whigs", a oposição libertária radical ao "Whig Settlement" — o regime da Grã-Bretanha
do século XVIII. John Locke estabeleceu os direitos de propriedade de cada indivíduo a
sua pessoa e propriedade; o propósito do governo estava estritamente limitado à defesa
desses direitos. Nas palavras da Declaração de Independência, de inspiração lockeana,
"para assegurar estes direitos, os Governos são instituídos entre os Homens, derivando
seus justos poderes do consentimento de seus governados. E sempre que qualquer
Forma de Governo se torna destrutiva desses fins, é de Direito do Povo alterá-la ou
aboli-la".
Embora Locke fosse amplamente lido nas colônias americanas, sua filosofia abstrata
não foi calculada para incitar os homens à revolução. Esta tarefa foi realizada pelos
lockeanos radicais do século XVIII, que escreviam de forma mais popular, agressiva e
apaixonada, e que aplicavam a filosofia básica aos problemas concretos do governo —
especialmente do governo britânico — de seu tempo. Os escritos mais importantes
desse tipo foram as "Cartas de Catão", uma série de artigos de jornal publicados no
começo dos anos 1720 em Londre pelos verdadeiros whigs John Trenchard e Thomas
Gordon. Embora Locke houvesse mencionado a pressão revolucionária, que poderia ser
devidamente exercida quando o governo se tornasse uma ameaça à liberdade, Trenchard
e Gordon notaram que o governo sempre tendia a destruir os direitos individuais. De
acordo com as "Cartas de Catão", a história humana é um registro do conflito
irreprimível entre o Poder e a Liberdade, estando o Poder (governo) sempre pronto para
aumentar seu escopo através da invasão dos direitos das pessoas e da usurpação de suas
liberdades. Assim, declarou Catão, o Poder deve ser mantido pequeno e sujeito a eterna
vigilância e hostilidade por parte do público, para que se assegure que ele se mantenha
dentro de seus estreitos limites:
Sabemos, através de infinitos Exemplos e da Experiência, que o Homem
investido de Poder, em vez de cedê-lo, fará qualquer coisa, até mesmo a pior
e mais sinistra, para mantê-lo; e jamais houve qualquer Homem sobre a
Terra que o houvesse abandonado enquanto pudesse fazer tudo de sua
própria Forma com ele. (...) Isto parece certo. O Bem do Mundo, ou de seu
Povo, jamais foi um de seus Motivos ter continuado no Poder, ou para
abdicar dele.
É da Natureza do Poder tornar-se cada vez mais abusivo e transformar todo
Poder extraordinário, concedido em Momentos particulares, e em Ocasiões
particulares, em um Poder ordinário, para ser usado a todos os Momentos, e
quando não há qualquer Ocasião, nem qualquer Vantagem em seu emprego.
(...)
Ora! O Poder usurpa diariamente a Liberdade, com Sucesso sempre
evidente; e o Equilíbrio entre eles está quase perdido. A Tirania absorveu
quase a totalidade da Terra, e, atacando as Raízes e Ramos da Humanidade,
torna o Mundo um Matadouro; e certamente continuará a destruir, até que
seja ele próprio destruído, ou, o que é mais provável, até que não haja nada
mais para se destruir.1
Esses avisos foram rapidamente absorvidos pelos colonos americanos, que
reimprimiram as "Cartas de Catão" muitas vezes pelas colônias até o tempo da
Revolução. Essa atitude determinada levou ao que o historiador Bernard Bailyn chamou
apropriadamente de o "libertarismo radical transformador" da Revolução Americana.
Pois a revolução não foi somente a primeira tentativa moderna de livrar-se do jugo do
imperialismo ocidental — naquele tempo, da maior potência do mundo. O que é mais
importante é que, pela primeira vez na história, os americanos cercaram seus novos
governos com numerosos limites e restrições, incorporados em constituições e,
particularmente, em cartas de direitos. A Igreja e o Estado eram rigorosamente
separados nos novos estados e a liberdade religiosa era considerada da maior
importância. As reminiscências do feudalismo foram eliminadas por todos os estados
com a abolição dos privilégios feudais de vínculo e primogenitura. (No primeiro caso,
um ancestral morto é capaz de vincular terras a sua família para sempre, impedindo que
seus herdeiros vendam qualquer parte delas; no segundo, o governo exige que o único
herdeiro de propriedades seja o filho mais velho.)
Não era permitido que o novo governo federal, formado pelos Artigos da Confederação,
cobrasse quaisquer impostos do público; e qualquer extensão fundamental de seus
poderes requeria consentimento unânime de todos os governos estaduais. Acima de
tudo, o poder militar do governo nacional era limitado por barreiras e suspeitas; pois os
libertários do século XVIII compreendiam que a guerra, os exércitos permanentes e o
militarismo há muito tempo eram o método principal de engrandecimento do poder do
Estado.2
Bernard Bailyn resumiu da seguinte maneira a conquista dos revolucionários
americanos:
A modernização da política americana e do governo durante e após a
Revolução foi uma repentina e radical realização do programa que havia
sido estabelecido em primeiro lugar pela inteligentsia de oposição (...)
durante o reinado de George I. Onde a oposição inglesa, forçando seu
caminho por uma complacente ordem social e política, havia apenas sonhado
e ambicionado, os americanos, levados pelas mesmas aspirações, mas
vivendo em uma sociedade moderna de diversas maneiras, e agora libertados
politicamente, poderiam repentinamente agir. Onde a oposição inglesa havia
podido apenas agitar por reformas parciais (...) os americanos se moveram
de forma rápida e com poucas rupturas sociais para implementar
sistematicamente as mais extremas possibilidades de toda a gama de idéias
de liberação radicais.
Durante esse processo, eles (...) infundiram na cultura política americana
(...) os maiores temas do século XVIII que o libertarismo radical realizou
aqui. A crença de que o poder é mal, uma necessidade talvez, mas uma má
necessidade; que ele é infinitamente corruptível; e que ele deve ser
controlado, limitado, restrito de toda forma compatível com um mínimo de
ordem civil. Constituições escritas; a separação dos poderes; cartas de
direitos; limitações dos executivos, das legislaturas e das cortes; restrições
ao direito de coagir e iniciar guerras — tudo isso expressa uma profunda
descrença no poder que está no coração ideológico da Revolução Americana
e que permaneceu conosco como um legado permanente desde então.3
Assim, embora o pensamento liberal clássico tenha nascido na Inglaterra, ele alcançaria
seu desenvolvimento mais consistente e radical — e sua vida mais longa — na América.
Pois as colônias americanas estavam livres dos monopólios feudais das terras e das
castas aristocráticas que estavam entranhadas na Europa; na América, os governantes
eram oficiais britânicos coloniais e alguns poucos mercadores privilegiados, de quem
seria relativamente mais fácil de se livrar com a chegada da Revolução e com a
derrubada do governo britânico. O liberalismo clássico, portanto, teve maior suporte
popular e menos resistência institucional nas colônias americanas do que em casa. Além
do mais, estando geograficamente isolados, os rebeldes americanos não tinham que se
preocupar com exércitos invasores de governos vizinhos contra-revolucionários, como,
por exemplo, ocorreu na França.
Após a Revolução
Dessa forma, a América, acima de todos os países, nasceu numa revolução
explicitamente libertária, uma revolução contra um império; contra a taxação, os
monopólios comerciais e as regulações; e contra o militarismo e o poder executivo. A
revolução resultou em governos com restrições nunca antes vistas aos próprios poderes.
Mas, embora houvesse pouca resistência institucional na América ao avanço do
liberalismo, começaram a surgir, desde o começo, poderosas forças elitistas,
especialmente entre os grandes mercadores e fazendeiros, que desejavam manter o
restritivo sistema "mercantilista" britânico de altos impostos, controles e privilégios
monopolísticos concedidos pelo governo. Esses grupos desejavam um forte governo
central, ou mesmo imperial; em resumo, eles queriam o sistema britânico sem a Grã-
Bretanha. Essas forças conservadoras e reacionárias primeiro surgiram durante a
Revolução e, mais tarde, formaram o Partido Federalista e a administração federalista
nos anos 1790.
Durante o século XIX, porém, o ímpeto libertário continuou. Os movimentos
jeffersoniano e jacksoniano, o Partido Democrático-Republicano e mais tarde o
Democrata, explicitamente ambicionavam a virtual eliminação do governo da vida
americana. Ele deveria ser um governo sem um exército ou uma marinha permanentes;
um governo sem dívidas, sem impostos federais diretos, sem impostos diretos sobre a
produção e virtualmente sem tarifas de importação — isto é, com níveis desprezíveis de
taxação e gastos; um governo que não empreendesse obras públicas ou melhorias
internas; um governo que não controlasse ou regulasse; um governo que deixasse a
moeda e o sistema bancário livres e sem inflação; em suma, nas palavras de H. L.
Mencken, "um governo que mal consiga ser mais que nenhum governo".
O movimento jeffersoniano rumo a virtualmente nenhum governo declinou depois que
Jefferson assumiu a presidência, primeiro com concessões aos federalistas
(possivelmente resultado de um acordo pelos votos federalistas para desfazer um
desempate no colégio eleitoral), e então com a compra inconstitucional do território da
Louisiana. Mas, particularmente, ele declinou com o avanço imperialista rumo à guerra
com a Grã-Bretanha no segundo mandato de Jefferson, um avanço que levou à guerra e
a um sistema unipartidário que estabeleceu virtualmente todo o programa estatista dos
federalistas: altos gastos militares, um banco central, tarifas protecionistas, impostos
federais diretos, obras públicas. Aterrorizado com os resultados, Jefferson aposentou-se
e retirou-se para Monticello,4 onde inspirou os jovens políticos Martin Van Buren e
Thomas Hart Benton a formar um novo partido — o Partido Democrata — que tomaria
de volta a América das mãos do novo federalismo e parar reviver o espírito do velho
programa jeffersoniano. Quando os dois líderes agarraram-se a Andrew Jackson como
seu salvador, o novo Partido Democrata havia nascido.
Os libertários jacksonianos tinham um plano: haveriam oito anos de presidência de
Andrew Jackson, seguidos de oito anos de Van Buren e então mais oito anos de Benton.
Depois de vinte e quatro anos de uma triunfante Democracia Jacksoniana, o ideal
menckeniano de virtual ausência de governo deveria ser alcançado. Não era um sonho
impossível, uma vez que estava claro que o Partido Democrata havia se tornado
rapidamente o partido majoritário no país. A massa de pessoas era alistada na causa
libertária. Jackson teve seus oito anos, que destruíram o banco central e a dívida
pública, e Van Buren teve quatro, que separaram o governo federal do sistema bancário.
Mas a eleição de 1840 foi uma anomalia, já que Van Buren foi derrotado por uma
demagógica campanha sem precedentes, feita pelo primeiro grande líder de campanha
moderno, Thurlow Weed, que foi o precursor do emprego de todos os enfeites de
campanha com que estamos familiarizados hoje em dia — bordões pegajosos,
abotoaduras, músicas, paradas, etc. As táticas de Weed colocaram na presidência um
desconhecido e péssimo whig, o General William Henry Harrison, mas essa foi
claramente uma casualidade; em 1844, os Democratas estariam preparados para contra-
atacar com as mesmas táticas de campanha, e estavam destinados a reconquistar a
presidência naquele ano. Van Buren, é claro, deveria continuar a triunfante marcha
jacksoniana. Mas então um evento fatídico ocorreu: o Partido Democrata estava
dividido na questão crítica da escravidão, ou melhor, na questão da expansão da
escravidão em um novo território. A fácil renomeação de Van Buren afundou com uma
divisão nas fileiras da Democracia quanto à admissão na União da República do Texas
como um estado escravocrata; Van Buren se opunha, Jackson era a favor, e esta divisão
simbolizava o grande racha dentro do Partido Democrata. A escravidão, a grave falha
antilibertária no libertarismo do programa dos Democratas, surgiu para destruir o
partido e seu libertarismo completamente.
A Guerra Civil, em adição a seu derramamento de sangue e devastação sem
precedentes, foi usada pelo triunfante e virtualmente unipartidário regime republicano
para avançar seu programa estatista, anteriormente whig: poder governamental nacional,
tarifas protecionistas, subsídios a grandes negócios, papel-moeda inflacionário,
continuação do controle do governo federal sobre os bancos, obras públicas de larga
escala, altos impostos sobre a produção e, durante a guerra, o alistamento obrigatório e
um imposto de renda. Além disso, os estados vieram a perder seu direito de secessão e
outros poderes em relação aos do governo federal. O Partido Democrata deu
prosseguimento ao seu programa libertário após a guerra, mas agora ele teria uma
estrada muito maior e mais difícil para chegar à liberdade do que tinha antes.
Nós vimos como a América veio a ter a mais profunda tradição libertária, uma tradição
que sobrevive em grande parte de nossa retórica política e ainda se reflete na atitude
irritável e individualista em relação ao governo nutrida por boa parte do povo
americano. Há muito mais solo fértil neste país do que em qualquer outro para o
ressurgimento do libertarismo.
A resistência à liberdade
Podemos ver agora que o rápido crescimento do movimento libertário e do Partido
Libertário nos anos 1970 tem raízes no que Bernard Bailyn chamou de "legado
permanente" da Revolução Americana. Mas se este legado é tão vital para a tradição
americana, o que deu errado? Por que há a necessidade agora do nascimento de um
novo movimento libertário para reclamar o sonho americano?
Para começar a responder esta pergunta, devemos primeiramente lembrar que o
liberalismo clássico constituía uma ameaça profunda aos interesses políticos e
econômicos — às classes dominantes — que se beneficiavam da Velha Ordem: aos reis,
aos nobres, aos aristocratas feudais, aos mercadores privilegiados, à máquina militar, às
burocracias estatais. Apesar das três maiores revoluções violentas precipitadas pelos
liberais — a inglesa do século XVII e a americana e a francesa do XVIII —, as vitórias
na Europa foram apenas parciais. A resistência foi dura e conseguiu manter com sucesso
os monopólios das terras e, por um tempo, o sufrágio restrito às elites ricas. Os liberais
tinham que se concentrar em aumentar o alcance do sufrágio, porque estava claro para
ambos os lados que os interesses econômicos e políticos da massa do povo estavam com
a liberdade individual. É interessante notar que, no começo do século XIX, as forças do
laissez-faire eram conhecidas como "liberais" e "radicais" (para os mais puros e
consistentes dentre eles), e os opositores que desejavam preservar ou retroceder à Velha
Ordem eram amplamente conhecidos como "conservadores".
De fato, o conservadorismo começou, no começo do século XIX, como uma tentativa
consciente de desfazer e destruir o odiado trabalho do novo espírito liberal clássico —
das revoluções Americana, Francesa e Industrial. Liderado por dois pensadores
franceses reacionários Bonald e De Maistre, o conservadorismo aspirava substituir os
direitos iguais e a igualdade perante a lei pelo domínio estruturado e hierárquico das
elites privilegiadas; a liberdade individual e o governo mínimo pelo governo absoluto e
o governo máximo; a liberdade religiosa pelo governo teocrático de uma igreja estatal; a
paz e o livre comércio pelo militarismo, por restrições mercantilistas e pela guerra para
benefício do Estado-nação; e a indústria e a manufatura pela velha ordem feudal e
agrária. E eles queriam substituir o novo mundo de consumo de massa e de padrões de
vida mais altos para todos pela Velha Ordem de subsistência para as massas e luxo e
consumo para a elite dominante.
Na metade e certamente no final do século XIX, os conservadores começaram a
perceber que sua causa estava inevitavelmente condenada caso eles continuassem a
clamar pela supressão da Revolução Industrial e de seu enorme aumento dos padrões de
vida para as massas e caso continuassem a se opor ao aumento do escopo do sufrágio,
dessa forma francamente se colocando em oposição aos interesses do público. Assim, a
"direita" (um rótulo baseado num acidente geográfico, pelo qual os porta-vozes da
Velha Ordem se sentaram à direita na Assembléia Nacional durante a Revolução
Francesa) decidiu mudar seu tom e atualizar seu credo estatista abandonando a oposição
aberta ao industrialismo e ao sufrágio democrático. Os novos conservadores
substituíram o franco ódio e desprezo pela massa do público do velho conservadorismo
por uma duplicidade e demagogia. Os novos conservadores galanteavam as massas com
o seguinte discurso: "Nós também favorecemos o industrialismo e padrões mais altos de
vida. Mas, para alcançarmos esses objetivos, nós precisamos regular a indústria pelo
bem comum; nós precisamos substituir a competição voraz do mercado livre e
competitivo pela cooperação organizada; e, acima de tudo, nós precisamos substituir os
princípios liberais de paz e livre comércio por medidas que exaltam a nação: a guerra, o
protecionismo, o império e as façanhas militares." Para todas essas mudanças, é claro,
um Estado inchado, em lugar de um governo mínimo, era necessário.
Dessa maneira, no final do século XIX, o estatismo e o Estado inchado retornaram, mas
desta vez com uma cara pró-industrial e pró-bem-estar geral. A velha Ordem havia
retornado, porém os beneficiários dela mudaram um pouco; não eram mais tanto a
nobreza, os senhores de terras feudais, o exército, a burocracia e os mercadores
privilegiados — agora eram o exército, a burocracia, os enfraquecidos senhores de
terras feudais e especialmente os industriais privilegiados. Liderada por Bismarck na
Prússia, a Nova Direita defendia um coletivismo direitista baseado na guerra, no
militarismo, no protecionismo e na cartelização compulsória de empresas e indústrias
— uma rede gigantesca de controles, regulações, subsídios e privilégios que moldaram
a grande aliança entre o Estado e certos elementos favorecidos dos grandes negócios e
indústrias.
Algo também deveria ser feito a respeito do novo fenômeno de trabalhadores
assalariados industriais — o "proletariado". Durante o século XVIII e o começo do XIX
— de fato, até mesmo o final do século XIX —, a massa de trabalhadores era a favor do
laissez-faire e considerava o mercado livremente competitivo como o melhor para seus
salários, para suas condições de trabalho e para permitir o acesso a uma gama maior de
bens de consumo. Até mesmo os primeiros sindicatos trabalhistas eram firmes
defensores do laissez-faire. Os novos conservadores, encabeçados por Bismarck na
Alemanha e Disraeli na Grã-Bretanha, enfraqueceram o ímpeto libertário dos
trabalhadores, derramando lágrimas de crocodilo sobre as condições de trabalho dos
trabalhadores industriais e cartelizando e regulando a indústria, não por acidente
impedindo uma competição eficiente. Finalmente, no começo do século XX, o novo
"Estado corporativista" conservador — o sistema político prevalente então e hoje em dia
— incorporou os sindicatos trabalhistas "responsáveis" como parceiros do governo e
dos grandes negócios privilegiados num novo sistema estatista e corporativista de
tomada de decisões.
Para estabelecer este novo sistema, para criar uma Nova Ordem que fosse uma versão
modernizada e maquiada do ancién régime de antes das revoluções Americana e
Francesa, as novas elites dominantes tiveram que que executar um gigantesco trabalho
de enganação do público, um trabalho que continua até hoje. Embora a existência de
todo governo, desde a monarquia absoluta até a ditadura militar, repouse sobre o
consentimento da maioria da população, um governo democrático deve trabalhar esse
consentimento de maneira mais imediata, diária. Para fazer isso, as novas elites
dominantes conservadoras tiveram que fraudar o público de várias formas cruciais e
fundamentais. Pois as massas agora tiveram que ser convencidas de que a tirania é
melhor que a liberdade, de que um feudalismo industrial é melhor para os consumidores
que um mercado livremente competitivo, de que uma cartelização monopolística
deveria ser imposta em nome do antimonopolismo, e de que a guerra e o militarismo,
que serviam aos interesses das elites dominantes, na verdade eram dos interesses do
conscrito, taxado e freqüentemente massacrado público. Como isso podia ser feito?
Em todas as sociedades, a opinião pública é determinada pelas classes intelectuais, os
formadores de opinão da sociedade. Pois a maior parte das pessoas não dá origem nem
dissemina idéias e conceitos; pelo contrário, elas tendem a adotar essas idéias
propagadas pelas classes intelectuais profissionais, pelos negociantes profissionais de
idéias. Ao longo da história, como veremos mais adiante, os déspotas e as elites
dominantes dos Estados têm tido muito maior necessidade dos serviços dos intelectuais
que os cidadãos pacíficos de uma sociedade livre. Pois os Estados sempre precisaram
dos intelectuais formadores de opinião para levar o público a acreditar que seu domínio
é sábio, bom e inevitável; a acreditar que o "imperador está vestido". Até o mundo
moderno, esses intelectuais eram inevitavelmente clérigos (ou curandeiros), os
guardiões da religião. Era uma aliança confortável, esta antiga aliança entre a Igreja e o
Estado; a Igreja informava seus fiéis enganados de que o rei governava por comando
divino e que, portanto, deveria ser obedecido; em troca, o rei direcionava grandes
receitas de impostos para os cofres da Igreja. Daí a grande importância para os liberais
clássicos da separação da Igreja e do Estado. O novo mundo liberal era um mundo no
qual os intelectuais poderiam ser seculares — poderiam sustentar-se com as próprias
pernas, no mercado, longe da subvenção estatal.
Para estabelecer sua nova ordem estatista, seu Estado corporativista neomercantilista, os
novos conservadores precisavam fomentar uma nova aliança entre os intelectuais e o
Estado. Numa era cada vez mais secular, isso significava uma aliança com intelectuais
seculares, não com divinos: isto é, com uma classe de professores, doutores,
historiadores, economistas tecnocratas, trabalhadores sociais, sociólogos, médicos e
engenheiros. Esta nova aliança surgiu em duas partes. No começo do século XIX, os
conservadores, concedendo a razão a seus inimigos liberais, dependiam fortemente das
alegadas virtudes da irracionalidade, do romantismo, da tradição, da teocracia. Na
segunda metade do século XIX, o novo conservadorismo veio a abraçar a razão e a
"ciência". Agora era a ciência que supostamente requeria o controle da economia e da
sociedade por "especialistas" tecnocratas. Em troca da disseminação dessa mensagem
para o público, a nova classe de intelectuais foi premiada com empregos e prestígio,
como apologistas da Nova Ordem e planejadores e reguladores da nova sociedade
cartelizada.
Para assegurar a predominância do novo estatismo junto à opinião pública, para
assegurar que o consentimento do público seria conseguido, os governos do mundo
ocidental, no final do século XIX e no começo do XX, moveram-se para tomar o
controle da educação, das mentes dos homens: das universidades e da educação geral,
através de leis de freqüência obrigatória e da rede de escolas públicas. As escolas
públicas eram conscientemente usadas para inculcar obediência ao Estado e outras
virtudes cívicas entre os jovens alunos. Além disso, esta estatização da educação
assegurava que os maiores interessados na expansão do estatismo seriam os professores
e educadores profissionais dos países.
Uma das formas pelas quais os novos intelectuais estatistas faziam seu trabalho era
através da mudança dos significados de velhos rótulos, para que assim pudessem
manipular nas mentes das pessoas as conotações emocionais vinculadas a eles. Por
exemplo, os libertários pró-laissez-faire eram conhecidos há muito tempo como
"liberais", e os mais puros e militantes entre eles como "radicais"; eles também eram
conhecidos como "progressistas", porque eram aqueles que estavam em sintonia com o
progresso industrial, com o avanço da liberdade e com o aumento dos padrões de vida
dos consumidores. A nova classe de acadêmicos e intelectuais estatistas se apropriou
das palavras "liberal" e "progressista" e teve sucesso em rotular seus oponentes pró-
laissez-faire com a acusação de serem atrasados, "neandertais" e "reacionários". Até
mesmo o nome "conservador" foi jogado sobre os liberais clássicos. E, como já vimos,
os novos estatistas foram capazes também de se apropriar do conceito de "razão".
Se os liberais laissez-faire ficaram confusos com a nova recrudescência do estatismo e
do mercantilismo na forma do estatismo corporativista "progressista", outra razão para o
declínio do liberalismo clássico no fim do século XIX foi o crescimento de um peculiar
novo movimento: o socialismo. O socialismo se iniciou nos anos 1830 e se expandiu
grandemente após os anos 1880. A peculiaridade do socialismo era a de que ele era um
movimento confuso, híbrido, influenciado por ambas as ideologias polares
preexistentes, o liberalismo e o conservadorismo. Dos liberais clássicos os socialistas
adotaram uma franca aceitação do industrialismo e da Revolução Industrial, a
glorificação inicial da "ciência" e da "razão", e pelo menos uma devoção retórica aos
ideais liberais clássicos de paz, liberdade individual e padrões mais altos de vida. De
fato, os socialistas, muito antes dos posteriores corporativistas, foram pioneiros na
cooptação da ciência, da razão e do industrialismo. E os socialistas não apenas adotaram
a adesão à democracia dos liberais clássicos como também começaram a clamar por
uma "expansão da democracia", que permitisse que "o povo" controlasse a economia —
e que os indivíduos controlassem uns os outros.
Por outro lado, dos conservadores os socialistas adotaram uma devoção à coerção e aos
meios estatistas para atingir esses fins liberais. A harmonia industrial e o crescimento
seriam alcançados pelo crescimento do Estado e sua transformação numa instituição
toda-poderosa, que controlasse a economia e a sociedade em nome da "ciência". Uma
vanguarda de tecnocratas assumiria o controle de todas as pessoas e propriedades em
nome do "povo" e da "democracia". Não contentes com a conquista liberal da razão e da
liberdade de pesquisa científica, o Estado socialista instauraria o controle dos cientistas
sobre todos os outros; não contentes com a liberação dos trabalhadores conseguida
pelos liberais para que eles alcançassem uma prosperidade jamais vista, o Estado
socialista instauraria o controle dos trabalhadores sobre todos os outros — ou melhor, o
controle dos políticos, burocratas e tecnocratas em nome dos trabalhadores. Não
contentes com o credo liberal da igualdade de direitos, da igualdade perante a lei, o
Estado socialista o esmagaria em favor do monstruoso e impossível objetivo da
igualdade ou uniformidade de resultados — ou melhor, erigiria uma nova elite
privilegiada, uma nova classe, em nome dessa impossível igualdade.
O socialismo era um movimento híbrido e confuso porque tentava alcançar os fins
liberais de liberdade, paz, harmonia industrial e crescimento — fins que só podem ser
alcançados através da liberdade e da separação do governo de virtualmente tudo — pela
imposição dos velhos meios conservadores de estatismo, coletivismo e privilégios
hierárquicos. Ele foi um movimento que só poderia fracassar, e que de fato fracassou
miseravelmente nos vários países onde alcançou o poder no século XX, levando as
massas a despotismos sem precedentes, à pobreza e à fome.
Mas a pior parte do crescimento do movimento socialista foi o fato de ele ter sido capaz
de substituir os liberais clássicos na "esquerda": isto é, como o partido da esperança, do
radicalismo, da revolução no mundo ocidental. Pois, uma vez que os defensores do
ancien régime se sentavam à direita da Assembléia durante a Revolução Francesa, os
liberais e radicais se sentavam à esquerda; daí até a emergência do socialismo, os
liberais clássicos eram a "esquerda", e até mesmo a "extrema esquerda", do espectro
ideológico. Ainda em 1848, liberais franceses como Frédéric Bastiat se sentavam à
esquerda na Assembléia Nacional. Os liberais clássicos haviam começado como o
partido radical, revolucionário, do ocidente, como o partido da esperança e da mudança
em favor da liberdade, da paz e do progresso. Permitir que eles fossem substituídos, que
os socialistas pudessem posar como o "partido da esquerda" foi um grande erro
estratégico que fez com que os liberais fossem colocados falsamente numa confusa
posição de "centro", com o socialismo e o conservadorismo como pólos opostos. Uma
vez que o libertarismo não é nada senão o partido da mudança e do progresso rumo à
liberdade, o abandono daquele papel significou o abandono de sua razão de ser — seja
na realidade, seja nas mentes das pessoas.
Porém, nada disso teria acontecido se os liberais clássicos não tivessem permitido que
ocorresse essa decadência interna. Eles podiam ter notado — como alguns de fato o
fizeram — que o socialismo era um movimento confuso, autocontraditório,
semiconservador, que era a monarquia absoluta e o feudalismo com uma nova cara, e
que eles próprios eram os únicos radicais verdadeiros, que insistiam na completa vitória
do ideal libertário.
A decadência interna
Mas depois de alcançarem impressionantes vitórias parciais contra o estatismo, os
liberais clássicos começaram a perder o próprio radicalismo, a teimosa insistência em
lutar contra o estatismo conservador até a vitória final. Em vez de usar as vitórias
parciais como suporte para uma pressão cada vez mais ferrenha, os liberais clássicos
começaram a perder seu fervor pela mudança e pela pureza de princípios. Eles passaram
a se contentar em salvaguardar as vitórias conquistadas, transformando-se dessa
maneira de um movimento radical em um movimento conservador — "conservador" no
sentido de que se satisfaziam com a preservação do status quo. Em suma, os liberais
deixaram o lugar vago para que os socialistas se transformassem no partido da
esperança e do radicalismo, e até mesmo para que os posteriores corporativistas
posassem de "liberais" e "progressistas" contra os "extremistas de direita" e
"conservadores" liberais clássicos, já que estes se permitiram ser jogados numa posição
de esperar por pouco mais que a inatividade, que a ausência de mudanças. Tal estratégia
é tola e insustentável num mundo em constante mutação.
Mas a degeneração do liberalismo não se deveu somente à estratégia e à alteração de
sua posição no espectro ideológico, mas também aos princípios. Porque os liberais se
satisfizeram em deixar o poder de guerra, a educação, o controle sobre a moeda, o
sistema bancário, as ruas e as estradas nas mãos do Estado — ou seja, concederam ao
Estado o domínio sobre todas as alavancas de poder fundamentais da sociedade. Em
contraste com a hostilidade total ao executivo e à burocracia nutrida pelos liberais do
século XVIII, os liberais do século XIX toleravam e até apoiavam o fortalecimento do
poder executivo e da enraizada burocracia de funcionários públicos.
Além disso, os princípios e a estratégia se juntaram no declínio da antiga devoção
liberal ao "abolicionismo" — a crença de que, seja a escravidão, seja qualquer outro
aspecto do estatismo, ele deve ser abolido o mais rápido possível, uma vez que a
imediata eliminação do estatismo, embora improvável na prática, deve ser buscada
como a única posição moral possível. Pois preferir uma diminuição gradual em vez de
uma abolição imediata de uma instituição má e coercitiva significa ratificar e sacionar
esse mal, violando assim os princípios libertários. Como explicou o grande abolicionista
anti-escravagista e libertário William Lloyd Garrison: "Insistemos numa abolição
imediata o tanto quanto pudermos e, diabos!, no fim ela será uma abolição gradual. Nós
nunca dissemos que a escravidão seria derrubada com um único golpe; que ela deve ser,
nós sempre defenderemos."5
Ocorreram duas mudanças críticas na filosofia e ideologia do liberalismo clássico que
exemplificaram e contribuíram para seu declínio como uma força viva, progressista e
radical do mundo ocidental. A primeira e mais importante, tendo ocorrido a partir do
começo até o final do século XIX, foi o abandono da filosofia dos direitos naturais e sua
substituição pelo tecnocrático utilitarismo. Em vez de a liberdade ser fundamentada no
imperativo moral de que todo indivíduo tem direito a sua pessoa e propriedade, isto é,
em vez de a liberdade ser baseada primariamente na justiça e no que é certo, o
utilitarismo via a liberdade como o melhor modo, em geral, de alcançar um bem-estar
geral e um bem comum vagamente definidos. Houve duas conseqüências graves
oriundas desta mudança dos direitos naturais para o utilitarismo. Primeiro, a pureza do
objetivo e a consistência dos princípios foram inevitavelmente abaladas. Ao passo que,
por um lado, o libertário defensor dos direitos naturais, buscando a moralidade e a
justiça, se agarra militantemente a princípios puros, o utilitarista só valoriza a liberdade
como uma conveniência ad hoc. E como a conveniência pode e de fato muda de acordo
com os ares, é fácil para o utilitarista, em seu frio cálculo de custos e benefícios, passar
a defender o estatismo com argumentos ad hoc aplicados caso a caso, abandonando
assim os princípios. De fato, isso foi precisamente o que ocorreu com os utilitaristas
benthamistas na Inglaterra: começando com um libertarismo e um laissez-faire ad hoc,
eles acharam fácil deslizar cada vez mais para dentro do estatismo. Um exemplo foi a
campanha pela "eficiência", e, portanto, pelo fortalecimento, dos serviços públicos e do
poder executivo, uma eficiência que teve precedência sobre qualquer conceito de
justiça, vindo até a substituí-la.
Segundo, e igualmente importante, é absurdamente raro encontrar um utilitarista que
seja também um radical, que anseie por uma abolição imediata do mal e da coerção.
Utilitaristas, com sua devoção à conveniência, quase que inevitavelmente se opõem a
qualquer forma de distúrbio ou mudança radical. Jamais existiram revolucionários
utilitaristas. Logo, os utilitaristas nunca são abolicionistas imediatistas. O abolicionista
só o é porque deseja eliminar o mal e a injustiça o mais rápido possível. Ao escolher seu
objetivo, não há espaço para uma avaliação fria, ad hoc, de custos e benefícios. Sendo
assim, os liberais clássicos utilitaristas abandonaram o radicalismo e se tornaram meros
reformadores gradualistas. Mas ao se tornarem reformadores, eles também se colocaram
numa posição de conselheiros e especialistas em eficiência a serviço do Estado. Em
outras palavras, eles inevitavelmente vieram a abandonar não só o princípio libertário,
como também uma estratégia libertária consistente. Os utilitaristas acabaram sendo
meros apologistas da ordem existente, do status quo, e portanto estavam abertos às
acusações dos socialistas e corporativistas progressistas de que eles tinham curta visão e
de que eram somente oponentes conservadores de toda e qualquer mudança. Assim,
começando como radicais e revolucionários, como opostos extremos dos conservadores,
os liberais clássicos terminaram como a imagem do que combatiam.
Este enfraquecimento utilitário do libertarismo ainda persiste. Quando o pensamento
econômico dava os primeiros passos, o utilitarismo seduziu os economistas de livre-
mercado, através da influência de Bentham e Ricardo, e esta influência está mais viva
hoje do que nunca. A atual economia de livre-mercado está permeada de apelos em prol
do gradualismo, com desprezo pela ética, pela justiça e pelos princípios, e com um
desejo de abandonar os princípios do livre-mercado após a primeira análise de custos e
benefícios. Dessa forma, a economia de livre-mercado é geralmente vislumbrada pelos
intelectuais como uma mera apologia de um status quo ligeiramente modificado, e
freqüentemente essas acusações são corretas.
A segunda mudança fatal na ideologia dos liberais clássicos ocorreu durante a segunda
metade do século XIX, quando, pelo menos por algumas décadas, eles adotaram as
doutrinas do evolucionismo social, freqüentemente chamado de "darwinismo social".
Em geral, historiadores estatistas têm pintado darwinistas sociais liberais como Herbert
Spencer e William Graham Sumner como cruéis defensores do extermínio, ou pelo
menos do desaparecimento, dos "menos aptos" socialmente. Boa parte disso era
simplesmente a maquiagem das doutrinas econômicas e sociológicas de livre-mercado
nos termos evolucionistas que então estavam em voga. Mas o aspecto realmente
importante e prejudicial do darwinismo social era a transposição ilegítima para a esfera
social da visão de que as espécies (ou, mais tarde, os genes) se modificam muito, muito
lentamente, depois de milênios. Os liberais darwinistas sociais vieram então a
abandonar a própria idéia de revolução ou mudanças radicais em favor de uma atitude
indolente, de aguardo das pequenas mudanças evolucionárias através das eras. Em
resumo, ignorando o fato de que o liberalismo havia tido que destruir o poder das elites
dominantes com uma série de mudanças radicais e revoluções, os darwinistas sociais se
tornaram conservadores, opondo-se a quaisquer medidas radicais e favorecendo apenas
as menores das mudanças graduais.6
De fato, o grande libertário Spencer é ele próprio uma ilustração fascinante dessa
mudança no liberalismo clássico (e seu caso é semelhante ao do americano William
Graham Sumner). Em certo sentido, Herbert Spencer incorpora em si muito do declínio
do liberalismo no século XIX. Pois Spencer começou como um liberal magnificamente
radical, virtualmente um libertário puro. Mas, ao passo que o vírus da sociologia e do
darwinismo social tomavam sua alma, Spencer abandonou o libertarismo como um
movimento histórico dinâmico e radical, sem contudo abandoná-lo na teoria pura.
Embora aguardasse uma eventual vitória da liberdade pura, do "contrato" contra o
"status", da indústria contra o militarismo, Spencer passou a considerar essa vitória
inevitável, mas apenas após milênios de gradual evolução. Assim, Spencer abandonou o
liberalismo como um credo combativo e radical e confinou seu liberalismo, na prática, a
ações de retaguarda enfadonhas, conservadoras, contra o crescimento do coletivismo e
do estatismo de seu tempo.
Porém, se o utilitarismo, apoiado pelo darwinismo social, era o principal agente do
declínio filosófico e ideológico do movimento liberal, a razão única mais importante,
até desastrosa, para sua destruição foi seu abandono dos previamente rígidos princípios
anti-guerra, anti-império e anti-militaristas. País a país, foi a melodia sedutora do
Estado-nação e do império que destruiu o liberalismo clássico. Na Inglaterra, os liberais,
no final do século XIX e no começo do XX, abandonaram a posição anti-guerras e anti-
imperialista, o "Little Englandism"7 de Cobden, Bright e da Escola de Manchester. Em
seu lugar, eles adotaram uma obscenidade intitulada "imperialismo liberal" — juntando-
se aos conservadores na expansão do império, e aos conservadores e socialistas de
direita no imperialismo e coletivismo destrutivos da Primeira Guerra Mundial. Na
Alemanha, Bismarck foi capaz de dividir os anteriormente quase triunfantes liberais ao
empreender a sedutora unificação da Alemanha a ferro e fogo. Em ambos os países, o
resultado foi a destruição da causa liberal.
Nos Estados Unidos, o partido liberal clássico há muito tempo era o Partido Democrata,
conhecido na segunda metade do século XIX como "o partido da liberdade pessoal".
Basicamente, ele era não só o partido da liberdade pessoal, mas também da liberdade
econômica; o resoluto oponente da Proibição, das blue laws8 e da educação
compulsória; o devotado defensor do livre comércio, do hard money (ausência de
inflação governamental), da separação do sistema bancário do Estado e do absoluto
mínimo governo. Ele tentava minimizar a níveis desprezíveis a influência dos governos
estaduais e o poder do governo federal a virtualmente zero. Nas questões externas, o
Partido Democrata, embora menos rigorosamente, tendia a ser o partido da paz, do
antimilitarismo e do antiimperialismo. Mas o libertarismo pessoal e econômico foram
ambos abandonados com a tomada do Partido Democrata por Bryan e seus aliados em
1896, e a política externa de não-intervenção foi então rudemente abandonada por
Woodrow Wilson duas décadas mais tarde. Foi uma intervenção e uma guerra que
deram início a um século de morte e devastação, de guerras e despotismos, e também
um século em todos os países beligerantes do novo estatismo corporativista — de um
welfare-warfare State9 liderado por uma aliança entre o governo, os grandes negócios,
os sindicatos e os intelectuais — que mencionamos anteriormente.
O último suspiro do antigo liberalismo laissez-faire na América foi dado por corajosos e
quase idosos libertários que se uniram para formar a Anti-Imperialist League na virada
do século, para combater a guerra americana contra os espanhóis e a subseqüente guerra
imperialista americana para esmagar os filipinos que tentavam conquistar a
independência tanto da Espanha quanto dos Estados Unidos. Aos olhos atuais, a idéia de
um antiimperialista que não seja marxista pode parecer estranha, mas a oposição ao
imperialismo se iniciou com liberais como Cobden e Bright na Inglaterra e Eugen
Richter na Prússia. Na verdade, a Anti-Imperialist League, liderada pelo economista e
industrial de Boston Edwad Atkinson (e que incluía Sumner) consistia em sua maior
parte de liberais radicais que haviam lutado o bom combate pela abolição da escravatura
e que, então, defenderam o livre comércio, o hard money e o governo mínimo. Para
eles, a batalha final contra o novo imperialismo americano era simplesmente uma parte
da luta de suas vidas inteiras contra a coerção, o estatismo e a injustiça — contra a
extensão do governo sobre todas as áreas da vida, tanto no plano doméstico quanto no
estrangeiro.
Nós traçamos a história um tanto sinistra do declínio e da queda do liberalismo clássico
após o seu crescimento e triunfo parcial nos séculos anteriores. Qual, então, é a razão do
ressurgimento e do florescimento do pensamento e das atividades libertárias nos últimos
anos, particularmente nos Estados Unidos? Como as incríveis forças e coalizões em prol
do estatismo puderam ceder tanto a um movimento libertário ressuscitado? Não deveria
a continuada marcha do estatismo no final do século XIX e no século XX causar
pessimismo em vez de abrir as portas para um ressurgimento de um libertarismo
aparentemente moribundo? Por que o libertarismo não permaneceu morto e enterrado?
Nós vimos por que o libertarismo poderia naturalmente nascer e se desenvolver
primeiro nos Estados Unidos, uma terra impregnada de tradição libertária. Mas nós
ainda não examinamos a questão: Por que aconteceu renascimento do libertarismo nos
últimos anos? Que condições contemporâneas levaram a este desenvolvimento
surpreendente? Devemos adiar a resposta desta questão até o final do livro, até que
examinemos primeiro o que é o credo libertário e como esse credo pode ser aplicado
para resolver os principais problemas de nossa sociedade.
Notas:
1 Veja Murray N. Rothbard, Conceived in Liberty, vol. 2, "Salutary Neglect": The
American Colonies in the First Half of the 18th Century (New Rochelle, N.Y.:
Arlington House, 1975), p. 194. Confira também John Trenchard e Thomas Gordon,
Cato's Letters, em D. L. Jacobson, ed. The English Libertarian Heritage (Indianápolis:
Bobbs-Merrill Co. 1965).
2 Para o impacto libertário radical da Revolução na América, veja Robert A. Nisbet, The
Social Impact of the Revolution (Washington, D.C.: American Enterprise Institute for
the Public Policy Research, 1974). Para o impacto na Europa, veja o importante
trabalho de Robert R. Palmer, The Age of the Democratic Revolution, vol. I (Princeton,
N.J.: Princeton University Press, 1959).
3 Bernard Bailyn, "The Central Themes of the American Revolution: An Interpretation",
in: S. Kurtz e J. Hutson, eds. Essays on the American Revolution (Chapel Hill, NC.:
University of North Carolina Press, 1973), pp. 26-28.
4 Monticello é o nome da casa de Thomas Jefferson, localizada próximo a
Charlottesville, na Virginia. [N.T.]
5 Citado em William H. Pease e Jane H. Pease, eds., The Antislavery Argument
(Indianápolis: Bobbs-Merrill Co., 1965), p. xxxv.
6 Ironicamente, porém, a moderna teoria evolucionária está abandonando
completamente a teoria das mudanças evolucionárias graduais. Em vez disso, agora se
percebe que uma explicação mais exata da evolução é a de agudos e repentinos saltos de
uma espécie estática de equilíbrio para outra; isto está sendo chamado de teoria do
"equilíbrio pontuado". Como um dos expositores desta nova visão, o Professor Stephen
Jay Gould escreve: "O gradualismo é uma filosofia de mudança, não uma indução da
natureza. (...) O gradualismo também tem fortes componentes ideológicos mais
responsáveis por seu prévio sucesso do que qualquer similaridade objetiva com a
natureza externa.
"(...) A utilidade do gradualismo como uma ideologia deve explicar muito de sua
influência, pois ele se tornou o dogma quintessencial do liberalismo contra as mudanças
radicais — mudanças radicais vão contra as leis da natureza." Stephen Jay Gould,
"Evolution: Explosion, Not Ascent", New York Times (22 de janeiro de 1978).
7 "Pequeno Inglaterrismo", isto é, a posição de que a Inglaterra não deveria embarcar em
aventuras expansionistas. [N.T.]
8 A Proibição foi o período dos anos 1920 em que vigorou a Lei Seca nos Estados
Unidos. As blue laws são leis que obrigam o cumprimento de certos padrões morais,
principalmente a observância do domingo como dia de descanso. [N.T.]
9 Isto é, da combinação de um Estado de bem-estar com um Estado beligerante. [N.T.]
2. Propriedade e troca
O credo libertário se baseia em um axioma central: o de que nenhum homem ou grupo
de homens pode agredir a pessoa ou a propriedade de outro homem. Isto pode ser
chamado de “axioma da não-agressão”. A “agressão” é definida como a iniciação ou a
ameaça do uso de violência física contra a pessoa ou a propriedade de alguém. Agressão
é, portanto, sinônimo de invasão.
Se nenhum homem pode agredir outro homem, ou seja, se todos têm o absoluto direito
de estar “livres” de agressões, isso significa que o libertário defende firmemente as
chamadas “liberdades civis”: a liberdade de se expressar, de publicar, de se associar e de
executar quaisquer “crimes sem vítimas”, como o uso ou a compra de pornografia, os
desvios sexuais e a prostituição (os quais, na verdade, nem mesmo são considerados
“crimes” pelo libertário, já que ele define o “crime” como a invasão violenta da vida ou
propriedade de alguém). Além disso, ele considera o alistamento militar obrigatório
como equivalente à escravidão em grande escala. E, uma vez que a guerra,
principalmente a guerra moderna, implica o massacre em massa de civis, o libertário
considera tais conflitos o mesmo que assassinatos em massa e, portanto, totalmente
ilegítimos.
Todas estas posições são consideradas “esquerdistas” no espectro ideológico
contemporâneo. Por outro lado, uma vez que o libertário também se opõe à invasão dos
direitos de propriedade privada, isso significa que ele, da mesma forma, se opõe a
interferência do governo nos direitos de propriedade ou na economia de livre mercado
através de controles, regulações, subsídios ou proibições. Pois se todos têm direito a ter
sua propriedade livre de depredações agressivas, então todo indivíduo também tem o
direito de transferir sua propriedade (doação e herança) e de trocá-la pela propriedade
dos outros (livre contrato e economia de livre mercado) sem qualquer interferência. O
libertário defende o direito irrestrito à propriedade privada e à livre troca; ou seja, ele
defende o sistema do “capitalismo laissez-faire”.
Na terminologia atual, a posição libertária em relação à propriedade e à economia seria
considerada de “extrema direita”. Mas o libertário não vê qualquer inconsistência em
ser “esquerdista” em algumas questões e “direitista” em outras. Pelo contrário, ele
considera a própria posição virtualmente como a única consistente – consistente com a
liberdade de cada indivíduo. Como pode o esquerdista se opor à violência da guerra e ao
alistamento militar obrigatório enquanto dá suporte à violência da taxação e dos
controles governamentais? E como pode o direitista trombetear sua devoção à
propriedade privada e à livre empresa enquanto apóia guerras, o alistamento obrigatório
e a proibição de atividades não-invasivas que ele considera imorais? Como pode o
direitista defender o livre mercado se não vê nada de errado nos enormes subsídios,
distorções e ineficiências envolvidas do complexo industrial-militar?
Opondo-se a qualquer tipo de agressão de um indivíduo ou grupo de indivíduos contra
os direitos à vida e propriedade, o libertário percebe que, ao longo da historia e até os
dias presentes, tem existido um agressor central, dominante e primordial desses direitos:
o Estado. Ao contrário de todos os outros pensadores, sejam de esquerda, de direita ou
de centro, o libertário se recusa a dar ao Estado a sanção moral para cometer ações que
quase todos concordam que seriam imorais, ilegais, e criminosas caso fossem praticadas
por qualquer pessoa ou grupo na sociedade. O libertário, em suma, insiste na aplicação
dos princípios morais de justiça a todos e não abre exceções especiais a qualquer pessoa
ou grupo de pessoas. Se nós observarmos o Estado despido, por assim dizer, nós
percebemos que é universalmente aceito e que ele é até incentivado a praticar atos que
até não-libertários consideram ser crimes condenáveis. O Estado freqüentemente comete
assassinatos em massa, que ele chama de “guerras”, ou, às vezes, de “supressão da
subversão”; o Estado pratica a escravidão através das suas forças armadas, e a chama de
“alistamento militar obrigatório”; sua existência se deve à pratica do roubo que ele
chama de “taxação”. O libertário insiste que mesmo que estas práticas sejam apoiadas
pela maioria da população, isso é irrelevante para suas naturezas: independentemente da
aceitação popular, a guerra é assassinato em massa, serviço militar obrigatório é
escravidão e a taxação é roubo. Resumindo, o libertário é quase como a criança da
fábula, que aponta insistentemente que o rei está nu.
Ao longo dos tempos, o rei teve uma série de pseudo-roupas feitas para ele pela casta de
intelectuais das nações. Nos últimos séculos, os intelectuais disseram ao público que o
Estado ou seus chefes tinham origem divina ou que, ao menos, estavam investidos de
autoridade divina. Assim, o que poderia parecer aos olhos ingênuos e destreinados
despotismo, assassinato em massa e roubo em larga escala se tratava apenas do divino
exercendo seus desígnios benignos e misteriosos através do corpo político. Em décadas
recentes, com o desgaste da sanção divina, os “intelectuais da corte” do rei se
sofisticaram em sua apologia: informaram o público de que o que o governo faz visa o
“bem comum” e o “bem-estar público”, de que a taxação e os gastos do governo estão
sujeitos a um misterioso processo “multiplicador” que mantém a economia em
equilíbrio, e de que, de qualquer forma, uma grande variedade de “serviços”
governamentais nunca poderia ser provida por cidadãos agindo voluntariamente no
mercado ou na sociedade. O libertário nega tudo isso: ele considera essas várias
apologias como formas fraudulentas de se obter suporte do público para o domínio
estatal, e insiste que quaisquer serviços que o governo de fato provê poderiam ser
fornecidos muito mais eficientemente e moralmente por empresas e cooperativas
privadas.
O libertário, por essa razão, considera como uma de suas principais tarefas educacionais
a de propagar a desmistificação e dessacralização do Estado entre seus infelizes súditos.
Sua tarefa é demonstrar repetidamente que não só o rei, mas também o Estado
“democrático” está nu, que todos os governos continuam a existir através da exploração
do público, e que essa exploração vai de encontro às necessidades reais. Ele se esforça
para mostrar que a própria existência da taxação e do Estado necessariamente cria uma
divisão de classes entre os governantes exploradores e os governados explorados. Ele
busca mostrar que a tarefa dos intelectuais da corte, que sempre apoiaram o Estado,
sempre foi a de construir uma nuvem de mistificação com o objetivo de induzir o
público a aceitar a autoridade do Estado, e que estes intelectuais obtêm, em troca, uma
parte do poder e dos bens extraídos pelos governantes dos seus súditos enganados.
Tome-se, por exemplo, a instituição da taxação, que os estatistas dizem ser, em algum
sentido, “voluntária”. Todo aquele que realmente acredita na natureza “voluntária” da
taxação está convidado a se recusar a pagar os impostos e a ver o que então acontece
consigo. Se analisarmos a taxação, vemos que, dentre todas as pessoas e instituições da
sociedade, somente o governo adquire sua receita através da coerção violenta. Todos os
outros componentes da sociedade adquirem seus rendimentos através de doações
voluntárias (hospedagens, sociedades beneficentes, clubes de xadrez) ou da venda de
produtos ou serviços voluntariamente comprados pelos consumidores. Se qualquer
pessoa ou instituição que não o governo começasse a “cobrar impostos”, isso seria
claramente considerado coercitivo e criminoso. Contudo, as mistificações a respeito da
“soberania” esconderam tão bem esse processo que somente os libertários estão
preparados para chamar a taxação do que ela realmente é: roubo legalizado e organizado
em grande escala.
Os direitos de propriedade
Se o axioma central do credo libertário é a não-agressão à pessoa e propriedade de
qualquer pessoa, como se chegou até ele? Qual é sua base ou sustentação? Neste ponto
os libertários do passado e do presente têm discordado consideravelmente. De modo
geral, existem três tipos de fundamentação para o axioma libertário, correspondendo a
três tipos de filosofias éticas: a emotivista, a utilitarista e a dos direitos naturais. Os
emotivistas afirmam que eles aceitam como sua premissa a liberdade ou não-agressão
em bases puramente subjetivas e emocionais. Mas embora suas intensas emoções
possam parecer bases válidas para sua própria filosofia política, isso mal pode servir
para convencer qualquer outra pessoa. Ao se excluírem do terreno da racionalidade, os
emotivistas asseguram a falta de sucesso do próprio estimado discurso.
Os utilitaristas afirmam, a partir do estudo das conseqüências da liberdade em
comparação a sistemas alternativos, que a liberdade pode assegurar que os objetivos
aprovados pela maioria sejam alcançados: a harmonia, a paz, a prosperidade, etc.
Ninguém disputa agora que as conseqüências relativas devam ser estudadas ao se
avaliar os méritos e deméritos das idéias respectivas. Mas existem muitos problemas em
nos prendermos a uma ética utilitária. Um dos motivos é que o utilitarismo assume que
podemos avaliar as alternativas e decidir entre políticas a partir de suas boas ou más
conseqüências. Mas se é legítimo aplicar julgamento de valores às conseqüências de X,
por que não é igualmente legítimo aplicar tais julgamentos ao próprio X? Será que não
pode haver algo da própria natureza de um ato que permita que ele seja considerado
bom ou ruim?
Outro problema é que os utilitaristas raramente adotam um princípio como absoluto e
consistente critério para ser aplicado às variadas situações concretas do mundo real. Na
melhor das hipóteses, eles usam os princípios como uma orientação ou aspiração, como
uma tendência que poderiam escolher ignorar a qualquer momento. Este foi o maior
defeito dos radicais ingleses do século XIX, que adotaram as posições laissez-faire dos
liberais do século XVIII, mas substituíram o conceito supostamente “místico” dos
direitos naturais pelo supostamente “científico” utilitarismo como base para a própria
filosofia. Assim, os liberais do século XIX passaram a tomar o laissez-faire como uma
vaga tendência, não como um critério absoluto, e por essa razão comprometeram
fatalmente o credo libertário. Dizer que não se pode “confiar” num utilitarista para
manter o princípio libertário em cada aplicação específica pode parecer áspero, mas
coloca as coisas da forma que são. Um exemplo contemporâneo notável é o economista
de livre mercado Milton Friedman, que, como os economistas clássicos que o
antecederam, defende a liberdade contra a intervenção estatal como uma tendência
geral, mas na prática concede inúmeras danosas exceções – exceções que servem para
enfraquecer o princípio quase que completamente, especialmente nas áreas da polícia,
das questões militares, da educação, da taxação, da assistência social, das
externalidades, das leis antitruste, da moeda e do sistema bancário.
Consideremos um exemplo extremo: suponha-se que uma sociedade cresse
fervorosamente que todos os ruivos fossem agentes do demônio e que, por isso,
deveriam ser executados quando encontrados. Assumamos ainda que exista somente
uma pequena parcela de ruivos em qualquer geração – tão poucos que sejam
estatisticamente insignificantes. O libertário utilitarista pode muito bem concluir:
“Embora o assassinato de ruivos isolados seja deplorável, as execuções são pequenas
em número; a grande maioria do público, não sendo ruiva, obtém uma satisfação
psíquica enorme pela execução pública de ruivos. O custo social é insignificante, o
benefício social e psíquico para o resto da sociedade é grande; portanto, é correto e
apropriado para a sociedade executar os indivíduos ruivos.” O libertário defensor dos
direitos naturais, muito preocupado com a justiça dos atos, reagirá com horror e se
oporá determinada e inequivocamente às execuções, uma vez que são totalmente
injustificáveis o assassinato e a agressão de pessoas pacíficas. A conseqüência de parar
os assassinatos – a privação da maior parte da sociedade de grandes prazeres psíquicos –
não influenciaria de qualquer maneira esse tipo de libertário, o libertário “absolutista”.
Tendo uma devoção à justiça e à consistência lógica, o libertário dos direitos naturais
alegremente admite ser um “doutrinário” – ser, em suma, um imperturbável seguidor
das próprias doutrinas.
Voltemo-nos então à fundamentação dos direitos naturais do credo libertário,
fundamentação que, de uma forma ou de outra, foi adotada pela maioria dos libertários,
do passado e do presente. Os “direitos naturais” são o pilar de uma filosofia política que
está cravada na estrutura maior do “direito natural”. A teoria do direito natural se baseia
da compreensão de que vivemos em um mundo em que há mais de uma entidade – e
que, de fato, há um grande número delas – e que cada entidade tem propriedades
distintas e específicas, uma “natureza” diversa, que pode ser investigada pela razão
humana, por suas percepções sensoriais e faculdades mentais. O cobre tem uma
natureza particular e se comporta de certa forma, assim como o ferro, o sal, etc. A
espécie humana, portanto, tem uma natureza especificável, assim como o mundo à sua
volta e as formas pelas quais eles podem interagir. Para expressar isso em termos
indevidamente breves, a atividade de cada entidade inorgânica e orgânica é determinada
por sua própria natureza e pela natureza das outras entidades com as quais ela se
relaciona. Especificamente, ao passo que o comportamento das plantas e, pelo menos,
dos animais menos evoluídos é determinado por suas naturezas biológicas ou, talvez,
por seus instintos, a natureza do homem é tal que cada pessoa precisa, para agir,
escolher seus próprios fins e empregar seus próprios meios para alcançá-los. Sem
possuir instintos automáticos, cada homem deve aprender sobre si mesmo e sobre o
mundo, usar sua mente para escolher valores, aprender sobre causas e efeitos e agir
propositadamente para se manter e promover sua vida. Uma vez que os homens podem
pensar, sentir, estimar e agir somente como indivíduos, é vital para a sobrevivência e
prosperidade de cada homem que ele seja livre para aprender, escolher, desenvolver
suas aptidões e agir baseado em seus conhecimentos e valores. Este é o caminho
necessário para a natureza humana; interferir e prejudicar este processo através da
violência vai frontalmente de encontro ao que é requerido pela natureza humana para a
vida e prosperidade do homem. A interferência violenta nos aprendizados e nas escolhas
dos homens é, deste modo, profundamente “anti-humana”; ela viola as leis naturais das
necessidades humanas.
Os individualistas sempre foram acusados por seus inimigos de serem “atomistas” – de
postularem que cada indivíduo vive numa espécie de vácuo, pensando e escolhendo sem
relação com mais ninguém na sociedade. Este, porém, é um argumento-espantalho que
revela certo autoritarismo; poucos individualistas foram “atomistas” – talvez nenhum
tenha sido. Pelo contrário, é evidente que os indivíduos sempre aprendem uns com os
outros, cooperam e interagem entre si, e que isto também é necessário para a
sobrevivência humana. Mas o ponto é que cada indivíduo é quem faz a escolha final de
quais influências adotar e quais rejeitar, ou quais adotar primeiro e quais
posteriormente. O libertário aprova o processo de trocas voluntárias e cooperação entre
os indivíduos livres; o que ele abomina é o uso de violência para interferir nessa
cooperação voluntária e para forçar alguém a escolher e a agir de maneira diferente da
ditada por sua própria mente.
O método mais fácil para elaborar a demonstração dos direitos naturais da posição
libertária é dividindo-a em partes e tomando-se como ponto de partida o axioma básico
do “direito de auto-propriedade”. O direito de auto-propriedade afirma que é de direito
absoluto de cada pessoa, por sua natureza humana, “possuir” o próprio corpo; isto é,
controlá-lo livre de interferências coercitivas. Uma vez que o indivíduo precisa pensar,
aprender, estimar e escolher os seus fins e meios para sobreviver e prosperar, o direito
de auto-propriedade dá ao homem o direito de realizar essas atividades vitais sem ser
impedido ou restringido por agressores.
Consideremos também as conseqüências da negação do direito de propriedade de cada
homem sobre sua própria vida. Haveria então apenas duas alternativas: ou (1) certa
classe de pessoas, A, tem o direito de propriedade sobre outra classe, B; ou (2) todos têm
o direito de possuir uma igual porção de todas as outras pessoas. A primeira alternativa
implica que a Classe A merece possuir direitos humanos, mas que a Classe B é, na
realidade, formada por indivíduos subumanos e, portanto, não é digna de tais direitos.
Porém, uma vez que eles são de fato seres humanos, a primeira alternativa se contradiz
por negar os direitos humanos naturais a um grupo de humanos. Além disso, como
veremos, conceder à Classe A a propriedade sobre a Classe B significa que a primeira
pode explorar, e portanto viver parasitariamente, às custas da segunda. Mas este
parasitismo em si viola o requisito econômico básico da vida: a produção e a troca.
A segunda alternativa, que podemos chamar de “comunalismo participativo” – ou
“comunismo participativo” –, afirma que cada homem deve ter o direito de possuir uma
quota igual de todas as outras pessoas. Se existem dois bilhões de pessoas no mundo,
então todos têm o direito de possuir um dois bilhões de avos de cada outra pessoa. Em
primeiro lugar, nós podemos dizer que este ideal se baseia em um absurdo: afirmar que
cada homem tem o direito de possuir uma parte de todas as pessoas, embora não possa
possuir a si próprio. Em segundo lugar, podemos imaginar a viabilidade de tal mundo:
um mundo em que nenhum homem é livre para executar nenhuma ação qualquer sem a
aprovação, ou, de fato, o comando, de todas as outras pessoas na sociedade. Deve estar
claro que, neste tipo de mundo “comunista”, ninguém seria livre para fazer nada e a raça
humana iria rapidamente desaparecer. Mas se um mundo onde há zero de auto-
propriedade e cem por cento de propriedade sobre os outros implica na extinção da raça
humana, qualquer passo nesta direção também contraria as leis naturais do que é melhor
para o homem e sua vida na terra.
Finalmente, contudo, o mundo comunista participativo não pode ser posto em prática.
Pois é fisicamente impossível que todas as pessoas mantenham registros contínuos
sobre todas as outras para que assim exerçam suas propriedades parciais sobre elas. Na
prática, portanto, o conceito universal e equivalente de propriedade sobre os outros é
utópico e impossível, e a supervisão, o controle e a posse dos outros necessariamente
recairia sobre um grupo especializado, o qual, deste modo, se tornaria a classe
dominante. Assim, na prática, qualquer tentativa de um regime comunista
automaticamente geraria uma classe dominante e nós estaríamos de volta à nossa
primeira alternativa.
O libertário, assim, rejeita estas alternativas e adota o direito universal de auto-
propriedade, um direito possuído por todos em virtude do próprio fato de serem
humanos. Uma tarefa mais difícil é estabelecer uma teoria de propriedade sobre objetos
não-humanos, sobre as coisas da terra. É comparativamente fácil reconhecer quando
alguém está agredindo o direito de propriedade de outra pessoa: se A ataca B, ele está
violando o direito de propriedade de B sobre o seu próprio corpo. Mas com objetos não
humanos o problema é mais complexo. Se, por exemplo, nós virmos X agarrando um
relógio que está em posse de Y nós não podemos automaticamente assumir que X está
agredindo o direito de propriedade de Y sobre o relógio; pois não poderia ocorrer que o
original, “verdadeiro” proprietário do relógio fosse X, que poderia por isso afirmar estar
restituindo sua propriedade legítima? Para decidir a questão, nós precisamos de uma
teoria de justiça para as propriedades, uma teoria que nos diga se X ou Y, ou mesmo
outro indivíduo, é o proprietário legítimo.
Alguns libertários tentam resolver o problema afirmando que quem quer que o governo
existente declare ter o título de certa propriedade deve ser considerado o proprietário
legítimo dela. Até aqui nós não investigamos profundamente a natureza do Estado, mas
a anomalia aqui deve estar clara: é realmente estranho que um grupo sempre suspeitoso
de praticamente todas as funções do governo repentinamente deixe que o governo
defina e aplique o precioso conceito de propriedade, a base e a sustentação de toda a
ordem social. São especialmente os utilitaristas pró-livre mercado que acreditam que é
mais viável começar o novo mundo libertário confirmando todos os títulos de
propriedade existentes; isto é, títulos e direitos de propriedade decretados pelo mesmo
governo que é condenado como um agressor crônico.
Ilustremos este ponto com um exemplo hipotético. Suponha-se que a agitação e a
pressão libertárias tenham chegado a um ponto tal que o governo e suas várias
ramificações estejam prontos para abdicar. Mas eles armam um ardiloso estratagema.
Logo antes de o governo de Nova York abdicar, ele aprova uma lei que torna toda a área
territorial de Nova York uma propriedade privada da família Rockefeller. Os
legisladores de Massachusetts fazem o mesmo para a família Kennedy. E assim por
diante, para cada estado. O governo poderia então abdicar e decretar a abolição dos
impostos e das legislações coercitivas, mas os libertários vitoriosos estariam agora
diante de um dilema. Devem eles reconhecer os novos títulos de propriedade como
legítimos? Os utilitaristas, que não têm qualquer teoria de justiça dos direitos de
propriedade, se fossem consistentes em sua aceitação dos títulos de propriedades
decretados pelo governo, teriam que aceitar a nova ordem social, na qual cinqüenta
novos comandantes coletariam impostos na forma de “aluguéis” impostos
unilateralmente. O ponto é que somente os libertários que defendem os direitos naturais,
somente aqueles libertários que têm uma teoria de justiça dos títulos de propriedade que
não depende do decreto governamental, estariam em posição de ridicularizar as
pretensões dos novos governantes de terem legítimas propriedades sobre o território do
país. Como o grande liberal do século XIX Lord Acton observou, o direito natural
fornece a única base sólida para uma crítica continuada das leis e dos decretos
governamentais.1 Qual é a posição específica dos direitos naturais em relação aos títulos
de propriedade é a questão que abordaremos agora.
Nós estabelecemos o direito de cada indivíduo à auto-propriedade, ao direito de
propriedade sobre seu corpo e sua pessoa. Mas as pessoas não são espectros flutuantes;
não são entidades auto-suficientes; elas só podem sobreviver e prosperar trabalhando
com a terra à sua volta. Elas precisam, por exemplo, estar situadas em algum lugar;
precisam também, para que possam sobreviver, transformar os recursos naturais em
“bens de consumo”, em objetos mais apropriados para seu uso. Os alimentos precisam
ser cultivados e comidos; os minerais precisam ser minerados, transformados em capital
e então em bens de consumo úteis, etc. O homem, em outras palavras, precisa possuir
não só sua própria pessoa, mas também objetos materiais para seu controle e uso.
Como, então, os títulos de propriedade destes objetos devem ser alocados?
Tomemos como nosso primeiro exemplo um escultor que trabalha numa obra de arte de
argila e outros materiais; deixemos de lado, por ora, a questão dos direitos de
propriedade originais sobre a argila e as ferramentas do escultor. Surge então a questão:
quem é o dono da obra de arte finalizada pelo escultor? Ela é, de fato, uma “criação” do
escultor, não no sentido de que ele criou matéria, mas no de que ele transformou uma
matéria provida pela natureza – a argila – em outra forma ditada por suas próprias idéias
e modelada por suas próprias mãos e sua própria energia. Não há dúvidas de que, se
todo homem tem o direito de auto-propriedade, e se ele precisa trabalhar os objetos
materiais da terra para ser capaz de sobreviver, então o escultor tem o direito de possuir
o produto, que foi tornado por ele, através de suas energias e esforços, uma verdadeira
extensão da sua personalidade. Ele imprimiu a marca de sua pessoa sobre a matéria-
prima, “misturando seu trabalho” com a argila, nas palavras do grande teórico dos
direitos de propriedade John Locke. E o produto transformado pela energia do escultor
se tornou uma incorporação material das idéias e da visão dele. John Locke coloca a
questão da seguinte forma:
(...) [T]odo homem tem uma propriedade sobre sua pessoa. Sobre ela
ninguém tem qualquer direito a não ser ele. O trabalho de seu corpo e de
suas mãos, podemos dizer, são propriamente dele. Então, com qualquer coisa
que ele remova do estado em que a natureza a proveu e deixou, ele misturou
o seu trabalho e juntou algo que é próprio seu, tornando-a sua propriedade.
Sendo ela removida por ele do estado comum em que a natureza a colocou,
esta coisa teve por seu trabalho algo anexado a ela que exclui o direito
comum de todos os outros homens. Por este trabalho ser propriedade
inquestionável do trabalhador, nenhum outro homem além dele tem o direito
sobre aquilo a que se juntou (...).2
Como no caso da propriedade sobre os corpos das pessoas, nós novamente temos três
alternativas lógicas: (1) ou o transformador, ou “criador”, tem o direito de propriedade
sobre sua criação; ou (2) outro homem ou grupo de homens tem o direito sobre aquela
criação, i.e., tem o direito de se apropriar dela pela força sem o consentimento do
escultor; ou (3) todo indivíduo no mundo tem uma quota igual de propriedade sobre a
escultura – a solução “comunal”. Novamente, em termos diretos, são poucos os que não
reconheceriam a injustiça monstruosa de confiscar a propriedade do escultor, em
benefício de uma ou mais pessoas, ou mesmo do mundo inteiro. Com que direito eles
fazem isso? Com que direito eles se apropriam do produto da mente e energia do
criador? Neste caso simples, o direito do criador de possuir o que ele misturou com sua
pessoa e trabalho seria geralmente concedido. (De novo, como no caso da propriedade
comunal de pessoas, a solução comunal, na prática, iria se reduzir a uma oligarquia de
alguns poucos, que explorariam o trabalho do criador em nome da “propriedade pública
mundial”).
O ponto principal, contudo, é que o caso do escultor aqui não é qualitativamente
diferente de todos os casos de “produção”. O homem ou o conjunto de homens que
extraiu a argila do chão e venderam para o escultor, podem não ser tão “criativos”
quanto o escultor, mas também são “produtores”. Eles também misturaram suas idéias e
conhecimentos tecnológicos ao solo provido pela natureza para criar um produto útil.
Eles também são “produtores" e também misturaram seu trabalho a materiais naturais
para transformá-los em bens úteis. Estas pessoas também têm direito à propriedade do
que produziram. Onde, então, começa o processo? Novamente, nos voltemos a Locke:
Aquele que se alimentou das nozes que colheu embaixo de um carvalho, ou
das maçãs que colheu dos pomares da floresta, certamente os apropriou para
si. Ninguém pode negar que os frutos eram dele. Eu pergunto então: quando
começaram a ser dele? Quando ele os digeriu? Ou quando os comeu? Ou
quando os cozinhou? Ou quando os levou para casa? Ou quando os colheu?
E é evidente que se a primeira coleta não os tornou dele, nada mais poderia.
Aquele trabalho traçou uma distinção entre eles e a propriedade comum. Ele
adicionou a eles mais do que a Natureza, a mãe comum de todos, havia
adicionado, e assim eles se tornaram suas propriedades privadas. E alguém
dirá que ele não tinha o direito a estas nozes ou maçãs de que ele se
apropriou somente porque não tinha o consentimento de toda a humanidade
para fazê-lo? Teria sido um roubo a apropriação para ele do que pertencia a
todos em comum? Se tal consentimento fosse necessário, o homem morreria
de fome, apesar da fartura com que Deus lhe proveu. (...) Deste modo, a
grama que meu cavalo mordeu, o gramado que meu servente cortou e o
minério que eu escavei onde estou, no local onde tenho um direito comum
com os outros, se tornam minha propriedade sem a designação ou o
consentimento de ninguém. Meu trabalho, ao removê-los do estado comum
em que se encontravam, fixou neles minha propriedade.
Ao tornar-se necessário o consentimento explícito de cada cidadão para se
apropriar de qualquer parte do que é comum, crianças ou serventes não
poderiam cortar a carne que seus pais ou mestres forneceram a eles sem
prover a cada um sua parte particular. Ainda que a água corrente na fonte
seja de todos, quem pode duvidar que a água do jarro somente seja daquele
que a recolheu? O seu trabalho a tirou das mãos da Natureza, onde ela era
comum (...) e por meio disso ele se apropriou dela.
Deste modo a lei da razão torna os veados propriedade dos indianos, que os
mataram; é permitido que sejam bens de quem aplicou seu trabalho sobre
eles, embora, antes, fossem de direito comum de todos. E dentre aqueles que
são considerados a parte civilizada da raça humana (...) essa lei da natureza
original para o início da propriedade, no que antes era comum, ainda
ocorre, e em virtude disso, o peixe que alguém pesca no oceano, esta grande
propriedade comum de toda a humanidade que ainda resta, ou o âmbar que
qualquer um consegue através dele, torna-se, por meio do trabalho que o
remove do estado comum em que a natureza o deixou, propriedade daquele
que aplicou seu esforço.3
Se todo homem é dono de sua pessoa e, portanto, de seu trabalho, e se por extensão
possui qualquer propriedade que tenha “criado” ou retirado de seu “estado natural”,
previamente sem uso, sem dono, e quanto à última grande questão, o direito de possuir e
controlar a própria terra? Isto é, se cada coletor tem o direito de possuir as nozes ou
maçãs que pegar, ou se o fazendeiro tem o direito de possuir sua colheita de trigo ou
pêssego, quem tem o direito de propriedade sobre a terra na qual estas coisas cresceram?
É neste ponto que Henry George e seus seguidores, que percorreram todo o caminho até
aqui ao lado dos libertários, tomam um caminho diferente e negam o direito individual
de propriedade sobre a própria terra, o chão onde estas atividades ocorreram. Os
georgistas argumentam que, embora todo homem deva possuir os bens que produz ou
cria, nenhum indivíduo tem o direito de tomar a própria terra como propriedade, porque
foi a Natureza ou Deus quem a criou. Contudo, se a terra deve de fato ser usada
eficientemente como um recurso, ela precisa ser possuída ou controlada por alguém ou
algum grupo, e nós novamente nos deparamos com nossas três alternativas: ou a terra
pertence ao primeiro usuário, que a usa para produção; ou pertence a um outro grupo de
pessoas; ou pertence ao mundo como um todo, com cada indivíduo tendo propriedade
sobre uma parte igual de cada acre de terra. A opção de George pela última alternativa
dificilmente resolverá seu problema moral: se a própria terra pertence a Deus ou à
Natureza, por que a propriedade coletiva de cada acre do mundo é mais moral do que a
propriedade individual? Na prática, novamente, é obviamente impossível que cada
pessoa exerça a propriedade efetiva de sua porção de quatro bilhões avos (se a
população mundial for, digamos, de quatro bilhões) de cada pedaço de terra na
superfície do planeta. Na prática, evidentemente, uma pequena oligarquia teria o
controle e as posses, não o mundo como um todo.
Porém, apesar destas dificuldades da posição georgista, a justificação dos direitos
naturais para a propriedade da terra é a mesma que a justificação original de todas as
outras propriedades. Pois, como vimos, nenhum produtor realmente “cria” matéria; ele
toma a matéria natural e a transforma através da energia de seu trabalho de acordo com
suas idéias e planos. Mas isso é precisamente o que o pioneiro – o “homesteader”4 – faz
quando toma para si a posse de terras previamente não usadas. Da mesma forma que o
homem que produz aço a partir do minério do ferro e transforma aquele minério através
de seu conhecimento e da sua energia, da mesma forma como faz o mesmo o homem
que retira o ferro do solo, também transforma a terra o homesteader que desobstrui,
cerca, cultiva ou constrói sobre a terra. O homesteader também transforma as
características da terra natural com seu trabalho e sua personalidade. O homesteader é
um dono tão legítimo da propriedade quanto o escultor ou o manufatureiro; ele é um
“produtor” tanto quanto os outros.
Além disso, se a terra é provida pela natureza ou por Deus, também são os talentos, a
saúde e a beleza das pessoas. E assim como todos estes atributos são dados para
indivíduos específicos e não para toda a “sociedade”, também são a terra e os recursos
naturais. Todos estes recursos são dados para indivíduos e não para a “sociedade”, que é
uma abstração e na realidade não existe. Não existe uma entidade chamada “sociedade”;
existem apenas indivíduos em interação. Dizer que a “sociedade” deve ter a propriedade
comum das terras ou de qualquer outra coisa, portanto, significa que um grupo de
oligarcas – na prática, burocratas do governo – deve possuí-las, ao custo da
expropriação do criador ou homesteader que originalmente colocaram o produto em
existência.
Além do mais, ninguém pode produzir nada sem o auxílio da terra, mesmo que somente
como um local para se situar. Nenhum homem pode produzir ou criar nada apenas
através do trabalho; ele precisa do auxílio da terra e de outras matérias-primas.
O homem vem ao mundo somente consigo próprio e com o mundo à sua volta – a terra
e os recursos naturais fornecidos pela natureza. Ele usa esses recursos e os transforma
em bens mais úteis através de seu trabalho, sua mente e sua energia. Portanto, se o
indivíduo não pode ter a propriedade de terras, ele também não pode ter a propriedade,
num sentido amplo, de nenhum dos frutos de seu trabalho. O fazendeiro não pode ter a
propriedade sobre sua colheita de trigo se não pode possuir a terra onde o trigo é
cultivado. Tendo sido seu trabalho inextricavelmente misturado à terra, ele não pode ser
privado da propriedade sobre ela sem ser privado da propriedade sobre o que produziu.
Ademais, se um produtor não tem direito aos frutos de seu trabalho, quem tem? Não é
fácil perceber por que um recém-nascido paquistanês deve ter uma legítima reclamação
moral a um pedaço da terra do Iowa que alguém tenha acabado de transformar numa
plantação de trigo – e vice versa, evidentemente, para um bebê do Iowa em relação a
uma fazenda paquistanesa. Os georgistas e outros comunalistas de terras poderiam
argumentar que toda a população mundial de fato “possui” as terras, mas se ninguém
ainda as usou, ela não é realmente possuída ou controlada por ninguém. O pioneiro, o
homesteader, o primeiro utilizador e transformador da terra, é o homem que leva este
simples recurso sem valor à produção e ao uso social. É difícil visualizar a moralidade
de privá-lo da propriedade da terra em favor de pessoas que nunca estiveram num raio
de mil milhas dela e que podem nem saber da existência da propriedade da qual
supostamente elas são as legítimas donas.
A questão moral, de direitos naturais, envolvida aqui fica ainda mais clara se
considerarmos o caso dos animais. Os animais são “terras econômicas”, uma vez que
são recursos dados pela natureza originalmente.5 No entanto alguém negaria o título
total de propriedade sobre um cavalo a um homem que o encontrou e domesticou? Seria
este caso de alguma maneira diferente das nozes e das maçãs, que são geralmente
concedidas ao coletor? Da mesma forma, algum homesteader toma a terra previamente
“selvagem”, indomada, e a “domestica”, colocando-a em algum uso produtivo. A
mistura de seu trabalho com um terreno deveria conceder a ele um título de propriedade
tão claro quanto no caso dos animais. Como afirmou Locke: “Daquela terra em que o
homem trabalha, planta, cultiva, a qual aprimora e de que dispõe dos produtos, toda ela
é sua propriedade. Ele, através de seu trabalho, por assim dizer, a retira de seu estado
comum.”6
A teoria libertária de propriedade foi eloqüentemente sumarizada por dois economistas
liberais franceses do século XIX:
Se o homem adquire direitos sobre as coisas, é porque ele é, ao mesmo
tempo, ativo, inteligente e livre; através de sua atividade ele se propaga pela
natureza externa; através de sua inteligência, ele a governa e a curva aos
seus propósitos; através de sua liberdade, estabelece entre ele próprio e ela
uma relação de causa e efeito e a torna sua. (...)
Onde há, num país civilizado, uma porção de terra, uma folha, que não
guarda a marca da personalidade do homem? Na cidade, nós estamos
rodeados pelo trabalho humano; andamos sobre calçadas e ruas
pavimentadas; foi o homem quem transformou o solo barrento, quem pegou
as pedras das laterais das colinas com as quais o cobriu. Nós vivemos em
casas; foi o homem quem retirou a pedra da pedreira, quem a lapidou, quem
planeou a madeira; foi o pensamento do homem que arranjou os materiais
apropriadamente e construiu a partir do que era antes somente pedra e
madeira. E no campo, a ação do homem também está presente em todo
lugar; os homens cultivaram os solos e gerações de trabalhadores o
amadureceram e enriqueceram; o trabalho do homem represou os rios e
criou fertilidade onde a água só havia trazido desolação. (...) Em todo lugar,
uma poderosa mão moldou a matéria e uma vontade inteligente a adaptou
(...) para a satisfação dos desejos de um mesmo ser. A natureza reconheceu o
seu mestre, e o homem se sente em casa na natureza. A natureza foi
apropriada por ele para seu uso; ela se tornou dele; ela é sua propriedade.
Esta propriedade é legítima; ela constitui um direito tão sagrado para o
homem quanto o livre exercício de suas faculdades. Ela é dele porque veio
inteiramente dele e não é nada mais que uma emanação de seu ser. Antes
dele, não existia nada além da matéria; a partir dele, e através dele, passou a
existir uma riqueza comerciável, isto é, itens que adquiriram valor através de
alguma indústria, pela manufatura, pelo manuseio, pela extração, ou
simplesmente pelo transporte. Desde a pintura de um grande mestre, a qual,
de toda a produção material, é talvez onde a matéria tenha o menor papel,
até o balde de água que o carregador tira do rio e leva ao consumidor, a
riqueza, qualquer que seja, adquire seu valor somente por qualidades
transferidas, e estas qualidades são parte da atividade, da inteligência e da
força humanas. O produtor deixou um fragmento de sua própria pessoa
naquilo que assim ganhou valor e que pode, portanto, ser considerado um
prolongamento das faculdades do homem que age sobre a natureza externa.
Como um ser livre, ele pertence a si mesmo; a causa, isto é, a força
produtiva, é ele mesmo; o efeito, isto é, a riqueza produzida, ainda é ele
próprio. Quem ousaria contestar um título de propriedade tão claramente
marcado pelo selo de sua personalidade? (...)
Então, é para o ser humano, o criador de toda a riqueza, que nós devemos
nos voltar (...) é pelo trabalho que o homem imprime sua personalidade na
matéria. É o trabalho que cultiva a terra e faz de um terreno baldio um
campo apropriado; é o trabalho que torna uma floresta selvagem um bosque
regular; é o trabalho, ou melhor, uma sucessão de trabalhos freqüentemente
executados por numerosos trabalhadores, que transformam a semente em
cânhamo, o cânhamo em fibra, a fibra em tecido, o tecido em roupa; que
transforma a pirita sem forma, apanhada na mina, em um bronze elegante
que enfeita os locais públicos e transmite para toda uma população o
pensamento de um artista. (...)
A propriedade, manifestada pelo trabalho, é de direito da pessoa de que se
emanou; como a pessoa, a propriedade é inviolável desde que não se estenda
ao ponto de se colidir com outro direito; como a pessoa, a propriedade é um
indivíduo, porque ela tem origem na independência do indivíduo, e porque,
quando várias pessoas cooperaram em sua produção, o último proprietário a
adquiriu com um valor, o fruto de seu trabalho pessoal, o trabalho de todos
os companheiros trabalhadores que o precederam: isto é o que geralmente
ocorre com produtos manufaturados. Quando uma propriedade foi
transferida, através da venda ou da herança, de uma mão para outra, suas
condições não mudaram; é ainda o fruto da liberdade humana manifestada
pelo trabalho, e aquele que passa a possuí-la tem os mesmos direitos que o
produtor que havia tomado posse dela.7
A sociedade e o indivíduo
Nós falamos extensamente sobre os direitos individuais; mas, pode-se perguntar, e os
“direitos da sociedade”? Eles não suplantam os direitos de um mero indivíduo? O
libertário, contudo, é um individualista; ele acredita que um dos erros primários da
teoria social é tratar a “sociedade” como se fosse realmente uma entidade existente. A
“sociedade” é às vezes tratada como uma figura superior ou semi-divina, com “direitos”
próprios que se sobrepõem a quaisquer outros; outras vezes, é considerada um mal que
pode ser responsabilizado for todos os problemas do mundo. O individualista defende
que apenas indivíduos existem, pensam, sentem, escolhem e agem; e que a “sociedade”
não é uma entidade viva, mas simplesmente um rótulo para um conjunto de indivíduos
em interação. Tratar a sociedade como algo que vive e age, então, obscurece as forças
reais que estão em funcionamento. Se, numa pequena comunidade, um grupo de dez
pessoas se reúne para roubar e expropriar três outras então isto é clara e evidentemente
um caso de um grupo de indivíduos agindo em conjunto contra outro grupo. Nesta
situação, se as dez pessoas pretendessem chamar a si próprias de “sociedade”, agindo de
acordo com “seus” interesses, a desculpa seria ridicularizada pelo tribunal; mesmo os
dez ladrões provavelmente teriam vergonha de usar este tipo de argumento. Mas basta
que o seu número cresça para que a verdade seja obscurecida e o público seja enganado.
O uso falacioso de uma palavra que designa o coletivo “nação”, similar neste aspecto
com a palavra “sociedade”, foi incisivamente apontado pelo historiador Parker T.
Moon:
Quando alguém usa a simples palavra “França”, pensa-se na França como
uma unidade, uma entidade. Quando (...) nós dizemos “A França enviou suas
tropas para conquistar Tunis”, nós atribuímos não apenas unidade, mas
personalidade ao país. As próprias palavras escondem os fatos e fazem das
relações internacionais um glamoroso drama no qual nações personificadas
são os atores, e facilmente nos esquecemos dos homens e mulheres de carne e
osso que são os verdadeiros atores. (...) [S]e nós não tivéssemos uma palavra
tal como “França”, (...) nós descreveríamos mais precisamente a expedição
a Tunis de uma forma tal como esta: “Alguns poucos destes trinta e oito
milhões de pessoas mandaram trinta mil outros para conquistar Tunis.” Esta
forma de expor o fato imediatamente sugere uma pergunta, ou melhor, uma
série de perguntas. Quem eram os “poucos”? Por que eles mandaram trinta
mil para Tunis? E por que estes obedeceram? A construção de impérios não
é feita por “nações”, mas por homens. O problema perante nós é descobrir
quais homens, quais minorias ativas de cada nação, estão diretamente
interessadas no imperialismo e então analisar as razões pelas quais as
maiorias pagam os custos e lutam nas guerras precipitadas pela expansão
imperialista.8
A visão individualista da “sociedade” pode ser resumida na seguinte frase: A
“sociedade” é todo mundo a não ser você. Posta desta forma, esta análise
pode ser usada para considerar aqueles casos onde a “sociedade” é tratada
não apenas como um super-herói com super-direitos, mas como um super-
vilão sobre cujos ombros é posta uma enorme culpa. Considere-se a visão
típica que não é o indivíduo o criminoso, mas sim a “sociedade”, que é
responsável por seu ato. Tome-se, por exemplo, o caso onde Smith rouba ou
mata Jones. A visão “retrógrada” é a de que Smith é responsável pelo que
fez. O liberal moderno9 responde que é a “sociedade” a responsável. Isto soa
sofisticado e humanitário até que nós apliquemos a perspectiva
individualista. Então nós vemos que o que os liberais estão realmente
dizendo é que todos exceto Smith, incluindo, claro, a vítima Jones, são
responsáveis pelo crime. Quase todas as pessoas reconheceriam o absurdo
desta posição. Mas a invocação da entidade fictícia “sociedade” ofusca o
processo. Como o sociólogo Arnold W. Green afirmou: “Segue-se, então, que
se a sociedade é responsável pelos crimes, e não os criminosos, somente
aqueles membros da sociedade que não cometem crimes podem ser
responsabilizados por eles. Um absurdo desse tipo obviamente só pode ser
resolvido considerando-se a sociedade como um demônio, um mal à parte
das pessoas e do que elas fazem.”10
O grande libertário americano Frank Chodorov enfatizou esta visão da sociedade
quando escreveu que a “Sociedade é as pessoas”. “Sociedade” é um conceito coletivo e
nada mais; é uma conveniência para designar um número de pessoas. O mesmo vale
para “família”, “multidão”, “gangue” ou qualquer outro nome que nós dermos a uma
aglomeração de pessoas. A Sociedade (...) não é uma outra “pessoa”; se o censo totaliza
cem milhões de pessoas, isso é tudo que há, nem um a mais, pois não pode haver
nenhum acréscimo à Sociedade, a não ser através da procriação. O conceito de
Sociedade como uma pessoa metafísica cai completamente quando observamos que a
Sociedade desaparece quando suas partes componentes se dispersam; como no caso de
uma “cidade fantasma” ou de uma civilização que nós conhecemos através dos artefatos
que deixou. Quando os indivíduos desaparecem, também desaparece o todo. O todo não
tem uma existência separada. Usar o substantivo coletivo com um verbo no singular nos
leva a uma armadilha da imaginação; nós tendemos a personalizar o coletivo e a pensar
nele como tendo um corpo e um espírito próprios.11
Livre troca e livre contrato
O núcleo central do credo libertário, então, é o estabelecimento do direito absoluto à
propriedade privada de todo homem: primeiro, em seu próprio corpo, e segundo, nos
recursos naturais previamente não-usados transformados por ele através de seu trabalho.
Estes dois axiomas, o direito de auto-propriedade e o direito à apropriação original,
formam todo o conjunto de princípios do sistema libertário. Toda a doutrina libertária,
assim, se resume na extensão e aplicação de todas as implicações desta doutrina central.
Por exemplo, um homem, X, tem a propriedade de sua pessoa, de seu trabalho e da terra
que limpou e na qual ele cultiva trigo. Outro homem, Y, tem a propriedade do peixe que
pesca; um terceiro homem, Z, possui os repolhos que plantou e a terra abaixo deles. Mas
se um homem é realmente dono de qualquer coisa, então ele tem o direito de doar ou
trocar seus títulos de propriedade, ponto a partir do qual aquele que recebeu o bem em
questão passa a possuir o título de propriedade absoluto. Deste direito corolário à
propriedade privada advém a justificação básica do livre contrato e da economia de livre
mercado. Desta forma, se X cultiva trigo, ele pode e provavelmente vai concordar em
trocar um pouco do seu trigo por um pouco do peixe pescado por Y ou por alguns dos
repolhos plantados por Z. Com os acordos voluntários para a troca de títulos de
propriedade de X e Y (ou de Y e Z, ou de X e Z), os bens se tornam com igual
legitimidade propriedade das outras pessoas. Se X troca seu trigo pelo peixe de Y, este
peixe se torna propriedade de X para que ele faça o que desejar e o trigo se torna
propriedade de Y da mesma maneira.
Além disso, um homem pode trocar não apenas os objetos tangíveis que possui, mas
também seu próprio trabalho, que evidentemente também é dele. Assim, Z pode vender
seus serviços de professor às crianças de X em troca de parte da produção do fazendeiro.
Tanto isso ocorre que a economia de livre mercado – e a especialização e divisão do
trabalho que ela implica – é a organização econômica mais produtiva conhecida pelo
homem e foi responsável pela industrialização e pela moderna economia sobre a qual a
civilização foi construída. Este é um feliz resultado utilitário do livre mercado, mas não
é, para o libertário, a razão primordial de seu suporte a este sistema. A razão primordial
é moral e baseada na defesa dos direitos naturais de propriedade privada que nós
demonstramos anteriormente. Mesmo se uma sociedade despótica onde houvesse uma
invasão sistemática dos direitos naturais fosse mais produtiva do que o que Adam Smith
chamou de “sistema de liberdade natural”, o libertário daria suporte a este sistema.
Felizmente, como em tantas outras áreas, a utilidade e a moral, os direitos naturais e a
prosperidade, andam de mãos dadas.
A economia de mercado desenvolvida, complexa como possa parecer, nada mais é do
que uma vasta rede de trocas voluntárias bilaterais e mutuamente acordadas, tal como
nós mostramos que ocorre entre os fazendeiros de trigo e repolhos, ou entre o
fazendeiro e o professor. Assim, quando eu compro um jornal por uma moeda, uma
troca bilateral mutuamente benéfica ocorre. Eu transfiro a propriedade da moeda para o
jornaleiro e ele transfere a propriedade do jornal para mim. Nós fazemos isso porque,
sob a divisão do trabalho, eu calculo que o jornal valha mais para mim do que a moeda,
enquanto o jornaleiro calcula preferir a moeda ao jornal. Ou, quando eu ensino em uma
universidade, eu estimo que prefira meu salário a não trabalhar, enquanto as autoridades
da universidade calculam que preferem meus serviços de professor a não me pagar o
dinheiro. Se o jornaleiro insistir em cobrar 50 centavos pelo jornal, eu posso decidir que
ele não vale o preço; da mesma forma, se eu insistir em triplicar meu atual salário, a
universidade pode decidir dispensar meus serviços.
Muitas pessoas estão dispostas a reconhecer a justiça e a justeza dos direitos de
propriedade e da economia de livre mercado, a reconhecer que o fazendeiro deveria
poder cobrar o quanto os consumidores estivessem dispostos a pagar por seu trigo ou
que o trabalhador deve poder cobrar tanto quanto os outros estão dispostos a pagar por
seus serviços. Mas elas hesitam num ponto: a herança. Se Willie Stargell é dez vezes
melhor e mais “produtivo” como jogador de baseball do que Joe Jack, elas estão
dispostas a reconhecer a justiça do salário dez vezes maior de Stargell; mas, perguntam
elas, qual é a justificativa para que alguém cujo único mérito foi ter nascido como um
Rockefeller herde muito mais do que alguém que nasceu como um Rothbard? A
resposta libertária é não se concentrar na pessoa que recebe a herança, na criança
Rockefeller ou na criança Rothbard, mas no doador, no homem que conferiu a herança.
Pois se Smith, Jones e Stargell têm direito a seus trabalhos e propriedades, e a trocar os
títulos de suas propriedades pelas propriedades dos outros, eles também têm o direito de
doar suas propriedades para quem quiserem. E, evidentemente, a maioria de tais
doações consiste de presentes dos proprietários a seus filhos – ou seja, heranças. Se
Willie Stargell é dono de seu trabalho e do dinheiro que ganha através dele, então ele
tem o direito de dar esse dinheiro ao bebê Stargell.
Na economia de livre mercado desenvolvida, portanto, o fazendeiro troca trigo por
dinheiro; o trigo é comprado pelo moleiro, que o tritura e transforma em farinha; o
moleiro vende a farinha ao padeiro, que produz pão; o padeiro vende o pão ao
atacadista, que, por sua vez, o vende ao varejista, que finalmente o vende ao
consumidor. E em cada etapa do caminho o produtor pode contratar os serviços dos
trabalhadores em troca de dinheiro. Como o “dinheiro” entra na equação é um processo
complicado; mas deve estar claro que, conceitualmente, o uso do dinheiro é equivalente
ao uso de qualquer mercadoria ou grupo de mercadorias úteis que são trocadas pelo
trigo, pela farinha, etc. Em vez do dinheiro, a mercadoria trocada poderia ser um tecido,
ferro ou qualquer outra coisa. Em cada etapa do caminho, trocas mutuamente benéficas
de títulos de propriedade são acordadas e executadas.
Nós estamos agora em posição de ver como o libertário define o conceito de
“liberdade”. A liberdade é a condição na qual os direitos de propriedade de uma pessoa
sobre seu próprio corpo e suas legítimas propriedades materiais não são invadidos, não
são agredidos. Um homem que rouba a propriedade de outro homem está invadindo e
restringindo a liberdade da vítima, assim como faz o homem que bate na cabeça de
outro homem. A liberdade e o irrestrito direito de propriedade caminham lado a lado.
Por outro lado, para o libertário, um “crime” é um ato de agressão aos direitos de
propriedade de um homem, seja à sua pessoa ou aos seus bens materiais. Um crime é
uma invasão, através do uso da violência, da propriedade, e portanto da liberdade, de
um homem. “Escravidão” – o oposto da liberdade – é a condição na qual o escravo tem
pouco ou nenhum direito de auto-propriedade; sua pessoa e os produtos de seu trabalho
são sistematicamente expropriados por seu senhor através do uso da violência.
O libertário, portanto, claramente é um individualista, mas não um igualitário. A única
“igualdade” que ele defenderia é o igual direito de todo homem à propriedade de sua
pessoa, dos recursos não-usados de que ele se apropriou e dos bens adquiridos através
de trocas voluntárias ou doações.
Direitos de propriedade e "direitos humanos"
Os liberais geralmente concederiam o direito de todo indivíduo à sua “liberdade
pessoal”, à sua liberdade de pensar, falar, escrever, e fazer “trocas” pessoais tais como
atividades sexuais entre “adultos consensuais”. Ou seja, o liberal pretende defender o
direito do indivíduo de propriedade sobre o próprio corpo, mas nega o direito à
“propriedade”, isto é, à posse de objetos materiais. Dessa forma, o liberal típico faz uma
distinção entre os “direitos humanos”, que ele defende, e os “direitos de propriedade”,
que rejeita. Contudo, os dois, de acordo com o libertário, estão inextricavelmente
interligados; ou são ambos válidos, ou caem juntos.
Tome-se, por exemplo, o liberal socialista que defende a propriedade governamental de
todos os “meios de produção” ao mesmo tempo em que dá suporte ao direito “humano”
da livre expressão ou da liberdade de imprensa. Como poderia este direito “humano” ser
exercido se os indivíduos que constituem o público têm seus direitos de propriedade
negados? Se, por exemplo, o governo tem a propriedade sobre todo o papel para
impressão e de todas as gráficas, como poderia o direito à liberdade de imprensa ser
exercido? Se o governo é dono de todo o papel, então ele necessariamente tem o direito
e o poder para alocá-lo de qualquer maneira, e o direito do indivíduo à “liberdade de
imprensa” se torna uma piada se o governo decide não direcioná-lo a ele. E já que o
governo deve alocar o escasso papel para impressão de alguma maneira, o direito à
liberdade de imprensa de, digamos, minorias ou anti-socialistas “subversivos” não seria
realmente tão respeitado. O mesmo vale para o “direito de livre expressão” se o governo
é dono de todos os saguões de reunião e os aloca da forma que lhe convém. Ou, por
exemplo, se o governo da Rússia Soviética, sendo ateu, decide não alocar muitos
recursos escassos para a produção de pães ázimos, para os judeus ortodoxos a
“liberdade de religião” se torna uma piada; mas, novamente, o governo soviético pode
sempre responder que os judeus ortodoxos são só uma pequena minoria e que os bens
de capital não deveriam ser desviados para a produção de pães ázimos.
A falha básica da divisão liberal entre “direitos humanos” e “direitos de propriedade” é
que as pessoas são tratadas como abstrações etéreas. Se um homem possui o direito de
auto-propriedade, de controlar sua vida, então no mundo real ele também deve ter o
direito de sustentar sua vida através da apropriação e da transformação de recursos; ele
deve poder ter a propriedade sobre o solo onde pisa e sobre os recursos de que faz uso.
Em suma, para sustentar seus “direitos humanos” – os direitos de propriedade sobre sua
pessoa –, ele precisa também ter direitos de propriedade sobre o mundo material, sobre
os objetos que produz. Direitos de propriedade são direitos humanos, e são essenciais
aos direitos que os liberais pretendem proteger. O direito humano à liberdade de
imprensa depende do direito humano de propriedade privada na imprensa.
Na verdade, não há direitos humanos separáveis dos direitos de propriedade. O direito
humano à livre expressão é simplesmente o direito de alugar ou possuir um saguão de
reuniões onde discursar; o direito humano à liberdade de imprensa é o direito de
propriedade de comprar materiais, imprimir panfletos ou livros e vendê-los àqueles que
desejam comprar. Não existe nenhum outro “direito à livre expressão” ou à “liberdade
de imprensa” além dos direitos de propriedade que podemos enumerar em cada caso. E,
além disso, através da descoberta e da identificação dos direitos de propriedade
envolvidos em cada caso é possível resolver qualquer conflito de direitos aparente que
possa vir a surgir.
Considere-se, por exemplo, o clássico exemplo onde os liberais geralmente concedem
que o “direito à livre expressão” de uma pessoa precisa ser restringindo em nome do
“interesse público”: o famoso dito de Justice Holmes segundo o qual ninguém tem o
direito de gritar “fogo” falsamente em um teatro lotado. Holmes e seus seguidores
utilizaram esta ilustração repetidamente para provar a suposta necessidade de que todos
os direitos sejam relativos e experimentais em vez de precisos e absolutos.
Mas o problema aqui não reside no fato de que os direitos não possam ser estendidos
dessa forma, mas no fato de que todo o caso é discutido nos vagos termos da “liberdade
de expressão” e não em termos de direitos de propriedade privada. Analisemos o
problema sob a perspectiva dos direitos de propriedade. O homem que causa tumulto
por gritar falsamente “fogo” num teatro cheio é, necessariamente, ou o dono do teatro
(ou um funcionário do dono) ou um cliente pagante. Se for o dono, então ele fraudou
seus clientes. Ele tomou o dinheiro deles em troca da promessa de que uma peça seria
encenada, e agora, ao invés disso, ele interrompe a encenação gritando falsamente
“fogo” e acaba com o espetáculo. Assim, ele quebrou suas obrigações contratuais e,
dessa forma, roubou a propriedade – o dinheiro – de seus clientes, violando seus
direitos.
Suponha-se, por outro lado, que quem deu o grito tenha sido um cliente e não o dono do
teatro. Neste caso, ele está violando o direito de propriedade do dono – assim como o
dos outros convidados que pagaram pelo espetáculo. Como convidado, ele ganhou
acesso à propriedade condicionado ao cumprimento de certos termos, incluindo a
obrigação de não violar a propriedade do dono ou interromper a encenação. Seu ato
malicioso, portanto, viola os direitos de propriedade do dono do teatro e de todos os
outros clientes.
Não é necessário, por essa razão, que os direitos individuais sejam restringidos no caso
do falso grito de “fogo”. Os direitos do indivíduo ainda são absolutos; mas são direitos
de propriedade. O homem que maliciosamente grita “fogo” num teatro lotado é de fato
um criminoso, mas não porque seu “direito à liberdade de expressão” deve ser
pragmaticamente restringido em prol do “bem público”; ele é um criminoso porque
clara e obviamente violou os direitos de propriedade de outra pessoa.
Notas:
1 Veja Getrude Himmelfarb, Lord Acton: A Study in Conscience and Politics (Chicago:
Phoenix Books, 1962), PP. 194-05. Compare também com John Wild, Plato’s Modern
Enemies and the Theory of Natural Law (Chicago: University of Chicago Press, 1953),
p. 176.
2 John Locke, An Essay Concerning the True Original Extent and End of Civil
Government, in: E. Barker (ed.), Social Contract (New York: Oxford University Press,
1948), pp. 17-18.
3 Locke, Civil Government, pp. 18-49. Embora Locke fosse um teórico brilhante, nós
não afirmamos que ele tenha desenvolvido ou aplicado sua teoria de forma
completamente consistente.
4 Homestead significa “apropriação original”. Também pode ser traduzido como
“usucapião”, como é de uso corrente no vocabulário legal brasileiro. Homesteader,
portanto, é o indivíduo que se apropria originalmente de algo – no caso, da terra. Como
não há um correlato em português satisfatório, optou-se por deixar a palavra no original.
[N.T.]
5 O que o autor quis dizer é que os animais se encaixam no rótulo terra, utilizado
principalmente pelos economistas clássicos. Na economia política clássica, havia três
fatores de produção: o trabalho, o capital e a terra. A terra é definida como todo o
universo material a não ser o homem. Dessa forma, até mesmo os animais podem ser
incluídos nessa categoria. [N.T.]
6 Locke, Civil Government, p. 20.
7 Leon Wolowski e Emile Levasseur, “Property” in: Lalor’s Cyclopedia of Political
Science (Chicago: M.B. Cary & Co., 1884), III, pp. 392-93.
8 Parker Thomas Moon, Imperialism and World Politics (New York: Macmillan, 1930),
p. 58.
9 “Liberal”, aqui, segundo a definição americana do termo. O “liberal” em questão
equivaleria aos social-democratas fora dos Estados Unidos. Mais adiante no texto o
autor utilizará novamente os termos na acepção americana, então é necessário que se
tenha esta distinção em mente. [N.T.]
10 Arnold W. Green, “The Recified Villain”, Social Research (Inverno, 1968), p. 656.
11 Frank Chodorov, The Rise and Fall of Society (New York: Devin Adair, 1959), pp.
29-30.
3. O estado, o agressor
O impulso central do pensamento libertário é se opor a qualquer agressão contra os
direitos de propriedade dos indivíduos em suas próprias pessoas e em objetos materiais
que eles adquiriram voluntariamente. Embora os indivíduos e gangues criminosas sejam
obviamente contestados, não há nada de exclusivo do credo libertário aqui, já que quase
todas as pessoas e escolas de pensamento se opõem ao exercício da violência aleatória
contra as pessoas e propriedades.
Há, porém, uma diferença de ênfase por parte dos libertários, até mesmo nesta área
universalmente aceita da defesa das pessoas contra o crime. Em uma sociedade
libertária não haveria um "promotor distrital" que processa criminosos em nome de uma
"sociedade" não existente, mesmo contra o desejo da vítima do crime. A própria vítima
iria decidir se faria as acusações. Além do mais, como o outro lado da mesma moeda,
em um mundo libertário a vítima poderia abrir um processo contra um malfeitor sem ter
que convencer o mesmo promotor distrital de que ele deveria prosseguir. Além disso,
no sistema de punição criminal no mundo libertário, a ênfase não seria nunca, como é
atualmente, no aprisionamento do criminoso pela "sociedade"; a ênfase seria
necessariamente em compelir o criminoso a fazer uma restituição à vítima do seu crime.
O sistema presente, no qual a vítima não é recompensada, mas ao invés disso, tem que
pagar taxas para sustentar o encarceramento do seu próprio agressor — seria um
absurdo evidente em um mundo que focasse na defesa dos direitos de propriedade e,
portanto, na vítima do crime.
Além do mais, embora a maioria dos libertários não seja pacifista, eles não iriam se
juntar ao sistema presente interferindo nos direitos das pessoas de serem pacifistas.
Assim, suponha que Jones, um pacifista, é agredido por Smith, um criminoso. Se Jones,
como resultado de suas crenças, é contra se defender com o uso da violência e se opõe,
portanto, a qualquer processo criminal, logo Jones vai simplesmente deixar de abrir um
processo e este será o fim da história. Não haverá nenhuma máquina governamental que
persegue e ataca criminosos mesmo contra a vontade da vítima.
Mas a diferença crítica entre os libertários e as outras pessoas não está na área do crime
privado; a diferença crítica consiste na sua visão do estado — o governo — como um
todo. Isto se deve ao fato de que os libertários consideram o estado como sendo o
supremo, o incessante e o mais organizado agressor das pessoas e das propriedades da
massa do público. Todos os estados em todos os lugares, sejam eles democráticos,
ditatoriais ou monárquicos, sejam vermelhos, brancos, azuis ou marrons.
O estado! Sempre e sucessivamente o governo e os seus comandantes e operadores têm
sido considerados acima da lei moral geral. Os "Papéis do Pentágono" são apenas uma
instância recente entre inúmeras outras instâncias na história dos homens que mentem
até os dentes perante o público, os quais são em sua maioria perfeitamente honráveis
nas suas vidas privadas. Por quê? Por "razões do estado". Serviço para o estado supõe
desculpar todas as ações que seriam consideradas imorais e criminosas se cometidas por
cidadãos "privados". A distinção essencial dos libertários é que eles, calmamente e sem
compromisso, aplicam a lei moral geral às pessoas agindo em suas funções como
membros do aparato estatal. Os libertários não fazem exceções. Por séculos o estado (ou
mais estritamente, indivíduos agindo nas suas funções como "membros do governo")
disfarçou as suas atividades criminosas em uma retórica pretensiosa. Por séculos o
estado cometeu assassinatos em massa e os chamou de "guerra"; também enobreceu a
escravidão em massa que a "guerra" envolve. Por séculos o estado tem escravizado
pessoas nos seus batalhões armados e chamou isso de "recrutamento" para o "serviço
nacional". Por séculos o estado tem roubado pessoas em escala territorial e chamou isso
de "taxação". De fato, se você gostaria de saber como os libertários enxergam o estado e
qualquer um de seus atos, simplesmente pense no estado como uma organização
criminosa, de repente todas as atitudes libertárias irão logicamente fazer sentido.
Vamos considerar, por exemplo, o que é que formalmente distingue o governo de todas
as outras organizações na sociedade. Muitos cientistas políticos e sociólogos têm
obscurecido esta distinção vital e se referem a todas as organizações e grupos como
sendo hierárquicos, estruturados, "governamentais", etc. Anarquistas de esquerda, por
exemplo, irão se opor da mesma maneira ao governo e às organizações privadas tais
como as corporações, tomando como base que todos são igualmente "elitistas" e
"coercivos". Mas o libertário "direitista" não se opõe à desigualdade, sua concepção de
"coerção" se aplica somente ao uso da violência. O libertário enxerga uma distinção
crucial entre o governo, seja este central, estadual ou local, e todas as outras instituições
da sociedade. Ou até mesmo, duas distinções cruciais. Primeiramente, qualquer outra
pessoa ou grupo recebe sua renda através de pagamentos voluntários: seja por
contribuição ou presente voluntário (tal como a comunidade beneficente local ou um
clube de bridge), ou por compras voluntárias dos seus produtos ou serviços no mercado
(i.e., dono de armazém, jogador de baseball, manufaturador de aço, etc.). Somente o
governo obtém a sua renda através da coerção e da violência — i.e., através da ameaça
direta de confisco e detenção caso o pagamento não seja feito prontamente. Esta
cobrança coerciva se chama "taxação". Uma segunda distinção é que,
independentemente dos criminosos fora da lei, somente o governo pode usar os seus
fundos para cometer violência contra os seus próprios e quaisquer outros súditos;
somente o governo pode proibir a pornografia, compelir uma obediência religiosa, ou
colocar pessoas na prisão por venderem produtos a um preço maior do que o governo
considera que seja justo. Ambas as distinções, é claro, podem ser resumidas assim:
somente o governo, na sociedade, tem o poder de cometer a agressão contra os direitos
de propriedade dos seus súditos, seja para extrair a sua renda, para impor o seu código
moral, ou para matar aqueles dos quais ele discorda. Além do mais, todo e qualquer
governo, até mesmo o menos déspota, sempre obteve o volume de sua renda através do
poder coercivo da taxação. E já que vimos que o impulso central do pensamento
libertário é se opor a qualquer agressão contra os direitos de todos à vida e à
propriedade, o libertário necessariamente se opõe à instituição do estado por ser o
inimigo inerente e majoritariamente mais importante destes direitos preciosos.
Existe outra razão pela qual a agressão estatal tem sido de longe mais importante do que
a privada, uma razão à parte da maior organização e mobilização central de recursos que
os governantes do estado podem impor. A razão é a ausência de qualquer obstáculo à
depredação estatal, um obstáculo que existe quando nós temos que nos preocupar com
assaltantes ou com a Máfia. Para nos defender de criminosos privados, temos podido
nos voltar ao estado e à sua polícia; mas quem pode nos defender do próprio estado?
Ninguém. Outra distinção crítica do estado é que ele compele o monopólio do serviço
de proteção; o estado arroga para si mesmo um monopólio virtual da violência e da
tomada de decisões na sociedade. Se nós não gostamos das decisões das cortes do
estado, por exemplo, não há outras agências de proteção para as quais nós podemos nos
voltar.
É verdade que nos Estados Unidos, pelo menos, nós temos uma constituição que impõe
limites estreitos em alguns poderes do estado. Mas, como nós descobrimos no século
passado, nenhuma constituição pode se interpretar ou se fazer cumprir; ela precisa ser
interpretada pelos homens. E se o poder máximo de interpretar a constituição é dado à
própria Corte Suprema do governo, então a tendência inevitável é que a Corte continue
dando suporte ao aumento de poderes para o próprio governo. Além do mais, as mais
altas "restrições e balanços" e "separações de poderes" no governo Americano de fato
são frágeis, já que na análise final, todas estas divisões são partes do mesmo governo e
são governados pelo mesmo conjunto de governantes.
Um dos teóricos políticos mais brilhantes dos EUA, John C. Calhoun, escreveu
profeticamente uma das tendências inerentes da quebra do estado através dos limites de
sua constituição escrita.
Uma constituição escrita certamente tem muitas vantagens consideráveis, mas é um
grande erro achar que a mera inserção de condições para restringir e limitar os poderes
do governo, sem investir de autoridade aqueles que foram inseridos na proteção, com os
meios de forçar a sua obediência, serão suficientes para prevenir o partido dominante e
majoritário de abusar dos seus poderes. Sendo o partido com a posse do governo, ele
vai. . . favorecer os poderes garantidos pela constituição e se opor às restrições que
pretendem limitá-lo. Na qualidade de partidos dominantes e majoritários, eles não terão
necessidade destas restrições para sua proteção...
O partido minoritário e mais fraco, ao contrário, iria tomar a direção oposta e considerá-
las essenciais à sua proteção contra o partido dominante... Mas onde não há meios pelos
quais eles poderiam compelir o partido majoritário a obedecer às restrições, o único
recurso deixado para eles seria uma rigorosa construção da constituição... Para isso o
partido majoritário iria se opor a uma constituição liberal — uma que daria às palavras
da concessão o mais amplo meio pelo qual eles estariam susceptíveis. Seria então a
construção contra a construção — uma para contrair e a outra para ampliar os poderes
do governo ao máximo. Mas qual poderia ser o possível benefício da rigorosa
construção pelo partido minoritário, contra a interpretação liberal do majoritário, já que
este teria todos os poderes governamentais para levar a sua construção adiante e o outro
seria privado de todos os meios de executar a sua construção. Em um contexto tão
desigual, não restaria dúvidas do resultado. O partido em favor das restrições iria ser
subjugado... O final do contesto seria a subversão da constituição... as restrições iriam
finalmente serem anuladas e o governo seria convertido em um de poderes ilimitados.
Nem a divisão do governo em departamentos independentes e separados, como eles se
consideram, preveniria este resultado... como cada um e todos os departamentos — e, é
claro, o governo inteiro — estaria sob o controle de uma maioria numérica, fica
demasiadamente claro também para requerer uma explicação que uma mera distribuição
dos seus poderes dentre seus agentes e representantes poderia fazer pouco ou nada para
conter sua tendência de opressão e abuso do poder.
Mas porque se preocupar com a fraqueza dos limites do poder governamental?
Especialmente em uma "democracia", a exemplo da frase tão freqüentemente usada
pelos liberais Americanos nos seus períodos de glória, antes da metade da década de
1960, quando as dúvidas começaram a se tornar evidentes na utopia liberal: "Não somos
nós o governo?" Na frase "nós somos o governo", o útil termo coletivo "nós" tem
capacitado uma camuflagem ideológica sobre a despida realidade exploradora da vida
política. Mas se nós somos realmente o governo, então qualquer coisa que um governo
faz a um indivíduo não é somente justo e não tirânico; é também "voluntário" por parte
da concessão individual. Se o governo incorreu um débito público enorme que deve ser
pago taxando um grupo em benefício de outro, esta realidade de ônus é
convenientemente obscurecida ao se dizer alegremente "nós devemos, a dívida é nossa"
(mas quem é "nós" o que é "nossa"?). Se o governo convoca um homem para as forças
armadas, ou até mesmo o põe na cadeia por opiniões dissidentes, então o homem está
somente "fazendo isto por ele mesmo" e, portanto, nada impróprio foi feito. Por este
raciocínio, os Judeus assassinados pelo governo Nazista, então, não foram assassinados;
eles devem ter "cometido suicídio", já que eles eram o governo (que foi
democraticamente escolhido), e, portanto, tudo o que o governo fez a eles foi apenas
voluntário por parte deles. Mas não há saída de tais coisas grotescas para os defensores
do governo, os quais vêem o estado como um agente meramente benevolente e
voluntário do público.
E então nós devemos concluir que "nós" não somos o governo; o governo não somos
"nós". O governo não "representa" de nenhum modo acurado a maioria das pessoas, mas
mesmo se o fizesse, mesmo se 90% da população decidisse assassinar ou escravizar os
outros 10%, isso ainda seria assassinato e escravidão, não seria suicídio ou escravidão
voluntária por parte da minoria oprimida. Crime é crime, agressão contra os direitos é
agressão, não importa a quantidade de cidadão que concordem com a opressão. Não há
nada de sagrado na maioria; a multidão linchada é, também, a maioria no seu próprio
domínio.
Mas embora, como no caso da multidão linchada, a maioria possa se tornar ativamente
tirânica e agressiva, a condição normal e contínua do estado é o comando oligárquico; o
comando de uma elite coerciva que conseguiu ganhar o controle do maquinário estatal.
Há duas razões básicas para isso: uma é a diversidade e divisão do trabalho inerente da
natureza do homem, o que dá origem a uma "Lei Rígida da Oligarquia" em todas as
atividades do homem; e em segundo vem a natureza parasítica do próprio
empreendimento estatal.
Nós dissemos que o individualista não é um igualitário. Parte da razão disto é o
discernimento individualista sobre a vasta diversidade e individualidade da raça
humana, uma diversidade que tem a chance de florescer e expandir a civilização e o
progresso dos padrões de vida. Indivíduos se diferem em habilidades e em interesses,
ambas ao alcance e em conjunto com as ocupações; e, portanto, em todas as ocupações
e caminhos da vida, seja na produção de aço ou na organização de um clube de bridge, a
liderança na atividade será inevitavelmente assumida por um punhado relativamente
mais capacitado e eficaz, enquanto a maioria restante irá se formar em comuns
seguidores. Esta verdade se aplica em todas as atividades, sejam elas benéficas ou
maléficas (como em organizações criminosas). De fato, a descoberta Lei Rígida da
Oligarquia foi feita pelo sociólogo italiano Robert Michels, quem descobriu que o
Partido Social Democrático da Alemanha, apesar de seu compromisso retórico com o
igualitarismo, era rigidamente oligárquico e hierárquico na sua função real.
Uma segunda razão básica para o comando oligárquico do estado é a sua natureza
parasítica — o fato de que ele vive coercivamente da produção dos cidadãos. Para obter
sucesso para os seus patrocinadores, os frutos da exploração parasítica devem ser
confinados a uma relativa minoria, caso contrário o saque sem sentido de todos por
todos não resultaria em ganhos para ninguém. Em nenhum lugar a natureza coerciva e
parasítica do estado foi tão claramente ilustrada quanto foi pelo grande sociólogo
alemão do século dezenove, Franz Oppenheimer. Oppenheimer apontou que há dois e
apenas dois meios mutuamente exclusivos para o homem obter bens. Um, o método de
produção e troca voluntária, o método do livre mercado, os quais Oppenheimer
denominou de "meios econômicos"; o outro, o método de roubo pelo uso da violência,
ele chamou de "meios políticos". Os meios políticos são claramente parasíticos, pois
requerem a produção prévia para que os exploradores possam confiscar, e eles subtraem
ao invés de adicionar à produção total da sociedade. Oppenheimer então procedeu em
definir o estado como sendo a "organização dos meios políticos" — a sistematização do
processo predatório sobre uma determinada área territorial.
Em resumo, o crime privado é, na melhor das hipóteses, esporádico e incerto; o
parasitismo é efêmero, e a linha de vida coerciva e parasítica pode ser cortada a
qualquer momento pela resistência das vítimas. O estado provê um canal legal,
ordenado e sistemático para os saques das propriedades dos produtores; ele faz a linha
de vida da casta parasítica da sociedade ser certa, segura e relativamente "pacífica". O
grande escritor libertário Albert Jay Nock escreveu vividamente que "o estado
reivindica e exerce o monopólio do crime... Ele proíbe o assassinato privado, mas ele
mesmo organiza assassinatos em uma escala colossal. Ele pune o roubo privado, mas
ele mesmo põe suas inescrupulosas mãos em tudo que ele quer, seja na propriedade dos
cidadãos ou dos imigrantes".
Inicialmente, é claro, é chocante para alguém considerar a taxação como sendo o
mesmo que o roubo e, portanto, o governo como um bando de assaltantes. Mas qualquer
um que persiste em pensar na taxação como sendo de algum modo um pagamento
"voluntário", pode ver o que acontece se escolher não pagar. O grande economista
Joseph Schumpeter, ele mesmo de modo algum um libertário, escreveu que "o estado
tem vivido da renda que estava sendo produzida na esfera privada para propósitos
privados e tiveram que ser desviados destes seus propósitos pela força política. A teoria
que interpreta as taxas pela analogia de mensalidades de um clube ou da compra de
serviços de, digamos, um doutor, só prova o quão afastado está esta parte das ciências
sociais dos hábitos científicos da mente." O eminente "positivista legal" de Venesa Hans
Kelsen tentou no seu tratado The General Theory of Law and the State, estabelecer uma
teoria política e justificação para o estado, à partir de um embasamento estritamente
"científico" e sem julgamento de valores. O que aconteceu é que no começo do seu
livro, ele veio com o ponto de partida crucial, o pons asinorum da filosofia política: O
Que distingue os decretos do estado dos comandos de uma gangue criminosa? A
resposta de Kelsen foi simplesmente dizer que os decretos estatais são "válidos", e
procedeu alegremente daí, sem se preocupar em definir e explicar o conceito de
"validade". De fato, seria um exercício útil aos não libertários ponderar esta questão:
Como você pode definir a taxação de um modo que seja diferente do roubo?
Para o grande anarquista individualista — e advogado constitucional — Lysander
Spooner, não havia problema em achar a solução. A análise de Spooner sobre o estado
como um grupo assaltante talvez seja a mais devastadora que já foi escrita:
É verdade que na teoria de nossa constituição todos os impostos são pagos
voluntariamente; e o nosso governo é uma companhia de seguros mútua,
voluntariamente iniciada por cada uma das pessoas...
Mas esta teoria do nosso governo é completamente diferente do fato prático.
O fato é que o governo, assim como o ladrão de estrada, diz ao homem: "Seu
dinheiro, ou sua vida." E muitos dos impostos, se não a maioria, são pagos
sob a coação desta ameaça.
O governo, de fato, não intercepta um homem em um lugar isolado, brota ao
seu lado na estrada e, apontando uma pistola na sua cabeça, procede no
assalto aos seus bolsos. Mas o roubo continua sendo um roubo da mesma
maneira; e é muito mais covarde e humilhante.
O ladrão de estrada toma sozinho para si mesmo a responsabilidade, o
perigo e o crime do seu próprio ato. Ele não finge que tem qualquer
reivindicação legítima sobre o seu dinheiro, ou que ele pretende usá-lo para
o seu próprio benefício. Ele não tem a pretensão de ser nada além de um
ladrão. Ele não adquiriu a presunção suficiente para se professar um mero
"protetor", que toma o dinheiro dos homens contra a vontade deles
meramente para capacitá-lo de "proteger" aqueles tolos viajantes, os quais
se sentem perfeitamente capacitados para se protegerem ou não apreciam o
seu sistema peculiar de proteção. Ele é um homem muito sensato para fazer
declarações deste tipo. Além do mais, tendo tomado o seu dinheiro, ele te
deixa, assim como você gostaria que ele deixasse. Ele não persiste em te
seguir na estrada, contra a sua vontade; assumindo ser o seu legítimo
"soberano" por causa da proteção que ele te proporciona. Ele não se mantém
"protegendo" você, comandando você para se submeter e o servir; exigindo
que você faça isso e proibindo você de fazer aquilo; roubando mais do seu
dinheiro com a freqüência que ele julga ser do seu interesse ou pelo prazer
de fazer isso; marcando você como um rebelde, um traidor e um inimigo do
nosso país e atirando em você sem piedade se você questiona a sua
autoridade ou resiste aos seus comandos. Ele é muito cavalheiro para ser
culpado de tais imposturas, insultos e ultrajes como estes. Em resumo, ele
não pretende, além de te roubar, te enganar ou fazer de você o seu escravo.
Se o estado é um grupo de saqueadores, quem então constitui o estado? A elite
dominante consiste claramente, em qualquer momento, de (a) o aparatos de tempo
integral — os reis, políticos e burocratas que operam o estado; e (b) os grupos que
fizeram manobras para ganhar privilégios, subsídios e benefícios do estado. O restante
da sociedade constitui-se dos dominados. Foi, novamente, John C. Calhoun quem viu
com uma claridade cristalina que, não importa o quão pequeno seja o poder do Governo,
não importa o quão baixa seja a carga tributária ou o quão igual seja a sua distribuição, a
pura natureza do governo cria duas classes desiguais e inerentemente conflitantes na
sociedade: aqueles que, em termos líquidos, pagam as taxas (os "pagadores de
impostos") e aqueles que, em termos líquidos, vivem das taxas (os "consumidores de
impostos"). Suponha que o governo imponha um imposto baixo, o qual pareça ser
igualmente distribuído, para pagar a construção de uma represa. Este simples ato pega
dinheiro da maioria do público para pagar os "consumidores de impostos": os burocratas
que conduzem a operação, os empreiteiros e os trabalhadores que constroem a represa,
etc. E quanto maior o escopo do poder de decisão do governo, maior a sua carga fiscal,
Calhoun prosseguiu, na carga e na diferença artificial que ela impõe entre estas duas
classes:
Os agentes e empregados do governo, que são relativamente poucos,
constituem aquela porção da comunidade que é exclusivamente a
destinatária dos procedimentos das taxas. Seja qual for a quantidade que é
retirada da comunidade na forma de taxas, se não for perdida, vai para eles
na forma de gastos e pagamentos. Os dois — pagamento e taxação —
constituem a ação fiscal do governo. Elas são correlativas. O que um tira da
comunidade sob o nome de taxas, é trasferido à porção da comunidade que é
a destinatária sob nome o de pagamentos. Mas como os destinatários
constituem apenas uma porção da comunidade, segue que, pegando juntas as
duas partes do processo fiscal, sua ação deve ser desigual dentre os
pagadores das taxas e os destinatários de seus procedimentos. Não poderia
ser diferente; a não ser que o que for coletado de cada indivíduo na forma de
taxas fosse retornado para ele na forma de pagamento, o que tornaria o
processo sem sentido e absurdo...
O resultado necessário da ação fiscal desigual do governo é, portanto, dividir a
comunidade em duas grandes classes: uma consistindo daqueles que na realidade pagam
as taxas e, é claro, exclusivamente agüentam a carga de suportar o governo; e a outra,
daqueles que são os destinatários dos procedimentos através dos seus pagamentos, os
quais são, de fato, sustentados pelo governo; ou em poucas palavras, dividi-la em
pagadores de impostos e consumidores de impostos.
Mas o efeito disto é colocá-las em relações antagônicas em referencia à ação fiscal do
governo — e o curso das práticas ligadas a elas. Quanto maiores são as taxas e
pagamentos, maior é o ganho de uma e a perda da outra, e vice versa... O efeito,
portanto, de cada aumento é enriquecer e fortalecer uma, e empobrecer e enfraquecer a
outra.
Se em todos os lugares os estados têm sido conduzidos por um grupo de predadores,
como eles têm conseguido manter seu controle sobre a massa da população? A resposta,
como o filósofo David Hume apontou há dois séculos, é que ao longo dos tempos todo
governo, não importa o quão ditatorial, vem se apoiando no suporte da maioria dos seus
súditos. Agora, é claro que isso não torna estes governos "voluntários", já que a própria
existência da taxa e outros poderes coercivos mostram quanta compulsão o estado
precisa exercer. Nem o suporte da maioria deve ser uma aprovação ávida e
entusiasmada; ele poderia bem ser uma aquiescência e resignação meramente passiva. A
conjunção na famosa frase "morte e taxas" implica a aceitação passiva e resignada da
inevitabilidade assumida do estado e da sua taxação.
Os consumidores de impostos, os grupos que se beneficiam das operações do estado,
irão é claro ser seguidores mais ávidos do que passivos do mecanismo estatal. Mas estes
são apenas a minoria. Como é que pode ser assegurada a obediência e aquiescência da
massa da população? Nós chegamos aqui no problema central da filosofia política — o
ramo da filosofia que lida com a política, o exercício da violência regularizada: o
mistério da obediência civil. Por que as pessoas obedecem aos decretos e depredações
da elite dominante? O escritor conservador James Burnham, o qual é o inverso de um
libertário, põe o problema de forma muito clara, admitindo que não há justificação
racional para a obediência civil: "Nem a fonte nem a justificação do governo pode ser
posta inteiramente em termos racionais... por que eu deveria aceitar a legitimidade
hereditária ou democrática ou de qualquer outro princípio? Por que um princípio
justifica o domínio de um homem sobre a minha pessoa?" Sua própria resposta é
dificilmente calculada para convencer muitos outros: "Eu aceito o princípio, bem... por
que eu aceito, por que é o jeito como as coisas são e têm sido." Mas suponha que
alguém não aceite o princípio; qual será o "jeito" então? E por que é que o volume dos
súditos concorda em aceitá-lo?
O estado e os intelectuais
A resposta é que, desde as remotas origens do estado, seus governantes têm sempre se
voltado para uma aliança com a classe intelectual da sociedade, sendo este um amparo
necessário ao seu domínio. As massas não criam suas próprias idéias abstratas, ou
pensam estas idéias independentemente de fato; elas seguem passivamente as idéias
adotadas e promulgadas pelo corpo dos intelectuais, que se tornam os "moldadores de
opinião" efetivos da sociedade. E já que é precisamente de uma moldação de opinião em
favor dos governantes que o estado necessita quase que desesperadamente, isto forma
uma base firme para a aliança dos intelectuais e das classes dominantes do estado desde
a idade-antiga. A aliança é baseada em um quid pro quo: de um lado, os intelectuais
difundem dentre as massas que o estado e seus governantes são sábios, bons, às vezes
divinos e bem por último, inevitáveis e melhores do que quaisquer alternativas
convencíveis. Em retorno por esta ideologia protetora, o estado incorpora os intelectuais
como parte da elite dominante, garantindo a eles poder, status, prestígio e segurança
material. Além do mais, os intelectuais são necessários para prover a burocracia com
pessoal e para "planejar" a economia e a sociedade.
Antes da era moderna, a casta sacerdotal era particularmente potente dentre os ajudantes
do estado, consolidando a poderosa e terrível aliança do chefe guerreiro e do homem da
medicina, do trono e do altar. O estado "estabeleceu" a Igreja e a conferiu poder,
prestígio e riquezas extraídas dos seus súditos. Em troca, a Igreja consagrou o estado
com uma sanção divina e apontou esta sanção à população. Na era moderna, quando os
argumentos teocráticos perderam a maior parte do seu esplendor perante o público, os
intelectuais passaram a posar como um núcleo científico de "especialistas" e têm estado
ocupados informando o público infeliz que os afazeres políticos, internos e externos,
são muito complexos para as pessoas comuns se preocuparem. Só o estado e o seu
corpo de intelectuais especialistas, planejadores, cientistas, economistas, e "gerentes da
segurança nacional" podem almejar lidar com estes problemas. A função das massas,
mesmo nas "democracias", é ratificar e consentir as decisões dos sábios governantes.
Historicamente, a união da Igreja e do estado, do Trono e do Altar, foi o artifício mais
eficiente para induzir obediência e suporte perante os súditos. Burnham atesta o poder
do mito e do mistério na indução do suporte público quando ele escreve que "Nos
tempos remotos, antes que as ilusões da ciência tivessem corrompido a sabedoria
tradicional, os fundadores das cidades eram conhecidos por serem deuses ou semi-
deuses." Para o estabelecido ofício-sacerdotal, o governante ou era consagrado por Deus
ou, como no caso do regime absolutista de muitos despotismos orientais, era ele o
próprio Deus; portanto, qualquer questionamento ao seu comando seria blasfêmia.
As armas ideológicas que o estado e seus intelectuais usaram ao longo dos séculos para
induzir seus súditos a aceitarem seu regime são numerosas e sutis. Uma arma excelente
foi o poder da tradição. Quanto mais longa for duração do regime de qualquer estado,
mais poderosa se torna esta arma; pois então a dinastia-X ou o estado-Y tem o peso de
uma aparente tradição de séculos por trás deles. A adoração dos ancestrais de alguém se
torna então meios não-tão-sutis de cultivar a adoração pelos ancestrais dos governantes.
A força da tradição é, de fato, apoiada pelo costume antigo, o qual confirma aos súditos
a aparente propriedade e legitimidade do regime sob o qual eles vivem. Deste modo, o
teórico político Bertrand De Jouvenel escreveu:
A razão essencial da obediência é que ela se tornou um costume das
espécies... Para nós, o poder é um fato da natureza. Desde os tempos mais
remotos da história documentada ela tem presidido sobre os destinos
humanos... as autoridades que governaram... nos tempos passados não
desapareceram sem deixar para os seus sucessores os seus privilégios ou sem
deixar na mente humana impressões que são cumulativas em seus efeitos. A
sucessão de governos que, ao longo dos séculos, comandou a mesma
sociedade, pode ser visto como um governo obscuro que emprega acréscimos
contínuos.
Outra força ideológica potente usada pelo estado é a depredação do indivíduo e a
exaltação do coletivo da sociedade, tanto do passado quanto do presente. Qualquer voz
isolada, qualquer levantador de novas questões pode ser atacado por ser um violador
profano da sabedoria de seus ancestrais. Além do mais, qualquer idéia nova, ainda mais
qualquer idéia crítica nova, deve necessariamente começar como sendo a opinião de
uma pequena minoria. Desta maneira, para repelir qualquer idéia que seja
potencialmente perigosa em ameaçar a aceitação majoritária do seu regime, o estado irá
tentar alfinetar a nova idéia, ridicularizando qualquer idéia que seja contra a opinião da
massa. Os modos pelos quais os governantes do estado nos antigos despotismos
Chineses usaram a religião como um método de cegar o indivíduo para o regime
Estatista da sociedade foi sumarizado por Norman Jacobs:
A religião chinesa é uma religião social, procurando resolver os problemas
de interesses sociais, não de interesses individuais... A religião é
essencialmente uma força de ajuste e controle social impessoal — ao invés de
um instrumento para soluções pessoais do indivíduo — e ajuste e controle
social são efetuados através da educação e da reverência pelos superiores...
Reverência pelos superiores — superiores em idade e, portanto, em educação
e experiência — é a fundação ética do ajuste e controle social... Na China, a
relação interpessoal da autoridade política com a religião ortodoxa iguala
heterodoxia com o erro político. A religião ortodoxa foi particularmente
ativa em perseguir e destruir os setores heterodoxos; com isso ele foi banido
pelo poder secular.
A tendência geral do governo procurar e impedir qualquer ponto de vista heterodoxo foi
esboçado, em um estilo tradicionalmente gracioso e agradável, pelo escritor libertário
H.L. Mencken:
Tudo [que o governo] pode ver em uma idéia original é um potencial de
mudança e, portanto, uma invasão às prerrogativas. O homem mais perigoso,
para qualquer governo, é o homem capaz de pensar as coisas por ele mesmo,
sem considerar as superstições e tabus correntes. Ele, quase que
inevitavelmente, chega à conclusão que o governo sob o qual ele vive é
desonesto, insano e intolerável e assim sendo, se ele for romântico, ele vai ter
mudar isso. E mesmo se ele não for pessoalmente romântico, ele é muito apto
a difundir o descontentamento dentre aqueles que são.
É também particularmente importante para qualquer estado fazer com que o seu regime
pareça inevitável: mesmo se o seu reinado não agrade, como é freqüentemente o caso,
isso será recebido com uma resignação passiva expressa no casamento familiar da
"morte e taxas." Um método é trazer para o seu lado o determinismo histórico: se o
estado-X nos governa, então isso foi inevitavelmente decretado para nós pelas Leis
Inexoráveis da História (ou pela Vontade Divina, ou o Absoluto, ou as Forças Materiais
Produtivas), e nada que quaisquer indivíduos insignificantes façam pode mudar o
inevitável. É importante também para o estado inculcar nos seus súditos a aversão a
qualquer afloramento do que é hoje chamado de "teoria da conspiração da história."
Uma busca por "conspirações", por mais sem sentido que sejam freqüentemente os
resultados, significa uma busca por motivos e uma atribuição de responsabilidade
individual para com os delitos históricos das elites dominantes. Se, por outro lado,
qualquer tirania ou venalidade ou guerra agressiva imposta pelo estado não foi trazida
pelos governantes de um estado em particular, mas por "forças sociais" misteriosas e
enigmáticas, ou por um estado imperfeito do mundo — ou se, de alguma forma, todos
foram culpados ("Nós todos somos assassinos," proclama um slogan comum), então não
há razão pela qual alguém fique indignado e conteste tais delitos. Além do mais, o
descrédito das "teorias da conspiração" — ou até mesmo, de qualquer coisa cheia de
"determinismo econômico" — vai fazer com que os súditos fiquem mais aptos a
acreditar nas razões do "bem estar geral" que são invariavelmente postas à vista pelo
estado moderno para engajar em quaisquer ações agressivas.
É então feito com que o domínio do estado aparente inevitável. Além do mais, qualquer
alternativa ao estado existente é envolvida em uma áurea de medo. Ao negligenciar o
seu próprio monopólio do roubo e da função predatória, o estado provoca dentre os seus
súditos um aspecto de caos que supostamente iria se seguir caso o estado viesse a
desaparecer. É sustentado que as pessoas nunca poderiam sustentar, por conta própria, a
sua própria proteção contra criminosos e saqueadores esporádicos. Além do mais, cada
estado tem sido particularmente bem sucedido ao longo dos séculos em instaurar o
medo dentre os seus súditos e outros governantes do estado. Com a área territorial do
globo agora parcelada entre estados particulares, uma das doutrinas básicas e táticas dos
governantes de cada estado tem sido se identificar com o território que ele governa. A
partir do momento que a maioria dos homens tende a amar a sua terra natal, a
identificação daquela terra e da sua população com o estado é um meio de fazer o
patriotismo natural funcionar em prol do estado. Se então a "Ruritania" é atacada pela
"Walldavia", a primeira tarefa do estado Ruritanio e dos seus intelectuais é a de
convencer as pessoas da Ruritania que o ataque é realmente a elas e não simplesmente à
classe dominante. Desta forma, uma guerra entre governantes se torna uma guerra entre
pessoas, com cada pessoa investindo na defesa de seus governantes pela crença errônea
de que os governantes estão as defendendo ativamente. Este mecanismo de
nacionalismo tem sido bastante eficiente nos séculos recentes; não era assim há um
tempo, pelo menos na Europa Ocidental, quando a massa dos súditos considerava
guerras como batalhas irrelevantes entre diversos grupos de nobres e suas comitivas.
Outro método experimentado e preciso para submeter os súditos à vontade de alguém é
a infusão de culpa. Qualquer aumento no bem-estar privado pode ser atacado como
"ganância inescrupulosa", "materialismo" ou "riqueza excessiva"; e trocas mutuamente
voluntárias no mercado podem ser denunciadas como "egoísmo." De alguma forma as
conclusões tiradas sempre são as de que mais recursos precisam ser expropriados do
setor privado e extraídos para o setor do público parasita, ou do estado. Freqüentemente
a intimação ao público para que este entregue mais recursos é exprimida pela elite
dominante por uma intimação severa por mais "sacrifícios" pelo bem comum ou
nacional. Porém, de alguma forma enquanto o público supostamente precisa sacrificar e
reduzir a sua "ganância materialista", os sacrifícios são sempre unilaterais. O estado não
se sacrifica; o estado impacientemente rouba mais e mais dos recursos materiais do
público. De fato, é um domínio influente útil: quando o seu governante intimar em voz
alta por "sacrifícios", olhe para a sua própria vida e seus recursos financeiros.
Este tipo de argumentação reflete um padrão duplo geral de moralidade que é sempre
aplicado somente aos governantes do estado e ninguém mais. Ninguém, por exemplo,
fica surpreso ou horrorizado por aprender que os homens de negócios procuram lucros
maiores. Ninguém se horroriza se os trabalhadores deixam os seus empregos de salários
inferiores para entrarem naqueles com salários superiores. Tudo isto é considerado um
comportamento próprio e normal. Mas se qualquer um ousar afirmar que os políticos e
burocratas são motivados pelo desejo de maximizarem seus lucros, o clamor por justiça
de "teoria conspiratória" ou "determinismo econômico" se difunde no território. A
opinião geral — cultivada cuidadosamente pelo estado é claro — é que o homem entra
na política ou no governo puramente por uma preocupação devota pelo bem comum e
pela prosperidade. O que dá aos cavalheiros do aparato estatal a sua aura de
superioridade moral? Talvez seja o conhecimento instintivo e vago da população de que
o estado está engajado no roubo e depredação sistemáticos, assim, eles poderiam sentir
que apenas uma dedicação ao altruísmo por parte do estado tornaria toleráveis estas
ações. Considerar políticos e burocratas sujeitos aos mesmos interesses monetários que
todo mundo arrancaria o disfarce de Robbin Hood da depredação estatal. Estaria claro
então que, fraseando Oppenheimer, cidadãos ordinários estavam buscando os "meios
econômicos" pacíficos e produtivos para a riqueza, enquanto o aparato estatal estava se
devotando aos "meios políticos" coercivos e exploradores. As roupas do imperador de
suposta preocupação altruísta pelo bem comum seriam então arrancadas dele.
Os argumentos intelectuais usados pelo estado ao longo da história para "engenhar o
consenso" do público pode ser classificado em duas partes: (1) que o regime do governo
existente é inevitável, absolutamente necessário e muito melhor do que os maus
indescritíveis que surgiriam com a sua queda; e (2) que os governantes do estado são
homens especialmente grandiosos, sábios e altruístas — bem mais grandiosos, sábios e
avançados do que seus mero súditos. Nos tempos passados, o último argumento tomou a
forma do regime do "direito divino" ou do próprio "governante divino", ou pela
"aristocracia" dos homens. Nos tempos modernos, como nós indicamos anteriormente,
este argumento não pressiona tanta aprovação divina quanto o regime de uma sábia
associação de "cientistas experts" especialmente dotados do conhecimento da arte de
governar e dos fatos enigmáticos do mundo. O crescente uso do jargão científico,
especialmente nas ciências sociais, permitiu os intelectuais a tecerem a apologia ao
regime estatal rival ao antigo poder sacerdotal de obscurantismo. Por exemplo, um
ladrão que presumiu justificar seu roubo falando que ele estava realmente ajudando as
suas vítimas com seus gastos, deste modo dando à troca a varejo um furto necessário,
seria forçado a interromper seu discurso sem atraso. Mas quando essa mesma teoria é
fechada nas equações matemáticas Keynesianas e em referências impressionantes ao
"efeito multiplicador", ganha muito mais convicção com um público iludido.
Nos anos recentes, temos visto um crescimento nos Estados Unidos da profissão de
"gerentes da segurança nacional", de burocratas que nunca se depararam com
procedimentos eleitorais, mas que continuam, administração após administração,
secretamente usando sua suposta esperteza especial para planejar guerras, intervenções
e aventuras militares. Apenas as suas notórias asneiras na guerra do Vietnã colocaram as
suas atividades em uma espécie de questão pública; antes disso eles podiam conduzir
alto, amplo e belo sobre o público que eles viam mais como a forragem do canhão para
os seus próprios propósitos.
O debate público entre o "isolacionista" senador Robert A. Taft e um dos líderes
intelectuais da segurança nacional, Mac George Bundy, foi instrutivo em demarcar
ambas as questões em jogo e a atitude da elite dominante intelectual. Bundy atacou Taft
no começo de 1951 por abrir um debate público no decorrer da guerra coreana. Bundy
insistiu que apenas os líderes policiais executivos estavam equipados para manipular
força diplomática e militarmente em um período prolongado de guerra limitada contra
as nações comunistas. Era importante, mantinha Bundy, que a opinião pública e o
debate público fosse excluído de promulgar qualquer orientação política nesta área. Ele
avisou que o público infelizmente não estava envolvido nos rígidos propósitos nacionais
discernidos pelos gerentes políticos; isso meramente respondeu às realidades ad hoc de
certas situações. Bundy também manteve que não deveria haver recriminações ou até
mesmo análises das decisões dos gerentes políticos, porque era importante que o
público aceitasse às suas decisões sem questionar. Taft, em contra partida, denunciou as
tomadas de decisões secretas os conselheiros militares e especialistas no ramo
executivo, decisões efetivamente seladas da apuração pública. Além do mais, ele
reclamava, "se qualquer um ousasse sugerir críticas ou até mesmo um debate, ele era
tachado como um isolacionista e um sabotador da unidade e da unidade e da política
externa bipartidária".
Similarmente, em um momento quando o presidente Eisenhower e o secretário de
estado Dulles estavam contemplando ir à guerra na Indochina, outro proeminente
gerente da segurança nacional, George F. Kennan, estava advertindo ao público que
"Existem momentos em que, tendo elegido um governo, estaremos melhor se deixarmo-
lo governar, deixarmo-lo falar por nós como ele fará nos conselhos das nações".
Nós vemos claramente porque o estado precisa dos intelectuais, mas por que os
intelectuais precisam do estado? Simplificando, o sustento dos intelectuais no livre
mercado não é geralmente muito seguro; o intelectual, como qualquer um no mercado,
precisa depender dos valores e escolhas das massas de seus companheiros homens e é
da característica das massas que elas são geralmente desinteressadas por assuntos
intelectuais. O estado, por outro lado, está interessado em oferecer aos intelectuais um
berço quente, seguro e permanente no seu aparato, uma renda segura e o troféu de
prestígio.
A aliança impulsiva entre o estado e os intelectuais foi simbolizada pelo desejo ávido
dos professores na Universidade de Berlin a se formarem, no século dezenove, no que
eles mesmos proclamaram de "guarda-costas intelectuais da Casa de Hohenzollern." De
uma perspectiva ideológica superficialmente diferente, isso pode ser visto na reação
reveladoramente ultrajante do eminente escolástico Marxista da China antiga, Joseph
Needham, à áspera critica de Karl Wittfogel ao antigo despotismo chinês. Wittfogel
mostrou a importância, para o suporte do sistema, da glorificação confuciana dos
cavalheiros-escolásticos que gerenciavam a burocracia dominante da China despótica.
Needham acusou indignadamente que a "civilização que o professor Wittfogel está
atacando tão amargamente era uma que podia fazer poetas e escolásticos virarem
oficiais." Que importância tem um totalitarismo desde que a classe dominante seja
apoiada abundantemente por intelectuais certificados!
A atitude respeitadora e bajuladora dos intelectuais perante seus governantes tem sido
ilustrada inúmeras vezes ao longo da história. Uma cópia contemporânea americana do
"guarda-costas intelectual da Casa de Hohenzollern" é a atitude de muitos intelectuais
liberais perante o ofício e pessoa do presidente. Deste modo, para o cientista político
Professor Richard Neustadt, o presidente é a "único símbolo da realeza da união". E o
gerente político Townsend Hoopes, no inverno de 1960, escreveu que "sob o nosso
sistema, as pessoas podem olhar apenas para o presidente para definir a natureza de
nossa política externa e dos programas nacionais e sacrifícios requeridos para satisfazê-
los com efetividade." Após gerações com essa retórica, não é de admirar que Richard
Nixon descrevesse então, na noite de sua eleição presidencial, o seu papel: "Ele [o
presidente] deve articular os valores da nação, definir seus fins e guiar os seus desejos."
A concepção de Nixon sobre o seu papel é assombrosamente parecido com a articulação
de Ernst Huber, na Alemanha dos anos de 1930, da Lei Constitucional do Grandioso
Reich Germânico. Huber escreveu que a cabeça do estado "estabelece os grandes fins
que devem ser alcançados e compõe os planos para a utilização de todas as forças
nacionais na realização dos fins comuns... ele dá à vida nacional seu verdadeiro
propósito e valor."
A atitude e motivação dos guarda-costas intelectuais da segurança nacional
contemporânea do estado foi causticamente descrita por Marcus Raskin, quem foi um
membro assistente do Conselho da Segurança Nacional durante a administração
Kennedy. Chamando-os de "intelectuais mortíferos," Raskin escreve que:
...a função mais importante deles é justificar e dar boas vindas à existência
de seus empregadores... Para justificar a contínua produção em larga-escala
destas bombas e mísseis [termonucleares], líderes militares e industriais
precisavam de algum tipo de teoria para racionalizar o seu uso... Isso se
tornou particularmente urgente durante o final dos anos de 1950, quando a
economia — membros inclinados da Administração Eisenhower começaram
a se perguntar porque tanto dinheiro e recursos, pensaram, estavam sendo
gastos com armas se o seu uso não podia ser justificado. E então começaram
uma série de racionalizações pelos "intelectuais da defesa" dentro e fora das
universidades... A aquisição militar irá continuar a florescer e eles irão
continuar a demonstrar por ela deve. Neste quesito eles não são diferentes da
grande maioria dos especialistas modernos que aceitam as suposições das
organizações que os empregam por causa das recompensas em dinheiro e do
poder e prestígio... Eles sabem o suficiente para não questionarem o direito
de seus empregadores existirem.
Isso não quer dizer que todos os intelectuais em todos os lugares têm sido "intelectuais
da corte", servidores e parceiros juniores do poder. Mas isso tem sido a condição
dominante na história das civilizações — geralmente na forma de um sacerdócio —
assim como a condição dominante nestas civilizações tem sido a de uma ou outra forma
de despotismo. Existiram, porém, algumas exceções gloriosas, particularmente na
história da civilização ocidental, onde os intelectuais haviam freqüentemente sido
críticos sinceros e oponentes do poder estatal, e haviam usado seus dons intelectuais
para moldar sistemas teóricos que podiam ser usados na luta pela libertação daquele
poder. Mas, invariavelmente, estes intelectuais só puderam surgir como uma força
significante quando eles puderam operar de uma base de poder independente — uma
propriedade como base independente — separada do aparato estatal. Aonde quer que o
estado controle todas as propriedades, riqueza, e oferta de empregos, todos estão
economicamente dependentes dele e se torna difícil, se não impossível, para que essa
crítica independente surja. Foi no ocidente, com o seu foco de poder descentralizado,
suas fontes de propriedade e oferta de empregos independentes e, conseqüentemente, de
bases para criticar o estado, onde um corpo de intelectuais pode florescer. Na idade
média, a igreja católica romana que era pelo menos separada, se não independente, do
estado, e as novas cidades livres foram capazes de servir como centros de oposição
intelectual e também substantiva. Nos últimos séculos, professores, ministros e
panfleteiros em uma sociedade relativamente livre eram capazes de usar a sua
independência do estado para agitar uma maior expansão da liberdade. Em contraste,
um dos primeiros filósofos libertários, Lao-tse, morando no meio do antigo despotismo
chinês, não via esperança em alcançar a liberdade naquela sociedade totalitária, exceto
por recomendar pacifismo, do ponto de vista da saída individual pra fora da vida social
completamente.
Com um poder descentralizado, com uma igreja separada do estado, com cidades e
municípios podendo se desenvolver fora da estrutura do poder feudal, e com liberdade
na sociedade, a economia pode se desenvolver na Europa ocidental de uma maneira que
transcendeu todas as civilizações anteriores. Além do mais, a estrutura tribal germânica
— e particularmente a celta — que sucedeu à desintegração do império romano, tinha
fortes elementos libertários. Ao invés de um poderoso aparato estatal exercendo um
monopólio da violência, as disputas eram resolvidas pela consulta dos homens tribais
opostos aos anciões da tribo na natureza e aplicação dos costumes e da lei comum da
tribo. O "chefe" era geralmente um mero líder de guerra que era chamado para o seu
papel de guerreiro apenas quando havia uma guerra com outras tribos a caminho. Não
havia guerra permanente ou uma burocracia militar nas tribos. Na Europa ocidental,
assim como em muitas outras civilizações, o modelo típico da origem do estado não era
através de um "contrato social" voluntário, mas pela conquista de uma tribo por outra. A
liberdade original da tribo ou da classe camponesa conseqüentemente vira vítima dos
conquistadores. Em primeiro lugar, a tribo conquistadora matou e saqueou as vítimas e
dominou. Mas às vezes os conquistadores decidiram que seria mais lucrativo instalar-se
no meio dos camponeses conquistados e controlá-los e saqueá-los de forma sistemática
e permanente. O tributo periódico extraído dos súditos conquistados foi eventualmente
chamado de "taxação". Também, com igual generosidade, os caciques das tribos
parcelaram o território da classe camponesa aos vários líderes militares, os quais eram
então capazes de se instalarem e coletarem um "aluguel" feudal da classe camponesa.
Os camponeses freqüentemente eram escravizados, ou transformados em servos, para
que a própria terra pudesse prover uma fonte contínua de trabalho explorado para os
senhores feudais.
Nós podemos notar alguns exemplos relevantes para nascimento do estado moderno
através da conquista. Um foi o a conquista militar da classe camponesa indígena na
America Latina pelos espanhóis. A Espanha conquistadora não apenas estabeleceu um
estado novo sobre os indígenas, mas a terra dos camponeses foi divida entre os líderes
militares, os quais ficaram desde então coletando aluguéis dos agricultores. Outro
exemplo foi a nova forma política imposta sobre os saxões da Inglaterra após sua
conquista pelos normandos em 1066. A terra da Inglaterra foi dividida entre os líderes
guerreiros normandos, os quais formaram então um aparato estatal e feudal de domínio
sobre a população súdita. Para o libertário, o mais interessante e certamente o mais
doloroso exemplo da criação de um estado através da conquista foi o da destruição da
sociedade libertária da Irlanda antiga pela Inglaterra no século dezessete, uma conquista
que estabeleceu um estado imperial e ejetou inúmeros irlandeses da sua terra natal. A
sociedade libertária da Irlanda, a qual durou por mil anos — e que será descrita mais
adiante — foi capaz de resistir à conquista inglesa por séculos por causa da ausência de
um estado que poderia ser facilmente conquistado e depois usado pelos conquistadores
para dominar a população nativa.
Mas enquanto do começo ao fim da história ocidental, os intelectuais formularam
teorias designadas a checar e limitar o poder estatal, cada estado tem podido usar seus
próprios intelectuais para tornar essas idéias ainda mais legitimadores do seus próprio
avanço de poder. Deste modo, na Europa ocidental, originalmente, o conceito de
"direito divino dos reis" era uma doutrina promovida pela igreja para limitar o poder
estatal. A idéia era que o rei não podia apenas impor sua vontade arbitrária. Seus
decretos eram limitados nos conformes da lei divina. Com o avanço da monarquia,
porém, os reis puderam transformar o conceito em uma idéia de que deus punha sua
estampa de aprovação em quaisquer ações dos reis; que ele governava pelo "direito
divino".
Similarmente, o conceito de uma democracia parlamentar começou como uma checada
popular no governo absoluto do monarca. O rei era limitado pelo poder do parlamento
de garantir a ele os rendimentos públicos. Gradualmente, porém, como o parlamento
deslocou o rei como a cabeça do estado, o próprio parlamento se tornou o soberano do
estado não checado. No início do século dezenove, os utilitárias ingleses, que
advogaram a liberdade individual adicional em nome da utilidade social e do bem estar
geral, viram estes conceitos serem transformados em sanções para a expansão do poder
estatal.
Como escreveu De Jouvenel:
Muitos escritores de teorias de soberania trabalharam um ou outros destes
dispositivos restritivos. Mas no fim das contas, cada teoria destas perdeu,
mais cedo ou mais tarde, o seu propósito original, vindo a atuar meramente
como um trampolim para o poder, provendo-o com o auxílio poderoso de
uma soberania invisível, com a qual ele podia se identificar a tempo com
sucesso.
Certamente a tentativa mais ambiciosa na historia para impor limites no estado foi a
Declaração dos Direitos dos Cidadãos e outras partes restritivas da constituição
americana. Aqui, os limites escritos para o governo se tornam a lei fundamental, para
serem interpretados por um judiciário supostamente independente das outras partes do
governo. Todos os americanos estão familiarizados com o processo pelo qual a análise
profética de John C. Calhoun tem se justificado; o próprio monopólio judiciário do
estado tem inexoravelmente ampliado a construção do poder estatal ao longo do ultimo
século e meio. Mas poucos foram tão sagazes quanto o professor liberal Charles Black
— que saúda o processo — em ver que o estado tem sido capaz de transformar a própria
revisão judicial de um dispositivo limitador para um poderoso instrumento para ganhar
legitimidade para as suas ações nas mentes do público. Se um decreto judicial de
"inconstitucional" é uma verificação poderosa no poder governamental, também o
veredicto de "constitucional" é igualmente uma arma poderosa para alimentar a
aceitação pública de um poder governamental ainda maior.
O professor Black inicia sua análise apontando a necessidade crucial pela
"legitimidade" de qualquer para que este possa durar; isto é, a aceitação básica da
maioria ao governo e suas ações. A aceitação de legitimidade, porém, se torna um
grande problema em um país como os estados Unidos, onde "limitações substantivas
são construídas na teoria pela qual o estado sobrevive". O que é preciso, acrescenta
Black, é um método pelo qual o governo pode assegurar ao público que suas expansões
de poder são de fato "constitucionais". E assim, ele conclui, tem sido função histórica
majoritária da revisão judicial. Deixe Black ilustrar o problema:
O risco supremo [para o governo] é o desafeto e um sentimento de abuso amplamente
disseminado perante a população, e a perda de autoridade moral pelo governo de tal
maneira, por mais que seja por um longo tempo, ele pode ser estaqueado pela força ou
inércia ou pela carência de uma alternativa atraente e imediatamente disponível. Quase
todos vivendo sob um governo de poderes limitados, devem mais cedo ou mais tarde se
sujeitarem a alguma ação governamental que, como uma questão de opinião pessoal, ele
considere como estando fora do poder governamental ou positivamente proibido para o
governo. Um homem é saqueado, mesmo não encontrando nada na constituição sobre
ser saqueado... A um fazendeiro, é dito quanto trigo ele pode plantar; ele acredita, e
descobre que alguns respeitáveis advogados acreditam com ele, que o governo não tem
mais direito para lhe dizer quanto trigo ele pode plantar do que ele tem para dizer com
quem sua filha pode se casar. Um homem vai à penitenciária federal pode dizer o que
ele quer, e ele anda a passo em sua cela recitando... "O congresso não deve fazer leis
reduzindo a liberdade de expressão"... A um homem de negócios, é dito o que ele pode
perguntar, e deve perguntar, por um leitelho.
O perigo é real o bastante para que cada uma destas pessoas (e quem não está nos seus
números?) vá confrontar o conceito de limite governamental com a realidade (como ele
o vê) do excedente flagrante dos seus limites atuais, e cair na conclusão óbvia sobre o
estado de seu governo com respeito à legitimidade.
Este perigo é desviado, adiciona Black, com o estado propondo a doutrina de que a
agência de alguém deve ter a decisão final sobre a constitucionalidade, e que esta
agência deve ser parte do próprio governo federal. Por um tempo a aparente
independência do judiciário federal teve um papel vital em fazer com que suas ações
ficassem virtualmente como uma Sagrada Escritura para a massa da população, também
é verdade que o judiciário é parte e parcela do aparato governamental e é designado
pelos ramos executivos e legislativos. O professor Black reconhece se estabeleceu como
um juiz no seu próprio caso e, portanto, violou um princípio jurídico básico para se
chegar a qualquer tipo de decisão justa. Mas Black é notoriamente iluminado sobre esta
brecha fundamental : "O poder final do estado... deve parar onde as leis o param. E
quem deve estabelecer o limite, e quem deve forçar a interrupção contra o maior poder?
Por que, o próprio estado, é claro, através dos juízes e leis. Quem controla o clima?
Quem ensina ao sábio?..." E então Black admite que quando nós temos um estado, nós
cedemos todas as nossas armas e meios de coerção ao aparato estatal, nós voltamos
todas os nossos poderes de tomada de decisões finais a este grupo definido, e então nós
devemos celebrar bastante, sentar para trás quietinhos e aguardar a corrente sem fim da
justiça que vai se despejar destas instituições — mesmo eles estando julgando
basicamente o próprio caso deles. Black não vê alternativa concebível a este monopólio
coercivo de decisões judiciais compelido pelo estado, mas aqui é precisamente onde o
nosso novo movimento desafia esta visão convencional e afirma que há uma alternativa
viável: o libertarianismo.
Não vendo tal alternativa, o Professor Black se volta a um misticismo na sua defesa do
estado, pois em suas análises finais ele constata que o empreendimento da justiça e a
legitimidade dos perpétuos julgamentos feitos pelo estado na sua própria causa seriam
"algo milagroso". Desta forma, o liberal Black se junta ao conservador Burnham ao
recuar-se ao milagroso e assim sendo, admitindo que não há argumento racional
satisfatório na defesa do estado.
Aplicando a sua visão realística da Suprema Corte ao famoso conflito entre a Corte e o
New Deal nos anos de 1930, o Professor Black repreende seus colegas liberais pelas
suas visões míopes ao denunciarem o obstrucionismo judicial:
...a versão padrão da história do New Deal e da Corte, apesar de acurada na
sua forma, desloca a ênfase... Ela concentra nas dificuldades; ela quase
esquece como toda a coisa terminou. O desfecho da questão foi que (e isso é
o que eu gosto de dar ênfase) depois de uns vinte quatro meses de fracasso...
A Suprema Corte, sem nem uma única alteração na composição da lei,
colocou a estampa afirmativa de legitimidade no New Deal e na completa
nova concepção do governo na América.
Desta forma, a Suprema Corte foi capaz de dar o golpe final no extenso corpo de
americanos que tinham fortes objeções constitucionais aos poderes expandidos do New
Deal:
É claro que nem todos estavam satisfeitos. O "Bonnie Prince Charlie" do laissez-faire
constitucionalmente comandado ainda agita o coração de alguns fanáticos nas
montanhas da fantasia colérica. Mas não mais nenhuma dúvida pública significante ou
perigosa quanto ao poder constitucional do congresso para lidar com a economia
nacional... Nós não tivemos meios, além da Suprema Corte, para conceder legitimidade
ao New Deal.
Deste modo, até mesmo nos estados Unidos, exclusivamente dentre governos tendo uma
constituição, com partes das quais ao menos pretendiam impor limites rigorosos e
solenes nas suas ações, até mesmo aqui a Constituição provou ser um instrumento para
ratificar a expansão do poder estatal ao invés de se opor a ela. Como disse Calhoun,
quaisquer limites escritos que são deixados para o governo interpretar os seus próprios
poderes, estão fadados a serem interpretados como sanções para expandir e não amarrar
tais poderes. De um modo profundo, a idéia de amarrar o poder com as correntes de
uma constituição escrita provou ter sido um nobre experimento que falhou. A idéia de
um governo estritamente limitado provou ter sido uma utopia; outros meios, mais
radicais, precisam ser encontrados para prevenir o crescimento do estado agressivo. O
sistema libertário satisfaria este problema esmagando toda a noção de criar um governo
— uma instituição com um monopólio coercivo da força em um determinado território
— e então esperando em encontrar maneiras para evitar a expansão deste governo. A
alternativa libertária é se abster da criação de tal monopólio governamental.
Nós vamos explorar toda a noção de uma sociedade sem um estado, uma sociedade sem
um governo formal, nos próximos capítulos. Mas um exercício instrutivo é tentar
abandonar as maneiras habituais de ver as coisas e considerar o argumento pelo estado
de novo. Vamos tentar transcender o fato de que até onde lembramos, o estado tem
monopolizado os serviços policiais e judiciários na sociedade. Suponha que nós todos
começamos completamente linha de partida e que milhões de nós fomos deixados na
terra, totalmente crescidos e desenvolvidos, de algum outro planeta. O debate começa
com como a proteção (serviços policiais e judiciários) serão fornecidos. Alguém diz;
"Vamos todos dar todas as nossas armas para aquele Joe Jones ali e aos seus parentes.
Vamos também deixar o Jones e a sua família decidir todas as disputas entre a gente.
Desta maneira, os Jones vão poder proteger todos nós de qualquer agressão ou fraude
que qualquer um possa cometer. Com todo o poder e toda a capacidade para tomar as
decisões finais das disputas nas mãos de Jones, nós todos estaremos protegidos uns dos
outros. E por fim, vamos deixar os Jones obter suas rendas através deste grande serviço
usando suas armas e extorquindo tantos impostos pela coerção quanto eles desejarem."
Certamente neste tipo de situação, Ninguém trataria esta proposta como nada mais do
que ridícula. Seria totalmente evidente que não haveria maneira, neste caso, de nenhum
de nós nos protegermos contra as agressões, ou depredações, dos próprios Jones.
Ninguém então teria a tolice de responder àquela velha e discernente questão; "Quem
irá guardar os guardiões?" com idéia do Professor Black: "Quem controla o brando?". É
só porque nós estamos acostumados com milhares de anos de existência do estado que
nós damos este tipo de resposta absurda ao problema da proteção e defesa social.
E, é claro, o estado nunca de fato começou com este tipo de "contrato social". Como
Oppenheimer mostrou, o estado geralmente começou com violência e conquista; mesmo
quando processos internos deram origem ao estado, ela certamente não foi nunca
através de consenso geral ou contrato.
O credo libertário pode ser agora resumido da seguinte forma (1) o direito absoluto do
homem de possuir o próprio corpo; (a) o direito absoluto e equivalente de possuir e
desta forma controlar os recursos materiais que ele descobriu e transformou; e (3) deste
modo, o direito absoluto de trocar ou dar a posse de tais títulos a quem quer que deseje
trocar ou recebê-los. Como nós já vimos, cada um desses passos envolve diretos de
propriedade, mas se nós seguirmos nos (1) direitos "pessoais", veremos que os
problemas sobre "liberdade pessoal" inexoravelmente envolvem os direitos de
propriedades materiais ou de livre troca. Ou, brevemente, os direitos de liberdade
pessoal e "liberdade de empreendimento" quase que invariavelmente se interligam e não
podem de fato ser separados.
Nós vimos que o exercício da "liberdade de expressão", por exemplo, quase que
invariavelmente envolve o exercício da "liberdade econômica" — i.e., liberdade para
possuir e trocar propriedades materiais. A realização de um encontro para exercer a
liberdade de expressão envolve a contratação de um hall, viajar para o hall através das
estradas, usar alguma forma de transporte, etc. A mais próxima "liberdade de imprensa"
envolve ainda mais evidentemente os custos de impressão e o uso de uma imprensa, a
venda de panfletos para compradores dispostos — resumindo, todos os ingredientes da
"liberdade econômica". Além do mais, nosso exemplo de "gritar fogo" em um teatro
lotado nos dá uma clara diretriz para podermos decidir de quem devem ser os direitos
que devemos defender em qualquer situação — as diretrizes fornecidas por nosso
critério: os direitos de propriedade.
4. Os Problemas
Façamos uma breve análise dos maiores problemas da sociedade atual e vejamos se
conseguimos encontrar algum traço comum a todos eles.
Os altos impostos: Os altos e crescentes impostos têm prejudicado quase todos e estão
diminuindo a produtividade, os incentivos, a poupança e o espírito empreendedor das
pessoas. No nível federal, há uma revolta cada vez maior contra o fardo dos tributos
sobre a renda e um crescente movimento de rebelião contra os impostos, que conta com
suas próprias organizações e publicações e que se recusa a pagar impostos considerados
predatórios e inconstitucionais. Em nível estadual e municipal, há uma oposição cada
vez mais sistemática aos opressivos impostos sobre imóveis. Dessa forma, o número
recorde de 1,2 milhão de pessoas assinou a petição em favor da iniciativa Jarvis-Gann
nas eleições de 1978, uma proposta que reduziria drástica e permanentemente os
impostos sobre imóveis de dois terços para um por cento e estabeleceria um teto para o
valor estimado deles. Ademais, a iniciativa Jarvis-Gann reforça o congelamento
requerendo a aprovação de dois terços de todos os eleitores registrados do estado da
Califórnia para além do teto de um por cento. E, para garantir que o estado não
simplesmente compense este com outro imposto, a iniciativa também requer a
aprovação de dois terços da legislatura estadual para aumentar qualquer outro imposto
do estado.
Além disso, no outono de 1977, milhares de proprietários do condado de Cook, no
Illinois, se recusaram a pagar o imposto sobre imóveis, que havia aumentado
dramaticamente devido às avaliações cada vez mais altas.
Não é necessário enfatizar que a tributação, sobre a renda, sobre imóveis ou sobre o que
quer que seja é um monopólio do governo. Nenhum outro indivíduo ou organização
goza do privilégio de cobrar impostos, de adquirir rendimentos por meio da coerção.
A crise fiscal: Em todo o país, os estados e municípios têm tido dificuldades para pagar
os juros e grosso de suas dívidas públicas. A cidade de Nova York foi a primeira a pedir
moratória parcial de suas obrigações contratuais. A crise fiscal existe simplesmente em
virtude dos altos gastos dos governos, mais altos até que os impostos que eles cobram
de nós. Novamente, a quantia gasta pelos governos municipais ou estaduais é problema
deles; novamente o governo deve ser culpado.
A guerra do Vietnã e outras intervenções estrangeiras: A guerra do Vietnã foi um
completo desastre para a política externa dos Estados Unidos; após inúmeras mortes e
enormes devastações de terras, com um gasto imenso de recursos, o governo apoiado
pelos Estados Unidos finalmente entrou em colapso em 1975. O desastre na guerra do
Vietnã pôs em questão a política intervencionista americana e foi parcialmente
responsável pelo freio colocado pelo Congresso na intervenção americana em Angola.
A política externa, evidentemente, também é um monopólio do governo federal. A
guerra foi travada por nossas forças armadas que, de novo, são um monopólio
compulsório do mesmo governo federal. Assim, o governo é inteiramente responsável
por todos os problemas relativos à guerra e à política externa, como um todo e em cada
um de seus aspectos particulares.
A criminalidade nas ruas: Considere o seguinte: os crimes em questão são cometidos,
por definição, nas ruas. As ruas são propriedade quase que universalmente do governo,
que, assim, detém o virtual monopólio da propriedade delas. A polícia, que
supostamente deve nos proteger dos crimes, é um monopólio compulsório do governo.
E as cortes, que devem condenar e punir os criminosos, são também um monopólio
coercitivo do governo. Portanto, o governo tem o comando de todos os aspectos do
problema da criminalidade. E as cortes, que são existentes para perseguir e punir
criminosos, são igualmente monopólios coercitivos do governo. Então, o governo está
encarregado de cuidar cada um dos aspectos relativos aos crimes cometidos nas suas
ruas. O problema aqui, da mesma forma que o fracasso do Vietnã, deve ser debitado
exclusivamente na conta do governo.
Engarrafamentos: Mais uma vez, essa situação só ocorre nas ruas e estradas do
governo.
O complexo industrial-militar: Este complexo é uma criação integral do governo
federal. É o governo que decide gastar de incontáveis bilhões de dólares em
armamentos, que firma contratos, que subsidia a ineficiência através de garantias da
cobertura de custos, que constrói fábricas e as arrenda ou doa diretamente a
contratantes. Claro, as empresas envolvidas fazem lobbies para receberem esses
privilégios, mas é apenas através do governo que o mecanismo que permite que haja
esses privilégios — e a conseqüente má alocação de recursos — pode existir.
O transporte público: A crise do transporte público não envolve somente os
engarrafamentos nas ruas, mas também as ferrovias degradadas, as altas tarifas aéreas, o
congestionamento dos aeroportos nos horários de pico e os metrôs (como o da cidade de
Nova York) deficitários e em visível marcha rumo ao colapso. Some-se ainda o fato de
que as ferrovias foram construídas em excesso com grandes subsídios (federais,
estaduais e municipais) durante o século XIX, e têm sido até hoje a indústria sujeita às
regulamentações mais pesadas e pelo maior período de tempo da história americana. As
linhas aéreas são cartelizadas pelo Comissão Civil de Aeronáutica e subsidiadas através
de outras regulamentações, por contratos de transporte de correspondências e por
aeroportos virtualmente de graça. Os aeroportos para linhas comerciais são, em sua
totalidade, propriedades de algum braço do governo, e do governo local em grande
parte. Os metrôs da cidade de Nova Iorque têm sido de propriedade do governo por
décadas.
A poluição dos rios: Os rios, efetivamente, não têm donos, isto é, são de domínio
público, controlados pelo governo. Além disso, os maiores culpados pela poluição são
as próprias companhias de esgoto municipais. Novamente: o governo é ao mesmo
tempo o maior poluidor e o "dono" descuidado do recurso pelo qual deveria zelar.
A escassez de água: A falta de água é um problema crônico em algumas áreas do país e
apenas intermitente em outras, a exemplo de Nova York. E é o governo, através de seu
controle do domínio público, que detém grande parte dos rios de onde vem a água que
nos abastece; o governo, como o virtual único ofertante de água, reserva para si o poder
exclusivo de poder criar aquedutos.
A poluição do ar: Novamente, é o governo, como dono do domínio público, que
controla o ar. Além disso, têm sido os tribunais, pertencentes exclusivamente ao
governo, que em atos políticos deliberados têm fracassado geração após geração na
tarefa de proteger os nossos direitos de propriedade sobre nossos corpos e bens sobre os
quais a poluição gerada pelas indústrias recai. Deve-se levar em conta que boa parte da
poluição advém diretamente de indústrias de propriedade do governo.
As faltas de energia e os apagões: Em todo o país os governos estaduais e municipais
criaram monopólios compulsórios no fornecimento de gás e luz elétrica e os
concederam a companhias privadas, que são, então, reguladas pelo governo e têm seus
preços tabelados por agências estatais que garantem lucros fixos e permanentes.
Novamente, o governo tem sido a fonte destes monopólios e destas regulamentações.
Serviços de telefonia: Os cada vez piores serviços de telefonia são ocasionados, de
novo, pelo privilégio monopolístico concedido pelo governo, que estabelece os preços
para garantir lucros aos favorecidos. Como no caso do gás e da eletricidade, ninguém
mais tem a permissão para competir com o monopólio das companhias de telefone.
Serviços postais: Sofrendo com pesados déficits desde sua criação, os correios, ao
contrário dos bens e serviços prestados pela indústria privada no mercado livre, têm
continuamente diminuído a qualidade de seus serviços e aumentado seus preços. A
maior parte do público, usuária dos serviços monopolísticos de correspondência
convencionais, tem sido forçada a subsidiar as empresas, que utilizam os serviços de
entrega de anúncios e encomendas. Os correios são, desde o final do século XIX, um
monopólio compulsório do governo. Quando quer que firmas privadas tenham
competido, mesmo que ilegalmente, na entrega de correspondências, elas
invariavelmente ofereceram melhores serviços a preços mais baixos.
Televisão: A televisão caracteriza-se pela inocuidade de seus programas e pela distorção
de suas notícias. Os canais de rádio e TV foram nacionalizados há meio século pelo
governo federal, que os concede a grupos favorecidos e que pode suspender esses
privilégios quando quer que os canais passem a incomodar a Comissão Federal de
Telecomunicações. É possível que qualquer liberdade de expressão e imprensa exista
sob essas condições?
Assistencialismo: Os programas assistenciais evidentemente são seara exclusiva dos
governos, na maior parte estaduais e municipais.
Habitação urbana: Tal como a administração do tráfego, a habitação é um dos nossos
mais conspícuos fracassos urbanos. E, no entanto, há poucos setores que já tenham sido
tão conectados ao governo como o setor da habitação. O planejamento urbano tem
controlado e regulado as cidades. As leis de zoneamento têm limitado a habitação e o
uso do solo com inúmeras restrições. Os impostos sobre propriedades têm
impossibilitado o desenvolvimento urbano e forçado os moradores a abandonarem suas
casas. Os códigos de construção civil têm restringido a construção de residências e as
tornado mais dispendiosa. Os projetos de revitalização urbana têm fornecido altos
subsídios ao setor imobiliário, forçado a demolição de apartamentos e estabelecimentos
comerciais, diminuído a oferta de imóveis e intensificado a discriminação racial.
Grandes empréstimos governamentais ocasionaram uma super concentração de
construções nos subúrbios. Controles de aluguéis criaram a escassez de apartamentos e
a redução da oferta de casas residenciais.
Greves e restrições sindicais: Os sindicatos se tornaram um transtorno por conta de seu
poder de frear a economia — que somente existe graças aos vários privilégios
concedidos pelo governo. Em especial, há as imunidades sindicais concedidas pelo
Wagner Act de 1935, ainda em vigor, que obrigam os empregadores a negociar com os
sindicatos que obtiverem a maioria dos votos de uma "unidade de negociação"
arbitrariamente definida pelo próprio governo.
Educação: Outrora tão reverenciada e sacrossanta pela a opinião pública americana
quanto a maternidade ou a bandeira, a educação pública sofreu grandes ataques
recentemente, de todos os lados do espectro político. Mesmo seus defensores não
acreditam que as escolas públicas de fato ensinam qualquer coisa. E recentemente nós
vimos casos extremos nos quais as ações das escolas públicas motivaram reações
violentas em lugares tão diferentes quanto South Boston e o Condado Kanawha, em
West Virginia. As escolas públicas, evidentemente, são operadas pelos governos
estaduais e municipais, com assistência considerável da esfera federal. As escolas
públicas são mantidas por leis de freqüência compulsória que forçam todas as crianças a
irem à escola até o ensino médio. Mesmo a educação superior tem desenvolvido um
relacionamento próximo com o governo em décadas recentes: muitas universidades são
de propriedade estatal e as outras são beneficiárias sistemáticas de concessões, subsídios
e contratos.
Inflação e estagflação: Os Estados Unidos, bem como o resto do mundo, sofrem há
vários anos com uma crônica e cada vez mais acelerada crise inflacionária — uma
inflação acompanhada por altas taxas de desemprego e que persiste através de recessões
severas e moderadas ("estagflação"). Uma explicação para estes eventos desagradáveis
é apresentada mais a frente. Aqui, diga-se somente que a raiz desses problemas está na
expansão contínua da oferta monetária, um monopólio compulsório do governo federal
(qualquer individuo que tentar competir com o governo emissão de moeda será
imediatamente preso por falsificação). Uma parte vital da oferta de moeda do país é
emitida como moeda-cheque pelo sistema bancário, que por sua vez, está sob total
controle pelo Federal Reserve System.
Watergate: Por último, mas não menos importante, está toda a traumática síndrome
sofrida pelos americanos conhecida como "Watergate". O caso Watergate significou
uma total dessacralização da presidência e de instituições federais outrora sacrossantas,
como a CIA e o FBI. As invasões de propriedades, os métodos totalitários, a enganação
do público, a corrupção, as múltiplas e sistêmicas comissões de apuração dos crimes do
virtualmente todo-poderoso Presidente levaram a um antes impensável impeachment e
ao descrédito das instituições do Estado no país. O establishment tem freqüentemente se
queixa desta nova e universal falta de confiança, mas é muito difícil a inocência do
público dos tempos pré-Watergate. A historiadora esquerdista Cecília Kenyon certa vez
criticou os anti-federalistas, os defensores dos Artigos da Confederação e os oponentes
da Constituição por serem "homens de pouca fé" nas instituições do governo. É de se
suspeitar que ela não fosse tão ingênua a ponto de escrever isso na era pós-Watergate.
Não é necessário mencionar que o Watergate é um fenômeno pura e exclusivamente
governamental. O Presidente é o chefe do Executivo do governo federal, os
"encanadores" foram sua ferramenta, e o FBI e a CIA são agências governamentais da
mesma maneira. Por isso, compreensivelmente a fé e a confiança no governo foram
destruídas pelo escândalo.
Se olharmos a nossa volta, se analisarmos os problemas cruciais de nossa sociedade, as
áreas de crise e fracasso, nós vemos um traço comum que os une: a influência do
governo. Em todos esses casos, o governo operou por completo ou influenciou
pesadamente a atividade. O economista John Kenneth Galbraith, em seu best-seller A
Sociedade Afluente, reconhece que o setor governamental originou nosso fracasso
social, mas curiosamente deriva a conclusão de que, portanto, ainda mais recursos
devem ser desviados do setor privado para o público. Dessa forma ele ignorava o fato de
que o papel de todas as esferas de governo nos Estados Unidos se expandiu
enormemente, tanto em termos absolutos quanto relativos, neste século e em especial
nas décadas recentes. Infelizmente, Galbraith jamais levantou a seguinte questão: Há
algo inerente na operação do governo, algo que cria as próprias falhas que nós vemos à
nossa volta? Nós investigaremos alguns dos maiores problemas do governo e da
liberdade neste século, veremos de onde se originam essas falhas e proporemos soluções
com base no novo libertarismo. Façamos uma breve análise dos maiores problemas da
sociedade atual e vejamos se conseguimos encontrar algum traço comum a todos eles.
10. O Setor Público: o Governo como Empresário
As pessoas sempre tendem a seguir hábitos e rotinas inquestionáveis, principalmente
quando se trata de questões governamentais. No mercado, e na sociedade em geral,
sempre esperamos por mudanças — e nos acomodamos rapidamente a elas — que
quase sempre trazem grandes maravilhas e melhorias para nossa civilização. Novos
produtos, novos estilos de vida e novas idéias quase sempre são aceitas avidamente.
Mas quando se trata de áreas governamentais, seguimos cegamente o mesmo caminho
que vem sendo trilhado por séculos, satisfeitos em acreditar que o que quer que esteja
sendo feito deve ser o certo. Em particular, os governos — seja o americano, seja
qualquer outro — vêm desde tempos imemoriais fornecendo-nos certos tipos de
serviços essenciais e necessários, serviços esses que todos consideram importantes:
defesa (incluindo as forças armadas, a polícia, o judiciário e as leis), corpo de
bombeiros, ruas e estradas, água, esgoto e remoção de lixo, correios, etc. O estado ficou
tão identificado com a provisão de tais serviços na mentalidade das pessoas, que
qualquer crítica às finanças do estado parece ser para muitas pessoas um ataque à
natureza desses mesmos serviços. Assim, se alguém afirmar que o estado não deveria
fornecer serviços judiciários, e que empresas privadas no mercado poderiam fornecer
tais serviços de maneira bem mais eficiente, bem como de maneira mais ética, as
pessoas tendem a acreditar que isso significa negar a importância dos próprios tribunais.
O libertário que quer substituir o governo por empresas privadas nas áreas mencionadas
acima é tratado da mesma maneira que ele seria tratado se o governo tivesse, por várias
razões, o monopólio do fornecimento de sapatos — utilizando o dinheiro do
contribuinte, é claro — desde tempos imemoriais. Se o governo, e somente o governo,
tivesse o monopólio da fabricação de sapatos e fosse o dono de todas as revendedoras,
como será que a maioria das pessoas iria reagir ao libertário que viesse advogar que o
governo saísse do setor de calçados e o abrisse para empresas privadas? Sem dúvida
nenhuma as pessoas iriam bradar: "Como assim? Você não quer que as pessoas, e
principalmente os pobres, usem sapatos! E quem iria fornecer sapatos ao povo se o
governo saísse do setor? Diga! Seja construtivo! É fácil ser negativo e desrespeitoso
quando se trata do governo; mas diga-nos quem iria fornecer sapatos? Quais pessoas?
Quantas lojas de sapato haveria em cada cidade? Em cada município? Como isso seria
definido? Como as empresas de sapato seriam financiadas? Quantas marcas existiriam?
Qual material elas iriam usar? Quanto tempo os sapatos durariam? Qual seria o arranjo
de preços? Não seria necessário haver regulamentação da indústria de calçados para
garantir que o produto seja confiável? E quem iria fornecer sapatos aos pobres? E se a
pessoa não tiver o dinheiro necessário para comprar um par?"
Essas perguntas, por mais ridículas que pareçam, e são, quando se trata do setor
calçadista, são igualmente absurdas quando dirigidas ao libertário que defende um livre
mercado para o setor de combate a incêndios, para o setor policial, para os correios, ou
para qualquer outra operação governamental. O ponto principal é que o defensor da
existência de um livre mercado para todas as áreas não pode fornecer antecipadamente
um projeto "construtivo" de como seria tal mercado. A essência e a glória do livre
mercado é que as empresas e os negócios individuais, quando competindo no mercado,
fornecem uma orquestração contínua de bens e serviços cada vez mais eficientes e
evolutivos: os produtos e os mercados estão sempre se aperfeiçoando, a tecnologia está
sempre progredindo, os custos estão constantemente sendo diminuídos (ao contrário do
que ocorre com o governo), e a inconstante demanda do consumidor está sempre sendo
satisfeita da maneira mais rápida e eficiente possível. O economista libertário pode
tentar mostrar umas poucas diretrizes sobre como os mercados poderão se desenvolver
onde atualmente eles são proibidos ou restringidos; mas ele pouco mais pode fazer do
que apontar o caminho para a liberdade: pedir que o governo saia do caminho da
produtiva e sempre inventiva energia que emana dos indivíduos quando estes se
envolvem nas atividades voluntárias do mercado. Ninguém pode prever o número de
empresas, o tamanho de cada empresa, a política de preços, etc., para qualquer futuro
mercado de qualquer serviço ou commodity. Apenas sabemos — da teoria econômica e
de um discernimento histórico — que um livre mercado em qualquer área fará um
serviço infinitamente melhor do que o monopólio compulsório de uma burocracia
governamental.
Como os pobres pagarão por serviços de defesa, proteção contra incêndios, correios,
etc., pode ser respondido basicamente com uma contra-pergunta: como os pobres pagam
por qualquer coisa que eles atualmente obtêm no mercado? (Pense nos telefones
celulares). A diferença é que sabemos que um mercado livre e privado irá fornecer esses
bens e serviços de forma muito mais barata, e em maior abundância, e com muito mais
qualidade do que monopólios governamentais fazem hoje. Toda a sociedade iria se
beneficiar, especialmente os mais pobres. E também sabemos que a enorme carga
tributária para financiar estas e outras atividades seria tirada dos ombros de todas as
pessoas, inclusive as mais pobres.
Já percebemos que todos os problemas que são universalmente admitidos como
urgentes estão todos relacionados a operações governamentais (guerras, apagões, caos
aéreo, saúde pública, cotas universitárias, malversação de dinheiro público, TV pública,
etc.). Também é fácil concluir que os enormes conflitos sociais entrelaçados no sistema
público educacional iriam todos desaparecer se a cada grupo de pais fosse dado o direito
de escolher e financiar o tipo de educação que fosse a preferida para seus filhos. As
graves ineficiências e os conflitos intensos são coisas totalmente inerentes às atividades
governamentais. Se o governo, por exemplo, fornece serviços monopolísticos (como,
por exemplo, em alguns setores da educação, o setor energético, ou o fornecimento de
água), então quaisquer decisões que o governo tome serão coercivamente impostas
sobre a infeliz maioria — quer seja uma questão de política educacional para as escolas
(integração ou segregação, progressiva ou tradicionalista, religiosa ou secular, etc.),
quer seja o tipo de água a ser vendida (por exemplo, fluoretada ou não-fluoretada), quer
seja a forma como a energia será gerada, distribuída e paga. Já deve estar claro que tais
batalhas ferozes não ocorrem quando cada grupo de consumidores pode comprar os
bens e serviços que bem querem. Não há brigas entre consumidores, por exemplo, sobre
quais tipos de jornais devem ser impressos, quais tipos de igrejas podem ou não ser
construídas, quais tipos de livros devem ser publicados, quais tipos de músicas devem
ser vendidas, ou quais tipos de carros devem ser fabricados. (Todas as brigas que por
ventura ocorram nessas áreas envolvem o uso da força do governo para fazer restrições).
Tudo que é produzido no mercado reflete a diversidade, bem como a força, da demanda
do consumidor.
No livre mercado, portanto, o consumidor é rei, e qualquer empresa que queira ter
lucros e evitar prejuízos tentará fazer o seu melhor para servir o consumidor da maneira
mais eficiente e ao menor custo possível. Em uma operação governamental, ao
contrário, tudo muda. Uma dissociação grave e inevitável entre qualidade dos serviços
prestados e o pagamento dos mesmos é algo totalmente inerente a qualquer operação
do governo. A burocracia governamental não recebe sua renda da mesma forma que
uma empresa privada, que tem que servir o consumidor de maneira satisfatória e vender
seus produtos de maneira que a receita seja maior que os custos de toda a operação.
Não, a burocracia governamental adquire sua renda através da extorsão do resignado
contribuinte. Assim, suas operações se tornam ineficientes — além de os custos
continuamente aumentarem —, pois as burocracias governamentais não precisam se
preocupar com prejuízos ou falências; elas podem compensar eventuais perdas
simplesmente fazendo extrações adicionais do bolso dos cidadãos. Além disso, o
consumidor, ao invés de ser cortejado e galanteado para seu próprio benefício, se torna
uma mera chateação para o governo, um alguém que está "consumindo" os escassos
recursos do governo (pense na Previdência Social). Nas operações do governo, o
consumidor é tratado como um intruso indesejável, uma interferência no sossego do
burocrata e na sua estável renda.
Assim, caso aumente a demanda do consumidor por bens e serviços de certas áreas, as
empresas privadas ficarão contentíssimas em supri-las; elas cortejarão e saudarão as
novas oportunidades de negócios, expandindo suas operações e ansiando por satisfazer
os novos pedidos. O governo, ao contrário, geralmente encara essa situação instando e
até ordenando que os consumidores "comprem" menos, e permitindo que escassezes
ocorram, conjuntamente com a deterioração da qualidade dos serviços. Destarte, o
aumento do uso das ruas estatais das cidades descamba em congestionamentos
exacerbados e em contínuas denúncias e ameaças contra as pessoas que dirigem seus
próprios carros. A administração da cidade de Nova York, por exemplo, está
continuamente ameaçando banir o uso de carros particulares em Manhattan, onde o
congestionamento tem sido particularmente desagradável. Somente esse ente chamado
governo iria pensar em ameaçar os consumidores dessa maneira; somente o governo, é
claro, tem a audácia de "solucionar" o congestionamento tirando os carros particulares
(ou caminhões, ou táxis, ou qualquer coisa) das ruas. De acordo com esse raciocínio, a
solução "ideal" para o congestionamento seria simplesmente banir todos os veículos!
Mas esse tipo de atitude para com o consumidor não está restrito ao tráfego nas ruas. A
cidade de Nova York, novamente, tem sofrido periodicamente de "falta" de água. Eis
aqui uma situação em que, por muitos anos, o governo da cidade tem tido o monopólio
compulsório da oferta de água aos seus cidadãos. Tendo falhado em fornecer a
quantidade suficiente de água, e tendo falhado em precificar essa oferta de tal maneira a
equilibrar o mercado, a igualar a oferta à demanda (algo que as empresas privadas
fazem automaticamente), a resposta das autoridades de Nova York à escassez de água
tem sido sempre a de culpar não a eles próprios, mas o consumidor, cujo pecado tem
sido o de usar "muita" água. A única reação da administração da cidade foi banir o uso
de aspersores (sprinklers) para gramados, restringir o uso de água, e requerer que as
pessoas bebam menos água. Dessa forma, o governo transfere seus próprios fracassos
para o usuário, que se transforma em bode expiatório e que é ameaçado e perseguido, ao
invés de ser servido de maneira satisfatória e eficiente.
Tem havido uma resposta similar do governo para o problema sempre crescente da
criminalidade. Ao invés de fornecer proteção policial eficiente, a reação de qualquer
governo tem sido a de obrigar o cidadão a ficar longe de áreas propensas ao crime.
Assim, quando o Central Park, em Manhattan, se tornou mal afamado por ser um local
de assaltos e outros crimes no período noturno, a "solução" da administração da cidade
para o problema foi impor um toque de recolher, banindo o uso do parque à noite. Ou
seja: se um inocente cidadão quiser ficar no Central Park à noite, é ele quem será preso
por estar desobedecendo ao toque de recolher; é claro que é mais fácil prender um
inocente civil do que acabar com a criminalidade no parque.
Em resumo: enquanto o velho lema da iniciativa privada é que "o consumidor sempre
tem razão", a máxima implícita de qualquer atividade governamental é que o
consumidor sempre é o culpado.
É óbvio, os burocratas e políticos já têm uma resposta padrão para as crescentes
reclamações a respeito de serviços ruins e ineficientes: "Os contribuintes precisam nos
dar mais dinheiro!" Já não basta que o "setor público" — e a sua conseqüência natural, a
taxação — tenha crescido no último século, e continue crescendo, bem mais
rapidamente que a renda nacional. Também não basta que os defeitos e as chateações
das atividades governamentais tenham se multiplicado junto com aumento do
orçamento do governo. Todos nós devemos dar ainda mais dinheiro para aquele buraco
sem fundo que é o estado!
O argumento correto contra a demanda de políticos por mais dinheiro de impostos é a
seguinte pergunta: "Como é que as empresas privadas não têm esse problema?" Como é
que empresas de eletrônicos ou companhias de fotocópias ou empresas de informática
ou qualquer outra não têm problema para encontra capital para expandir sua produção?
Por que essas empresas não publicam manifestos denunciando o povo por não dar a elas
mais dinheiro para que assim elas possam servir as necessidades do consumidor? A
resposta é que os consumidores pagam por eletrônicos ou por serviços de fotocópia ou
por computadores, e os investidores, como resultado, passam a ver que é possível
ganhar dinheiro investindo nesses negócios. No mercado privado, as empresas que
servem os consumidores com sucesso encontram facilmente capital para sua expansão;
empresas ineficientes e sem sucesso, não — e eventualmente elas saem dos negócios.
Mas para o governo não existe esse mecanismo de lucros e prejuízos que o induza a
fazer investimentos em operações eficientes e que penalize as operações ineficientes e
obsoletas, descartando-as. Não existe, para as atividades do governo, um sistema de
lucros e prejuízos que induza tanto a expansão quanto a contração das operações. No
governo, portanto, não há um real "investimento", e ninguém pode garantir que
operações de sucesso irão se expandir e as fracassadas irão desaparecer. Em contraste ao
setor privado, o governo arrecada seu "capital" literalmente por meio de um assalto, que
é a perfeita caracterização do mecanismo coercivo da taxação.
Muitas pessoas, incluindo alguns funcionários do governo, acreditam que esses
problemas poderiam ser resolvidos se o "governo fosse gerido como uma empresa
privada". O governo então criaria uma pseudocorporação monopolística, gerenciada
pelo governo, que supostamente cuidaria dos negócios seguindo "princípios de
mercado" — e isso foi feito, por exemplo, para os Correios e para a constantemente
desintegrada e decadente New York City Transit Authority. Essas "corporações" seriam
então obrigadas a acabar com seus déficits crônicos e autorizadas a lançar títulos no
mercado de títulos. É verdade que os usuários diretos estariam assim aliviando um
pouco da carga sobre a massa de contribuintes, que inclui tanto os usuários como os não
usuários. Mas existem defeitos ruinosos inerentes a qualquer atividade governamental
que não podem ser evitados por esse artifício pseudocorporativo. Em primeiro lugar, um
serviço governamental sempre será um monopólio ou um semi-monopólio.
Freqüentemente, como no caso dos Correios ou da Transit Authority, é um monopólio
compulsório — toda ou praticamente toda a concorrência privada é proibida. O
monopólio significa que o serviço oferecido pelo governo será bem mais caro, mais
custoso, e de pior qualidade em comparação ao que seria no livre mercado. Empresas
privadas obtêm seus lucros cortando custos o máximo possível. O governo, que não vai
à falência e nem sabe o que é ter prejuízos, não precisa cortar custos; como ele está
protegido contra qualquer concorrência e contra qualquer prejuízo, tudo o que ele
precisa fazer é interromper o fornecimento dos serviços ou simplesmente aumentar
preços. O segundo defeito ruinoso é que, por mais que se tente, uma corporação
governamental jamais poderá ser gerida como uma empresa privada simplesmente
porque seu capital continua sendo arrancado à força dos contribuintes. Não há como
evitar isso; o fato de uma estatal poder vender títulos no mercado ainda depende do
supremo poder de taxação do governo para poder resgatar esses títulos.
Finalmente, há um outro problema crítico inerente a qualquer operação governamental.
Uma das razões que faz das empresas privadas modelos de eficiência é porque o livre
mercado estabelece preços, que é o que torna possível o cálculo por parte das empresas
e permite que elas descubram quais são seus custos e, portanto, o que elas devem fazer
para ter lucros e evitar prejuízos. É através desse sistema de preços, bem como a
motivação para aumentar lucros e evitar prejuízos, que bens e serviços são devidamente
alocados no mercado, dentre todas as intrincadas ramificações e áreas de produção que
fazem parte da moderna economia capitalista. E é o cálculo econômico que torna essa
maravilha possível; em contraste, sob um planejamento central, tal como foi tentado no
socialismo, é impossível fazer quaisquer precificações acuradas, e assim os burocratas
não podem calcular custos e preços. Essa é a principal razão pela qual o planejamento
central socialista se mostrou um grande fracasso quando os países comunistas se
tornaram industrializados. E é exatamente pelo fato de um planejamento central não
poder determinar preços e custos com qualquer acurácia que os países comunistas do
leste europeu abandonaram rapidamente o planejamento central e foram correndo em
direção a uma economia de livre mercado.
Portanto, se o planejamento central empurra a economia para um incompetente caos
calculacional, e para produções e alocações irracionais, o avanço de qualquer atividade
governamental inexoravelmente introduz ilhas caóticas cada vez maiores na economia,
e torna o cálculo dos custos e a alocação racional dos recursos produtivos cada vez mais
difíceis. À medida que as operações do governo se expandem e a economia de mercado
definha, o caos calculacional se torna mais e mais destruidor e a economia se torna
crescentemente impraticável.
O derradeiro programa libertário pode ser sumarizado em uma única frase: a abolição
do setor público, com a conversão de todas as operações e serviços executados pelo
governo em atividades realizadas voluntariamente pela economia de livre mercado.
11. O setor público: desestatizando a segurança, as ruas e as estradas
Protegendo as ruas
Abolir o setor público significa, é claro, que todos os pedaços de terra, todas as
superfícies terrestres, inclusive ruas e estradas, se tornariam propriedade privada, sendo
geridas privadamente por indivíduos, corporações, cooperativas ou por quaisquer outros
agrupamentos voluntários de indivíduos e capital. O fato de que todas as ruas e áreas
terrestres seriam propriedade privada iria por si só resolver muitos dos aparentemente
insolúveis problemas da operação privada relativa a algumas áreas. O que precisamos
fazer é reorientar nosso pensamento para considerarmos um mundo no qual todas as
áreas de terra são geridas privadamente.
Peguemos, por exemplo, o serviço de proteção policial. Como ele funcionaria e como
ele seria fornecido em uma economia totalmente privada? Parte da resposta se torna
evidente se considerarmos um mundo de terras totalmente privadas, onde as ruas têm
donos. Considere a área de Times Square, na cidade de Nova York. Trata-se de uma
área notoriamente dominada pela criminalidade, onde a proteção policial oferecida pelas
autoridades é mínima. Cada cidadão nova-iorquino de fato sabe que ele praticamente
vive e anda pelas ruas — e não apenas na região de Times Square — em um estado de
completa "anarquia", dependendo unicamente da serenidade e da boa vontade de seus
concidadãos. A proteção policial em Nova York é mínima, fato esse que foi
dramaticamente revelado quando, em uma recente greve policial que durou uma
semana, a taxa de criminalidade, pasmem!, em nada se alterou. Não houve qualquer
aumento acima do normal, que é quando a polícia está supostamente alerta e na ativa.
De qualquer modo, suponha que a região de Times Square, incluindo as ruas, fosse
gerida privadamente pela, digamos, "Associação dos Comerciantes de Times Square".
Os comerciantes saberiam perfeitamente bem que se a criminalidade na sua região fosse
desenfreada, se os furtos e os assaltos a mão armada fossem constantes, seus clientes
iriam inevitavelmente desaparecer e iriam passar a freqüentar as áreas vizinhas, suas
concorrentes. Assim, seria do interesse econômico dessa associação comercial ofertar
uma proteção policial eficiente e abundante, de forma que os clientes se sentissem
atraídos — ao invés de repelidos — por essa região. A iniciativa privada, afinal, está
sempre tentando atrair e manter seus clientes. Assim sendo, qual seria a vantagem de ser
servido por lojas de visual atraente, iluminação agradável e serviço cortês se os clientes
podem ser assaltados ao andarem pela região?
Além do mais, a associação comercial seria induzida — por causa do seu desejo de
lucrar e de evitar prejuízos — a fornecer não apenas uma proteção policial suficiente,
mas também uma proteção cortês e aprazível. Uma polícia estatal não só não tem
qualquer incentivo para ser eficiente ou para se preocupar com os desejos dos seus
"clientes", como também está constantemente tentada a exercer seu poder de força de
maneira brutal e coerciva. A "brutalidade policial" é uma característica bem conhecida
do sistema policial estatal, e a única oposição prática a ela são algumas queixas remotas
de alguns cidadãos molestados. Agora, se a polícia privada da associação comercial
acaso caísse na tentação de brutalizar os clientes dos comerciantes, esses clientes
rapidamente desapareceriam e iriam para outro lugar. Assim, a associação dos
comerciantes teria de garantir que a sua polícia fosse cortês e eficiente.
Esse tipo de proteção policial eficiente e de alta qualidade iria prevalecer por todo o
território, em todas as ruas e áreas privadas. Fábricas iriam proteger suas ruas e áreas
adjacentes; os comerciantes, as suas ruas; e as empresas donas de estradas forneceriam
uma proteção policial segura e eficiente em suas estradas pedagiadas e em qualquer
outro tipo de estrada gerida privadamente. Roubos de carga e assaltos a caminhoneiros
ou a viajantes comuns seriam nulos. O mesmo princípio é válido para bairros
residenciais. Para esses bairros, podemos prever dois tipos possíveis de gerenciamento
privado das ruas.
No primeiro tipo, todos os moradores de um determinado quarteirão podem se tornar os
proprietários conjuntos daquele quarteirão, formando por exemplo a "Companhia do
Quarteirão A". Essa companhia iria então fornecer a necessária proteção policial, os
custos da qual seriam pagos tanto pelos moradores e proprietários de imóveis, como
pelo aluguel dos inquilinos, caso a(s) rua(s) inclua(m) apartamentos alugados.
Desnecessário dizer, mais uma vez, que os donos dos imóveis terão obviamente um
interesse direto em garantir que seu quarteirão seja seguro, enquanto que aqueles que
querem alugar seus imóveis tentarão atrair inquilinos oferecendo ruas seguras, além dos
serviços mais habituais, como água, ar condicionado/calefação, zeladores, porteiros, etc.
Perguntar por que os locadores deveriam fornecer ruas seguras em uma sociedade
libertária e completamente privada seria tão tolo quanto perguntar hoje por que eles
deveriam prover água e rede elétrica para seus inquilinos. A força da concorrência e da
demanda do consumidor os obrigaria a fornecer tais serviços. Ademais, não importa se
estamos considerando os moradores ou os imóveis para alugar, em ambos os casos o
valor capital da terra e dos imóveis será função da segurança das ruas, bem como de
todas as outras conhecidas características do imóvel e da vizinhança. Ruas seguras e
bem patrulhadas irão aumentar o valor da terra e dos imóveis da mesma maneira que
apartamentos bem cuidados são valorizados; ruas tomadas pela criminalidade irão
depreciar o valor da terra e dos imóveis da mesma forma que apartamentos dilapidados
são desvalorizados. Dado que os proprietários dos imóveis sempre vão preferir um valor
maior para a sua propriedade, há um incentivo inerente para que forneçam ruas seguras,
bem pavimentadas e eficientes.
No segundo tipo de gerenciamento privado das ruas em áreas residenciais, empresas
privadas seriam donas apenas das ruas, e não das casas e dos prédios adjacentes. Essas
empresas iriam então cobrar dos moradores e dos proprietários dos imóveis os serviços
de manutenção, de melhoramento e de policiamento de suas ruas. Novamente, ruas
seguras, bem iluminadas e bem pavimentadas irão estimular proprietários e inquilinos a
se mudar para essas ruas; ruas inseguras, mal iluminadas e mal pavimentadas irão
afugentar proprietários e usuários. A satisfação dos usuários e o incremento da demanda
pelo uso das ruas — tanto por parte dos moradores como pelo trânsito de automóveis —
irão aumentar os lucros e o valor das ações das empresas privadas que gerenciam as
ruas; a insatisfação dos usuários e a diminuição do uso das ruas, bem como serviços
decadentes da empresa, irão afugentar os usuários e diminuir os lucros e o valor das
ações dessas empresas. Portanto, as empresas proprietárias das ruas farão o seu melhor
para fornecer serviços eficientes, inclusive proteção policial, de modo a conquistar
clientes e agradá-los; elas serão levadas a fazer isso pelo seu desejo de obter lucros e
aumentar o valor do seu capital. É infinitamente melhor ter de depender da busca de
interesses econômicos por parte de donos de imóveis e de empresas administradoras de
ruas a ter de depender exclusivamente do "altruísmo" duvidoso de burocratas e
funcionários do governo.
Nesse ponto da discussão, é possível que alguém esteja tentado a perguntar: se as ruas
são geridas por empresas privadas, e admitindo que elas geralmente iriam se esforçar
para agradar seus clientes com a máxima eficiência, o que aconteceria se algum
proprietário de rua maluco ou tirânico repentinamente decidisse bloquear o acesso de
um proprietário vizinho à sua rua? Como é que este iria entrar ou sair? Poderia ele ficar
permanentemente bloqueado, ou mesmo ser extorquido para que lhe fosse permitida sua
entrada ou saída? A resposta para essa questão é a mesma dada a um problema similar
sobre propriedade de terras: suponha que todos os proprietários de imóveis ao redor da
propriedade de uma pessoa repentinamente não mais a deixassem sair ou entrar. E aí? A
resposta é que cada pessoa, ao comprar imóveis ou serviços de rua em uma sociedade
libertária, iria se certificar de que a compra ou o contrato de arrendamento lhe garantisse
acesso pleno por qualquer que seja o período de anos especificado. Com esse tipo de
"servidão"[1] garantido a priori por contrato, nenhum tipo de bloqueio repentino seria
permitido, já que ele seria uma invasão do direito de propriedade do dono do imóvel.
Não há obviamente nada de novo ou de assustador nos princípios dessa sociedade
libertária até então imaginada. Já estamos familiarizados com os efeitos energizantes da
concorrência entre serviços de transporte e entre determinadas localizações. Por
exemplo, quando as ferrovias privadas estavam sendo construídas nos EUA durante o
século XIX, a concorrência entre as empresas ferroviárias forneceu uma incrível força
energizante para o desenvolvimento de suas respectivas áreas. Cada empresa fez o
máximo possível para estimular a imigração e o desenvolvimento econômico nas
adjacências de seus trilhos. A intenção, é claro, era aumentar seus lucros, o valor de
suas terras e o valor do seu capital; e cada uma delas se apressou para fazer isso, pois
caso contrário as pessoas e os mercados deixariam sua área e se mudariam para os
portos, cidades e áreas servidas pelas ferrovias concorrentes. O mesmo princípio seria
válido se todas as ruas e estradas também fossem privadas.
Da mesma forma, já estamos familiarizados com os serviços de proteção policial
fornecidos por comerciantes e organizações particulares. Dentro de suas propriedades,
as lojas têm vigias e sentinelas; os bancos têm guardas; as fábricas têm vigilantes; os
shopping centers têm seguranças privados, etc. Uma sociedade libertária iria
simplesmente expandir esse saudável e funcional sistema, levando-o também para as
ruas. Não é por acaso que ocorrem muito mais assaltos e roubos violentos nas ruas fora
das lojas do que assaltos às próprias lojas; isso é porque as lojas são munidas de
precavidos guardas particulares, enquanto que nas ruas todos nós precisamos confiar na
"anarquia" da proteção policial estatal. E de fato, em várias cidades do mundo têm
crescido nos últimos anos, como resposta ao galopante problema da criminalidade, a
contratação de vigias privados para patrulhar alguns quarteirões em troca de
contribuições voluntárias dos proprietários de imóveis e moradores daquela região. A
criminalidade nessas áreas sempre é substancialmente reduzida quando se adota esse
método. O problema é que esses esforços às vezes se tornam vacilantes e ineficientes
porque as ruas não são propriedade de seus residentes, e assim não há um mecanismo
efetivo para se ajuntar o capital necessário que permita garantir uma proteção eficiente
em base permanente. Além disso, os vigias que patrulham as ruas não podem estar
legalmente armados porque eles não estão na propriedade de seus contratantes, e eles
não podem, da maneira como podem donos de loja ou de outras propriedades, abordar
qualquer pessoa que esteja agindo de maneira suspeita, porém não criminosa. Eles não
podem, em resumo, fazer as coisas, financeira ou administrativamente, que proprietários
podem fazer com suas respectivas propriedades.
E mais: um sistema em que a polícia é paga por proprietários e residentes de um
quarteirão ou de um bairro iria não só pôr um fim na brutalidade policial contra os
cidadãos, mas, principalmente, iria também acabar com o espetáculo atual em que a
polícia é considerada em muitas comunidades como um grupo de colonizadores
"imperiais" estrangeiros, que estão lá não para servir, mas para oprimir a comunidade.
Por exemplo, atualmente temos uma situação comum e que é geral para todas as
grandes cidades: áreas pobres e/ou habitadas por maioria negra são patrulhadas por uma
polícia contratada por um governo central, governo esse que é tido como estranho para
essas comunidades negras e pobres. Já com uma polícia fornecida, controlada e paga
pelos próprios proprietários de imóveis e residentes de uma comunidade, a história seria
completamente diferente; essa polícia estaria fornecendo — e todos sentiriam que ela
estaria fornecendo — serviços aos seus clientes, ao invés de oprimindo-os em prol de
uma autoridade estranha.
Um contraste dramático entre os méritos de uma proteção privada vs. pública foi
fornecido por algo que aconteceu no Harlem, o bairro negro de Nova York. Na rua West
135th, entre a Sétima e a Oitava Avenida, está localizada a 82ª delegacia do
Departamento de Polícia de Nova York. Todavia, a nobre presença dessa delegacia não
evitou a erupção de uma onda de roubos noturnos a várias lojas da região. Finalmente,
durante o inverno de 1966, quinze comerciantes da região se uniram e contrataram um
vigia para patrulhar o quarteirão durante toda a noite; o vigia foi contratado junto a uma
empresa privada de segurança que estava lá para fornecer a proteção policial que não
estava sendo entregue pelos impostos sobre propriedade pagos pelos comerciantes.
Desnecessário dizer que os roubos acabaram.
Mas a mais bem sucedida e mais bem organizada polícia privada em toda a história foi
provavelmente a polícia ferroviária dos EUA, que era mantida por várias empresas
ferroviárias com a missão de evitar injúrias aos passageiros e impedir o roubo de cargas.
Essa moderna polícia ferroviária foi fundada no fim da Primeira Guerra Mundial pela
Seção de Proteção da Associação Ferroviária Americana. Funcionou tão bem que, já em
1929, os pedidos de pagamento de indenização por roubo de carga haviam caído 93%.
As prisões feitas pela polícia ferroviária — que, na época do maior estudo já feito sobre
suas atividades, no início da década de 1930, totalizavam 10.000 homens presos —
resultaram em uma porcentagem de condenações muito mais alta — variando de 83% a
97% — do que aquela atingida pelos departamentos de polícia convencionais. A polícia
ferroviária era armada, podia prender normalmente e foi retratada por um criminologista
nada simpático a ela[2] como sendo uma polícia que tinha uma ampla reputação de bom
caráter e bom preparo.
Determinando as regras das ruas
Uma das indubitáveis conseqüências de todas as áreas terrestres de um país serem
privadamente geridas por indivíduos e empresas é que haveria uma maior riqueza e
diversidade de vizinhanças. A natureza da proteção policial e as regras aplicadas pela
polícia privada dependeriam das vontades dos proprietários de imóveis ou dos donos
das ruas, isto é, os donos de uma determinada área. Assim, os moradores mais receosos
em uma área exclusivamente residencial iriam insistir que quaisquer pessoas ou carros
que entrassem em sua área tenham previamente marcado hora com um morador, ou
então que apenas fossem permitidos entrar através de interfones no portão de entrada.
Ou seja, as mesmas regras que hoje são frequentemente aplicadas em prédios e
condomínios fechados poderiam ser aplicadas para as ruas privadas dos bairros
residenciais. Em outras áreas, as mais espalhafatosas, qualquer um poderia entrar a
vontade; e ainda haveria vários outros graus de vigilância entre esses extremos. Muito
provavelmente as áreas comerciais, ansiosas em não rejeitar e/ou repelir clientes,
estariam abertas para todos. A busca pelo lucro é que determinaria a escolha do método
mais eficiente. Isso forneceria uma grande disponibilidade de opções para os indivíduos,
que de acordo com seus desejos e princípios poderiam escolher a área que lhes fosse
mais aprazível.
Pode-se reclamar que tudo isso daria liberdade para "discriminar". Poderia haver
discriminação contra o uso de imóveis ou das ruas por determinados tipos de
indivíduos? Sim, não há dúvidas quanto a isso. Mas fundamental ao credo libertário é o
direito de cada homem poder escolher quem pode entrar na sua propriedade ou fazer uso
dela, considerando-se é claro que a outra pessoa queira fazê-lo.
"Discriminação", no sentido de escolher favoravelmente ou desfavoravelmente de
acordo com qualquer que seja o critério que a pessoa utilize, é parte integral da
liberdade de escolha — logo, de uma sociedade livre. Mas, é claro, no livre mercado
qualquer discriminação é custosa, e acabará sendo paga pelo dono da propriedade em
questão.
Por exemplo, suponha um indivíduo que, em uma sociedade livre, seja o proprietário de
uma casa ou de um bloco de casas, e esteja em busca de inquilinos. Ele poderia
simplesmente cobrar o preço de livre mercado do aluguel e deixar por isso mesmo. Mas
aí surgem alguns riscos; ele pode escolher discriminar casais com filhos pequenos, não
alugando o imóvel para eles por achar que há riscos substanciais de deterioração de sua
propriedade. Por outro lado, ele pode muito bem escolher cobrar um aluguel mais caro
para compensar o risco maior, de forma que o preço de livre mercado do aluguel para
famílias desse tipo tenderá a ser mais caro do que seria de outra forma. Aliás, em um
livre mercado, essa situação vai ocorrer na maioria dos casos. Mas e se houver uma
"discriminação" pessoal, ao invés de uma estritamente econômica, da parte do locador?
Suponha, por exemplo, que o locador seja um grande admirador de um determinado
grupo étnico — por exemplo, suecos loiros e muito altos — e decida alugar seus
apartamentos apenas para famílias de tal grupo. Em uma sociedade livre, ele estaria
completamente em seu direito se assim procedesse. Mas ele claramente iria sofrer um
grande prejuízo, pois teria de dispensar inquilino atrás de inquilino, em uma busca sem
fim por suecos loiros e altos. Conquanto esse possa ser considerado um exemplo
radical, o efeito é exatamente o mesmo — ainda que em grau variado — para qualquer
tipo de discriminação no livre mercado. Se, por exemplo, o locador não gostar de ruivos
e, por isso, determinar que não vai alugar seus apartamentos para esse tipo, certamente
também irá sofrer prejuízos, ainda que não tão severos quanto no primeiro exemplo.
Em qualquer caso, sempre que alguém praticar "discriminação" no livre mercado, ele
vai sofrer as conseqüências — seja na forma de prejuízos, seja na forma da perda de
serviços recebidos como consumidor. Se um consumidor decide boicotar os bens
vendidos por pessoas das quais ele não gosta - seja esse desgosto justificado ou não —,
ele consequentemente irá ficar sem esses bens ou serviços que, de outra forma, teria
comprado.
Portanto, em uma sociedade livre, são os donos das propriedades quem determinam as
regras de uso de seus domínios, bem como as regras de admissão. Quanto mais
rigorosas forem essas regras, menos pessoas irão demandar os serviços dessas
propriedades, e assim o proprietário terá de fazer um equilíbrio entre rigor de admissão
e perda de receita.
O preceito de que a propriedade é administrada por seus proprietários também fornece a
refutação para um sempre utilizado argumento em favor da intervenção governamental
na economia. O argumento afirma que "afinal, é o governo quem determina as regras do
trânsito — luz verde e vermelha, direção do lado direito da pista, limites de velocidade,
etc. Certamente todo mundo tem de admitir que o trânsito degeneraria em caos se não
fossem tais regras. Portanto, por que o governo não deveria também intervir em todo o
resto da economia?" A falácia aqui não é que o trânsito deva ser regulado; é claro que
algumas regras são necessárias. Mas o ponto crucial é que tais regras sempre serão
estabelecidas por quem quer que seja o dono e que, portanto, gerencie as ruas e estradas.
O governo vem criando regras para o trânsito simplesmente porque é ele quem sempre
foi o proprietário e, consequentemente, o gerente das ruas e estradas; em uma sociedade
libertária baseada na propriedade privada seriam os proprietários quem iriam definir as
regras para o uso de suas ruas.
Entretanto, será que em uma sociedade puramente livre as regras de trânsito não
tenderiam a ser "caóticas"? E se alguns proprietários designassem a luz vermelha como
"pare", enquanto outros escolhessem a verde, ou até mesmo uma azul, etc.? Não
teríamos algumas ruas com a mão de direção no lado direito enquanto em outras ela
seria no lado esquerdo? Tais perguntas são absurdas, é claro. Obviamente, seria do
interesse de todos os proprietários de ruas e estradas terem regras uniformes para essas
questões, de modo que o tráfego possa fluir e se integrar suavemente, sem dificuldades.
Qualquer proprietário de rua excêntrico ou dissidente que insistisse em uma mão de
direção à esquerda, ou no verde para "pare" ao invés de "vá", iria rapidamente se ver
cercado de acidentes, além de perder todos os clientes e usuários.
É interessante observar que as ferrovias privadas nos EUA do século XIX enfrentaram
problemas similares e os resolveram harmoniosamente e sem dificuldades. Cada
ferrovia permitia os vagões de suas concorrentes em seus trilhos; elas se
interconectavam entre si para benefício mútuo; as bitolas das diferentes ferrovias foram
reajustadas para se tornarem uniforme; e classificações uniformes de cargas regionais
foram implementadas para 6.000 itens. E tem mais: foram as empresas ferroviárias, e
não o governo, que tomaram a iniciativa de consolidar a mixórdia caótica e
ingovernável de fusos horários que existiam até então. Para ter exatidão na programação
e na tabela de horários, as empresas tiveram de se unir; e em 1883 elas concordaram em
alterar os cinqüenta e quatro fusos horários dos EUA para apenas os quatro que
prevalecem até hoje. Um jornal financeiro de Nova York, o Commercial and Financial
Chronicle, exclamou que "as leis do comércio e o instinto de auto-preservação
efetuaram reformas e melhorias que todos os corpos legislativos juntos não conseguiram
realizar!"
Precificando ruas e estradas
Se, em comparação, examinarmos as performances das ruas e estradas estatais, torna-se
difícil imaginar que um gerenciamento privado poderia acumular um histórico mais
ineficiente e irracional. Além da péssima qualidade, sobre a qual já virou clichê
falarmos, hoje já é amplamente reconhecido, por exemplo, que os governos federal e
estadual, incitados pelo lobby das fabricantes de automóveis, das petrolíferas, das
fabricantes de pneu, e de empreiteiras e sindicatos, incorreram em uma vasta expansão
de estradas. Em termos econômicos, estradas fornecem gordos subsídios aos seus
usuários; em termos práticos, elas tiveram um papel central na morte das ferrovias como
um empreendimento viável. Assim, enquanto caminhões podem operar em estradas
construídas e mantidas pelo contribuinte, as empresas ferroviárias tiveram de construir e
manter suas próprias estradas de ferro. Ademais, as estradas e ruas subsidiadas levaram
a uma demasiada expansão de subúrbios acessíveis apenas por automóveis, que por sua
vez levaram a uma demolição coerciva de várias casas e negócios, tanto para a
construção de mais estradas, como para a construção dos subúrbios, e trouxeram um
pesado fardo para o centro das cidades. O custo para o contribuinte e para a economia
têm sido enormes.
Particularmente subsidiado tem sido aquele usuário urbano de automóvel que se
locomove diariamente entre sua casa e o trabalho; e é precisamente nas cidades que os
congestionamentos vêm aumentando como conseqüência desse subsídio dado aos
usuários de automóveis, o que sempre leva a um excesso de oferta desse tipo de tráfego.
O professor William Vickrey, da Universidade Columbia, estimou que as vias expressas
urbanas foram construídas a um custo que varia entre 6 e 27 cents por veículo-milha,
enquanto que os usuários dessas vias pagam em impostos, tanto o imposto sobre a
gasolina como o imposto sobre o veículo automotor, apenas 1 cent por veículo-milha.
Portanto, é o contribuinte regular, e não o motorista, quem paga pela manutenção das
ruas. Ademais, o imposto sobre a gasolina é pago por milha rodada, não importa qual
rua ou estrada esteja sendo usada, e não importa a hora do dia. Logo, quando estradas
são financiadas pelos fundos arrecadados com o imposto sobre a gasolina, os usuários
das estradas rurais de baixo custo estão sendo taxados com o intuito de subsidiar os
usuários das vias expressas urbanas, cujos custos são muito maiores. Estradas rurais
normalmente custam apenas 2 cents por veículo-milha para serem construídas e
mantidas.
Além disso, o imposto sobre a gasolina dificilmente pode ser considerado um sistema
racional de precificação para o uso das estradas, e nenhuma empresa privada jamais iria
precificar dessa forma o uso de suas estradas. Empresas privadas precificam seus bens
de forma a "equilibrar o mercado", de maneira que a oferta iguale a demanda e não haja
nem escassez e nem excedentes. O fato de os impostos sobre a gasolina serem pagos por
milha, independentemente da estrada, significa que as altamente demandadas ruas
urbanas e estradas estão enfrentando uma situação tipicamente criada pelo governo: o
preço cobrado pelo seu uso está muito abaixo do preço de livre mercado. Esse subsídio
dado aos motoristas urbanos resulta em enormes e exacerbados congestionamentos nas
ruas e estradas, especialmente nas horas do rush, enquanto que ao mesmo tempo deixa
toda uma malha de estradas rurais praticamente inutilizada. Um sistema racional de
precificação iria, ao mesmo tempo, maximizar os lucros para os proprietários das ruas e
propiciar ruas sempre livres de congestionamento. No atual sistema, o governo mantém
o preço para os usuários de ruas congestionadas em níveis extremamente baixos, e
muito abaixo do preço de livre mercado; o resultado é uma escassez crônica de espaço
trafegável, o que resulta em congestionamento.
Mas como seria um sistema racional de precificação instituído pelos proprietários
privados das ruas? Em primeiro lugar, as ruas iriam cobrar pedágios, mas com variação
de preços de acordo com a demanda. Por exemplo, os pedágios seriam bem mais caros
durante a hora do rush e durante quaisquer outras horas de pico, e mais baratos durante
as horas mais calmas. Em um livre mercado, a maior demanda durante as horas de pico
levaria a preços de pedágio maiores, até que o congestionamento fosse eliminado e o
fluxo do tráfego se tornasse estável. Mas as pessoas têm de trabalhar!, o leitor vai reagir.
É claro, mas elas não têm de ir em seus próprios carros. Alguns irão compartilhar seus
carros com outras pessoas (transporte solidário), enquanto outros irão pegar ônibus
expressos (que seriam abundantemente ofertados em um livre mercado) ou trens; já
outros irão se esforçar para alterar seus horários de trabalho, de modo a poderem ir e
voltar em horas escalonadas. Dessa forma, o uso das ruas durante as horas de pico
estaria restringido àqueles mais dispostos a pagar o preço de equilíbrio de mercado por
seu uso.[3] Finalmente, os maiores lucros obtidos pelas empresas operadoras de túneis e
pontes, por exemplo, estimulariam outras empresas privadas a construir mais dessas
estruturas. A construção de ruas e estradas seria governada não pelos clamores de
grupos de interesse e de usuários que querem mais subsídios, mas pelos eficientes
cálculos de demanda e custo efetuados pelo mercado.
Não obstante tudo isso, a idéia de ruas urbanas privadas ainda espanta as pessoas.
Afinal, como elas seriam precificadas? Onde exatamente ficariam os pedágios? Haveria
pedágios em cada quarteirão? É óbvio que não, dado que tal sistema seria claramente
anti-econômico, além de proibitivamente custoso tanto para o proprietário como para o
motorista. Em primeiro lugar, os proprietários das ruas vão precificar o estacionamento
em suas ruas muito mais racionalmente do que o modelo atual. Eles vão cobrar muito
mais caro para se estacionar nas ruas congestionadas do centro, em resposta à enorme
demanda. E contrariamente à prática atual, eles vão cobrar proporcionalmente mais
caro, ao invés de mais barato, de quem estacionar durante todo o dia. Ou seja, os donos
das ruas tentarão induzir uma rápida rotatividade nas áreas congestionadas. OK, tudo
certo quanto a estacionar; novamente, esse é um quesito de fácil compreensão. Mas, e
quanto a dirigir em ruas congestionadas? Como isso poderia ser precificado? Existem
várias maneiras possíveis. Com a tecnologia moderna e seu constante aperfeiçoamento,
desafios desse tipo são risíveis. Uma técnica arcaica sugere que câmeras de TV ou
máquinas fotográficas sejam instaladas nas esquinas das ruas de modo a captar as placas
dos veículos, com as faturas sendo enviadas aos motoristas ao final de cada mês. Outra,
mais moderna, sugere que cada carro seja equipado com um receptor eletrônico que
emitiria um sinal exclusivo por carro, sinal esse que seria captado por um aparelho
instalado na referida esquina. Outra, ainda mais moderna, garante que sensores óticos,
de alguma forma que só os engenheiros sabem, fariam todo o serviço.
O que importa aqui é que o problema da precificação racional das ruas seria de fácil
resolução para a iniciativa privada e para a tecnologia moderna. A técnica que será
utilizada para tal é problema para engenheiros. O que sabemos como economistas é que
o livre mercado, a busca por lucros sob um o regime de propriedade privada e a
moderna tecnologia são capazes de viabilizar essa exigência. Empreendedores em um
livre mercado já se mostraram capazes de solucionar rapidamente problemas muito mais
difíceis; tudo o que é necessário é dar a eles o espaço para agirem.
Conclusão
Se todos os sistemas de transporte se tornassem livres, se as estradas, as companhias
aéreas, as ferrovias e as hidrovias fossem liberadas de suas labirínticas redes de
subsídios, controles e regulamentações, e se elas se tornassem um sistema puramente
privado, como os consumidores iriam alocar seu dinheiro para transporte? Será que
voltaríamos às viagens ferroviárias, por exemplo? As melhores estimativas de custo e
demanda para transportes predizem que as ferrovias se tornariam o principal meio de
transporte de carga de longa distância, os aviões seriam os preferíveis para transporte de
passageiros de longo alcance, os caminhões para cargas de pequena distância e os
ônibus para as comutações púbicas diárias. Embora as ferrovias ressuscitassem para uso
em transporte de cargas de longa distância, elas não seriam restabelecidas como
transporte de passageiros.
Portanto, não é difícil imaginar um setor aéreo e uma rede de ferrovias particulares, não
subsidiados e desregulamentados; mas poderia haver um sistema de estradas privadas?
Tal sistema seria viável? Uma resposta é que estradas privadas funcionaram
admiravelmente bem no passado. Na Inglaterra antes do século XVIII, por exemplo, as
estradas — invariavelmente geridas pelos governos locais — eram mal construídas e
pessimamente mantidas. Essas estradas públicas jamais teriam suportado a poderosa
Revolução Industrial que a Inglaterra vivenciou no século XVIII, a "revolução" que
prenunciou a era moderna. A vital tarefa de aperfeiçoar as praticamente intransitáveis
estradas inglesas ficou a cargo de companhias privadas que, começando em 1706,
organizaram e estabeleceram a grande rede de estradas que fez da Inglaterra a inveja do
mundo. Os proprietários dessas companhias privadas eram em geral mercadores, donos
de terras e industrialistas da área que estava sendo servida pela estrada, e eles
recuperaram seus custos cobrando pedágios em pontos selecionados. Frequentemente, a
coleta de pedágios era arrendada por um ano ou mais para indivíduos selecionados
através de licitações concorrenciais. Foram essas estradas privadas que desenvolveram
um mercado interno na Inglaterra e que reduziram enormemente os custos de transporte
do carvão e de outros materiais volumosos. E já que era mutuamente benéfico para elas,
as companhias de pedágio se interligaram entre si para poder formar uma rede de
estradas interconectadas por todo o país — tudo isso resultado da iniciativa privada em
ação.
Como na Inglaterra, o mesmo ocorreu nos EUA algum tempo depois. Defrontando-se
novamente com estradas praticamente intransitáveis construídas por unidades
governamentais locais, companhias privadas construíram e financiaram uma grande
rede de estradas pedagiadas por todos os estados do nordeste americano,
aproximadamente entre 1800 e 1830. Mais uma vez, a iniciativa privada provou-se
superior na construção e manutenção de estradas, em oposição às retrógradas operações
do governo. As estradas foram construídas e operadas por corporações privadas, que
cobravam pedágios dos usuários. Essas empresas foram amplamente financiadas por
mercadores e pelos donos das propriedades adjacentes às estradas, e elas
voluntariamente se interligaram, formando uma rede interconectada de estradas. E essas
foram as primeiras estradas realmente boas dos EUA.
_______________________
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do
moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von
Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
Notas
[1] Em termo jurídico, servidão é um encargo que dá ao possuidor de um terreno o
direito de usar ou tirar algum proveito de uma área contígua que pertence a terceiros.
Por exemplo, direito de passagem, busca de água, instalação de fios elétricos, etc. [N. do
T.]
[2] Ver Jeremiah P. Shalloo, Private Police (Philadelphia: Annals of the American
Academy of Political and Social Science, 1933).
[3] Algumas pessoas podem argumentar que essa é uma idéia "elitista", pois apenas os
mais ricos poderiam fazer uso constante de seus veículos. Como contra-argumento,
basta lembrar que em uma sociedade puramente libertária não existe absolutamente
qualquer tipo de imposto. E como a carga tributária média de um país como o Brasil
está na casa dos 35%, isso significa que a ausência de todos os impostos deixaria toda a
população mais rica, na média (os funcionários públicos, de início, empobreceriam;
porém, em uma economia totalmente desregulamentada, eles não teriam dificuldades
em encontrar empregos mais produtivos e bem mais importantes, como os de
manobrista, frentista, caixa de padaria, coveiro, etc. Não mais viveriam luxuosamente à
custa de seus concidadãos). Além disso, a ausência de impostos incidentes sobre
mercadorias e transações, bem como a ausência de uma burocracia estatal que eleva o
custo dessas transações, faria com que os preços dos bens e serviços caíssem
significativamente. Logo, haveria um duplo aumento da riqueza.
Ademais, no caso brasileiro, o pagamento anual de pedágios dificilmente sairia mais
caro do que o IPVA pago por dois carros, quantidade hoje normal para uma família de
classe média-baixa. E isso sem levar em consideração o benefício da melhor qualidade
das ruas e das estradas privadas, bem como a ausência de congestionamentos e a
garantia de segurança plena. [N. do T.]