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POR UMA ONTOLOGIA CRÍTICA DE NÓS MESMOS EM
SALA DE AULA – DO ENSINO COMO INSTITUIÇÃO
PARA UMA EDUCAÇÃO CONSTITUIDORA
Lorena Araújo de Oliveira Borges Marcos Paulo de Melo Ramos
Os pais fazem dos filhos, involuntariamente, algo semelhante a eles – a isso denominam “educação” –; nenhuma mãe duvida, no fundo do coração, que ao ter seu filho pariu uma propriedade; nenhum pai discute o direito de submeter o filho aos seus conceitos e valorações. Houve um tempo, inclusive (entre os antigos alemães, por exemplo), em que parecia correto aos pais dispor da vida dos recém-nascidos a seu bel-prazer. E assim como o pai, também a classe, o padre, o professor e o príncipe continuam vendo, em toda nova criatura, a cômoda oportunidade de uma nova posse. De onde se segue que...
Nietzsche, Além do Bem e do Mal. Aforismo 194
Modernidade. As palavras sempre carregam muitos sentidos, é o que chamamos de
polissemia. Algumas palavras, contudo, nos parecem ser mais polissêmicas que outras. Seria este o
caso da palavra modernidade. Segundo a tradicional divisão da história do ocidente em quatro
partes, a Modernidade é o período que vai de 1453, quando ocorreu a tomada de
Constantinopla pelos turcos otomanos, até 1789, quando da Revolução Francesa. Outros usos para a
palavra podem ser apreendidos no senso-comum. Quando topamos com uma novidade tecnológica,
coisa não rara nos nossos dias, dizemos ser moderna, ou “mais moderna” (meu celular é,
definitivamente, “menos moderno” em comparação aos que estão disponíveis no mercado), como se
a modernidade fosse uma característica que pudéssemos atribuir às coisas em maior ou menor grau.
Já ouvi pessoas dizendo de outras cujas relações afetivas colocavam em xeque a usual “moral e os
bons costumes” que eram deveras “moderninhas”. Já se fala, há um bom tempo, de uma pós-
modernidade enquanto outros afirmam que “jamais fomos modernos”! Não queremos entrar nos
debates sobre o que seja em definitivo, ou o que não seja em definitivo, essa tal modernidade (se é
que algo pode ser, ou não ser, em definitivo!). O que queremos neste artigo é falar sobre educação.
Mas, para falarmos sobre educação, precisaremos ter em mente algumas considerações sobre a
modernidade. Por quê? Porque acreditamos que, como toda palavra que é usada para dizer muita
coisa, modernidade, em específico, mais esconde do que revela se usada de forma leviana. E
julgamos não estarmos de todo equivocados ao reconhecer que a questão da modernidade está
intimamente ligada à imaginação com a qual re-produzimos o mundo. Pois bem, tentaremos
dialogar com alguns pensadores para entendermos como se dá tal re-produção no âmbito da
modernidade, e como isso afeta a instituição escolar brasileira. Começaremos nossa análise
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lançando mão de um escrito de Michel Foucault. Entrementes o auxílio no entendimento da
modernidade, é de Foucault que tomaremos emprestado o termo “ontologia crítica de nós mesmos”.
No texto “O Que São as Luzes?”, de 1984, Michel Foucault discute a resposta dada a essa
questão, título do próprio texto, por Kant. Ela foi publicada em dezembro de 1784 pelo periódico
alemão Berlinische Monatsschrift. É um texto que merece atenção especial, segundo Foucault, pois
nele Kant pensa a questão da Aufklärung – o Iluminismo – em função da pura atualidade. Foi, de
certa forma, uma nova maneira de refletir sobre o presente que destoava dos esquemas tradicionais.
Como a análise de Foucault, apesar de breve, é muito profunda e nos tomaria alguns parágrafos
desnecessários (haja vista não nos propormos uma resenha de seu texto), passaremos ao largo de
temas interessantíssimos de debate. Fica, porém, a sugestão de leitura. Queremos focar nossa
atenção nos usos do termo modernidade por Foucault. E o uso não está unicamente relacionado à
análise do conteúdo do texto de Kant, mas também, e isso nos parece ser o mais útil para auxiliar-
nos a pensar posteriormente sobre a educação, ao modo como Kant constrói seu local crítico de fala.
(...) me parece que é a primeira vez que um filósofo liga assim, de maneira estreita e do interior a significação de sua obra em relação ao conhecimento, uma reflexão sobre a história e uma análise particular do momento singular em que ele escreve e em função do qual ele escreve. A reflexão sobre a “a atualidade” como diferença na história e como motivo para uma tarefa filosófica particular me parece ser a novidade desse texto [O que são as Luzes?] (Foucault, 1984)
É nessa postura de Kant, atenta para a crítica do conteúdo que enuncia e também para o
“como” o enuncia e com quais fins o faz, que Foucault enxerga um esboço do que se poderia
chamar de atitude de modernidade (Foucault, 1984). Logo após mencionar a concepção que tenta
situar a modernidade num calendário, guarnecida de pretensos períodos “antes” e “depois” da
mesma, o autor acrescenta:
Referindo-me ao texto de Kant, pergunto-me se não podemos encarar a modernidade mais como uma atitude do que como um período da história. Por atitude, quero dizer um modo de relação que concerne à atualidade: uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa. (Foucault, 1984)
Os termos escolhidos por Foucault para definir o que ele entende por atitude remete-nos a
uma experiência humana canalizada por uma escolha voluntária do pensar e sentir, como também
do agir e de se conduzir, de determinada forma. A escolha desse se conduzir, afinal, poderia nos
parecer castradora no sentido de negar à experiência humana a abertura na possibilidade das
ressignificações, ou no mínimo agiria como um “polarizador da experiência”1. Se assim
entendermos, o conceito de atitude se aproximaria ao de identidade na medida em que a experiência
1 Uma analogia com o processo de polarização da luz que, fazendo-a inserir sobre o polarizador, permite a passagem de apenas uma frequência específica.
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seria filtrada pelo olhar – pelo modo específico de pensar e sentir –, anteriormente “escolhido” por
um indivíduo pactuante das ideias de dado grupo. Tomemos exemplo num cristão evangélico-
pentecostal que, na maioria dos casos, só enxerga e se relaciona, ou “pensa e sente”, um
candomblecista ou umbandista, sob a égide da representação do “macumbeiro” que é nutrida em
seu imaginário social específico, com todos os desdobramentos negativos que tal projeção acarreta.
O fato é que Foucault se afasta desse tipo de determinação. A atitude, assim como ele a
concebe no texto, não encerra qualquer ponto de apoio por meio do qual um julgamento
preconceituoso, calcado em estereótipos, pudesse ser defendido de forma dogmática. É uma atitude
que predica outra ontologia, uma ontologia crítica de nós mesmos que já encontra suas
possibilidades seminalmente lançadas no texto de Kant. Mas continuemos na leitura de Foucault
para entendermos como ele desenvolve e propõe tal perspectiva.
Buscando caracterizar a atitude de modernidade, ele toma como exemplo Baudelaire
(1821-1867), poeta e teórico das artes francês. Baudelaire, considerado uma das consciências mais
agudas da modernidade do século XIX, definiu a modernidade como “o transitório, o fugidio, o
contingente” (Foucault, 1984). Entretanto, foi exatamente nesse cenário fluído, no qual
temporalidades e espacialidades pareciam tramar a dissolução do ser pelo inexorável movimento do
tempo que se afunila em direção à morte; enquanto o espaço se desdobrava continuamente, por
intermédio da velocidade da máquina, numa multiplicidade de locais impassíveis à presença que,
agora, são vivenciados como lugares de constante ausência; foi na desolação da ampulheta que não
pode ser invertida que Baudelaire, já por um ato de “heroísmo”, entende e propõe que
Ser moderno não é reconhecer e aceitar esse movimento perpétuo; é, ao contrário, assumir uma determinada atitude em relação a esse movimento; e essa atitude voluntária, difícil, consiste em recuperar alguma coisa de eterno que não está além do instante presente, nem por trás dele, mas nele. A modernidade se distingue da moda que apenas segue o curso do tempo; é essa atitude que permite apreender o que há de “heróico” no momento presente. A modernidade não é um fato de sensibilidade frente ao presente fugidio: é uma vontade de “heroificar” o presente. (Foucault, 1984)
Nesse trecho podemos observar o quanto a atitude de modernidade de Foucault – esboçada
por Kant e sintetizada na obra de Baudelaire – destoa do fechamento estrutural da identificação com
determinado sistema de pensamento já dado de antemão. Muito ao contrário de abortar as
possibilidades do momento pelo absolutismo de alguma(s) representação(ões) projetada(s) pelo
indivíduo, tal atitude só existe a partir da experiência compreensiva calcada nessas possibilidades
abertas. Atualidade como abertura e heroísmo para assim encará-la. Mas onde poderíamos rastrear
esta abertura? Doreen Massey, geógrafa inglesa, em seu livro Pelo Espaço (2008) nos ajudará a
vislumbrar onde os fechamentos da atualidade abortam as possibilidades do presente. Atente ao
espaço. Dentro da imaginação social ocidental, o espaço se estabelece como estanque, fixo,
recortável; as relações em sociedade, comunidades e nações são delimitas por fronteiras e
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diferenciadas, basicamente, por essa representação-separação. Essa forma de imaginar o espaço,
mais do que representar a realidade como um espelho, serve para construí-la.
Para alguns, [o lugar] é a esfera do cotidiano, de práticas reais e valorizadas, a fonte geográfica de significado, vital como ponto de apoio, enquanto “o global” tece suas teias, cada vez mais poderosas e alienantes. Para outros, “um refúgio no lugar” representa a proteção de pontes levadiças e a construção de muralhas contra as novas invasões. Lugar, através dessa leitura, é o local da negação, da tentativa de remoção da invasão/diferença. É um refúgio, politicamente conservador, uma essencializadora (e, no final, inviável) base para uma resposta, que falha ao dirigir-se às reais forças em ação. Tem sido essa, sem dúvida, a imaginação por detrás de alguns conflitos dos piores conflitos recentes. (...) A imaginação do espaço como uma superfície sobre a qual nos localizamos, a transformação do espaço em tempo, a clara separação do lugar local em relação ao espaço externo são todos meios de controlar o desafio que a espacialidade, inerente ao mundo, apresenta. (...) e se, então, recusarmos essa imaginação? E se, então, recusarmos não apenas os nacionalismos e os paroquialismos que gostaríamos de ver assim, minados, mas também a noção de lutas locais ou da defesa do lugar em sentido mais geral? E se recusarmos essa distinção, por mais sedutora que pareça, entre lugar (como sentido, vivido e cotidiano) e espaço (como o quê? o exterior? o abstrato? o sem significação?) (Massey, 2008)
Assim, dá-se que, dentro do imaginário social ocidental, a homogeneização no tratamento
espacial limita o agir fazendo com que aquilo que é referido como um suposto global (por exemplo,
projetos de sociabilidades, globalização) seja válido e estabelecido localmente sem se levar em
consideração as áreas de particularidades que ressignificariam tais projetos numa localidade
específica. Aqueles que se opõem a esta “violação” do local, ao lançar mão da imaginação espacial
monolítica em seus argumentos, acabam por perder a eficácia de mobilização para contestação ao
serem estereotipados como “retrógrados”, “tradicionalistas”, “atrasados”, etc. O discurso oficial
(oficializante), para todos os efeitos, sustenta que igualar, em termos espaciais, é equivalente à
promoção de uma justiça universalmente válida. Massey é contundente em sua crítica da
imaginação espacial dominante que nega a abertura, como ela diz, inerente ao mundo. Aqui, sim,
teríamos uma atitude de modernidade fundada num discurso institucionalmente racionalista e
economicista que, por meio de uma introjeção/resignação a um dado modelo de humanidade,
determina, sub-repticiamente, o agir e o se conduzir – o pensar e o sentir – daqueles que por ele são
catequizados. Já começamos a vislumbrar os liames com a instituição escolar? Essa concepção do
espaço global, assim, não é tanto uma descrição de como é o mundo, mas uma imagem por meio da
da qual o mundo está sendo feito. Exatamente como no caso da modernidade, temos aqui uma
poderosa geografia imaginativa (Massey, 2008).
Em Pelo Espaço, a autora propõe uma nova maneira de compreendermos o espaço,
encarando-o como abertura radical:
Não apenas a história, mas o espaço também é aberto. Nesse espaço aberto interacional há sempre conexões ainda por serem feitas, justaposições ainda a desabrochar em interação (ou não, pois nem todas as conexões potenciais têm de ser estabelecidas), relações que podem ou não ser realizadas. Aqui, então, o espaço é, sem dúvida, um produto de relações (primeira proposição), e para que assim o seja tem de haver multiplicidade (segunda proposição). No entanto, não são relações de
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um sistema coerente, fechado, dentro do qual, como se diz, tudo (já) está relacionado com tudo. O espaço jamais poderá ser essa simultaneidade completa, na qual todas as interconexões já tenham sido estabelecidas e no qual todos os lugares já estão ligados a todos os outros. Um espaço, então, que não é nem um recipiente para identidades sempre-já constituídas nem um holismo completamente fechado. É um espaço de resultados imprevisíveis e de ligações ausentes. Para que o futuro seja aberto, o espaço também deve sê-lo. (...) [terceira proposição] reconhecemos o espaço como estando sempre em construção. Precisamente porque o espaço, nesta interpretação, é um produto de relações-entre, relações que estão, necessariamente, embutidas em práticas materiais que devem ser efetivadas, ele está sempre no processo de fazer-se. Jamais está acabado, nunca está fechado. Talvez pudéssemos imaginar o espaço como uma simultaneidade de estórias-até-agora. (Massey, 2008)
Essa simultaneidade de estórias-até-agora, e a atitude política de colocar-se numa postura
de abertura a elas, a autora dará o nome de coetaneidade. A possibilidade de mudar a forma de
encarar um pensamento já estabelecido de antemão – questionando o próprio pensar – nos leva de
volta a Foucault ao tratar da transfiguração do real vivenciada na experiência da abertura
imaginativa:
Transfiguração que não é anulação do real, mas o difícil jogo entre a verdade do real e o exercício da liberdade (...). Para a atitude de modernidade, o alto valor do presente é indissociável da obstinação de imaginar, imaginá-lo de modo diferente do que ele não é, e transformá-lo não o destruindo, mas captando-o no que ele é. A modernidade baudelairiana é um exercício em que a extrema atenção para com o real é confrontada com a prática de uma liberdade que, simultaneamente, respeita esse real e o viola. (Foucault, 1984)
Continuando nos comentários da obra de Baudelaire, Foucault assinala que Baudelaire
entende a modernidade não apenas como uma relação com o presente, mas, também, com uma
forma de relação consigo mesmo. Tal postura para consigo foi nomeada, por Baudelaire, dandismo.
O homem moderno baudelairiano é reconhecido pelo caráter proteico daquele que busca inventar-se
a si mesmo aquém de uma verdade escondida, aquém de uma essência primeira encoberta. Daí a
importância visceral do tempo “agora”, do lugar “aqui”. Jamais menosprezar o presente. Essa
modernidade não liberta o homem em seu ser próprio; ela lhe impõe a tarefa de elaborar a si mesmo
(Foucault, 1984). Cabe esclarecer um ponto aqui. Se não é da libertação do “ser próprio” do homem
que trata a atitude de modernidade foucauldiana (exemplificada, de certa forma, pelo dândi de
Baudelaire), então, por que o uso da palavra “ontologia” na construção dessa proposta “crítica de
nós mesmos” se tal palavra é, filosoficamente, utilizada para referir-se à teoria do ser em geral, à
essência do real?
O que o texto de Foucault nos dá a entender é que a apropriação do termo ontologia –
usado para o escrutínio dos “fundamentos do ser do ente” – em sua apresentação da modernidade
como modo de conduzir-se – como possibilidade, segundo Foucault, de um novo êthos filosófico –
cumpre o papel de desarmar, pela ironia, qualquer construção logocêntrica que pretenda ares de
universal. As especificidades de cada momento, modificadas por determinadas memórias,
aspirações, formas de estar (ou não) no tempo e espaço, cumprem o papel de deslocar toda e
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qualquer tentativa de universalizar o ser, ou apreendê-lo numa “essência” passível de generalização.
É de um ser saudável, enquanto exercício da liberdade criadora, contemporâneo de sua atualidade,
que nos parece falar o termo ontologia em seu uso por Foucault.
Após nos advertir dos perigos de confundir o Humanismo com o Iluminismo – o
Humanismo seria um tema permanentemente ligado a certos juízos de valor, recorrente na(s)
história(s) das sociedades europeias, apoiados “em certas concepções do homem que são tomadas
emprestadas da religião, das ciências, da política” (Foucault, 1984), enquanto que a atitude que
marca a Aufklärung, o Iluminismo, contrária à fidelidade aos elementos de doutrina, poderia ser
entendida como o exercício contínuo da crítica de nosso ser histórico –, Foucault busca caracterizar
positivamente o êthos filosófico por ele proposto, desdobrado na ontologia histórica (crítica) de nós
mesmos:
Esse êthos filosófico pode ser caracterizado como uma atitude-limite. Não se trata de um comportamento de rejeição. Deve-se escapar à alternativa do fora e do dentro; é preciso situar-se nas fronteiras. A crítica é certamente a análise dos limites e a reflexão sobre eles. Mas, se a questão kantiana era saber a que limites o conhecimento deve renunciar a transpor, parece-me que, atualmente, a questão crítica deve ser revertida em uma questão positiva: no que nos é apresentado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e fruto das imposições arbitrárias. Trata-se, em suma, de transformar a crítica exercida sob a forma de limitação necessária em uma crítica prática sob a forma de ultrapassagem possível. (Foucault, 1984)
“Fronteiras”, “limites”, “transpor os universais”. Em 1984, ano em que o texto de Foucault
foi publicado, esses eram temas que ainda não atraíam demasiadamente o interesse dos acadêmicos
brasileiros. Vinte e cinco anos depois, o quadro é bem diferente. Essa coletânea de artigos sobre a
“Educação pela Diversidade” pode ser considerada fruto direto do desdobramento dessas temáticas.
O próprio projeto ABÁ, fundamentado em autores Pós-Coloniais e nos Estudos Culturais, também.
Nesse ponto gostaríamos de iniciar um breve diálogo com outro autor, já atuante nessas discussões
desde meados da década de oitenta, Boaventura de Sousa Santos. No artigo “Para uma sociologia
das ausências e uma sociologia das emergências”, publicado no livro, do qual é o organizador,
Conhecimento prudente para uma vida descente (2004), Santos apresenta um sumário de suas
reflexões teóricas e epistemológicas a partir de um projeto de pesquisa que dirigiu na época
intitulado: “A reinvenção da emancipação social”.
Este projecto propôs-se estudar as alternativas à globalização neoliberal e ao capitalismo global produzidas pelos movimentos sociais e pelas organizações não governamentais na sua luta contra a exclusão e a discriminação em diferentes domínios sociais e em diferentes países. (Santos, 2004)
As conclusões de Santos, a partir das pesquisas realizadas, nos servirão para situar a
proposta de Foucault de um novo êthos filosófico para além de uma mera curiosidade, como uma
atitude passível de ser assumida, ou melhor, necessária, de certo modo, ante o avanço de uma outra
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modernidade. Modernidade, neste caso, muito aquém de crítica. Ao contrário, uma modernidade
que apregoa a inescapabilidade de uma globalização hegemônica. Então, para contextualizar a
atitude de modernidade da ontologia crítica de nós mesmos dentro do embate entre essas duas
possibilidades de modernidades excludentes – esta mesma apresentada por Foucault contra a
modernidade globalizada e globalizante que avança apregoada pela mídia, por meio de instituições
e permeando o senso comum – acompanhemos, brevemente, o pensamento de Santos:
Em primeiro lugar, a experiência social em todo mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante. Em segundo lugar, esta riqueza social está a ser desperdiçada. É deste desperdício que se nutrem as ideias que proclamam que não há alternativa, que a história chegou ao fim e outras semelhantes. Em terceiro lugar, para combater o desperdício da experiência, para tornar visíveis as iniciativas e os movimentos alternativos e para lhes dar credibilidade, de pouco serve recorrer à ciência social tal como a conhecemos. No fim de contas, essa ciência é responsável por esconder ou desacreditar as alternativas. Para combater o desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social. Mais do que isso, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade. Sem uma crítica do modelo de racionalidade ocidental dominante pelo menos durante os últimos duzentos anos, todas as propostas apresentadas pela nova análise social, por mais alternativas que se julguem, tenderão a reproduzir o mesmo efeito de ocultação e descrédito. (Santos, 2004)
Os desdobramentos destas conclusões, certamente, estão fazendo correr rios de tinta, tanto
no esforço de sua aplicação, quanto no esforço de seus detratores. Não vamos nos deter nelas,
citamo-lo para socializar um conhecimento que está sendo produzido atualmente e que,
infelizmente, não tem encontrado muita aceitação no meio acadêmico por, exatamente, desafiá-lo
em suas bases. A complexidade de suas propostas predica a leitura de seu artigo (que pode ser
baixado gratuitamente no site http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/sociologia_das_ausencias.pdf).
Poupando-nos o trabalho de uma apresentação pormenorizada, em linhas bem gerais, esse
pensador repensa as relações assimétricas de poder que perpassam as mais distintas esferas sociais
(se adotarmos uma linguagem estrutural, falaríamos nos domínios das macro e das microestruturas)
e que conduzem à subalternização de culturas, gêneros, “raças”, natureza, etc., redundando na re-
produção de um modelo específico de humanidade pretensamente universal. Santos busca, de fato, a
produção de um “conhecimento prudente para uma vida descente”. Um conhecimento receptivo,
não conclusivo, que remeta ao re-conhecimento das responsabilidades de seu fazer por meio das
relações entre os humanos, e destes com o(s) ambiente(s). Conhecimento que tende à sabedoria, na
medida em que abarca a experiência – não a controlável do laboratório – cheia de riscos no diálogo.
Não visa à sobrevivência, antes um saber viver. Introduzimos Santos para, além de contextualizar
nosso ensaio de reflexão crítica, dialogar com sua proposta da análise da razão indolente2. Por ora,
2 “A indolência da razão criticada neste ensaio ocorre em quatro formas diferentes: a razão impotente, aquela que não se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela própria; a razão arrogante, que não sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre da necessidade de demonstrar a sua própria liberdade; a razão metonímica [figura de linguagem aparentada com a sinédoque, para significar a parte pelo todo], que se reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte,
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com vistas a dar suporte ao êthos filosófico foucauldiano como uma atitude-limite – um situar-se
nas fronteiras – comentamos a proposta do “trabalho de tradução” de Santos. O que seria tal
trabalho de tradução? Basicamente,
Um procedimento capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis sem destruir a sua identidade (...) a tradução entre os saberes assume a forma de uma hermenêutica diatópica3 [que por sua vez] (...) parte da ideia de que todas as culturas são incompletas e, portanto, podem ser enriquecidas pelo diálogo e pelo confronto. (Santos, 2004)
E acrescenta:
A tradução não se reduz aos componentes técnicos que obviamente tem, uma vez que estes componentes e o modo como são aplicados ao longo do processo de tradução têm de ser objeto de deliberação democrática. A tradução é, simultaneamente, um trabalho intelectual e um trabalho político. E é também um trabalho emocional porque pressupõe o inconformismo perante uma carência decorrente do caráter incompleto ou deficiente de um dado conhecimento ou de uma prática. (...) [assim] o trabalho de tradução é o procedimento que nos resta para dar sentido ao mundo depois de ele ter perdido o sentido e a direção automáticos que a modernidade ocidental pretendeu conferir-lhe ao planificar a história, a sociedade e a natureza. (Santos, 2004)
O tradutor, percebemos, tenderá a uma ontologia crítica de si na medida em que se posta
nas fronteiras do saber abrindo-se (ou reconhecendo a abertura inerente ao próprio mundo, se
concordarmos com Massey) para a aprendizagem com o outro. Cremos ser possível a aproximação
dos termos que ambos os pensadores, Foucault e Santos, utilizam para se referirem ao limite, à
fronteira. O termo utilizado por Boaventura de Souza é zona de contato. Estes seriam campos
sociais onde diferentes mundos-da-vida normativos, práticas e conhecimentos se encontram,
chocam e interagem (Santos, 2004). Cientes dos perigos de tal aproximação (que para ser levada a
cabo com justiça demandaria talvez outro artigo), gostaríamos de insinuar uma analogia entre as
“zonas de contato” de Santos e as “fronteiras” de Foucault.
E se as zonas de contato de Santos fossem redimensionadas do contato entre determinados
conhecimentos e práticas para a experiência social dos indivíduos em
diálogo/negociação/confrontação com aqueles que compõem sua imediação cotidiana? Pois, de fato,
são pessoas a dialogar e não culturas. A cultura fala mediante a atitude do indivíduo e/ou do grupo.
Permitamo-nos imaginar as relações sociais institucionalmente estabelecidas (patrões/empregados,
pais/filhos, cidadão/cidadão, e, com mais ênfase neste trabalho, professores/alunos) sendo
não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas para as tornar em matéria-prima; e a razão proléptica [técnica narrativa para significar o conhecimento do futuro no presente], que não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente. (...) a indolência da razão manifesta-se, entre outras formas, no modo como resiste à mudança das rotinas, e como transforma interesses hegemónicos em conhecimentos verdadeiros. Da minha perspectiva, para haver mudanças profundas na estruturação dos conhecimentos é necessário começar por mudar a razão que preside tanto aos conhecimentos como à estruturação deles. Em suma, é preciso desafiar a razão indolente”. (Santos, 2004) 3 Dia – prefixo grego, que exprime a ideia de através de.
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deslocadas – a partir de uma ontologia crítica realizada num espaço coetâneo de relações na esfera
da heterogeneidade (Massey, 2008) – e tendo, como resultado direto da obstinação de imaginar, o
re-conhecimento das imposições arbitrárias do real, primeiro passo rumo à sua ultrapassagem.
Podemos conceber o que uma pedagogia baseada nesses princípios propiciaria?
Para Santos, o trabalho de tradução deve ser realizado por intelectuais cosmopolitas
(alinhados com a razão cosmopolita, contraponto da razão indolente proposta por Santos),
encontrados tanto entre dirigentes de movimentos sociais como entre os ativistas das bases. Por que
não conceber que cada indivíduo, em seus fazeres aparentemente mais ordinários, seja o agente
dessa tradução? Um tradutor comprometido com sua própria formação contínua (inescapavelmente
social) ao vivenciar a fronteira tanto em seu aspecto de crise, de perigo, de falésia, e, assim,
cultivando a virtude da prudência; como, também, como situação de constante evocar de sua
imaginação e sua agência, e do seu reconhecimento como sujeito histórico e crítico. Parafraseando
Santos, o confronto e o diálogo entre as pessoas a partir do novo êthos filosófico é um confronto e
diálogo por meio do qual pessoas diferentemente ignorantes se transformam em pessoas
diferentemente sábias.
Por que lançamos mão do auxílio de Massey e Santos na contextualização e entendimento
das possibilidades da ontologia crítica de nós mesmos aventada por Foucault? Escolhemos assim
proceder, pois entendemos que, em fins da primeira década do século XXI, as possibilidades de
efetivação do projeto foucauldiano se dão como algo mais do que um ideal longínquo, se dão como
perspectivas. Foucault cita as aspirações de Baudelaire quanto à efetivação de seu pensamento:
Essa heroificação irônica do presente, esse jogo de liberdade com o real para sua transfiguração, essa elaboração ascética de si, Baudelaire não concebe que possam ocorrer na própria sociedade ou no corpo político. Eles só podem produzir-se em um lugar outro que Baudelaire chama de arte. (Foucault, 1984)
O que nos parece, quando nos colocamos a estudar as recentes contribuições teóricas da
crítica sociológica, filosófica, histórica, geográfica, é que a problemática da obra de arte na época
de sua reprodutibilidade técnica começa a dar lugar à perspectiva do reconhecimento (e respeito)
da arte na/da obra humana em sua irreprodutibilidade técnica, histórica e política. E o hic et nunc
da arte na/da obra humana seria, ao nosso ver, literalmente, sua atualidade. A vivência da ontologia
crítica de si. Esse se postar nas fronteiras é uma atitude que desloca a aura de toda autoridade
inquestionável, sejam objetos, sejam instituições e, de modo paradoxal, reveste as próprias
trajetórias de vida – as estórias-até-agora – com uma nova aura experimentada na relação dialógica,
no Cuidar4, no toque. A autenticidade do humano não é apreensível pelas técnicas sociais que
4 Para uma boa discussão do conceito de Cuidar heideggeriano, que, provocativamente, é insinuado aqui, ver: DALBOSCO, Cláudio Almir. O cuidado como conceito articulador de uma nova relação entre filosofia e pedagogia.
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instam em formatar relações sociais em mecanismos fundados no embate cotidiano de estereótipos
com vistas à produtividade. Exatamente por essa característica da vivência inaquilatável – inefável
–, experimentada quando a dinâmica ontológica crítica de si abala as inautenticidades antes tomadas
como partes “essenciais” de ser social, que
É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é preciso concebê-lo como uma atitude, um êthos, uma via filosófica em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem possível. (Foucault, 1984)
Ultrapassagem do possível possibilitada, por sua vez, como referido acima, pelo desafio da
imaginação. Três palavras para as quais queremos chamar a atenção daqui para frente: imaginação,
educação e política. Logo os nexos entre estas se darão. Voltemos nossa atenção para a imaginação.
Do que trata a imaginação? De fantasias e representações de caráter majoritariamente lúdico? Talvez.
Mas o que nos inquieta quando lemos o texto de Foucault é esta percepção subterrânea de que será a
partir de um ato de transfiguração da nossa imaginação – transmutação? – que poderemos nos iniciar
no experienciar da vida como prática de uma liberdade que respeita e viola o real. É inquestionável o
papel da imaginação na constituição de si a partir da atitude de modernidade foucauldiana. E nesse
ponto o discurso parece começar a exalar certa numinosidade, algo característico da transcendência.
Falha da razão? Não cremos. De fato, dependerá de qual razão falamos aqui. Se apelarmos à razão
utilitarista (racionalista e indolente) do Homo oeconomicus/technologicus, provavelmente as
afirmações de Foucault embasadas em Baudelaire e Kant nos parecerão disparatadas. Imaginação?
“Voltemos à realidade!”. Como o artigo se direciona aos professores, “voltemos à sala de aula!”. Mas
é nesse movimento de “retorno” à realidade, é no afastar-se do imaginado como “mentira” posta no
lugar do real, ou, no mínimo, utopia ingênua, que mora todo o perigo.
Senão vejamos. Cornelius Castoriadis, em seu livro A instituição imaginária da sociedade
(1982), escreve:
O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de “alguma coisa”. Aquilo que denominamos “realidade” e “racionalidade” são seus produtos. (Castoriadis, 1982)
E ainda,
O que denomino [genericamente] o imaginário, nada tem a ver com as representações que circulam correntemente sob este título. Em particular isso nada tem a ver com o que algumas corrente psicanalíticas apresentam como “imaginário”: o “especular”, que, evidentemente é apenas
Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 97, p. 1113-1135, set./dez. 2006 [Disponível em http://www.cedes.unicamp.br].
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imagem de, e imagem refletida, ou seja, reflexo, ou, em outras palavras ainda, subproduto da ontologia platônica (eidolon) [...] O imaginário não é a partir da imagem no espelho ou no olhar do outro. O próprio “espelho”, e sua possibilidade, e o outro como espelho são antes obras do imaginário que é criação ex nihilo. (Castoriadis, 1982)
Se dermos crédito a Castoriadis, o perigo de “tornar ao real” ao afastar-se do imaginado,
afastar-se da ação imaginativa, é alienar-se da ação relacional instauradora da própria realidade. De
acordo com esse autor, os imaginários individuais se tornariam sociais exatamente pelo fato da
irresistível necessidade de relacionar-se que conduz o homem à realização da construção-
(ruptura/resignação) de sua humanidade no marco de suas sociabilidades. Nesse sentido, até mesmo
o misantropo, aquele que se afasta do convívio social, estaria realizando-se no próprio afastamento.
A ausência constitui-se, com suas possibilidades e limitações, também uma forma de sociabilização.
O imaginário, ainda de acordo com Castoriadis, por meio da conivência/resistência das imaginações
individuais, trabalha como instaurador (mantenedor) das instituições sociais. Para entendermos,
resumidamente, o que seja uma instituição na concepção de Castoriadis, acompanhemos o que
escreve um de seus comentadores, Manuel Antonio Baeza, no livro Los camiños invisibles de la
realidad social (Baeza,...):
A instituição é um conjunto de significações legitimadas de maneira social, independentemente de uma funcionalidade precisa; a instituição remete, portanto ao âmbito das aceitações coletivas, das ideias, das fantasmagorias, etc., que passam a formar parte de nosso sentido comum. A sociedade mesma não seria outra coisa que uma instituição maior; C. Castoriadis escreve a respeito: “A sociedade não é nem uma coisa, nem um sujeito, nem uma ideia, nem tampouco coleção ou sistema de sujeitos, nem de coisas nem de ideias”. E o autor mencionado acrescenta logo adiante: “A sociedade se institui como modo e tipo de coexistência: como modo e tipo de existência em geral, sem analogia nem precedente em outra região do ser”. (...) a instituição é um constructo legitimante do organizacional em termos sociais, quer dizer quando a organização é aceita, adotada, internalizada por aqueles que ao fim e ao extremo a vivenciam. Cornelius Castoriadis diz que o imaginário social constrói novas instituições, inclusive “novas formas de viver”. (Baeza, 2000)
As relações entre imaginário social e política – sendo a imaginação individual o locus
das negociações entre ambos – estão dadas. Se, de fato, for por meio da imaginação, seja pelo seu
caráter contestador/inquiridor, ou pela adoção por grande número de pessoas – fato que os
legitima – dos imaginários sociais já de antemão constituídos e repassados de uma geração à
outra; se concordamos, ao menos em parte, que as instituições da sociedade são fundadas e/ou
questionadas dessa forma, então sua importância como constituinte da fundamentação do “real”
não deve ser subestimada. Pois, como instituições, os modos de se fazer política, economia e
vivenciar o mundo do trabalho também são gerados/mantidos a partir da ação direta dos
imaginários sociais, apesar do cuidadoso encobrimento que os discursos institucionais
empreendem acerca dessa filiação imaginária. Os porquês desse cuidadoso encobrimento serão,
rapidamente, discutidos mais adiante.
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Voltemos nossa atenção para a instituição em questão, a escola. Mas para que não
fiquemos em elucubrações demasiado teóricas, procuremos analisar uma determinada concepção
imaginativa de escola. Arrazoemos a partir do que já foi considerado acima com uma entrevista
publicada na revista Veja. Levantaremos algumas características da concepção do que seja educação
como instituição para o ministro Fernando Haddad. Nosso objetivo é vislumbrar, ao menos de
relance, dada a brevidade deste escrito, o imaginário que sustenta o fazer, nos termos de
sociabilidades e técnicos – didáticos e pedagógicos – em sala de aula na concepção de Haddad.
Além disso, ponderaremos sobre as possibilidades e os limites que esse imaginário específico
apresentaria como instrumento para “leitura” de alguns documentos oficiais publicados pelo MEC5.
A entrevista com o Ministro da Educação, Fernando Haddad, na revista Veja, datada de
outubro de 2007, foca no novo projeto educacional que acabara de ser lançado, idealizado com o
objetivo de melhorar a educação no país. O encadeamento das perguntas foi feito de forma a
mostrar como seria possível a aplicação desse plano, quais seriam os obstáculos enfrentados e que
frutos seriam colhidos pela sociedade brasileira se ele fosse bem sucedido. Vamos iniciar com uma
rápida apresentação da entrevista de Haddad, feita por Monica Weinberg.
A pergunta que abre a entrevista já testemunha algo interessante: “O senhor concorda com
os educadores segundo os quais as escolas no Brasil estão passando uma visão retrógrada do
mundo a seus alunos?”, ao que responde o ministro, “Isso acontece, sim”. A construção da pergunta
explicita a convenção social de que à instituição escolar cabe “passar” determinado saber. E mais, a
atual escola brasileira “passa” uma “visão retrógrada do mundo”. O significado da palavra
retrógrado, segundo o Aurélio, é: contrário ao progresso, que retrocede. Assim sendo, a escola
brasileira seria, em termos amplos, uma instituição para repasse de determinado conteúdo que
deveria fomentar o progresso.
O ministro, em suas primeiras respostas, lança mão de determinadas palavras que reforçam
essa imagem indicando mais alguns elementos. O debate, nas primeiras três perguntas, gira em
torno do caráter “dogmático” dos professores que “restringe a visão de mundo à de uma velha
esquerda”. Não sendo “para esse lado, afinal, que o mundo caminha”, Haddad sustenta que a sala
de aula não é lugar para promover ideologia. “A obrigação da escola é formar pessoas autônomas –
capazes, enfim, de compreender de modo abrangente o mundo em que vivem”.
Sobre o sistema de escolha dos livros didáticos, entendidos como alinhados com “esse
viés” dogmático, o ministro imputa a culpa aos professores universitários que acordam “com a visão
dogmática que ainda circula em parte do meio acadêmico (...) reflexo de um modo de pensar
5 Tais documentos seriam dois: o documento referência do CONAE 2010 – construindo o sistema nacional articulado de ensino: o plano nacional de educação, diretrizes e estratégias de ação, acessível por meio do site do Ministério da Educação; e o documento Indagações sobre o currículo: currículo, conhecimento e cultura (2007), do Ministério da Educação Básica e Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental.
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próprio de uma parcela da intelectualidade brasileira, em todos os níveis”. O argumento expiatório
utilizado para resguardar o sistema de escolha empregado pelo MEC: “Não inventamos essa
fórmula. A avaliação de trabalhos acadêmicos feita por pares funciona em vários países
desenvolvidos – e aliás muito bem”.
As próximas três perguntas versam sobre o problemático posicionamento do Brasil nos
últimos lugares dos rankings de avaliação da qualidade de ensino. A culpa seria das abordagens
antiquadas dos conteúdos, “Parece-me que ninguém até este momento parou para estudar alguns
dos capítulos cruciais da história recente da humanidade sob uma perspectiva contemporânea”.
Outro fator é o “claro déficit de pessoal realmente capacitado para ensinar as crianças”. Apesar de
mencionar uma defasagem no trato de conteúdos referentes às ciências humanas, quando inquirido
da real dimensão do problema, Haddad afirma que é na área das ciências exatas que encontraremos
um “desanimador cenário”, pois não existem suficientes professores formados para que as
demandas sejam supridas. Por meio da criação de incentivos, como distribuição de novas bolsas de
iniciação científica, e do mais “que dobrar o número de escolas técnicas de nível superior no país”
– “Com cursos de duração mais curta e direcionados para o mercado de trabalho” –, Haddad
espera reverter este quadro. Mesmo porque, segundo um trabalho divulgado pela OCDE e citado
pelo ministro, “os países do Primeiro Mundo formam todo ano duas vezes mais jovens em áreas de
ciências do que o Brasil”, um indicador que “mostra que nos distanciamos ainda mais do Primeiro
Mundo”.
O conteúdo da sétima pergunta vale a pena ser citado na íntegra:
Veja – Por que, então, o Brasil ainda está tão atrás dos outros nos rankings de inovação tecnológica? Haddad – Temos um problema sério aí. A universidade brasileira produz tradicionalmente conhecimento que não interessa ao mundo real. Por isso, muitas idéias ficam confinadas ao universo acadêmico, sem que de fato impulsionem o país na competição global, como deveriam. Sempre tive a convicção de que para mudar o cenário o governo precisava dar um empurrão – e é esse resultado que espero com a nova lei que vai aliviar a carga tributária das empresas que investirem em pesquisa, nos moldes do que faz a Lei Rouanet na cultura. Dessas empresas, evidentemente, há mais chances de vir a pesquisa aplicada de que o Brasil tanto precisa. De novo, não estou inventando nada. Basta observar o que funciona lá fora. Há um século é assim nos Estados Unidos. Na Coréia do Sul, 80% da pesquisa do país é financiada por empresas privadas, não pelo governo – e os coreanos estão no topo do ranking da inovação tecnológica. (VEJA, 2007)
A oitava, nona e décima perguntas referem-se ao posicionamento partidário de Haddad e
sua opinião acerca das greves nas universidades. Sua apreciação da “cultura assembleística” do
partido ao qual pertence, o Partido dos Trabalhadores (PT), “quando serve de pretexto para que não
se tomem decisões”, é a de que tal é “contraproducente, paralisante. No governo não se tem o
tempo dos anjos para definir rumos. Se esperasse por um consenso geral, talvez fosse mais
popular, mas certamente não sairia do lugar”. Quanto às greves, julga que “houve uma
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vulgarização (...) e isso evidentemente não nos ajuda”. Pois, precisamos de mais “pragmatismo” se
quisermos “alcançar os países de que ainda estamos distantes. Começamos a corrida
estabelecendo uma meta de médio prazo.”
Nas últimas quatro perguntas, Haddad fala mais detidamente de seu projeto para a
educação que prevê “alcançar” um ensino comparável ao do “Primeiro Mundo” em quinze anos.
Em linhas gerais,
(...) com as várias avaliações do ensino disponíveis no Brasil, o país está conseguindo jogar luz sobre as boas escolas e chamar atenção para aquelas nas quais se pratica o péssimo ensino. De um lado, os pais ganham um termômetro para saber se seus filhos estão num bom colégio. De outro, o governo tem na mão uma ferramenta para identificar as práticas que levam ao sucesso acadêmico, que devem ser reproduzidas em todas as escolas – e para cobrar resultados. (VEJA, 2007)
Três pontos para os quais o ministro chama atenção quando inquirido sobre “o que afinal
tem dado mais certo nas escolas brasileiras”, são:
(...) as melhores da lista são aquelas que têm no comando um diretor que está lá pelo mérito – e não por razões políticas. (...) os candidatos ao posto de diretor fazem uma prova e só os que têm bom desempenho no teste podem pleitear a vaga. (...) os colégios nota 10 (...) têm variadas formas de incentivar as famílias a participar mais da rotina escolar dos filhos. (...) as boas escolas, de algum modo, conseguem dar aos professores certos horizontes na carreira – e é interessante notar que nem sempre eles são financeiros. (VEJA, 2007)
Esse último comentário abre espaço para que Monica Weinberg, a entrevistadora,
acrescente: “O governo estabeleceu um piso salarial para os professores, mas pesquisas
internacionais mostram que o aumento de salário tem muitas vezes efeito zero sobre a qualidade de
ensino...”. Haddad responde que há “evidências para afirmar que em alguns dos lugares mais
pobres do Brasil a falta de recursos, entre outras coisas, para pagar melhor aos professores ajuda
a explicar, sim, a baixa qualidade de ensino”. Logo depois apresenta, em linhas gerais, a lógica de
funcionamento de seu projeto para a educação:
No novo sistema do MEC, as escolas que aparecerem no topo do ranking nacional ganharão em autonomia financeira. Hoje as escolas mal têm dinheiro em caixa para comprar uma borracha. Com um bom resultado, elas conquistarão o direito de gerenciar suas finanças. Ficarão, enfim, mais independentes do estado – e acredito que assim podem funcionar melhor. Mas precisam fazer por merecer o prêmio. (VEJA, 2007)
Na última pergunta que compõe a entrevista, Weinberg procura saber se Haddad vê
algum obstáculo à execução de seu plano. O ministro responde que duas “pragas brasileiras”
podem atrapalhar. O corporativismo e a “tradicional descontinuidade das políticas públicas no
país. A cada novo governante, tudo muda de rumo e lá se vão anos de trabalho pelo ralo”. E
arremata:
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Por fim, não resta dúvida de que o Brasil terá mais chance de sucesso não só quando as aulas tiverem um nível mais elevado, mas também quando o dogmatismo deixar de vez as salas de aula. Em Cuba, os estudantes vão bem nas provas, mas em compensação saem da escola despreparados para atuar no mundo moderno. O Brasil deve ambicionar muito mais do que isso. (VEJA, 2007)
Depois da leitura da apresentação da entrevista de Haddad, com todo o respeito, permita-
nos um momento de rompante, um impulso: Que desgraça! Quando nos demos conta de que são
exatamente os conteúdos que amparam as respostas de Haddad, e o tratamento que se dá a eles, a
fonte latente da desinformação e da idiotização que têm atravancado o re-pensar das experiências no
ambiente escolar e seu horizonte de espera, não há outro sentimento que não o asco, o nojo.
Passamos a desesperar e a ter nosso juízo turvado. Pois, como fazer frente à tamanha imbecilidade
se a linguagem academicista que rege a produção crítico-textual, de forma suspeita, priva-nos dos
meios necessários para promover uma efetiva mudança? De certa maneira o próprio fazer
acadêmico hegemônico participa dessa imbecilização quando se apoia num racionalismo de cunho
economicista terrivelmente redutor. Devemos apelar à razão? Mas a razão é uma refém! E a refém
nos aconselha uma apresentação contida, dialética, lógica, racionalizada, analítica, weberiana,
marxista, culturalista, materialista, positivista... Astuciosa. Precisamos ser melindrosos e sutis em
nossa argumentação para convencê-los de que enxergamos d’outra forma o quadro? E, esse
enxergar mesmo, precisa ser conclusivo quando expresso textualmente? Qualquer das vias que
escolhamos para apresentação de nossos argumentos – contraponto ao que percebemos ser a re-
produção das formas naturalizadas de conceber o humano que, venenosamente, insidiosamente,
sub-repticiamente, ditam o aborto desse mesmo humano –, se dada ao gosto da tradição e seguidora
dos cânones acadêmicos indolentes, não importa qual, será uma via que esvairá a eficácia da crítica.
Mas o que é a crítica? Assumimos total responsabilidade pela subversão em que as páginas
vindouras se configurarão.
Escrevemos toda a parte anterior à apresentação da entrevista com o texto mantendo-se
prenhe de possibilidades e otimismo quanto ao rompimento crítico com os fazeres que regem o
tempo e o espaço em sala de aula, os quais são as próprias relações estabelecidas entre professores
(contando com todo um aparato social – imaginário e burocrático – que lhes pesa na performance de
seu fazer) e alunos (igualmente portadores de vivências silenciadas que fazem-nos assumir de fato a
função de “aluno” – a-lumni , sem luz –), e que, mormente, configuram-se no problema. Mas, por
respeito à autenticidade mesma que tentamos apresentar na primeira parte, subvertermos este escrito
correndo o risco de que ele já não seja mais publicado. Porém, esperamos que entendam, seremos
fiéis ao que estamos-sendo. E o artigo, neste momento de análise crítica da entrevista, passa de
“apresentação de possibilidades” para uma tentativa de exercitar a ontologia crítica de nós mesmos.
Algumas colocações para que a leitura seja o menos traumática possível: este texto deixa
de aspirar ser O local da Vox (Vox, lat. Voz) como arrazoado coerente, isto é, coerência nos termos
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tradicionalmente científico-racionalistas. Apesar de inominável, compreendemos6 que tal
“coerência” seja: um complexo estratagema espitêmico-discursivo-ontológico que oferece à pessoa,
ao mesmo tempo em que esta se debruça sobre determinado problema social, a possibilidade de
manter-se afastado no tomar parte – ou ser o deflagrador – das implicações de revisão ou de radical
mudança que porventura as constatações e/ou conclusões obtidas pelo mencionado estudo
prediquem. Assim, as constatações e/ou conclusões que apontam no sentido de mudanças com o
intuito de fomentar “justiça social”, “liberdade”, “democracia”, “pluralidade”, etc. não encontram
vazão e aplicação nas relações cotidianas por meio do corpo do próprio pensador que segue
apregoando “coerentemente” suas ideias no campo das abstrações. A nosso ver, se instauram, por
meio dessa “coerência” esquizoide, regimes de verdade(s) textuais independentes dos regimes de
verdades dos mundos-da-vida. Nenhum problema quanto a isso. O problema começa quando a tal
“crítica consciente”, vinculada ao embate na esfera dos regimes de verdade(s) textuais por meio da
coerência nos termos apresentados, não consegue – e se consegue isso se dá de forma pálida e
mirrada, pois se trata em última instância de ofender “o gosto” (sim! Gosto se discute!) do fazer
acadêmico – romper o hiato entre o campo das abstrações e dos mundos-da-vida. Mundos-da-vida?
As relações institucionalizadas nas quais o(a) pensador(a) está enredado, e a partir das quais ele(a)
traça, por exemplo: sua crítica que redundará num artigo publicado numa importante revista
internacional (coisa agradabilíssima para o currículo, não?), sua conduta para com seus pares e para
os servidores da instituição na qual ele(a) trabalha, seu convívio familiar, sua esposa(o) e seus
filhos, seu proceder cívico, sua atitude perante seu “a-lumni” (irá realmente “iluminá-lo”?), sua
participação, ou não, em determinada ONG... Poderíamos continuar essa enfadonha listagem. Mas
basta isso para o que intentamos exemplificar. De certa maneira o discurso acerca de “justiça
social”, “democracia”, “educação democrática”, etc. se torna uma ladainha (Vox) que inspira a
escrita de milhares de páginas que, num bizarro processo de ‘compensação’, esteriliza a ação
transformadora na/pela experiência vivida nos mundos-da-vida. Uma afirmação discursiva e uma
emergência textual tributária desta in-“coerência” seriam de uma feita: uma negação na práxis
experimentada como uma ausência da efetivação corporal nos mundos-da-vida. Simbolicamente, o
irromper do texto carrega consigo – realiza – toda a carga de disrupção que poderia levar o
pensador a transformar-transmutar suas relações nos mundos-da-vida. Como escreveu José de
Almada Negreiros, n“A Invenção do Dia Claro” (1921):
6 No latim comprehendere (com- junto com, em conjunção + prehendere; prae- antes + hendere [ghend- indo-europeu] segurar, tomar), pode ser assim entendida: anteriormente haver pegado com as próprias mãos. A compreensão de um conteúdo predica uma experiência corporal com o mesmo, corporeidade. A compreensão predica a ação do corpo que, “tendo em mãos” a experiência, produz um sentido pessoal (como na feitura de um enredo) que torna o processo de aprendizagem algo além da simples memorização. Sendo que o arrazoado de ideias e possibilidades de ser entram no escopo da discussão, quando se efetiva uma aprendizagem pela compreensão, no lugar do monólogo objetivista da “Realidade” (que mais que informar sobre ela, funda-a), a pessoa que aprende se sente diretamente ligada à efetividade da instauração do mundo.
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“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade.”
É a essa esterilidade do acadêmico – ao menos dos acadêmicos que estudam as ditas
ciências humanas e percebem que há algo de, no mínimo, estranho com o mundo – que nos
reportamos quando dizemos não querer produzir um arrazoado “coerente”. Nesse sentido (e aí
temos material para mais exposição que aqui não ocorrerá por falta de espaço), é que concebemos
que o texto assume status de O local da Vox. Toda possibilidade-vontade de ação nos mundos-da-
vida, ou parte esmagadora dela – não podemos deixar de compreender que o próprio texto compõe,
também, os regimes de verdades dos mundos-da-vida –, se realiza na feitura do texto mesmo. A
atitude assumida é a atitude de um participante no embate entre abstrações. E se a “paixão” pelo
“objeto de estudo” extravasa em algum sentido, ela é rastreada no fazer do acadêmico em seu agir
no mundo através de diversos projetos de pesquisas que, de uma forma ou de outra, permanecem
entre os muros da instituição e redundam em mais escrito... Falatório, falatório, falatório,
decadência. Esses mesmos escritos são apropriados pelas instituições do poder público, as quais são
permeadas, moldadas, configuradas pelos interesses de parcelas específicas da sociedade (nem lhes
contamos quais!), e traduzidas em “políticas” e “reformas” voltadas à educação. Entenda-se, não
escrevemos como acadêmicos (ou melhor, “aspirantes a acadêmicos”, já que Marcos Paulo é um
mestrando e Lorena, especialista, está na escrita de sua proposta de mestrado); temos a impressão
de que talvez já perceberam isso. Escrevemos, antes, como um professor e uma comunicadora
social – esta comprometida em re-pensar os liames mídia/educação, aquele comprometido com o re-
pensar o espaço e tempo escolar – que, por contingência e sorte, conseguiram publicar este artigo e,
assim, adentrar alguns milímetros os portões desse “templo do conhecimento” que é a academia
ocidental. Para além disso, escrevemos como duas pessoas tentando viver este novo êthos
filosófico.
Outro ponto que precisamos que fique claro. Com qual autoridade escrevemos o que
escrevemos? Não somos apenas um professor e uma comunicadora social? Como ousamos querer
participar desse debate levado adiante apenas por gente graúda? Se há alguma autoridade na qual
deveria nos basear para isto escrever, tal autoridade passa longe (mas muito longe mesmo!) da
titulação que ostentamos agora. E, queiram ou não, todos sempre participamos do debate, mesmo
que por meio do silêncio resignado ou do dar de ombros. Repetimos: somos um professor e uma
comunicadora social, brasileiros, estamos nos formando no exercitar o trabalho de nossos corações:
a comunicação como ensino-aprendizagem. Que nos dizem? Devemos esperar até o cumprimento
de quantos pós-doutorados para começar a ensaiar emitir nossas opiniões? (Que estão, cremos, um
pouco para lá da doxa.) Não meus amigos. Perguntamos a vocês quantos professores no exercício
de seu trabalho terão as mesmas condições que temos para realizar um mestrado? Quem dirá um
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doutorado? Atrevemos a dizer que um número mínimo. Não terão o que dizer estes, que segundo
alguns insensatos professores universitários, “são os que aplicam o conhecimento que nós
desenvolvemos”? Esperamos que ao ler estas palavras publicadas, você, professor(a), saiba que não
só pode, como deve, para a humanização do processo educativo, entrar de corpo inteiro nesse
debate. Quanto mais vai esperar? Quanto mais você precisa saber até que não se sinta envergonhado
ou embaraçado diante de algum “monstro-sagrado” que lhe jogue na cara que não é capaz de
conceituar isto ou aquilo? Não é motivo de vergonha ser achado em falta em seus saberes no
momento do diálogo – se este diálogo der-se a partir do novo êthos filosófico que tentamos
apresentar, o qual você precisa positivamente contribuir, por sua atitude, para estabelecer. “Nossa
cultura ocidental”, por alguma astúcia na produção do conhecimento em suas distintas
configurações históricas, aproximou “estar errado” de “estar vencido”. Você não foi “derrotado” ao
errar ou ao não saber responder claramente uma pergunta de seu interlocutor. Só seria derrotado se
estivéssemos numa competição... Mas e quanto à globalização? Logo veremos.
Precisamos de uma mudança de perspectiva aqui. Se deixarmos de aproximar “erro” de
“derrota”, poderemos imaginar uma nova situação, e é por exatamente imaginá-la que escrevemos o
que escrevemos. Qual imagem em ação seria esta?
Numa situação de diálogo na qual as pessoas reconhecem-se “em falta”, ou seja, sempre
abertas ao aprendizado e às ressignificações, ao crescimento e ao respeito (note bem, não
“tolerância”, que é protelar a violência); numa conversação que parta dessa atitude de situar-se nos
limites, um “erro” – sempre “erro” em função de quê? Importa relativizar aqui – é, em potencial,
uma contingência especial para embate e crescimento pessoal. Não ser “derrotado”, mesmo porque
não será a verdade do outro que deverá sobrepujar globalmente a sua verdade. Não é a verdade do
outro que constitui o que seja a realidade do mundo. É a verdade construída e compartilhada por
ambos os partícipes no diálogo sensato que realiza tal tarefa. A verdade, no campo humano, só pode
ser de dois modos: ou é relacional, “fundada” na tradução, ou é dogmática, fundada numa
hegemonia. Você só “perde” num diálogo na medida em que introjeta, sem crítica prévia, a
“Verdade” que lhe foi garantida como “verdadeira” – comprovada “cientificamente” ou imposta de
forma dogmática. E dizemos mais, quando há uma aceitação acrítica por sua parte, caro colega, ao
cumprir essa introjeção não existe, de fato, muita diferença no que concerne ao status “científico”
ou “dogmático” anterior a tal Verdade, seu conteúdo é tomado como realidade dada inquestionável
da mesma forma. É a metafísica que a ciência funda quando aplica a fórmula de controle “sujeito-
objeto” no campo das relações humanas.
Pois bem. E quanto à vergonha, o que fazemos com ela? Vergonha... Um tema um tanto
“psicologizante” para este exercício crítico-ontológico-histórico, não acham? Não cremos que deva
ser visto necessariamente assim. Não é a “vergonha” de sermos achados em falta em nosso saber, de
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sermos reconhecidos como incompletos naquilo em que deveríamos ser “formados”, um dos fatores
que nos mantém em silêncio, sentados quietos no auditório no qual se apresenta aquele famoso
especialista? (engraçado... somos “formados” em história e comunicação social, respectivamente,
mas nos parece que só pudemos realmente começar a aprender após deixar as carteiras
universitárias).
Aprende - lê nos olhos, / lê nos olhos – aprende / a ler jornais, aprende: / a verdade pensa / com tua
cabeça. / Faça perguntas sem medo / não te convenças sozinho / mas vejas com teus olhos. / Se não
descobriu por si / na verdade não descobriu. / Confere tudo ponto / por ponto – afinal / você faz
parte de tudo, / também vai no barco, / "aí pagar o pato”, vai / pegar no leme um dia. / Aponte o
dedo, pergunta / que é isso? Como foi / parar aí? Por quê? / Você faz parte de tudo. / Aprende, não
perde nada / das discussões, do silêncio. / Esteja sempre aprendendo / por nós e por você. / Você
não será ouvinte / diante da discussão, / não será cogumelo / de sombras e bastidores, / não será
cenário / para nossa ação. (Bertold Brecht – Precisamos de Você)
Nei Lopes, em Kitábu - o livro do saber e do espírito negro-africanos (2005), apresenta-
nos o relato cosmogônico dos iorubás. Em uma passagem, na qual Ifá, o Santíssimo Sábio,
determina as posições de tudo o que foi criado na escala de valores do universo, Nei Lopes fornece,
baseado em suas pesquisas da ancestralidade africana, elementos para conceber uma nova
imaginação quanto à vergonha. Ele diz que Ifá determinou sete níveis de diferenciação para os
homens. Na posição mediana ele colocou o homem comum e, logo abaixo do homem comum, Ifá
posicionou o néscio, ou ignorante. Este, por sua vez, “zomba e debocha do que não conhece”.
Zomba e debocha do que não conhece. Esse enunciado pode se referir tanto ao conteúdo
que não é conhecido, alvo das zombarias do néscio, quanto ao homem que debocha do outro pelo
fato de aquele não conhecer aquilo que ele mesmo, o ignorante, julga saber. Se numa conversa ou
em aula, numa palestra ou no dia a dia, em resumo, em qualquer situação em que se encontre, da
mais institucionalizada à mais informal; se você for inquirido acerca de determinado saber que não
possua, não core ao reconhecê-lo. Antes, aproveite a oportunidade para aprender junto de seu
interlocutor. Agora, se este, por sua vez, lhe rejeitar tal saber ou por deboche e zombaria, ou por
sustentar que aquela situação específica (por institucionalizada que seja) não é “local” para tal
esclarecimento (e realmente não será se você assim acreditá-lo), cremos que concordamos sobre em
quais ombros recairá o embaraço da vergonha.
Aquele que se nega a arrazoar sensatamente em nome das funções sociais pré-estabelecidas
presta não só um desserviço para a humanização dos saberes como fomenta a hegemonia dos
detentores deste mesmo saber e a manutenção das relações assimétricas de poder. Qualquer pessoa,
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talvez pior o seja para um doutor – terá ainda mais razões para se envergonhar –, ao negar
compartilhar aquilo que julga saber, dessa forma, abortando a possibilidade do diálogo sensato,
impõe que: a) seu interlocutor se emudeça, invisibilizando-o; b) seu interlocutor cumpra
acriticamente as funções sociais estabelecidas e, por seus meios, busque posteriormente pelo saber
negado, o que aborta tanto a humanização daquele que nega quanto a humanização daquele que
cumpre o papel socialmente determinado no ato da possibilidade de relação transformada, pela
própria negação do compartilhar, em mecânica social; ou c) seu interlocutor, dependendo das
circunstâncias em que se encontre, seja obrigado a usar de violência física ou simbólica para
alcançar o que quer que seja para a manutenção de sua existência. Em todos os casos, respondam
sensatamente, a quem devemos cobrar uma postura mais racional e menos incompetente?
A partir dessa reflexão, escrevemos e continuaremos a escrever não embasados nos títulos
que porventura venhamos a adquirir (infelizmente muitos de nós fomos adestrados a acreditar que
apenas mediante a posse de um título determinado indivíduo está apto para falar e ser ouvido acerca
de dado saber em matéria de ciência. Mas o quanto isso é pernicioso quando falamos em “ciência
humana”?), mas, antes, embasados em nossas experiências que compreendem algo mais do que o
somatório das vivências institucionalizadas em escolas, universidades, igrejas, partidos, família,
amigos... Compreendem, além desta somatória, “um algo mais” que exatamente nos serve de lastro
para este escrito (talvez a arte na/da obra humana irredutível à reprodutibilidade técnica ou ao
próprio regime de verdade do escrito acadêmico “coerente”). Outra vez, este não é somente um
escrito acadêmico.
Então, retomando a questão do texto como O local da Vox – uma das características
marcantes do atual modo de se fazer a “boa pesquisa e apresentação nas ciências humanas” – se este
texto que tens em mãos não aspira sê-lo – nos termos apresentados –, o que diabos ele aspira? Já lhe
diremos. Este texto intenta ser um dos locais de Evocação. Do verbo latino vocare (Vox, voz), que
significa chamar. Vocare, em latim, quer dizer, “mandar vir alguém ou algo, tirar, requisitar”. O
estudo de algumas palavras em suas antigas significações pode ser surpreendentemente inspirador.
Evocatio era a palavra latina para designar “convocação de soldados”. O prefixo e- exprime a ideia
de “movimento para fora”. Este texto pretende-se um local no qual você, educador, seja E-vocado –
e agora nos dirigimos para além da função de “professor”. Quem pode ser entendido como
“educador”? Deixamos a questão em aberto. Nós lhe evocamos ao diálogo sensato.
Ao dizer que este texto é uma Evocação, queremos que fique claro também que nele não
encontrarão uma conclusão no sentido de ato plenamente realizado sob um regime de verdade da
escrita. Encontrarão, antes, uma subversão dessa própria divisão. Não uma luta para reintroduzir o
“mundo da escrita” nos mundos-da-vida, mas uma abordagem – nem pior nem melhor,
simplesmente diferente – para encarar o ato da pesquisa, ponderação e produção de conhecimento a
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partir do ensaio desse novo êthos filosófico. Nada de novo, de fato. Apenas um exercício de colocar
em prática as ideias anteriormente apresentadas. E, observem que interessante: a prática dessa
ontologia crítica de nós mesmos, matizada com todas as outras aberturas teóricas apresentadas, e
outras ainda que não nos foi possível mencionar, supera a antiga querela entre “aqueles que
produzem” e “aqueles que põem em prática” as ideias. Como? A experiência, a vivência, a escrita
nesta ontologia crítica traz em seu bojo a abertura para o aprendizado do próprio educador. Nada
novo... Tudo novo!
Com efeito, a declaração enfática de que se possui a verdade vale agora muito pouco em comparação com a outra declaração, mais modesta, é verdade, e menos altissonante, da busca da verdade que nunca está cansada para reaprender e para fazer novas experiências. (Nietzsche, Humano, Demasiado Humano)
E se no local de “busca da verdade”, colocássemos “constante desafio de criar o real,
fundar o mundo e estabelecer relacionalmente a verdade”?
Achamos que basta, momentaneamente, das colocações iniciais para abrandar a leitura.
Sabemos que esses prolegômenos tomam as páginas que deveriam ser destinadas à análise da
entrevista de Haddad. Porém, (in)felizmente, não poderíamos levar adiante tal projeto antes de
realizar um certo tipo de “falatório contra o falatório”. Esperamos ter deixado claro que este nosso
“falatório” pretende abrir onde o outro fechava e convidar onde o outro afastava. Novamente,
pretende Evocar você, educador. A entrevista com Haddad, e a análise de seu discurso
“inteligentemente” globalizado, certamente nos inspirará outros artigos. Por ora, voltemo-nos, nas
poucas laudas que nos restam, para a feitura de uma breve ponderação.
A escola como instituição a partir do texto de Haddad, ao menos em sua concepção
imaginária, já foi apreendida de soslaio: uma instituição para repasse de determinado conteúdo que
deveria fomentar o progresso. Agora bem, queremos mais uma vez nos desculpar pelo rompante
acima. Desgraça não é um termo muito comum em textos que visam analisar posturas político-
institucionais do sistema educativo. Mesmo porque a entrevista de Haddad nos entrega indícios não
só para nos desesperarmos, mas também, em grande medida, para nos alegrarmos. Vamos começar
pelos motivos de alegria.
Haddad, em dois momentos, fez-nos vislumbrar a esperança: primeiramente quando disse
que “a obrigação da escola é formar pessoas autônomas – capazes, enfim, de compreender de
modo abrangente o mundo em que vivem”, e, logo no final da entrevista, quando sustenta que
devemos combater a “tradicional descontinuidade das políticas públicas no país. A cada novo
governante, tudo muda de rumo e lá se vão anos de trabalho pelo ralo”. Mesmo que quase todo o
resto da entrevista, segundo nosso modesto entender, seja um assassínio do bom-senso (e, ao
mesmo tempo, local de reprodução do senso comum), a simples presença dessas duas opiniões já é
22
um valiosíssimo passo para construção de uma escola “prudente para um mundo decente”, em
ensino constituidor. A segunda assertiva é de certa forma autoevidente, não carece de maiores
comentários. A primeira, contudo, gostaríamos de ponderar.
Ernildo Stein, em seu livro Órfãos de Utopia – A Melancolia da Esquerda (1993), trabalha
o luto das esquerdas e as implicações sócio-filosóficas da “morte” das utopias. De fato, ele
corrobora a ideia de Haddad de que a “inteligência” brasileira, em boa parte, era (ainda podemos
considerá-la assim?) de extração da esquerda. A palavra usada por Haddad para caracterizar essa
“velha esquerda” é: “dogmática”. Dogmática em que sentido? No sentido de restringir a visão de
mundo apresentada por meio dos monólogos que, majoritariamente, compõem o fazer escolar
institucional em sala de aula a uma visão ideológica falida e redutora (Falida? Sim. O muro caiu,
não?). Cremos não estar de todo errados ao supor que o ministro se referiu em especial à área das
humanidades. Conteremo-nos, sem mais rompantes, sem baixaria. Mesmo porque o próprio
ministro e alguns documentos oficiais publicados pelo MEC nos últimos anos, quando estudados
para composição deste artigo, devotaram-nos informações que, apesar de escritas e apresentadas de
forma “estranha”, são, assim mesmo, evidentemente motivos para comemorarmos uma festa em
lugar do luto apregoado por Stein. Como assim? Já lhes damos a entender. Seguem alguns
exemplos do que lemos. Entrevista de Haddad:
* A obrigação da escola é formar pessoas autônomas – capazes, enfim, de compreender de modo
abrangente o mundo em que vivem. (grifos nossos)
Excertos do documento CONAE: (negritos do próprio documento)
* 110- (...) a gestão democrática dos sistemas de ensino e das instituições educativas constitui uma
das dimensões que possibilitam o acesso à educação de qualidade como direito universal. A gestão
democrática como princípio da educação nacional, portanto, sintoniza-se com a luta pela qualidade
da educação e as diversas formas e mecanismos de participação encontradas pelas comunidades
local e escolar na elaboração de planos de desenvolvimento educacional e projetos político-
pedagógicos, ao mesmo tempo em que objetiva contribuir para a formação de cidadãos críticos e
compromissados com a transformação social. Desse modo, deve contribuir para a consolidação de
política direcionada a um projeto político-pedagógico (PDI), que tenha como fundamento: a
autonomia, a qualidade social, a gestão democrática-participativa e a diversidade cultural, étnico-
racial, de gênero, do campo.
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* 114- No Brasil, a luta pela democratização da educação tem sido uma bandeira dos movimentos
sociais, de longa data. Pode-se identificar em nossa história inúmeros movimentos, gerados pela
sociedade civil, que exigiam (e exigem) a ampliação do atendimento educacional a parcelas cada
vez mais amplas da sociedade. O Estado, de sua parte, vem atendendo a essas reivindicações de
forma muito tímida, longe da universalização esperada.
* 145- (...) dentre as bases para a democratização do acesso, da permanência e do sucesso
escolar, em todos os níveis e modalidades de educação, como instrumentos na construção da
qualidade social da educação como direito social, destacam-se: (...) i) Uma concepção ampla de
currículo implica o redimensionamento das formas de organização e de gestão do tempo e espaço
pedagógicos, e deve ser objeto de discussões pelos sistemas de ensino e unidades educativas, de
modo a humanizar e assegurar um processo de ensino-aprendizagem significativo, capaz de garantir
o conhecimento a todos e que venha a se consubstanciar no projeto político-pedagógico ou PDI da
instituição, por meio da discussão dos aportes teórico-práticos e epistemológicos da inter e
transdiciplinaridade, reconhecendo nos conselhos e órgãos equivalentes, democráticos e
participativos, instâncias legítimas e fundamentais nesse processo.
Excertos do documento: “Indagações Sobre o Currículo”
* Diante do ideal de construir essa sociedade [regida pelo imperativo ético da garantia dos direitos
humanos para todos], a escola, o currículo e a docência são obrigados a se indagar e tentar superar
toda prática e toda cultura seletiva, excludente, segregadora e classificatória na organização do
conhecimento, dos tempos e espaços, dos agrupamentos dos educandos e também na organização
do convívio e do trabalho dos educadores e dos educandos. É preciso superar processos de
avaliação sentenciadora que impossibilitam que crianças, adolescentes, jovens e adultos sejam
respeitados em seu direito a um percurso contínuo de aprendizagem, socialização e
desenvolvimento humano.
* O que se avalia e como se avalia está condicionado pelas competências, habilidades,
conhecimentos que o currículo privilegia ou secundariza. Os valores e as lógicas de avaliação
reproduzem os valores, lógicas e hierarquias que selecionam, organizam os conhecimentos nos
currículos. Por sua vez, o que se privilegia nas avaliações escolares e nacionais determina as
competências e conhecimentos privilegiados ou secundarizados no currículo. Reorientar processos e
critérios de avaliação implica em reorientar a organização curricular e vice-versa.
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* Este conjunto de indagações toca em preocupações que ocupam os profissionais da educação
básica [creio que toquem a todos os níveis da educação]: qual o papel da docência, da pedagogia e
da escola? Que concepções de sociedade, de escola, de educação, de conhecimento, de cultura e de
currículo orientarão a escolha das práticas educativas?
Pensamos que estes trechos são suficientes para ilustrar nosso ponto. De acordo com
Haddad, em sua entrevista, não é para o lado da “velha esquerda (...) que o mundo caminha”. Para
qual lado o mundo caminha, senhor ministro? Se dermos ouvido a Fukuyama e outros pensadores
que sustentam uma visão fatalista da história, o mundo inexoravelmente caminha rumo à
ocidentalização/globalização entendida como: capitalização; instauração de um modelo de
humanidade economicista universal; organização dos contingentes humanos em termos de Estados-
nação – forma exclusiva do político, sob pena de esses contingentes não possuírem direito à palavra
no campo das negociações e interesses internacionais, como é o caso, por exemplo, dos Mapuches
no Chile; padronização dos imaginários, introdução da metáfora desenvolvimentista em termos de
uma “corrida” contra o “atraso”. Outros elementos poderiam ser elencados, mas fiquemos com
esses. É para esse lado que o mundo caminha, quando não nos colocamos a pensar. Na verdade, o
mundo não caminha, antes, corre rumo ao “desenvolvimento”.
O chato é que a tal “corrida contra o atraso”, metáfora desenvolvimentista que sustenta
todo o discurso de Haddad, jamais encontrará termo. Por quê? Porque o “desenvolvimento” é
vivenciado menos como uma condição material e mais como um tema configurador do imaginário
social ocidental que instaura um processo de mimesis generalizada entre “Primeiro Mundo” (cujo
objetivo do “desenvolvimento” estaria na efetivação, sempre postergada, sempre no horizonte, de
um tipo hegemônico de Globalização) e “Terceiro Mundo” (cujos modelos do “desenvolvimento”
são exatamente os países do “Primeiro Mundo”). A título de curiosidade, leiam o que escreveu, de
acordo com Serge Latouche, um especialista em estratégias de desenvolvimento para o “Terceiro
Mundo”:
O desenvolvimento econômico de um povo subdesenvolvido (...) não é compatível com a manutenção de seus modos e costumes tradicionais. A ruptura com esses constitui uma condição prévia do progresso econômico. É preciso uma revolução da totalidade das instituições e dos comportamentos sociais, culturais e religiosos e, consequentemente, da atitude psicológica, da filosofia e do estilo de vida. O necessário assemelha-se então a uma desorganização social. É preciso suscitar a infelicidade e o descontentamento, no sentido de que é preciso a todo momento desenvolver os desejos para além do que existe disponível. Pode-se fazer objeção ao sofrimento e ao deslocamento que esse processo provocará; eles parecem constituir o preço a pagar para o desenvolvimento econômico. (Satie, The Economic Journal, vol. LXX, 1960, apud Latouche, 1996)
Logo após, Latouche cita Raymond Barre, que (poderíamos usar a palavra
“dogmaticamente”?) escreveu em seu manual: “A desigualdade de rendas é fonte de insatisfação e,
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com isso, fonte de progresso humano”. Opa! Se desigualdade de renda for a fonte do progresso,
estamos no caminho, não, ministro? Ok! Menos sarcasmo. Mas esses agentes da capitalização e
mercantilização do mundo escreveram há tempos! Então vamos ouvir alguns analistas do Boston
Consulting Group que escreveram ano passado:
(...) é importante dizer que será pouco provável, talvez impossível, competir na era da globalidade7 sem se deparar com essas questões [produtos defeituosos, poluição, violações dos direitos humanos, corrupção, disparidade de renda e assim por diante], tanto em sua vida profissional quanto pessoal. Fazer negócios em economias de desenvolvimento rápido8, e com empresas cujas origens estão lá, será fundamentalmente diferente do que é fazer negócios nos mercados desenvolvidos com empresas dominantes. [Mas por que, senhores consultores? Porque...] (...) A lista de problemas nas economias de desenvolvimento rápido é longa. A Índia está oprimida por uma dívida interna que equivale a 82% do seu produto interno bruto. [Uai... Mas não mostram isso na novela...] Na China, vinte milhões de crianças ficam em casa sozinhas por semanas e meses a fio enquanto seus pais trabalham nas cidades ou em lugares distantes. Os países da Europa Oriental estão lutando com inflação de salários e preços, migração de trabalhadores, baixa taxa de nascimentos, falta de trabalhadores qualificados e leis antiquadas. O México depende demasiadamente de renda do petróleo, sofre com o narcotráfico e tem um sistema educacional fraco. A economia do Brasil [o que será que pensam de nós os senhores consultores? Vejamos...] é lenta e seu governo está cheio de corrupção [que maldade! Chama-se “jeitinho”... não sejam rudes!]. Em todas as economias de desenvolvimento rápido, muitas pessoas são pobres, famintas, desempregadas, insuficientemente instruídas e doentes. Fora essas questões e algumas outras, as economias de desenvolvimento rápido estão se saindo bem [!!!... ah! Para! Vocês acham? A gente fica sem jeito. São seus olhos...]. E, além disso, as economias desenvolvidas também tem seus problemas, desde populações que estão envelhecendo e disparidades de renda [de fato! É um problemão, um monte de idosos gordinhos e saudáveis e má distribuição de uma lauta renda são comparáveis, em termos “problemáticos”, às aproximadamente 5.000 crianças que morrem de fome por dia no continente africano], até fraudes corporativas e consumo excessivo dos recursos mundiais. Portanto, não argumentamos que a globalidade será só alegria. Ela será tão frustrante, caótica, inexplicável [inexplicável? Sei...] e exaustiva quanto animada, esclarecedora e enriquecedora [agora fica a pergunta: para quem?] (Sirkin, 2008)
Para resumir, o discurso dominante desta “viva e imbatível direita”, da qual Haddad é um
dos porta-vozes na entrevista, é, antes de qualquer coisa, um discurso! Ora, já vimos por alto como
os discursos, por vias imaginárias, fundam a “realidade” tornando-a “inexplicável”. A posição
hegemônica dos atuais poderes constituídos fornece-nos (trabalhando na configuração do que se
costuma chamar “senso comum” por meio da mídia, da escola, da igreja, etc...) uma leitura muito
simplificada da globalização, enquanto caricaturiza como “de esquerda” qualquer esforço no
sentido de colocar em questão – arrazoar – as bases desse mesmo “processo inexorável”.
Martelando que esse é um fenômeno quase que “natural”, já não se discute o capitalismo – veja
bem, “racionalisticamente”, se discute, sim, como diz a vovó, “até escumar o canto da boca”, mas
as discussões, ao menos as que nos chegaram até o momento que escrevemos, são tão bisonhamente
“coerentes” que seriam risíveis se o quadro não fosse trágico.
“Mas se o quadro é trágico, onde vocês enxergam motivo para se alegrarem, seus
insanos?”. Talvez você esteja se perguntando isso. Pois bem, o motivo para alegria é este: no afã de
7 Segundo o próprio livro, “uma espécie de ‘globalização 2.0’” (Sirkin, 2008) 8 Novo eufemismo para “Terceiro Mundo”. Mas é um desenvolvimento rápido para quem?
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produzir o discurso para naturalizar essa “nova ordem mundial” de hegemonias bem tradicionais, a
“última e única via” – a velha direita política – se apropriou de ideais e discursos da “velha
esquerda” acoplando-os em seus textos oficiais como se fossem mera retórica embelezante,
obsedante. Senhoras e senhores! Os poderes hegemônicos brasileiros estão dando um tiro no
próprio pé! Vocês acompanharam os trechos do CONAE e do Indagações Sobre o Currículo que
foram transcritos acima. Viram como são explícitos os conteúdos acerca de justiça social,
democracia participativa, humanização, transdiciplinaridade, superação da cultura seletiva, etc. Não
podia ser para menos, “a obrigação da escola [não] é formar pessoas autônomas – capazes, enfim,
de compreender de modo abrangente o mundo em que vivem”? É! Sim, ministro! É, e muitíssimo
obrigada por essas palavras! Elas simplesmente realizam todos os ideais utópicos das “antigas
esquerdas”. Agora, na atualidade!
Não é irônico? Exatamente quando todas as utopias, “sonhos” de justiça social, foram
sopradas para fora de qualquer um de nossos anteriores horizontes de expectativas, como folhas
ressequidas pelo impetuoso vento capitalista da “realidade”; quando julgamo-nos verdadeiros órfãos
das utopias, e a melancolia nos arrebata o espírito que se resigna ao “fazer o quê? É isso aí...”; na
esteira desse luto, o MEC lança os textos acima apresentados cobrando-nos uma postura! Quando
deixamos de procurar no horizonte a possibilidade da realização da felicidade vivenciada como
ausência, como realização num além, que, como diz Sousa (2004), dilata o futuro em detrimento do
presente, “um dia vai melhorar!”, o próprio governo nos brinda com a possibilidade dessa
realização de nossas mais sublimes aspirações agora e aqui. Hoje!
Claro! Temos consciência de que esse é um jogo eminentemente imaginário para mudar a
tônica dos dispositivos sociais de interpretação dos textos governamentais. Em vez de enxergá-los
como “letra morta”, retórica, “obedeço pero no cumplo”, que tal se enxergássemos a abertura no
espaço, no tempo, na institucionalidade, na rotina, no senso comum e na melancolia que a
cooptação do conteúdo dos discursos da “antiga esquerda” traz consigo? Exercício de imaginação
que realiza o real. Luto? Não! Mil vezes não! Se há uma coisa que nunca pode ser batida de todo
é uma certa “chama secreta” que aquece a vontade de todos aqueles que, a partir de uma posição
de subalternidade social, tão somente ouvem o sussurrar de palavras como “democracia”,
“equidade”, “justiça”, Res-pública, e sabem o que isso significa. Os mais de 30.000 comunardos
assassinados pelo governo de Thiers durante a Semana Sangrenta que se seguiu à Comuna de
Paris em 1871 que o digam. Mas essa é história de uma “velha esquerda”. Hoje, é no discurso
governamental em que encontramos os ideais perseguidos de outrora (perseguidos tanto por
esquerdas quanto por direitas, mas em sentidos bem diferentes...). Algumas palavras
simplesmente não podem ser usadas, de modo algum, em intrincados jogos de retórica sem
consequências. E se alguém acreditar nelas?
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Pois é, não sabemos se foi com tal intuito que os nossos amigos do MEC escreveram o que
escreveram, mas a questão é que acreditamos no que escreveram! Não tomaremos esses
documentos como “letra morta”! Não! E Evocamos aos educadores que também não o façam.
Evocamos, aos que de modo melancólico ainda sentem “saudades” dos tempos de outrora, quando
“havia pelo que lutar”. Que se inteirem dessa situação paradoxal, contraditória mesmo, na qual dois
discursos – por um lado uma globalização hegemônica escamoteada, por outro uma humanização
democrática maquiada – trabalham para sustentar um único imaginário tirânico. Isso vai soar
estranho, mas: educadores, trabalhemos no sentido de simplesmente “cumprir as aspirações do
Estado”! Eis aí uma frase deveras interessante... Compreender a globalização através do específico
das geometrias do poder, possibilitada na atitude de uma ontologia crítica de nós mesmos, reforça
sua politização para além dos termos de “a favor” ou “contra” ela; o que abre o espaço-tempo
institucionalizado para colocar a questão em torno dos termos de “para que ela serve?” (e para
quem?) e “qual a forma que irá tomar?” (Massey, 2008). Antes que nos esqueçamos, fica a
recomendação à leitura do texto Sistemas de Ensino e Planos de Educação – o âmbito dos
municípios (1999) de Demerval Saviani. Saviani rastreia, entre as intrincadas ambiguidades do texto
constitucional e do texto da LDB, as bases para sustentar a autonomia na elaboração dos planos
municipais de educação. Para resumir, um artigo genial na medida em que indica uma via
alternativa para a descentralização, transparência e revisão do caráter propedêutico na concepção do
currículo escolar.
Agora, querem um exemplo da contradição dos discursos em andamento na naturalização
do processo de globalização e decorrente vinculação da escola ao mundo do trabalho?
Acompanhem os dois textos que transcreveremos. O primeiro é um trecho da entrevista com
Haddad, o segundo é uma citação do livro, já citado acima, Globalidade – a nova era da
globalização: como vencer num mundo em que se concorre com todos, por tudo e em toda parte
(Sirkin, 2008), passagem na qual é descrita a ZTE, maior fabricante de equipamentos para redes de
telecomunicações sem fio da China:
* (...) os colégios nota 10 (...) têm variadas formas de incentivar as famílias a participar mais da
rotina escolar dos filhos.
* “Nosso pessoal local geralmente trabalha de 12 a 14 horas por dia. Isso parece terrível para os
nossos concorrentes.” Um gerente americano de uma fábrica de propriedade americana em
Shenzhen disse a James Fallows, o editor da Atlantic: “as pessoas aqui trabalham com afinco. São
jovens. São rápidas. Não tem isso de ‘tenho de ir buscar meus filhos’ que você ouve nos Estados
Unidos.”
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Queremos levar adiante nossas ponderações. Deixamos em suas mãos essas duas citações
para serem desdobradas. Acrescentaremos, ainda, estas palavras de Stein:
Podemos dizer que nesta época dos filósofos e dos teóricos pós-modernos, nesta época que já é pós-nietzschiana, que é um tempo que enfrentamos coisas com as quais Nietzsche nem sonhava, que nesse tempo nós ao menos somos obrigados a encontrar ou a buscar uma certa coerência conosco mesmos. Uma coerência que talvez não seja nem uma coerência de quem é o dono da verdade, mas que tem a segurança de que aquilo que se diz não é maximamente racional, mas uma espécie de coerência de querer, ao menos, não ser totalmente contraditório. (Stein, 1996)
Ponderemos agora, rapidamente, o discurso de vinculação da escola, em seu caráter de
instituição – ou seja, aquilo que está fixado pelo consenso da tradição como tendo já assumido, num
tempo imemorial, a forma “real” possível (única em suas premissas) para sua ordenação – ao
mundo do trabalho. Acompanhemos as leituras seguintes:
Documento do CONAE:
* 260- A articulação entre justiça social, educação e trabalho – que leve em consideração a
inclusão, a diversidade e a igualdade – precisa ser mais do que uma frase retórica. Em uma
sociedade democrática, ela se cumpre por meio da vivência cotidiana da democracia, do exercício
da cidadania e representa a participação de um número cada vez maior de pessoas, de forma
equânime, da garantia dos direitos sociais (dentre eles, a educação), da justa distribuição de renda
ou riqueza. Uma democracia que não nega e nem se opõe à diversidade, antes, a incorpora como
constituinte das relações sociais e humanas – e, ainda, se posiciona na luta pela superação do trato
desigual dado à diversidade ao longo da nossa história econômica, política e cultural.
LDB:
* Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica [níveis fundamental e médio] observarão,
ainda, as seguintes diretrizes:
I- a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos
cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática;
II- consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento;
III- orientação para o trabalho;
IV- promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não-formais.
Nosso argumento: cremos que a organização tradicional da escola brasileira, apreensível
tanto na formatação de seu currículo efetivo quanto de seu currículo oculto, privilegia um ensino
29
que se limita aos critérios de adequação à eficiência e a produtividade humana balizada por uma
interpretação particular (redutora) do behaviorismo ortodoxo9. Para o discurso neoliberal, partidário
da “globalidade”, que encontra espaço para sua fundamentação e atuação a partir de leituras
específicas dos textos da constituição e da LDB e sustentação ideológica na manutenção acrítica de
determinados imaginários sociais, a realização última da instituição escolar se dá na produção de
novos contingentes de mão de obra apta a ingressar no mercado de trabalho.
(...) podemos mesmo dizer que os professores reforçam essas desigualdades através do que ensinam; da forma que o fazem e a forma como avaliam. A avaliação – ou antes, classificação – é a única forma de diferenciar e estratificar de acordo com as normas da divisão social do trabalho (Apple, 1990, Hextall, 1976). A avaliação é portanto, a forma que o poder vigente nas sociedades ocidentais encontraram para exercer o controle social, criando rótulos de acordo com as «competências» que cada estudante revela, neste jogo de cartas viciadas à partida. Assim, são criados, dentro de cada sala de aula, pequenos ghettos, passando estes «outcasts» a serem encarados como detentores de alguma espécie de deficiência cultural ou genética que não pode ser corrigida. Este modelo redutor da educação obriga-nos a questionar o porquê de o insucesso atingir sempre os mesmos grupos. Romanticamente atribuímos sempre as mesmas razões: falta de trabalho; falta de interesse; falta de atenção… parece ser preferível atribuir as culpas ao outro (Apple, 1990), porque os métodos; os conteúdos e todas as orientações que são pedidas aos docentes, são escrupulosamente seguidas. Como expõe já João Formosinho (1987), o currículo uniforme é insensível às características, necessidades e interesses dos alunos, porque se operacionaliza perante uma amostra variada, sendo assim, é provável que os alunos com maior diversidade ao nível dos interesses e aptidões sejam os mais prejudicados. (Paraskeva, 2006. resenhado por Pereira, 2007)
Concordamos com o artigo 260 do CONAE que diz que articulação entre justiça social,
educação e trabalho (...) precisam ser mais do que uma frase retórica. Mas como romper esse já
tão conhecido modelo que teima em se apresentar como “realidade coerente”? Poderíamos exercitar
nossa imaginação no sentido de conceber o novo em matéria de currículo escolar? Não só
poderíamos (devemos!), como socializaremos dois exemplos deste exercício de imaginação que
comprovam que um novo modelo escolar é não apenas possível como também deliciosamente
desejável.
Os dois modelos aos quais nos referimos são: a Escola da Ponte, instituição portuguesa, e o
Projeto Lumiar, brasileiro. Para terem uma noção rápida, por favor, acessem:
Escola da Ponte: http://www.feg.unesp.br/~saad/educacao/Rubem_alves_escola_da_ponte.doc
Projeto Lumiar10: http://www.lumiar.org.br/
E se imaginássemos uma escola que, em vez de formar com vistas somente ao “mundo do
trabalho”, acompanhasse o educando numa efetiva formação cidadã? E se colocássemos como meta
da escola não deixar o “aluno” à soleira da porta de seu trabalho, mas, antes, no átrio da prefeitura
9 Remete às primeiras ideias do pensamento behaviorista com Watson. 10 Confiram também: http://escolalumiar.spaces.live.com/blog/cns!676CFE0DA5A06122!125.entry?sa=124822349
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de seu município? Algum pai preocupado nos perguntaria: mas a grande questão é o “trabalho”, não
é? Formemos uma geração de cidadãos cientes de seus direitos e deveres e tiremos a prova se estes
– com o apoio da mesma escola que os educou, pois agora ela seria mais do que apenas uma
construção no bairro, seria um certo tipo de ágora ao serviço da construção de sua comunidade –,
pela via da democracia direta e sensata que aprenderam a aprender com seus professores, não só
garantirão trabalho digno, como também saúde gratuita de qualidade, saneamento básico, segurança
pública, espaços para fomento da arte, esporte, lazer; resumindo: qualidade de vida por meio de
uma gestão participativa do bem público (reduzindo as possibilidades de corrupção) e um senso
responsável de pertença às relações humanas que mantém o mundo – o seu mundo-da-vida.
Mas será uma tarefa difícil tentar manter as vias do debate democrático abertas se o
próprio ministro afirma que “no governo não se tem o tempo dos anjos para definir rumos. Se
esperasse por um consenso geral, talvez fosse mais popular, mas certamente não sairia do lugar”.
Podemos tomar sua opinião como um convite para a superação dessa atual organização
institucionalizada do modelo político em Estado-nação, se este efetivamente não é capaz de garantir
os fazeres de uma autêntica democracia que tem, no infindável debate e discordância, a sua
“essência” mesma (Massey, 2008). Mas uma coisa de cada vez, por mais que acreditemos que
realizar essa escola pretendida nos novos documentos oficiais é o mesmo que já trabalhar na
dissolução deste e de inúmeros outros imaginários.
Este texto é um aviso: nós acreditamos e estamos lutando contra nossa própria rotina,
tentando enxergar nela as “linhas de indução hegemônicas” que dão vazão à re-produção da
desumanização, da inautenticidade. Avisamos que dói, é trabalhoso e não dá para constar no
currículo, mas vale cada fibra de si devotada nesse processo para dar um novo sentido vivo e eficaz
de humanidade à Terra. É um aviso para aqueles que intentam abortar as possibilidades de outras
sociabilidades e sensibilidades na construção crítica de nossa humanidade em detrimento das
relações assimétricas de poder que compõem a “moral e os bons costumes” de um senso comum
cooptado. Infelizmente há muitos destes, e alguns sem o sabê-lo. Nada que um bom diálogo e um
Cuidado (sorge) no estar-junto, por parte daquele que intenta assumir uma atitude de ontologia
crítica de si, para além da dicotomia política simplista direita/esquerda, não dê jeito. Este texto tenta
estar contemporâneo de sua atualidade. Não vamos dizer que ele é um ato de heroísmo porque essa
é uma atribuição que só pode ser feita a posteriori. O corajoso e o temerário partem do mesmo
impulso para realizar o ato que os nomeará. “Se a coisa dá certo”, chamam-lhe corajoso. Agora, do
contrário, “se dá errado” o sujeito costuma passar à história como um temerário. Não tememos os
rótulos. Contra a sensatez, contra o afinco na construção de um conhecimento prudente para uma
vida decente, não há argumento de inautenticidade que se mantenha. Aquele que tenta, acaba por se
mostrar, ou apreensivo de perder uma posição que lhe garante um ganho a expensas do sistema
31
vigente, ou insensível para o quanto de humanidade e de crescimento mútuo nós podemos
experimentar se assim nos permitirmos. Para as primeiras pessoas, agora temos a lei ao nosso lado
que nos admoesta a seguir pensando e agindo efetivamente na transformação dos fazeres
institucionais escolares, para as segundas, temos o diálogo aberto, e quando este falha, a paciência
na certeza de que “se eu tão somente puder tocá-lo por esta vivência...”.
Já dissemos, não haverá conclusão. Nós e vocês concluímos, de fato, por meio da práxis.
Bem, além da maioria dos autores que neste texto foram citados, os quais, achamos, dividem
conosco alguns dos pontos não tão ortodoxos acima apresentados, saibam vocês que podem contar
com ao menos mais duas pessoas nessa empreitada. Tomar parte na educação constituidora de
alguém é, sempre, um caminho de mão dupla. Crescemos juntos11.
De Que Serve A Bondade – Bertold Brecht
1
De que serve a bondade
Se os bons são imediatamente liquidados,ou são liquidados
Aqueles para os quais eles são bons?
De que serve a liberdade
Se os livres têm que viver entre os não-livres?
De que serve a razão
Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam?
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Em vez de serem apenas bons, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade
Ou melhor: que a torne supérflua!
Em vez de serem apenas livres, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que liberte a todos
E também o amor à liberdade
Torne supérfluo!
Em vez de serem apenas razoáveis, esforcem-se
11 Agradecemos à poetisa Dheyne de Souza pela correção do texto e aos organizadores do livro. Obrigado por não retrocederem.
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Para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo
Um mau negócio.
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Sapere Aude!
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REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
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