No famosoensaiodeabertura,"Asidias
forado lugar",RobertoSchwarzrefletesobrea comdiaideolgicanacionalrepresentadapeladisparidadeentreasociedadeescravistaeasidiasdo liberalismoeuropeu.Desteolhartericomaisamplo,passa,nosegundoensaio, anlisedetalhadadeSenhora,apontandoascontradiesdaficodeAlencar.Fechaovo-
lume umalongareflexosobrea prticadofavoreosprimeirosromancesdeMachadodeAssis:A moea luva, Helena eIai Garcia.
Um dospontosd~partidadestelivro foio resgatecrticodoprocessohistricoarmadoporAntonioCandidonaFormaoda literatu-ra brasileira:oestudodasrelaesentreforma
literriaeprocessosocialnosinciosdoroman-cebrasileiro.Publicadoem1977,Ao vencedor
asbatatasprovocouumareviravoltanacrtica
machadiana.Visto emperspectivahistrica,conferiufeionovaaoensasmodeesquerda,por seualto graude originalidadee grandepoderdefogo.
rn:J Livrariarn:J Duas Cidades
editora.34
ISBN 85-7326-169-2
111111111" 11111111111111111119 788573261691
ColeoEsprito Cdlil:o
DuasCidadesEditora34
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AO VENCEDORAS BATATAS
LivrariaDuasCidadesLtda.
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SoPaulo- SP Brasil Tel/Fax(lI) 3331-5134
Editora34Ltda.
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Copyright DuasCidades/Editora34,2000
Ao vencedoras batatasRobertoSchwarz,1977
A fotocpiadequalquerfolhadestelivro ilegaleconfigurauma
apropriaoindevidadosdireitosintelectuaisepatrimoniaisdo autor.
Capa,projetogrficoeeditoraoeletrnica:
Bracher6-Malta Produo Grfica
Reviso:
Mara Valles
IracemaAlvesLazari
AlexandreBarbosadeSouza
5aEdio- 2000(3aReimpresso- 2007)
CatalogaonaFontedo DepartamentoNacionaldoLivro
(FundaoBibliotecaNacional,RI, Brasil)
Schwarz,Roberto,1938
S5411a Ao vencedorasbatatas:formaliterriaeprocessosocialnosinciosdo romancebrasileiro/ Roberto
Schwarz.- SoPaulo:DuasCidades;Ed. 34, 2000.
240p. (ColeoEspritoCrtico)
ISBN 8573261692
1.Alencar,Josde,18291877. Crtica e
interpretao.2.Assis,Machadode,18391908.
Crtica e interpretao.3. Ficobrasileira- Histriaecrtica. L Ttulo. lI.Srie.
CDD B869.3
ndice
I. As idiasforado lugar
lI. A importaodo romanceesuascontradiesemAlencar
llI. O paternalismoeasuaracionalizaonosprimeirosromancesdeMachadodeAssis1.Generalidades .2. A moea luva / \ .
i 'I
3.Helena J. 4. Iai Garcia .
ndiceonomstico.Sobreoautor .
"!O
9
33
8395
117151
233235
~;gt
Toda cinciatemprincpios,dequederivao seusistema.Um dosprincpiosdaEconomiaPolticao trabalholivre.Ora,
noBrasildominao fato"impolticoeabominvel"daescravido.Esteargumento- resumodeumpanfletoliberal,contem-
porneodeMachadodeAssis1- peforao Brasildo sistemada cincia.Estvamosaqumdarealidadea queestaserefere;ramosantesum fatomoral,"impolticoeabominvel".Gran-dedegradao,considerando-sequea cinciaeramasLuzes,oProgresso,aHumanidadeetc.Paraasartes,Nabucoexpressaumsentimentocomparvelquandoprotestacontrao assuntoescra-
vonoteatrodeAlencar:"Seissoofendeo estrangeiro,comonohumilhao brasileiro!"2.Outrosautoresnaturalmentefizeramo
raciocnioinverso.Uma vezquenosereferemnossarealida-
de,cinciaeconmicaedemaisideologiasliberaisqueso,elassim,abominveis,impolticaseestrangeiras,almdevulnerveis.
1A. R. deTorresBandeira,"A liberdadedo trabalhoeaconcorrncia,seu
efeito,soprejudiciais classeoperria?",inO Futuro,nO9,15/01/1863.Macha-do eracolaboradorconstantenestarevista.
2 A polmicaAlencar-Nabuco(organizaoe introduodeAfrnio Cou-
tinho),Rio deJaneiro,TempoBrasileiro,1965,p. 106.
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Ao vencedor as batatas
"Antesbonsnegrosdacostadafricaparafelicidadesuaenos-sa,a despeitode todaa mrbidafilantropiabritnica,que,es-quecidadesuaprpriacasa,deixamorrerde fomeo pobreir-mobranco,escravosemsenhorquedelesecompadea,ehip-critaou estlidachora,expostaaoridculodaverdadeirafilan-
tropia,o fadodenossoescravofeliz".3Cadaum aseumodo,estesautoresrefletemadisparidade
entreasociedadebrasileira,escravista,easidiasdo liberalismo
europeu.Envergonhandoauns,irritandoaoutros,queinsistemnasuahipocrisia,estasidias- emquegregose troianosnoreconhecemoBrasil- sorefernciasparatodos.Sumariamenteestmontadaumacomdiaideolgica,diferentedaeuropia.
claroquealiberdadedotrabalho,aigualdadeperantealeie,demodogeral,o universalismoeramideologianaEuropatambm;masl correspondiamsaparncias,encobrindoo essencial-aexploraodotrabalho.Entrens,asmesmasidiasseriamfalsasnumsentidodiverso,porassimdizer,original.A DeclaraodosDireitosdoHomem,porexemplo,transcritaempartenaCons-tituioBrasileirade1824,nosnoescondianada,comotor-
navamaisabjetoo institutodaescravido.4A mesmacoisaparaaprofessadauniversalidadedosprincpios,quetransformavaemescndaloa prticageraldofvor.Que valiam,nestascircuns-tncias,asgrandesabstraesburguesasqueusvamostanto?Nodescreviamaexistncia- masnemsdissovivemasidias.Re-
3 Depoimentodeumafirmacomercial,M. Wrighr&Cia., comrespeitocrisefinanceiradosanos50.CitadoporJoaquimNabuco,Um estadistado Imp-
rio, vol. I, SoPaulo,1936,p. 188,eretomadopor S.B. deHolanda,Raizesdo
Brasil, Rio deJaneiro,JosOlympio,1956,p. 96.
4 E. Viotti daCosta,"Introduoaoestudodaemancipaopoltica",in
C. G. Mata (org.),Brasil emperspectiva,SoPaulo,Difel, 1968.
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GS
As idias fora do lugar
fletindoemdireoparecida,SrgioBuarqueobserva:"Trazen-do depasesdistantesnossasformasdevida,nossasinstituiese nossavisodo mundoe timbrandoemmantertudoissoem
ambientemuitasvezesdesfavorvelehostil,somosunsdester-
radosemnossaterra"5. Essaimpropriedadedenossopensamento,quenoacaso,comosever,foi defatoumapresenaassdua,atravessandoedesequilibrando,atno detalhe,avidaideolgi-cadoSegundoReinado.Freqentementeinflada,ourasteira,ri-dculaou crua,esraramentejustano tom,aprosaliterriadotempoumadasmuitastestemunhasdisso.
Emborasejamlugar-comumemnossahistoriografia,asra-zesdessequadroforampoucoestudadasemseusefeitos.Como sabido,ramosum pasagrrioe independente,divididoemlatifndios,cujaproduodependiadotrabalhoescravoporumlado,eporoutrodomercadoexterno.Maisoumenosdiretamen-te,vmdaassingularidadesqueexpusemos.Erainevitvel,porexemplo,apresenaentrensdoraciocnioeconmicoburgus- aprioridadedolucro,comseuscorolriossociais- umavezquedominavanocomrciointernacional,paraondeanossaeco-nomiaeravoltada.A prticapermanentedastransaesescolava,nestesentido,quandomenosumapequenamultido.Alm doque,havamosfeitoaIndependnciahpouco,emnomedeidiasfrancesas,inglesaseamericanas,variadamenteliberais,queassimfaziampartedenossaidentidadenacional.Por outrolado,comigualfatalidade,esteconjuntoideolgicoiriachocar-secontraaescravidoeseusdefensores,eo quemais,vivercomeles.6Noplano dasconvices,a incompatibilidade clara,e j vimos
5 S. B. deHolanda,op. cit., p. 15.
6 E. Viotti daCosta,op. cito
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Ao vencedor as batatas
exemplos.Mas tambmnoplanoprticoelasefaziasentir.Sen-doumapropriedade,umescravopodeservendido,masnodes-pedido.O trabalhadorlivre,nesseponto,dmaisliberdadeaseupatro,almde imobilizarmenoscapital.Esteaspecto- umentremuitos- indicao limitequeaescravaturaopunha ra-
cionalizaoprodutiva.Comentandoo queviranumafazenda,umviajanteescreve:"nohespecializaodotrabalho,porqueseprocuraeconomizaramo-de-obra".Ao citarapassagem,F.H. Cardosoobservaque"economia"nosedestinaaqui,pelocontexto,a fazero trabalhonum mnimodetempo,masnum
mximo. precisoespich-Io,afim deencheredisciplinaro diadoescravo.O opostoexatodoqueeramodernofazer.Fundadanaviolnciaenadisciplinamilitar,aproduoescravistadependiadaautoridade,maisquedaeficcia?O estudoracionaldopro-cessoprodutivo,assimcomoa suamodernizaocontinuada,comtodoo prestgioquelhesadvinhadarevoluoqueocasio-navamnaEuropa,eramsempropsitono Brasil.Paracompli-caraindao quadro,considere-sequeo latifndioescravistaha-viasidonaorigemumempreendimentodocapitalcomercial,equeportantoo lucrofradesdesempreo seupiv.Ora, o lucrocomoprioridadesubjetiva comumsformasantiquadasdocapitalesmaismodernas.De sortequeosincultoseabomin-veisescravistasatcertadata- quandoestaformadeproduoveioasermenosrentvelqueo trabalhoassalariado- foramnoessencialcapitalistasmaisconseqentesdo quenossosdefenso-resdeAdamSmith,quenocapitalismoachavamantesquetudoaliberdade.Est-sevendoqueparaavidaintelectualo n esta-
7 F. H. Cardoso,Capitalismoeescravido,SoPaulo,Difel, 1962,pp.189-91e 198.
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[;.$
As idias fora do lugar
vaarmado.Em matriaderacionalidade,ospapisseembara-lhavametrocavamnormalmente:acinciaerafantasiaemoral,
o obscurantismoerarealismoeresponsabilidade,a tcnicanoeraprtica,o altrusmoimplantavaa mais-valiaetc.E, dema-
neirageral,naausnciado interesseorganizadodaescravaria,o
confrontoentrehumanidadeeinumanidade,porjustoquefos-se,aCilbavaencontrandoumatraduomaisrasteirano conflito
entredoismodosdeempregaroscapitais- do qualeraa ima-gemqueconvinhaaumadaspartes.8
Impugnadaa todoinstantepelaescravidoa ideologiali-beral,queeraadasjovensnaesemancipadasdaAmrica,des-carrilhava.Seriafcil deduziro sistemadeseuscontra-sensos,
todosverdadeiros,muitosdosquaisagitaramaconscinciate-ricae moraldenossosculoXIX. J vimosumacoleodeles.No entanto,estasdificuldadespermaneciamcuriosamenteines-senciais.O testedarealidadenopareciaimportante. comosecoernciaegeneralidadenopesassemmuito,ou comoseaes-
ferada culturaocupasseumaposioalterada,cujoscritriosfossemoutros- masoutrosemrelaoa qu?Por suamerapresena,aescravidoindicavaaimpropriedadedasidiaslibe-rais;o queentretantomenosqueorientar-Iheso movimento.Sendoemboraarelaoprodutivafundamental,aescravidonoerao nexoefetivodavidaideolgica.A chavedestaeradiversa.
Paradescrev-Iaprecisoretomaro pascomotodo.Esquema-tizando,pode-sedizerqueacolonizaoproduziu,combaseno
8 ConformeobservaLuiz FelipedeAlencastroemsuatesededoutorado,
O tratodosviventes:trdficodeescravose 'FaxLusitana' noAtlntico Sul, sculosXVI-
XlX(UniversidadedeParis,Nanterre,1985-1986),averdadeiraquestonacio-
naldenossosculoXIX foi adefesado trficonegreirocontraapressoinglesa.
Uma questoquenopodiasermenospropciaaoentusiasmointelectual.
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Ao vencedor as batatas
monopliodaterra,trsclassesdepopulao:o latifundirio,oescravoe o "homemlivre",na verdadedependente.Entre osprimeirosdoisa relaoclara, a multidodosterceirosquenosinteressa.Nemproprietriosnemproletrios,seuacessovidasocialeaseusbensdependematerialmentedofavor,indiretooudireto,deumgrande.9O agregadoasuacaricatura.O favor,portanto,omecanismoatravsdoqualsereproduzumadasgran-desclassesdasociedade,envolvendotambmoutra,a dosquetm.Note-seaindaqueentreestasduasclassesqueiraconte-ceravidaideolgica,regida,emconseqncia,por estemesmomecanismo.10Assim,commil formasenomes,o favoratraves-
soueafetouno conjuntoaexistncianacional,ressalvadasem-prearelaoprodutivadebase,estaasseguradapelafora.Este-vepresentepor todaparte,combinando-sesmaisvariadasati-vidades,maisemenosafinsdele,comoadministrao,poltica,indstria,comrcio,vidaurbana,Corteetc.Mesmoprofissesliberais,comoa medicina,ou qualificaesoperrias,comoatipografia,que,naacepoeuropia,nodeviamnadaaningum,entrenseramgovernadaspor ele.E assimcomoo profissionaldependiado favorparao exercciodesuaprofisso,o pequenoproprietriodependedeleparaaseguranadesuapropriedade,eo funcionrioparao seuposto.Ofavora nossamediaoqua-seuniversal- esendomaissimpticodoqueo nexoescravista,aoutrarelaoqueacolnianoslegara,compreensvelqueos
9 Paraumaexposiomaiscompletadoassunto,MariaSylviadeCarvalho
Franco,Homenslivresna ordemescravocrata,SoPaulo,InstitutodeEstudosBra-
sileiros,1969.
10Sobreosefeitosideolgicosdolatifndio,verocapomdeRaizesdoBra-si~"A heranarural".
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I~
J
I
II
tis:
As idias fora do lugar
escritorestenhambaseadonelea suainterpretaodo Brasil,involuntariamentedisfarandoaviolncia,quesemprereinouna
esferadaproduo.O escravismodesmenteasidiasliberais;maisinsidiosa-
menteo favor,toincompatvelcomelasquantoo primeiro,asabsorveedesloca,originandoumpadroparticular.O elemen-to dearbtrio,o jogo fluido deestimaeauto-estimaaqueo fa-vor s~bmeteo interessematerial,nopodemserintegralmenteracionalizados.Na Europa,aoatac-Ios,o universalismovisarao privilgiofeudal.No processodesuaafirmaohistrica,aci-vilizaoburguesapostularaaautonomiadapessoa,auniversa-lidadedalei,aculturadesinteressada,aremuneraoobjetiva,aticadotrabalhoetc.- contraasprerrogativasdoAncienRgime.O favor,pontoporponto,praticaadependnciadapessoa,aex-ceoregra,aculturainteressada,remuneraoeserviospes-soais.Entretanto,noestvamosparaa Europacomoo feuda-lismoparao capitalismo,pelocontrrio,ramosseustributriosemtodalinha,almdenotermossidopropriamentefeudais-acolonizaoumfeitodocapitalcomercial.No fastgioemqueestavaela,Europa,enaposiorelativaemqueestvamosns,ningumno Brasilteriaa idiaeprincipalmenteaforadeser,digamos,umKant do favor,parabater-secontrao outro.I 1 Demodoqueoconfrontoentreessesprincpiostoantagnicosre-sultavadesigual:nocampodosargumentosprevaleciamcomfa-cilidade,oumelhor,adotvamossofregamenteosqueaburgue-siaeuropiatinhaelaboradocontraarbtrioeescravido;enquan-
11 Como observaMachadodeAssis,em 1879,"o influxoexterno que
determinaa direodo movimento;nohpor orano nossoambiente,a fora
necessria invenodedoutrinasnovas".Cf. "A novagerao",Obra completa,
vo!.m,Rio deJaneiro,Aguilar,1959,pp.826-7.
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"'Ao vencedor as batatas
to naprtica,geralmentedosprpriosdebatedores,sustentadopelolatifndio,o favorreafirmavasemdescansoossentimentoseasnoesemqueimplica.O mesmosepassanoplanodasins-tituies,por exemplocom burocraciae justia,queemboraregidaspeloclientelismo,proclamavamasformase teoriasdoestadoburgusmoderno.Alm dosnaturaisdebates,esteanta-gonismoproduziu,portanto,umacoexistnciaestabilizada-queinteressaestudar.A anovidade:adotadasasidiase razeseuropias,elaspodiamserviremuitasvezesserviramdejustifica-o,nominalmente"objetiva':para o momentodearbtrioquedanaturezadojvor.Semprejuzodeexistir,o antagonismosedesfazemfumaaeosincompatveissaemdemosdadas.Estarecomposio capital.Seusefeitossomuitos,e levamlongeemnossaliteratura.De ideologiaquehaviasido- isto, en-ganoinvoluntrioebemfundadonasaparncias- o liberalis-mo passa,na faltadeoutrotermo,a penhorintencionaldumavariedadedeprestgioscomquenadatemaver.Ao legitimaroarbtriopormeiodealgumarazo"racional",o favorecidocons-cientementeengrandeceasieaoseubenfeitor,quepor suaveznov,nessaeradehegemoniadasrazes,motivoparadesmen-ti-Io. Nestascondies,quemacreditavanajustificao?A queaparnciacorrespondia?Masjustamente,noeraesteo proble-ma,poistodosreconheciam- e istosimeraimportante- aintenolouvvel,sejadoagradecimento,sejado favor.A com-pensaosimblicapodiaserumpoucodesafinada,masnoeramal-agradecida.Ou por outra,seriadesafinadaem relaoaoLiberalismo,queerasecundrio,ejustaemrelaoaofavor,queeraprincipal.E nadamelhor,paradarlustrespessoase so-ciedadequeformam,doqueasidiasmaisilustresdotempo,nocasoaseuropias.Nestecontexto,portanto,asideologiasnodescrevemsequerfalsamentearealidade,enogravitamsegun-do umaleiquelhessejaprpria- por issoaschamamosdese-
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As idias fora do lugar
gundograu.Suaregraoutra,diversadaquedenominam;daordemdo relevosocial,emdetrimentodesuaintenocogni-
tiva e de sistema.Derivasossegadamentedo bvio,sabidodetodos- dainevitvel"superioridade"daEuropa- eliga-seao
momentoexpressivo,de auto-estimae fantasia,queexistenofavor.Nestesentidodizamosqueo testedarealidadeedacoe-
rnciapoparecia,aqui,decisivo,semprejuzodeestarsempre
presentecomoexignciareconhecida,evocadaoususpensacon-formeacircunstncia.Assim,commtodo,atribui-seindepen-
dncia dependncia,utilidadeaocapricho,universalidadesexcees,mritoaoparentesco,igualdadeaoprivilgioetc.Com-binando-seprticadeque,emprincpio,seriaacrtica,o Li-beralismofaziacomqueo pensamentoperdesseo p.Retenha-
seno entanto,paraanalisarmosdepois,a complexidadedesse
passo:aotornarem-sedespropsito,estasidiasdeixamtambmdeenganar.
claroqueestacombinaofoi umaentreoutras.Paraonossoclimaideolgico,entretanto,foidecisiva,almdeseraquela
emqueosproblemasseconfiguramdamaneiramaiscompletae diferente.Por agorabastemalgunsaspectos.Vimos quenelaasidiasdaburguesia- cujagrandezasbriaremontaaoesp-
rito pblicoe racionalistadaIlustrao- tomamfunode...ornatoe marcadefidalguia:atestame festejama participao
numaesferaaugusta,no casoadaEuropaquese... industrializa.
O qiproqudasidiasnopodiasermaior.A novidadenocasonoestno carterornamentaldesaberecultura,quedatra-
diocolonialeibrica;estnadissonnciapropriamenteincr-
velqueocasionamo sabereaculturadetipo "moderno"quan-do postosnestecontexto.Sointeiscomoum berloque?Sobrilhantescomoumacomenda?Seroanossapanacia?Enver-
gonham-nosdiantedo mundo?O maiscerto quenasidasevindasdeargumentoe interessetodosestesaspectostivessem
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Ao vencedor as batatas
ocasiodesemanifestar,demaneiraquenaconscinciadosmaisatentosdeviamestarligadosemisturados.Inextricavelmente,a
vidaideolgicadegradavae condecoravaosseusparticipantes,entreosquaismuitasvezeshaveriaclarezadisso.Tratava-se,por-tanto,deumacombinaoinstvel,quefacilmentedegeneravaemhostilidadeecrticaasmaisacerbas.Paramanter-seprecisadecumplicidadepermanente,cumplicidadequeaprticadofavortendeagarantir.No momentodaprestaoedacontraprestao- particularmenteno instante-chavedo reconhecimentorec-
proco- anenhumadaspartesinteressadenunciaraoutra,ten-
doemboraatodoinstanteoselementosnecessriosparafaz-Io.Estacumplicidadesemprerenovadatemcontinuidadessociaismaisprofundas,quelhedopesodeclasse:no contextobrasi-
leiro,o favorasseguravasduaspartes,emespecialmaisfraca,dequenenhumaescrava.Mesmoo maismiserveldosfavore-
cidosviareconhecidanele,nofavor,asualivrepessoa,oquetrans-formavaprestaoecontraprestao,por modestasquefossem,numacerimniadesuperioridadesocial,valiosaemsi mesma.
Lastreadopeloinfinito dedurezaedegradaoqueesconjurava- ou sejaaescravido,dequeasduaspartesbeneficiametim-bramemsediferenar- estereconhecimento deumaconi-
vnciasemfundo,multiplicada,ainda,pelaadoodo vocabu-lrio burgusda igualdade,do mrito,do trabalho,da razo.
MachadodeAssissermestrenestesmeandros.Contudoveja-setambmoutrolado.Imersosqueestamos,aindahoje,nouniversodo Capital,quenochegoua tomarformaclssicano Brasil,
tendemosaverestacombinaocomointeiramentedesvantajosaparans,compostasdedefeitos.Vantagensnohdetertido;masparaapreciardevidamenteasuacomplexidadeconsidere-se
queasidiasdaburguesia,aprincpiovoltadascontrao privil-gio,apartirde 1848sehaviamtornadoapologtica:avagadaslutassociaisnauropamostraraqueauniversalidadedisfaraan-
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,
ws;
As idias fora do lugar
tagonismosdeclasse.12Portanto,parabemlhe retero timbreideolgicoprecisoconsiderarqueo nossodiscursoimprprioeraocotambmquandousadopropriamente.Note-se,depas-sagem,queestepadroiriarepetir-senosculoXX, quandoporvriasvezesjuramos,crentesdenossamodernidade,segundoasideologiasmaisrotasdacenamundial.Paraa literatura,comoveremos,resultadaum labirintosingular,umaespciedeocodentrodo oco.Ainda aqui,Machadosero mestre.
Em suma,seinsistimosnovisqueescravismoefavorintro-duziramnasidiasdotempo,nofoiparaasdescartar,masparadescrev-Iasenquantoenviesadas- foradecentroemrelaoexignciaqueelasmesmaspropunham,ereconhecivelmentenos-sas,nessamesmaqualidade.Assim,postodeparteo racioCniosobreascausas,restanaexperinciaaquele"desconcerto"quefoio nossopontodepartida:asensaoqueo Brasilddedualismoefactcio- contrastesrebarbativos,despropores,disparates,anacronismos,contradies,conciliaeseoquefor- combina-esqueo Modernismo,o TropicalismoeaEconomiaPolticanosensinarama considerar.13No faltamexemplos.Vejam-sealguns,menosparaanalis-Ios,queparaindicaraubiqidadedoquadroeavariaodequecapaz.Nasrevistasdotempo,sendograveou risonha,aapresentaodo nmeroinicialcomposta
12G. Lukcs,"MarxunddasProblemdesideologischenVerfalls",in Pro-blemedesRealismus,Werke,vol. IV, Neuwied,Luchterhand.
13 Exploradaemoutralinha,a mesmaobservaoencontra-seemSrgio
Buarque:"Podemosconstruirobrasexcelentes,enriquecernossahumanidadede
aspectosnovoseimprevistos,elevarperfeioo tipodecivilizaoquerepresen-
tamos:o certo quetodoo frutodenossotrabalhoe denossapreguiaparece
participardeumsistemadeevoluoprpriodeoutroclimaedeoutrapaisagem",
op. cit., p. 15.
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Ao vencedor as batatas
parabaixoefalsete:primeiraparte,afirma-seopropsitoredentordaimprensa,natradiodecombatedaIlustrao;agrandeseitafundadaporGuthenbergafrontaa indiferenageral,nasalturasocondoreamocidadeentrevemofuturo,aomesmotempoquerepelemoyassadoeospreconceitos,enquantoa tocharegene-radoradoJornaldesfazastrevasdacorrupo.Na segundaparte,conformando-sescircunstncias,asrevistasdeclaramasuadis-
posiocordata,de"dara todasasclassesemgeraleparticular-mentehonestidadedasfamlias,ummeiodedeleitvelinstruoedeamenorecreio".A intenoemancipadoracasa-secomchara-das,unionacional,figurinos,conhecimentosgeraisefolhetins.14Caricaturadestaseqnciasoosversinhosqueservemdeep-grafe Marmotana Corte:"Eis a Marmota/Bemvariada/P'ra
serdetodos/Sempreestimada'!/ Falaaverdade,!Diz oquesente,!Amaerespeita/A todagente".Se,noutrocampo,raspamosumpoucoos nossosmuros,mesmoefeitodecoisacompsita:"Atransformaoarquitetnicaerasuperficial.Sobreasparedesdeterra,erguidaspor escravos,pregavam-sepapisdecorativoseu-ropeusouaplicavam-sepinturas,deformaacriarailusodeum
ambientenovo,comoosinterioresdasresidnciasdospasesemindustrializao.Em certosexemplos,o fingimentoatingiao ab-surdo:pintavam-semotivosarquitetnicosgreco-romanos- pi-
14Vero "Prospecto"deO Espelho,nO1,Revistasemanaldeliteratura,mo-
das,indstriaseartes,Rio deJaneiro,TypographiadeF. dePaulaBrito, 1859,p.1;"Introduo"daRevistaFluminense,anor,nO1,Semanrionoticioso,literrio,
cientfico,recreativoetc.,etc.,novembrode 1868,pp. 1-2;A Marmota na Corte,
TypographiadeF. dePaulaBrito,07/09/1840,p. 1;RevistaIlustrada, nO1,Rio
deJaneiro,publicadapor ngeloAgostini,01/01/1876;"Apresentao"de O
Bezouro,anoI, nO1,Folhahumorsticae satrica,06/04/1878;"Cavaco",in O
Cabrio, nO1,SoPaulo,Typ. Imperial,1866,p. 2.
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~.~~
As idias fora do lugar
lastras,arquitraves,colunatas,frisasetc.- comperfeiodepers-
pectivaesombreamento,sugerindoumaambientaoneocls-sicajamaisrealizvelcomastcnicasemateriaisdisponveisnolocal.Em outros,pintavam-sejanelasnasparedes,comvistasso-breambientesdo Rio deJaneiro,ou daEuropa,sugerindoum
exteriorlongnquo,certamentediversodo real,dassenzalas,es-cravoseterreirosdeservio"15.O trechorefere-seacasasruraisnaPro~nciadeSoPaulo,segundametadedosculoXIX. Quan-to corte:"A transformaoatendiamudanadoscostumes,
queincluamagorao usodeobjetosmaisrefinados,decristais,louase porcelanas,e formasde comportamentocerimonial,comomaneirasformaisdeservirmesa.Ao mesmotempocon-
feriaaoconjunto,queprocuravareproduziravidadasresidn-ciaseuropias,umaaparnciadeveracidade.Dessemodo, osestratossociaisquemaisbenefciostiravamdeum sistemaeco-nmicobaseadonaescravidoedestinadoexclusivamentepro-
duoagrcolaprocuravamcriar,paraseuuso,artificialmente,ambientescomcaractersticasurbanase europias,cujaopera-
oexigiao afastamentodosescravoseondetudoouquasetudoeraprodutode importao"16.Ao vivo estacomdiaestnosnotveiscaptulosiniciaisdo QuincasBarba.Rubio,herdeirorecente, constrangidoa trocaro seuescravocrioulopor umcozinheirofrancseumcriadoespanhol,pertodosquaisnoficavontade.Alm deouroeprata,seusmetaisdo corao,apre-
ciaagoraasestatuetasdebronze- umFaustoeumMefistfeles- quesotambmdepreo.Matriamaissolene,masigual-
15NestorGoulartReisFilho,Arquitetura residencialbrasileiranosculoXIX
pp. 14-5(manuscrito).
16NestorGoulartReisFilho, op.cit.,p. 8.
23
Ao vencedor as batatas
mentemarcadap.elotempo,aletradenossohino Repblica,escritaem1890,pelopoetadecadenteMedeiroseAlbuquerque.Emoesprogressistasaquefaltav~o natural:"Ns nemcremos
queescravosoutrora/Tenhahavidoemtonobrepas!"(outro-radoisanosantes,umavezqueaAboliode88).Em 1817,numadeclaraodo governorevolucionriode Pernambuco,
mesmotimbre,comintenesopostas:"Patriotas,vossaspro-priedadesindaasmaisopugnantesaoidealdejustiaserosa-gradas".17Refere-seaosrumoresdeemancipao,queerapreci-sodesfazer,paraacalmarosproprietrios.TambmavidadeMa-
chadodeAssisumexemplo,naqualsesucedemrapidamenteo jornalistacombativo,entusiastadas"intelignciasproletrias,dasclassesnfimas",autordecrnicasequadrinhascomemora-tivas,por ocasiodo casamentodasprincesasimperiais,e final-menteo Cavaleiroe maistardeOficial da Ordem da Rosa.18
ContraissotudovaisairacampoSlvioRomero."misterfun-darumanacionalidadeconscientedeseusmritosedefeitos,de
suaforaedeseusdelquios,enoarrumarumpastiche,umar-remedodejudasdasfestaspopularesquesserveparavergonhanossaaosolhosdo estrangeiro.[...] S um remdioexisteparatamanhodesideratum:- mergulharmo-nosna correntevivifi-cantedasidiasnaturalistasemonsticas,quevotransforman-
do o velhomundo."19 distncia toclaraquetemgraaasubstituiodeumarremedopor outro.Mas tambmdram-
17E. Viotti daCosta,op. cit., p. 104.
18 Jean-MichelMassa,A juventude de Machado deAssis,Rio deJaneiro,
CivilizaoBtasileira,1971,pp.265,435,568.
19S.Romero,Ensaiosdecrticaparlamentar, Rio deJaneiro,Moreira,Ma-
ximino& Cia., 1883,p. 15.
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~3
As idias fora do lugar
tica,poisassinalaquantoeraalheiaa linguagemnaqualseex-pressava,inevitavelmente,o nossodesejodeautenticidade.Aopasticheromnticoiria sucedero naturalista.Enfim, nasrevis-tas,noscostumes,nascasas,nossmbolosnacionais,nospronun-ciamentosderevoluo,nateoriaeondemaisfor,sempreames-
macomposio"arlequinal",parafalarcomMrio deAndrade:o desatordoentrearepresentaoeo que,pensando.bem,sabe-mossero seucontexto.- Consolidadaporseugrandepapelnomercadointernacional,emaistardenapolticainterna,acom-binaodelatifndioe trabalhocompulsrioatravessouimp-vidaaColnia,ReinadoseRegncias,Abolio,aPrimeiraRe-pblica,ehojemesmomatriadecontrovrsiaetiros.2oO rit-mo denossavidaideolgica,no entanto,foi outro,tambmeledeterminadopeladependnciadopas:distnciaacompanha-vaospassosdaEuropa.Note-se,depassagem,queaideologiadaindependnciaquevaitransformaremdefeitoestacombina-o;bobamente,quandoinsistenaimpossvelautonomiacultu-ral,eprofundamente,quandorefletesobreo problema.Tantoaeternidadedasrelaessociaisdebasequantoalepidezideol-gicadas"elites"eramparte- apartequenostoca- dagravi-taodestesistemapor assimdizersolar,ecertamenteinterna-cional,que o capitalismo.Em conseqncia,um latifndiopoucomodificadoviu passaremasmaneirasbarroca,neoclssi-caromntica,naturalista,modernistae outras,quenaEuropaacompanharame refletiramtransformaesimensasnaordemsocial.Seriadesuporqueaquiperdessemajusteza,oqueempartesedeu.No entanto,vimosqueinevitvelestedesajuste,aoqual
20 Paraasrazesdestainrcia,verCelsoFurrado,Formaoeconmicado
Brasil, SoPaulo,CompanhiaEditoraNacional,1971.
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Ao vencedor as batatas
estvamoscondenadospelamquinadocolonialismo,eaoqual,paraquej fiqueindicadoo seualcancemaisquenacional,esta-vacondenadaamesmamquinaquandonosproduzia.Trata-seenfimdesegredomui conhecido,emboraprecariamenteteori-zado.Paraasartes,nocaso,asoluoparecemaisfcil,poissem-prehouvemododeadorar,citar,macaquear,saquear,adaptarou devorarestasmaneirasemodastodas,demodoquerefletis-sem,nasuafalha,aespciedetorcicoloculturalemquenosre-conhecemos.Mas,voltemosatrs.Em resumo,asidiasliberais
nosepodiampraticar,sendoaomesmotempoindescartveis.Forampostasnumaconstelaoespecial,umaconstelaopr-tica,aqualformousistemaenodeixariadeafet-Ias.Por isso,poucoajudainsistirnasuaclarafalsidade.Mais interessante
acompanhar-Iheso movimento,dequeela,a falsidade,parteverdadeira.Vimoso Brasil,bastiodaescravatura,envergonha-dodiantedelas- asidiasmaisadiantadasdoplaneta,ouqua-se,poisosocialismojvinhaordemdodia- erancoroso,poisnoserviamparanada.Mas eramadotadastambmcomorgu-lho, de formaornamental,comoprovademodernidadee dis-
tino.E naturalmenteforamrevolucionriasquandopesaramno Abolicionismo.Submetidas influnciado lugar,semper-deremaspretensesdeorigem,gravitavamsegundoumaregranova,cujasgraas,desgraas,ambigidadeseiluseseramtam-bmsingulares.Conhecero Brasilerasaberdestesdeslocamen-
tos,vividosepraticadospor todoscomoumaespciedefatali-dade,paraosquais,entretanto,nohavianome,poisautiliza-oimprpriadosnomeseraasuanatureza.Largamentesenti-docomodefeito,bemconhecidomaspoucopensado,estesiste-madeimpropriedadesdecertorebaixavaocotidianodavidaideo-lgicae diminuaaschancesda reflexo.Contudo facilitavao
ceticismoemfacedasideologias,porvezesbemcompletoedes-cansado,ecompatvelaliscommuitoverbalismo.Exacerbado
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As idias fora do lugar
um nadinha,darna foraespantosadavisodeMachadodeAssis.Ora, o fundamentodesteceticismonoestseguramentenaexploraorefletidadoslimitesdo pensamentoliberal.Est,sepodemosdizerassim,no pontodepartidaintuitivo,quenosdispensavadoesforo.Inscritasnumsistemaquenodescrevemnemmesmoemaparncia,asidiasdaburguesiaviaminfirmadaj de incio, pelaevidnciadiria,a suapretensodeabarcaranaturezahumana.Seeramaceitas,eram-nopor razesqueelasprpriasnopodiamaceitar.Em lugardehorizonte,apareciamsobreumfundomaisvasto,queasrelativiza:asidasevindasdearbtrioefavor.Abalava-senabaseasuaintenouniversal.As-sim,o quenaEuropaseriaverdadeirafaanhadacrtica,entrenspodiaserasingeladescrenadequalquerpachola,paraquemutilitarismo,egosmo,formalismoe o quefor, soumaroupaentreoutras,muitodapocamasdesnecessariamenteapertada.Est-sevendoqueestechosocialdeconseqnciaparaahis-triadacultura:umagravitaocomplexa,emquevoltaemeiaserepeteumaconstelaona quala ideologiahegemnicadoOcidentefazfiguraderrisria,demaniaentremanias.O queum modo, tambm,de indicaro alcancemundialquetmepodemterasnossasesquisiticesnacionais.Algo decomparvel,talvez,aoquesepassavanaliteraturarussa.Diantedesta,aindaos maioresromancesdo realismofrancsfazemimpressodeingnuos.Por querazo?Justamente, quea despeitode suaintenouniversal,apsicologiadoegosmoracional,assimcomoamoralformalista,faziamno ImprioRussoefeitodeumaideo-logia"estrangeira",eportantolocalizadaerelativa.De dentrode\seuatrasohistrico,o pasimpunhaao romanceburgusum,quadromaiscomplexo.A figuracaricatadoocidentalizante,fran-cfiloou germanfilo,denomefreqentementealegricoe ri-dculo,osidelogosdoprogresso,doliberalismo,darazo,eramtudoformasdetrazercenaamodernizaoqueacompanhao
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Ao vencedor as batatas
Capital.Esteshomensesclarecidosmostram-sealternadamentelunticos,ladres,oportunistas,crudelssimos,vaidosos,parasitasetc.O sistemadeambigidadesassimligadasaousolocaldoide-rio burgus- umadaschavesdo romancerusso- podesercomparadoquelequedescrevemosparao Brasil.Soevidentesasrazessociaisdasemelhana.TambmnaRssiaamoderni-
zaoseperdianaimensidodoterritrioedainrciasocial,en-travaemchoquecoma instituioservile comseusrestos-,choqueexperimentadocomoinferioridadeevergonhanacionalpormuitos,semprejuzodedaraoutrosumcritrioparamediro desvariodoprogressismoedo individualismoqueo Ocidenteimpunhae impeaomundo.Na exacerbaodesteconfronto,emqueoprogressoumadesgraaeoatrasoumavergonha,estumadasrazesprofundasdaliteraturarussa.Semforaremde-masiaumacomparaodesigual,h emMachado- pelasra-zesquesumariamenteprocureiapontar- umveiosemelhan-te,algodeGgol,Dostoivski,Gontcharov,T checov,edeou-trostalvez,quenoconheo.21Em suma,a prpriadesquali-ficaodo pensamentoentrens,quetoamargamentesenta-
21 Paraurnaconsrruorigorosadenossoproblemaideolgico,emlinha
umpoucodiversadesra,verPaulaBeiguelman,Teoriaeaonopensamentoaboli-
cionista,primeirovolumedeFormaopoltica doBrasi~SoPaulo,Pioneira,1967,
emquehvriasciraesqueparecemsairdeumromancerusso.Veja-seaseguinte,dePereiraBarreto:"De umladoestoosabolicionistas,estribadossobreo senti-
mentalismoretricoearmadosdametafsicarevolucionria,correndoapstipos
abstratospararealiz-Iosemfrmulassociais;deoutroestooslavradores,mudos
ehumilhados,naatitudedequemsereconhececulpadooumeditaurnavingana
impossvel".P. Barretodefensordeurnaagriculturacientfica- umprogres-
sistado caf- enestesentidoachaqueaaboliodeveserefeitoautomticodo
progressoagrcola.Almdequeosnegrossournaraainferior,eurnadesgraa
dependerdeles.Op. cit.,p. 159.
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i-
Ao vencedor as batatas
co,analisado,daexperinciaintelectual.Pelaordem,procureivernagravitaodasidiasum movimentoquenossingularizava.Partimosdaobservaocomum,quaseumasensao,dequenoBrasilasidiasestavamforade centro,emrelaoao seuuso
europeu.E apresentamosumaexplicaohistricaparaessedes-locamento,queenvolviaasrelaesdeproduoeparasitismonopas,anossadependnciaeconmicaeseupar,ahegemoniaintelectualdaEuropa,revolucionadapeloCapital.Em suma,paraanalisarumaoriginalidadenacional,sensvelnodia-a-dia,fomos
levadosarefletirsobreoprocessodacolonizaoemseuconjunto,que internacional.O tic-tacdasconversese reconversesde
liberalismoefavoroefeitolocaleopacodeummecanismopla-netrio.Ora, agravitaocotidianadasidiasedasperspectivasprticasamatriaimediataenaturaldaliteratura,desdeo mo-
mentoemqueasformasfixastenhamperdidoasuavignciaparaasartes.Portanto, o ponto departidatambmdo romance,quantomaisdoromancerealista.Assim,oqueestivemosdescre-vendo a feioexatacom quea Histriamundial,na forma
estruturadaecifradadeseusresultadoslocais,semprerepostos,passaparadentrodaescrita,emqueagorainflui pelaviainterna- o escritorsaibaou no,queiraou noqueira.Noutraspala-vras,definimosumcampovastoeheterogneo,masestruturado,queresultadohistrico,epodeserorigemartstica.Ao estud-Io,vimosquediferedoeuropeu,usandoemborao seuvocabulrio.Portantoaprpriadiferena,acomparaoeadistnciafazempartedesuadefinio.Trata-sedeumadiferenainterna- o
descentramentodequetantofalamos- emqueasrazesnosaparecemoranossas,oraalheias,a umaluz ambgua,deefeitoincerto.Resultaumaqumicatambmsingular,cujasafinidadese repugnnciasacompanhamoseexemplificamosum pouco.natural,por outrolado,queessematerialproponhaproblemas
originais literaturaquedependadele.Semavanarmosporago-
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As idias fora do lugar
ra,digamosapenasque,aocontrriodoquegeralmentesepen-sa,amatriado artistamostraassimnoserinforme:histori-
camenteformada,eregistradealgummodoo processosocialaquedevea suaexistncia.Ao form-Ia,por suavez,o escritorsobrepeumaformaaoutraforma,edafelicidadedestaope-rao,destarelaocomamatriapr-formada- emqueim-previsveldormitaaHistria- quevodependerprofundida-de,fora,complexidadedosresultados.Sorelaesquenadatmdeautomtico,everemosno detalhequantocustou,entrens,acert-Iasparao romance.E v-se,variando-seaindaumavezomesmotema,queemboralidandocomomodestotic-tacdenossodia-a-dia,esentadoescrivaninhanumpontoqualquerdoBra-sil, o nossoromancistasempretevecomomatria,queordenacomopode,questesdahistriamundial;equenoastrata,seastratardiretamente.
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oromanceexistiunoBrasil,antesdehaverromancistasbra-sileiros.1Quandoapareceram,foinaturalqueestesseguissemosmodelos,bonse ruins,quea Europaj haviaestabelecidoemnossoshbitosde leitura.Observaobanal,queno entantocheiadeconseqncias:anossaimaginaofixara-senumafor-macujospressupostos,emrazovelparte,noseencontravam
nopas,ouencontravam-sealterados.Seriaaformaquenopres-tava- amaisilustredotempo- ouseriaopas?Exemplodestaambivalncia,prpriadenaesdeperiferia,dadonapocapeloamericanoHenryJ ames,queacabariaemigrando,atradopelacomplexidadesocialdaInglaterra,quelhepareciamaispropciaimaginao.2Masveja-seocasodemaisperto:adotaro romance
1Leia-sea esterespeitoo sugestivoestudode Marlyse Meyer, "O que , ouquem foi Sinclair das Ilhas?", in Revistado Instituto deEstudosBrasileiros,nO 14,
So Paulo, 1973.
2 Teobaldo, um americanoenfticode "The madona of the future" (1873):
"Somos os deserdadosda arte!Estamos condenados superficialidade,excludos
do crculo encantado!O solo da percepoamericana um sedimento escasso,estril,artificial! Sim, estamosdestinados imperfeio. Para atingir a excelncia,
o americano tem que aprenderdez vezesmais que o europeu. Falta-nos o sentido
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Ao vencedor as batatas
eraacatartambmasuamaneiradetratarasideologias.Ora,vi-
mosqueentrenselasestodeslocadas,semprejuzodeguar-daremo nomeeo prestgiooriginais,diferenaque involun-tria,umefeitoprticodanossaformaosocial.Caberiaaoes-critor,embuscadesintonia,reiteraressedeslocamentoemn-
velformal,semo quenoficaemdiacomacomplexidadeobje-tivadesuamatria- porprximoqueestejadaliodosmes-tres.EstaserafaanhadeMachadodeAssis.Em suma,ames-
madependnciaglobalquenosobrigaa pensarem categoriasimprprias,nos induziaa umaliteraturaemqueessaimpro-priedadenotinhacomoaflorar.Ou poroutra,antecipando:emvezdeprincpioconstrutivo,adiferenaapareceriainvoluntriae indesejadamente,pelasfrestas,comodefeito.Uma instncia
maisapurado.No temosgosto,tatooufora.E comohaveramosdeter?Nosso
climarudee mal~encarado,nossopassadosilencioso,nossopresenteensurdece-
dor,apressoconstantedascircunstnciasdesprovidasdegraa- tudotosem
estmulo,alimentoe inspiraoparao artista,quantosemamargurao meuco-
raoaodiz-Io!Ns,pobresaspirantes,deveremosviveremperptuoexlio".The
completetalesofHenryJames,vol.m,Londres,RupertHart-Davis,1962,pp.14-5.DevoltaAmrica,emvisitaaBoston,Jamesanota:"Tenho37anos,fizaminha
escolha,esabeDeusquenotenhotempoaperder.A minhaescolha,o velhomundo- minhaescolha,minhanecessidade,minhavida.[...] Meu trabalhoest
l- je n'ai quejire nestevastonovomundo.No possvelfazerasduascoisas
_ precisoescolher.[...] O pesonecessariamentemaiorparaumamericano-
poiseleprecisalidar,maisoumenos,eaindaquesporimplicao,comaEuro-
pa;enquantoqueeuropeualgumobrigadoa lidarsequerminimamentecoma
Amrica.Ningumvaiach-Iomenoscompletoporcausadisto.(Falonaturalmente
depessoasquefazemo meutipodetrabalho;nodeeconomistasou do pessoal
dascinciassociais.)O pintordecostumesquenoseocupedaAmricanoin-
completo,por enquanto.Mas daquia cemanos- talvezcinqenta- elecer-tamenteoser".F. O. MatthiesseneK. B.Murdock(orgs.),The notebooksofHenry
James,NovaYork, GalaxyBook, 1961,entradade25/11/1881,pp.23-4.
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:Jj.
A importao do romance e suas contradies em Alencar
literriado nvelintelectualrebaixadoa quenosreferamosnocaptuloanterior.- Lembrandoosanosdasuaformao,Alen-
carfalanosseresdainfncia,emqueliaemvozaltaparaamee asparentas,atficara salatodaemprantos.Os livroseramAmandaeOscar,Saint-ClairdasIlhas,Celestinaeoutros.Men-
cionatambmosgabinetesdeleitura,abibliotecaromnticadeseuscolegas,nasrepblicasestudantisdeSoPaulo- Balzac,Dumas,Vigny, Chateaubriand,Hugo, Byron,Lamartine,Sue,maistardeScotte Cooper- ea impressoqueentolhecau-sarao sucessodeA moreninha,oprimeiroromancedeMacedo.3Por quenotentar,eletambm?"Qual rgiodiademavaliaessaauroladeentusiasmoa cingiro nomede um escritor?"4Nofaltavamosgrandesmodelos,emaisqueesseou aquelehaviaoprestgiodomoldegeral,eo desejopatriticodedotaropasdemaisum melhoramentodo espritomoderno.5No entanto,aimigraodoromance,particularmentedeseuveiorealista,iriapor dificuldades.A ningumconstrangiafreqentarempen-samentosalesebarricadasdeParis.Mas trazersnossasruase
salaso cortejodesublimesviscondessas,arrivistasfulminantes,
ladresilustrados,ministrosepigramticos,prncipesimbecis,cientistasvisionrios,aindaquenoschegassemapenasos seusproblemaseo seutom,nocombinavabem.Contudo,haveria
romancenasuaausncia?Os grandestemas,dequevemaoro-manceaenergiaenosquaisseancoraasuaforma- acarreira
3JosdeAiencar,Comoepor quesouromancista,Obra completa(OC), vol.
I, Rio deJaneiro,Aguilar,1959.
4 Idem, p. 138.
5 AntonioCandido,"Aparecimentodafico",Formaoda literatura bra-sileira,vol.n,SoPaulo,Martins,1969.
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Ao vencedor as batatas
social,a foradissolventedo dinheiro,o embatedearistocracia
evidaburguesa,o antagonismoentreamoreconvenincia,vo-caoeganha-po- comoficavamnoBrasil?Modificados,semdvida.Mas existiam,almde existiremfortementena imagi-nao,comarealidadequetinhaparanso conjuntodasidiaseuropias.No estavammonoentantoosistemadesuasmo-dificaes,emuitomenososefeitosdesteltimosobreaformaliterria.Estesdeveriamserdescobertoseelaborados.Assimco-
mo, alis,os mencionadostemasnoestiveramprontosdesdesempre, esperadoromanceeuropeu.Surgiram,ou tomaramasuaformamoderna,sobreo solodatransio- continentale
secular- da erafeudal do capitalismo.Tambmna Europafoiprecisoexplor-los,isolar,combinar,atqueseformasseumaespciedeacervocomum,emquesealimentaramruins,media-nosegrandes.Diga-sedepassagemqueesteaspectocumula-tivoecoletivodacriaoliterria,mesmodaindividual,queiriapermitiramultidodosromancesrazoveisqueo Realismopro-duziu.Na cristadassoluese idiascorrentes,aindasenoasaprofundam,esteslivrosfazema impressodecomplexidade,elogramsustentaro interessedaleitura.Como emnossosdiasobomfilme.Um gnerodeacumulaoquefoi difcil paraalite-raturabrasileira,cujosestmulosvinhamevmdefora.Desvan-tagem,por outrolado,quehojetemassuasvantagens,conver-gindomuitonaturalmentecomabancarrotadatradio,aqueduramenteseacostumao intelectualeuropeu,a fim dechegar- comoaumaexpresso-chavedenossotempo- desconti-nuidadeeaoarbitrrioculturaisemqueno Brasil,bemcontraavontade,sempreseesteve.
Escritorrefletidoecheioderecurso,Alencardeurespostasvariadase muitasvezesprofundasa estasituao.A suaobraumadasminasda literaturabrasileira,athoje,e emboranoparea,temcontinuidadesno Modernismo.De Iracema,algu-
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~::~
A importao do romance e suas contradies em Alencar
ma coisaveioatMacunama:asandanasqueentrelaamas
aventuras,ocorpogeogrficodopas,amatriamitolgica,ato-ponmiandiaeaHistriabranca;algumacoisado Grande-Ser-tojexistiaem Til,noritmodasfaanhasdeJo Fera;nossaico-nografiaimaginria,dasmocinhas,dosndios,dasflorestas,deve
aosseuslivrosmuitodasuafixaosocial;e demodomaisge-ral,Pilranoencompridaralista,adesenvolturainventivaebra-
sileirizantedaprosaalencarinaaindaagora capazdeinspirar.Issoposto,precisoreconhecerqueasuaobranuncapropria-mentebem-sucedida,equetemsempreumqudescalibradoe,bempesadaapalavra,debobagem. interessantenotarcontu-do queestespontosfracosso,justamente,fortesnoutrapers-pectiva.Nosoacidentaisnemfrutodafaltadetalento,sopelocontrrioprovadeconseqncia.Assinalamoslugaresemqueo moldeeuropeu,combinando-sematrialocal,dequeAlencarfoi simpatizanteardoroso,produziacontra-senso.Pontosportan-to quesocrticosparaa nossaliteraturaevida,manifestando
osdesacordosobjetivos- asincongrunciasdeideologia- queresultavamdotransplantedoromanceedaculturaeuropiaparac.Iremosestud-losno romanceurbanodeAlencar,parapre-cis-los,everemseguidaasoluoqueMachadodeAssislhesdaria.- Comentriocuriosodestesimpassesencontra-seemNa-
buco,o europeizante,queospercebiamuitobem,por ach-loshorrveis.Ao contrriodoquedizem,asuadisputacomAlencar pobreemreflexoe baixanosrecursos_. "um tte ttede
gigantes",segundoAfrnioCoutinho;brigamatparaverquemsabemaisfrancs.Mas temo interessedereterumasituao.O
realismodeAlencarinspiravaaNabucoduplaaverso:umapornoguardarasaparncias,eoutrapor nodesrespeit-Iascom,digamos,adevassidoescoladaeapresentveldaliteraturafran-
cesa. comoumcidadoviajadoquevoltasseparaasuacidade,ondeo mortificamaexistnciadeumacasademulheres,eo seu
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Ao vencedor as batatas
poucorequinte.As meninasalencarinas,comosseusarrancosdegrandedama,lhepareciamaomesmotempoinconvenientesebobocas,nemromnticasnemnaturalistas,o quebemperce-
bido,emborapesandono pratoestrildabalana.6As observa-essobreo temaescravoesobreo abrasileiramentodalnguatmo mesmoteor.Selheaceitassea crtica,Alencarescreveria
ouromanceedificante,ouromanceeuropeu.Nabucopeodedo
emfraquezasreais,masparaescond-Ias;Alencarpelocontrrioincidenelastenazmente,guiadopelosensodarealidade,queo
levaasentir,precisamentea,o assuntonovoeo elementobra-sileiro.Ao circunscrev-Iassemasresolver,nofazgrandelite-
ratura,masfixaevariaelementosdela- umexemploamaisdecomotortuosoo andamentodacriaoliterria.
EstudandoaobradeMacedo,emquetomapa tradiodenossoromance,Antonio Candidoobservaqueelacombina
o realismodaobservaomida,"sensvelscondiessociais
do tempo",ea mquinado enredoromntico.Sodoisaspec-tosdeum mesmoconformismo,queinteressadistinguir:ade-
sopedestre"aomeiosemrelevosocialehumanodaburguesiacarioca",eoutro,"quechamaramospotico,evemasero em-'
pregodospadresmaisprpriosconceporomntica,segun-do acabadesersugerido:lgrimas,treva,traio,conflito".O
resultadoirpecarporfaltadeverossimilhana:"Tantoquenosperguntamoscomopossvelpessoastochsseenvolveramnos
arrancosaquelMacedo]assubmete"7.Comoveremos,ligeira-
6 CE. A polmicaAlencar-Nabuco, especialmenteasobjeesdeNabucoaDiva.
7 Ver nacitadaFormadoda literatura brasileiraoscaptulosquetratamde
romance.O seuconjuntocompeumateoriadaformaodestegnerono Bra-
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~~"
A importao do romance e suas contradies em Alencilr
menteajustada,estaanlisevaletambmparao romanceurba-no deAlencar.Antes,no entanto,voltemosaosseuselementos.
A notaoverista,a cor localexigidapelo romancede ento,davamestatutoe cursoliterriosfigurase anedotasdenossomundocotidiano.J oenredo- overdadeiroprincpiodacom-posio- essetema suamolanasideologiasdo destinoro-mntico,emversodefolhetimparaMacedoealgumAlencar,eemversorealistaparao Alencardo romanceurbanodemaisfora.Ora, comoj vimoso nossocotidianoregia-sepelosme-canismosdo favor,incompatveis- numsentidoqueprecisa-remosadiante- comastramasextremadas,prpriasdo Rea-lismodeinflunciaromntica.Submetendo-seaomesmotem-
porealidadecomezinhaeconvenoliterria,onossoromanceembarcavaemduascanoasdepercursodivergente,e erainevi-tvelquelevassealgunstombosdeestiloprprio,tombosquenolevavamoslivrosfranceses,j queahistriasocialdequeestessealimentavampodiaserrevolvidaafundojuntamenteporaquelemesmotipo deentrecho.- Vistasegundoasorigens,a dispa-ridadeentreenredoenotaorealistarepresentaajustaposiodeummoldeeuropeusaparnciaslocais(noimporta,nocaso,queestasaparnciassetenhamtransformadoemmatrialiter-riapor influnciadoprprioromantismo).Segundopasso,tro-que-seaorigemno mapa-mndipelasidiasquehistoricamen-telhecorrespondiam:teremosvoltado,commaisclarezaagoradasrazessubjacentes,aoproblemaprpriodacomposio- em
sil, epodeserlido comoumaintroduoaMachadodeAssis.Emboranofaa
partedafase"formativa"dequetratao livro,eestejamencionadosumaspoucas
vezes,Machado umadassuasfigurascentrais,o seupontodefuga:atradio
considerada,aomenosemparte,comvistasnoaproveitamentoqueMachadolhe
dar.Paraostrechoscitados,verpp. 140-2.
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Ao vencedor as batatas
queideologiasromnticas,devertentesejaliberal,sejaaristo-cratizante,massemprereferidas mercantilizaodavida,figu-ramcomochave-mestrado universodo favor.Fiel realidade
observada(brasileira)eaobommodelodo romance(europeu),oescritorreedita,semsab-Ioesemresolv-Ia,umaincongrun-ciacentralem nossavidapensada.Note-sequenoh conse-qnciasimplesa tirardestadualidade;empasdeculturade-pendente,comooBrasil,asuapresenainevitvel,eoseuresul-tadopodeserbomou ruim. questodeanalisarcasoporcaso.Literaturanojuzo,figurao:osmovimentosdeumarepu-tadachavequenoabranadatmpossivelmentegrandeinteresseliterrio.VeremosqueemMachadodeAssisachaveserabertapelafechadura.
Senhora um doslivrosmaiscuidadosdeAlencar,a sua
composiovainosservirdepontodepartida.Trata-sedeumromanceemqueo tomvariamarcadamente.Digamosqueelemaisdesafogadonaperiferiaqueno centro:Lemos,pelintraeinteresseirotio daherona, gordinhocomoum vasochinsetemar depipoca;o velhoCamargo um fazendeirobarbaas,rudemasdireito;donaFirmina,me-de-encomendaou conve-
nincia,estalabeijosnafacedameninaaquemserve,equandosenta,acomoda"asuagordurasemi-secular"8.Noutraspalavras,umaesferasingelae familiar,emquepodehaversofrimentoeconflito,semqueelaprpriasejapostaemquesto,legitimadaqueestpelanaturalesimpticapropensodaspessoas sobre-vivnciarotineira.Os negociantessoespertalhes,asirmzinhasabnegadas,aparentelaaproveita,vcios,virtudesemazelasadmi-tem-setranqilamente,demodoqueaprosa,aodescrev-Ios,noperdeaiseno.No conformista,poisnojustifica,nempro-
8 JosdeAlenear,Senhora,De, vol. I, pp.958,966,969,1.065-6.
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A importao do romance e suas contradies em Alencar
priamentecrtica,pois noquertransformar.O registrosobequandopassamosaocrculomundano,limitadoalismocida-
decasadoura- oquetemseuinteresse,comosever.Aqui pre-sidemo clculodo dinheiroedasaparncias,eo amor.A hipo-crisia,complexapordefinio,combina-sepretensodeexem-
plaridadeprpriadestaesfera,edeespontaneidade,prpriaaosentimentoromntico,saturandoa linguagemde implicaesmorais.Espontaneamente,estasobrigam reflexonormativa,custadosprazeressimplesdaevocao.A matrizdistantesoa
salae a prosadeBalzac.Finalmente,no centrodestecentro,avoltagemvaiaotetoquandoestemcenaAurlia,aheronado
livro.Paraestaherdeirabonita,inteligenteecortejada,o dinheirorigorosamenteamediaomaldita:questionahomensecoisas
pelafatalsuspeita,a quenadaescapa,dequesejammercveis.
Simetricamente,exaspera-sena moao sentimentodapureza,expressonostermosdamoralidademaisconvencional.Purezae
degradao,umatalvezfingida,umaintolervel:lanando-sede um a outro extremo,Aurliad origema um movimentovertiginoso,degrandealcanceideolgico- o alcancedodinhei-
ro, esse"deusmoderno"- eumpoucobanal;faltacomplexi-dadeaseusplos.A riquezaficareduzidaaumproblemadevir-tudeecorrupo,queinflado,attornar-seamedidadetudo.
Resultaum andamentodensoderevoltaedeprofundoconfor-mismo- a indignaodo bem-pensante- queno s deAlencar. umadasmisturasdo sculo,a marcado dramalho
romntico,dafuturaradionovela,eaindahpoucopodiaservistono discursoudenistacontraacorrupodostempos.Masvolte-mosatrs,paracorrigiradistinodoprincpio,entreo tomdas
personagensperifricasedascentrais.A questonogradual, qualitativa.No casodasprimeiras,trata-sede aproveitarasevidnciasdo consenso,localistae muitasvezesburlesco,tais
comoatradio,o hbito,o afeto,emtodaasuairregularidade,
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Ao vencedor as batatas
ashaviamconsolidado.Seumundoo que,noapontaparaoutro,diferentedele,noqualsedevessetransformar,ouporoutra
ainda,noproblemtico:excluiaintenouniversalistaenor-mativa,prpriadaprosaromntico-liberalda faixadeAurlia.Veremosaindaqueesta a tonalidadedeum romanceimpor-tanteemnossaliteratura,asMemriasdeumsargentodemilcias.
E nadaimpede,sejadito depassagem,queesteconsensotragaeleprprioacunhadetradiesliterrias.No segundocaso,pelocontrrio,procura-seperceberopresentecomoproblema,comoestadodecoisasarecusar.Estaarazodopesomaior,da"serie-
dade"destaspassagens- aindaqueliterariamentesejasempreumalvioquandoAlencarvolta outramaneira,quelhedp-
ginasdemuitagraaeforanarrativa.Entretanto,nestesegundoestilocarregadodeprincpios,polarizadopelaalternnciadesu-blimeeinfmia,queelesefilia linhafortedo Realismodeseutempo,ligada,justamente,aoesforodefiguraro presenteemsuascontradies;emlugardedificuldadeslocais,ascrispaesuniversaisdacivilizaoburguesa. esteo estiloqueirpreva-lecer.Resumindo,digamosqueem Senhoraa reflexotomaoalentoe a maneira esferamundana,do dinheiro,dacarreira,
dando-lhepor conseguinteaprimazianacomposio.Comoas
grandespersonagensda Comdiahumana,Aurliaviveo seudi-laceramentoeprocuraexpress-lo,transformando-oemelementointelectualdaexistnciacomum,eemelementoformal- como
sever,apropsitodo enredo- responsvelpelofechamentodoromance.No entanto,essetomreflexivoeproblemtico,bemrealizadoemsimesmo,noconvenceinteiramente,einfelizem
seuconvviocomo outro.Faz efeitopretensioso,temalguma
coisadescabida,queinteressaanalisaremmaisdetalhe.Observe-se,quantoaisto,quepredominnciaformalepeso
socialemSenhoranocoincidem.Senatural,porexemplo,que
a cenamundanaestejaemoposio provnciae pobreza,
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A importao do romance e suas contradies em Alencar
esquisitoqueincluapequenosfuncionriosefilhasdecomercian-tesremediados.E esquisitssimoqueexcluaosadultos:nasfestas
daCorte,asmesnuncasomaisquerespeitveissenhoras,quevigiamasfilhasenocansamdecriticarosmodosdesenvoltosdeAurlia,"imprpriosdemeninasbemeducadas"9.Comoalis
oshomens,quesocaricaturas,desdequenosejamrapazes.Emsuma,o tomdamodareservado mocidadenbilebem-pos-ta,dequeoornamento,masnoasntesedaexperinciasocialdeumaclasse,almdesermalvistosevailonge.No temcursoentreaspessoasquej sejamsrias,asquaispor suavez,ficamexcludasdobrilholiterrio,edomovimentodeidiasquedevesustentare arremataro romance.Por suacomposio,portan-to,o livroseconfinaaoslimitesdafrivolidade,adespeitodeseuandamentoambicioso,queficaprejudicado.Estedesacordono
existenomodelo;parasentiradiferena,bastalembraraimpor-tnciaquetmoadultriomaduro,apoltica,asarrognciasdopoder,nacenamundanadeBalzac.Alencarconserva-lheo tom
e vriosprocedimentos,pormdeslocadospelo quadrolocal,impostopelaverossimilhana.Adiante,voltaremos diferena.
Agora,vejamosa complexidade,a variedadedeaspectosdesteemprstimo.Inicialmenteprecisoretirar,masnodetodo,o
sentidopejorativoaestanoo.Considere-seo quesignificava,comoatualizaoe desenvoltura,fazerqueumapersonagem,mulheraindapor luxo,tratasselivrementedasquestesdequeento,ou poucoantes,tratarao Realismoeuropeu.Em certosentidomuitoclaro,um feito,sejaqualfor o resultadoliter-rio.Algo semelhante,paraageraodosquefizeram20 agora,nosanos60,aosaltodosmanuaisdefilosofiaesociologia,em
9 Senhora,p. 952.
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Ao vencedor as batatas
lnguaespanhola,paraoslivrosdeFoucault,Althusser,Adorno.Entreumaalienaoantigae outramoderna,o coraobem-formadonohesita.Ficavaparatrsa imitaomidae com-placente,o romancistaobrigava-seaumaconcepodascoisas,impunhanvelcontemporneo reflexo.O romancealcana-vaaseriedadequeapoesiaromnticajhaviaalcanadohmaistempo.Finalmente,considere-seo prpriomovimentodaimi-tao,quemaiscomplicadoqueparece.No prefciodeSonhosd'ouro,escreveAlencar:"Tacharesteslivrosdeconfeioestran-
geira,relevemoscrticos,noconhecerasociedadefluminense,queaestafaceirar-sepelassalaseruascomataviosparisienses,falandoaalgemiauniversal,quealnguado progresso,jargoerriadodetermosfranceses,ingleses,italianos,eagoratambmalemes.!Como sehdetirarafotografiadestasociedade,semlhecopiarasfeies?"10.O primeiropassoportantodadopelavidasocial,enopelaliteratura,quevaiimitarumaimitao.11Mas fatalmenteo progressoeosataviosparisiensesinscreviam-seaquinoutrapauta;retomandoo nossotermodo incio, soideologiadesegundograu.12Chegao romancista,queparteeleprpriodessemovimentofaceirodasociedade,enoslheco-
10 Obra completa,vol.I, p. 699.
11A situaocomparvel deCaetanoYelosocantandoemingls.Acusa-
dopelos"nacionalistas",respondequenofoi elequemtrouxeosamericanosao
Brasil.Semprequiscantarnestalngua,queouviano rdiodesdepequeno.E
claroquecantandoinglscompronncianortistaregistraummomentosubstan-
cialdenossahistriae imaginao.
12Comentandooshbitosdeconsumono Brasildefinsdesculo,Warren
Deanobservaqueo comrcioimportadortransformavaemartigosdeluxoospro-
dutosqueaindustrializaotornaracorrentesnaEuropaeEstadosUnidos.Cf.AindustrializaodeSoPaulo, SoPaulo,Difel, 1971,p. 13.
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A importao do romance e suas contradies em Alencar
piaasnovasfeies,copiadasEuropa,comoascopiasegundoa maneiraeuropia.Ora, estasegundacpiadisfara,masnopor completo,a naturezadaprimeira,o queparaa literaturaumainfelicidade,elheacentuaaveiaornamental.Adotandofor-
maetomdoromancerealista,Alencaracataasuaapreciaot-citadavidadasidias.Eis oproblema:tratacomosriasasidias
queentrenssodiferentes;comosefossemdeprimeiro,ideo-
logiasdesegundograu.Somaemconseqnciado ladoempo-ladoeacrtico- adespeitodoassuntoescandaloso- despro-vido damalciasemaqualo tommodernoentrensincons-
cinciahistrica.Ainda umavezchegamosaon queMachadodeAssisvaidesatar.
Em suma,tambmnasLetrasadvidaexternainevitvel,
semprecomplicada,enoparteapenasdaobraemqueapare-ce.Fazfigurano corpogeraldacultura,commritovarivel,e
osemprstimospodemfacilmenteserumaaudciamoraloupo-ltica,emesmodegosto,aomesmotempoqueumdesacertoli-terrio.Qual destescontextosimportamais?Nada,a noseradeformaoprofissional,obrigaaocritriounicamenteesttico.
Assim,procuramosassinalarum momentodedesprovinciani-zao,a disposioargumentativana tonalidadequepredomi-naemSenhora,enemporissodeixaremosderev-Ioadianteem
luzdesfavorvel,nemlhedisfararemosafraqueza,dopontodevistadaconstruo.Masvoltemosatrs:no gesto,o andamentodo livro audaciosoe inconcilivel,gostariadeserumavoznaalturado tempo;j seulugarnacomposio,pelocontrrio,faz
vernesteimpulsograveumaprendadesala.A ltimapalavranocasoasegunda.Por algumarazo,queo leitorj agoraadivi-nha,aduradialticamoraldodinheiroseprestaaogalanteiodamocidadefaceira,masnoafetao fazendeirorico,onegociante,asmesburguesas,a governantapobre,queseorientampelasregrasdofavoroudabrutalidadesimples.Contudo,soestasas
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Ao vencedor as batatas
personagensquetornampovoadoo romance.Emborasecund-rias,compemo traadosocialemquecirculamasfigurascen-trais,decujaimportnciaseroamedida.Noutraspalavras,nossoprocedimentofoi o seguinte:filiamoso andamentodoromance- depoisde caracteriz-Io- aocrculorestritoqueexprime,tudo semprenos termosqueo prprio romanceprope.Emseguidavimoscomoficaestecrculo,seconsideradorelativamen-te,no lugarquelhecabeno espaosocial,tambmeledefico.Qualaautoridadedoseudiscurso?O quedecideo refluxodestasegundavista:diantedela,o tom do livro e a pretensoqueoanimafazemefeitoinfundado.A suadicodesdizdasuacom-
posio.O opostojustamentedo queseobservano modelo:amaneirasensacionalistaegeneralizantedeBalzac,toconstrudaeforada,liga-seaextraordinrioesforodecondensao,edefatovaisetornandomenosincmoda medidaquenosconvence-mosdesuacontinuidadeprofundacomosinmerosperfisoca-sionais,de"periferia",quedeslocam,refletem,invertem,modi-ficam- emsuma,trabalham- o conflitocentral,quedumaformaou doutra o de todos.13Sejapor exemploo discursodesabusadoe"centralssimo"dalgumadesuasgrandesdamas:
13"Comparadaaoutrasformasderepresentao,amultiplicidadedeBalzac
aquemaisseaproximadarealidadeobjetiva.Contudo,quantomaisseaproxi-
madesta,maisseafastadamaneirahabitual,cotidianaou mdiadeespelh-Ia
diretamente.De fato,o mtodobalzaquianoaboleoslimitesestreitos,costumei-
ros,rotineirosdestareproduoimediata.Contrariaassimasfacilidadeshabituais
namaneiradeconsiderararealidade,eporissomesmosentidopormuitoscomo
sendo'exagerado','sobrecarregado'etc.[...] Aliso seuengenhonoselimitas
formulaesbrilhantese picantes;antesmanifesta-senarevelaobemmarcada
do essencial,natensoextremadoselementoscontrriosqueo compem."G.
Lukcs,Balzac und derFranzoesicheRealismus,Werke,vol.VI, p. 483.
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A importao do romance e suas contradies em Alencar
revoltoso,futriqueiro,vulnervel,calculista,destemido,comoosero,quandoaparecerem"casualmente",o criminoso,acostu-reira,o pederasta,o banqueiro,o soldado.O andamentoverti-ginosoafasta-sedonatural,beirabastanteo ridculo,masavalizaestadistncia- o seunveldeabstrao- comgrandelastrodeconhecimentoseexperincia,queultrapassademuitoalati-tudeindividual,enofatoapenasliterrio:asomadeumpro-cessosocialdereflexo,naperspectiva,digamos,dohomemdeesprito. esteocinqentovividoesocivelquesegundoSartreo narradordo realismofrancs.14Dos pressupostoshistricosdestaformafalaremosadiante.Poragorabasta-nosdizerqueestareflexosealimentavadeum processoreal,novo,tambmelevertiginosoepouco"natural",quereviravadealtoabaixoaso-ciedadeeuropia,freqentandoigualmenteabrasileira,cujame-dulano entantonochegavaatransformar:trata-sedagenerali-zao- comseusinfinitosefeitos- daforma-mercadoria,do
dinheirocomonexoelementardo conjuntodavidasocial. adimensogigantesca,ao mesmotempoglobale celulardestemovimento,queirsustentaravariedade,amobilidadetotea-tralda composiobalzaquiana- permitindoo livretrnsitoentrereassociaise de experinciaaparentementeincomensu-rveis.Em resumo,herdvamoscomoromance,masnoscom
ele,umaposturaedicoquenoassentavamnascircunstnciaslocais,edestoavamdelas.MachadodeAssisiriatirarmuitopar-
14J.-P. Sartre,"Qu'est-ce-queIalittrature?",SituationsII, Paris,Gallimard,
1948,pp. 176ss.Paraumcondensadocmicodostiquesbalzaquianos,vera in-
comparvelimitaoquedelesfazProust,emPasticheset mlanges.O aspecto
desfrutvelesedativodasgeneralizaesdeBalzacmencionadoporWalterBen-
jamin,noestudosobreoFlneur, in CharlesBaudelaire,Frankfurt/M.,Suhrkamp,
1969,pp.39-40.
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Ao vencedor as batatas
tidodestedesajuste,naturalmentecmico.Paraindicardumaveza linha de nossoraciocnio:o temrioperifricoe localistadeAlencarvirparao centrodo romancemachadiano;estedeslo-
camentoafetaosmotivos"europeus",agrandiloqnciasriaecentralda obraalencarina,quenodesaparecem,mastomamtonalidadegrotesca.Estarresolvidaaquesto.Mas voltemosaSenhora.Nossoargumentoparecetalvezarbitrrio:comopodemumaspoucaspersonagenssecundrias,ocupandoumapartepe-quenadeum romance,qualificar-lhedecisivamenteo tom?Defato,sefossemeliminadas,desapareciaadissonncia.Masresta-
ria um romancefrancs.No a intenodo Autor, quepelocontrrioquerianacionalizaro gnero.Entretanto,o pequenomundosecundrio,introduzidocomocorlocal,enocomoele-
mentoativo,deestrutura- umafranja,massemaqualo livronosepassano Brasil- deslocao perfileopesodoandamentodeprimeiroplano.Eis o queimporta:seo traolocaldeveter
forabastanteparaenraizaro romance,tem-natambmparanlhedeixarincontrastadaadico.Pelasrazesquevimoseporoutrasqueveremos,estapassaagiraremfalso.Noutraspalavras,oproblemaartstico,daunidadeformal,temfundamentonasin-
gularidadedenossochoideolgicoefinalmente,atravsdele,emnossaposiodependente-independentenoconcertodasna-es- aindaqueo livronotratedenadadisso.Expressalite-rariamenteadificuldadedeintegrarastonalidadeslocalistaeeu-ropia,comandadasrespectivamentepelasideologiasdo favoreliberal.No queo romancepudesseeliminardefatoestaoposi-o:masteriadeacharum arranjo,emqueesteselementosnocompusessemumaincongruncia,esimum sistemaregulado,comsualgicaprpriaeseus- nossos- problemas,tratadosnasuadimensovivel.
Menosqueexplicar,o quefizemosataquiforamatribui-es:um tomparac,outroparal,o enredoparaaEuropa,as
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A importao do romance e suas contradies em Alencar
anedotasparao Brasiletc.Paraescaparaosacasosdapaternida-de,contudo, precisosubstituiracontingnciadaorigemgeo-
grficapelospressupostossociolgicosdasformas,estessimatuaise indescartveis.Mais precisamente,digamosquedo conjuntomaisoumenoscontingentedecondiesemqueumaformanas-ce,estaretmereproduzalgumas- semasqaisnoteriasen-tido --T- quepassama seroseueftitoliterrio,o seu"efeitoderea-lidade"15,o mundoquesignificam.Eis o queinteressa:passan-
doapressupostosociolgicoumapartedascondieshistricasoriginaisreaparece,comsuamesmalgica,masagorano planodaficoecomoresultadoformal.Nestesentido,formassooabstratoderelaessociaisdeterminadas,eporaquesecom-
pleta,aomenosameuver,aespinhosapassagemdahistriaso-cialparaasquestespropriamenteliterrias,dacomposio-quesodelgicainternaenodeorigem.Dizamospor exem-plo queemSenhorahduasdices,equeumaprevaleceinde-vidamentesobreaoutra.O leitorcordatoprovavelmentereco-
nhea,porqueachatambmasemelhana,queumadelasvemdo Realismoeuropeu,enquantoaoutramaispresaaumaora-lidadefamiliare localista.Como explicao,porm,estereco-
nhecimentonochegaaoproblema.Por querazonoseriam
compatveisasduasmaneiras,seincompatibilidade um fatoformal,enogeogrfico?E porquenopodeserbrasileiraaformado Realismoeuropeu?Questoestaltimaquetemo mritodeinverteraperspectiva:depoisdevermosqueorigemnoargu-mento,ficaindicadoquantodecisivoo seupesoreal.Enfim,unstantosemprstimosformaisimportantes,indicadosospres-
supostosdaformaemprestada,quevieramaseroseuefeito;des-criodasmatriasaqueestaformaestejasendoaplicada;epor
15ExpressodeAlthusser,mascomoutrafilosofia.
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Ao vencedor as batatas
fim osresultadosliterriosdestedeslocamento- seroestesos
nossostpicos.Paracomear,vejamoso desenrolardahistria.- Aurlia,
moamuitopobreevirtuosa,amaaSeixas,rapazmodestoeumpoucofraco.Seixaspede-aemcasamento,masdepoisdesman-cha,emfavordeoutraquetemum dote.Aurliaherdadere-
pente.TeriaperdoadoaSeixasa inconstncia,masnolheper-doao motivopecunirio.Semdizerquem,mandaofereceraoantigonoivoum casamentono escuro,comdotegrande,mascontrarecibo.O rapaz,queestendividado,aceita. ondeco-meapropriamenteo enredoprincipal.Parahumilharo amadoevingar-se,mastambmparap-Io embriose finalmenteporsadismo- detudoissohumpouco- Aurliapassaatrataromaridorecm-compradocomoaumapropriedade:reduzo ca-samentode conveninciaa seuaspectomercantil,cujasimpli-caespor supremaofensavocomandara trama.A talponto,queasquatroetapasdahistriasochamadas"O Preo","Qui-tao","Posse","Resgate".Como indicaesterigorismonacon-duodoconflito,enredoefigurasodelinhagembalzaquiana.Com abundnciadereflexoe sofrimentolevam improvvelconseqncialtima(emborahajaumaconciliaono final,de
queaindafalaremos)um grandetemadaideologiacontempo-rnea.Aurlia dafamliafrreaeabsolutadosvingadores,al-quimistas,usurrios,artistas,ambiciososetc.,daComdiahuma-
na; comoeles,agarra-sea umaquesto- dessasquehaviamcativadoa imaginaodo sculo- foradaqualavidapassaalheparecervazia.Em conseqncia,lgicae destinohistricodalgumaidiareputadatornam-seelementosdeterminantesna
organizaodo entrecho,ganhamforadeprincpioformal-entreoutros.No queaspersonagensencarnemumanooabs-trata,comoHarpagoencarnaraaavareza.Mas umaabstrao- quevaicombinar-seatodasortedeparticularidadesdebio-
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A importao do romance e suas contradies em Alencar
logia,depsicologiaeposionasociedade- elementovolun-trioeproblemticodesuaequaopessoal:decide-Iheso desti-no. Como um claroemcunoturno,estasfigurasreflexivase
enfticasriscamapaisagemsocial,edeixam,almdavertigemdeseumovimento,o traadoimplacveldascontradiesqueopemasociedadeaseusideais.Retomandonossofio, trata-sedummodelonarrativoemcujamatriaentramnecessariamente
asideologiasdeprimeirograu- certezastaiscomoa igualda-de,a repblica,a foraredentoradecinciae arte,o amorro-mntico,mritoecarreirapessoal,idiasenfimquenaEuropaoitocentistasustentamsemdespropsitoovalordaexistncia.16Nestesentido,o romancerealistafoi umagrandemquinadedesfazeriluses.Paracompreender-lhea importnciaprecisov-Ioemconjunto,emmovimento,atravessandofronteirasna-cionais,desrespeitandoahierarquiadosassuntos:umaaumavaidesdobrandoasconvicesmaiscarasaoseutempo,ascombi-
nasfigurasmaisfortesedotadas,edeixaquesequebrem- aolongodoenredo- contraamecnicasemperdodaeconomiaedasclassessociais.Da o pesointelectualdestemovimento,suaposturaaudaciosa,amigadeverdade- retomadaporAlencar.Eis o nossoproblemaquetorna:importvamosummolde,cujoefeitoinvoluntriodedarsidiasestatutoehorizonte- tim-
bre,energia,crise- emdesacordocomo queavidabrasileiralhesconferia.Ou, dopontodevistadacomposio:semcorres-
pondncianaconstruodaspersonagenssecundrias,respon-
16Paraexemploleiam-seaspginasdeLukcssobreo papeldoRomantis-
mono romancerealista.Sendoumaideologiaespontneadoinconformismoan-
ticapitalistadosc.XIX, avisoromnticaeramatriaderomanceporassimdi-
zerobrigatria;ideologiadepersonagenseclimaliterrio,queo enredodestroa.
Cf. "Balzac,crticodeStendhal",op. cit..
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Ao vencedor as batatas
sveispelacorlocal.Quediriaaestasfiguras,interessadassobre-tudoemarranjarasobrevivncia,o discursouniversalizanteepo-lmicodeAurlia?Veremoscomoaprpriaaudciarealista,nes-tascircunstncias,tertransformadoo seusentido.
Paraoutro exemplo,considere-seo "maquiavelismo"deAurlia,adesenvolturacomqueelasebeneficiadaengrenagemsocial.A moa,quetiveraasortedeherdar,enoja-seaprincpiocoma venalidadedosrapazes.Depois,pensandobem,fazumplanoecomprao maridodeseucorao.A vtimado dinheirovaisuaescola,econfia-lhefinalmente- aosseusmecanismos
odiosos- aobtenodafelicidade.Alinhaassimno campoilus-tredascriaturas"superiores",queescapamaoimpriodefortu-naecarreiranamedidaemquealcanaramcompreend-loema-nobraremproveitoprprio.A seutempoe emseulugarestaspersonagens,dequeestcheiaaficorealista,foramfigurasdaverdade.Livravam-sedetradiesenvelhecidas,noeramenga-
nadaspelamoral,epagavamasuaclarividnciacomo endureci-mentodo corao.Trata-sedeumasituaobsicado romanceoitocentista:asveleidadesamorosase deposiosocial,propi-ciadaspelarevoluoburguesa,chocam-secontraadesigualda-de,queemboratransformadacontinuaumfato;precisoadi-Ias,calcular,instrumentalizarasieaosoutros...paraafinaldes-
cobrir,quandoriquezae podertiveremchegado,quenoestmaisinteiroojovemesperanosodoscaptulosiniciais.Com milvariaes,estafrmulaemtrstempossercapital.Entreosar-doresdo princpioeadesilusodo fim, sempreo mesmointer-ldio,devignciairrestritadosprincpiosdavidamoderna:aen-grenagemdo dinheiroedo interesse"racional"fazo seutraba-lho,annimoedeterminante,eimprimeo selocontemporneo travessiadeprovaesque o destinoimemorialdosheris.Soasconseqncias,naperspectivadoindividualismoburgus,dageneralizadaprecednciado valor-de-trocasobreo valor-de-
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uso- tambmchamadaalienao- aqualsetransformaem
pedradetoqueparaa interpretaodostempos.Efeitoliterrioepressupostosocialdesseenredo,domomentodeclculoqueasuaalavanca,estonaautonomia- sentidacomocoisificao,
comoesfriamento- dasesferaseconmicaepoltica,asquais
parecemfuncionarseparadasdo resto,segundoumaracionali-dade"desumana",detipomecnico.Paraaeconomiaacausaestno automatismodo mercado,aqueobjetoseforadetrabalhoestosubordinadosaomesmottulo,equedopontodevistadomritopessoalumaarbitrriamontanharussa.Quantopol-tica,no perodohistricoabertopeloestadomoderno,confor-meensinamentodeMaquiavel,assuasregrasnadatmavercomnormasdemoral.Nasduasesferas,comotambmnadacarrei-
ra,queemcertosentidointermediria,avidasocialvemafeta-da desinalnegativoe implacvel,e emconflitocomelaquealgumacoisasesalva.17Esta,enooutra,apaisagemnaqualtempoesiao descompromissoromanesco,svezesexaltante,svezessinistro,entreindivduoeordemsocial.Solitriaselivres,
umdesgnioatrsdatesta,aspersonagensderomanceplanejamosseusgolpesfinanceiros,amorososou mundanos.Uns triun-fampelaintelignciae dureza,outrospelocasamentoou pelocrime,outrosaindafracassam,efinalmenteexistemossimbli-
17" somentecomo sc.XVIII ena'sociedadeburguesa'queasdiferentes
formasdo relacionamentosocialsedeparamaoindivduocomosendosimples
instrumentosparaaconsecuodesuasfinalidadesprivadasecomonecessidade
externa."K. Marx, "Einleitung",in Grundrisseder Kritik derpolitischenOekono-
mie,Frankfurt/M.,EuropaeischeVerlagsanstalt,s.d.,p.6.Cf. tambmG. Lukcs,Die TheoriedesRomans,Neuwied,Luchterhand,1962,e Geschichteund Klassen-
bewusstsein,Werke,vol.lI, capo4;LucienGoldmann,Pour unesociologiedu roman,
Gallimard,1964.
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cos,quefazemumpactocomodiabo.Em todasumacertagran-deza,digamossatnica,vindadesuaradicalsolidoe do firmepropsitodeusara cabeaparaalcanara felicidade.MesmoSeixas,umnetoatenuadodeRastignac,fazumclculodessetipo:tratam-nocomomercadoria?aceitao papel,ecomtalrigor,queAurliaexasperadae finalmentederrotadapelasuaobedinciaacabaimplorandoqueelevoltea secomportarcomoum serhumano.- Em termosdenossoproblema:sofbulasquede-vemasuaforasimblicaaummundoqueno Brasilnotivera
lugar.Suaforma a metforatcitadasociedadedesmitologi-zada(entzaubert,naexpressodeMax Weber)emistificadaqueresultadaracionalidadeburguesa,ou seja,dageneralizaodatrocamercantil.
Issoposto,semteoriad-seo confrontodiretoentreumaformaliterriaeumaestruturasocial,jqueesta,porseraomes-mo tempoimpalpvelereal,nocompareceempessoaentreasduascapasde um livro. O fatode experincia,propriamenteliterrio,outro,eaelequeaboateoriadevechegar:estnoacordoou desacordoentrea formae a matriaa queseaplica,
matriaqueestasim marcadae formadapelasociedadereal,decujalgicapassaasera representante,maisou menosinc-moda,nointeriordaliteratura. aformadestamatria,portanto,quevainosinteressar,paraconfrontocomaoutra,queaenvol-ve.Quaisentoestesembriesformais,queasseguramafideli-dadelocalistaecontrastamascertezasemqueassentao modelo
- queimitvamos- do romanceeuropeu?Falvamos,pgi-nasatrs,deum "tommaisdesafogado".Voltemosaoproble-ma,apropsitoagorado enredo.- A parteinicialdo roman-ce,chamada"O Preo",terminaemsuspenseeclmax,nanoitemesmadocasamento:Seixas"modulavaoseucantodeamor,essa
odesublimedocorao",quandoAurliao interrompeelhede-clara,derecibonamo,queeleum"homemvendido".Frente
56
A importao do romance e suas contradies em Alencar
afrente"ascastasprimciasdosantoamorconjugal"eosintole-rveis"cemcontosderis"do dote.Nos limitesdoprimarismovibrantequeaideologiaromnticahaviaconsagrado,nopodiaestarmaiscarregadooantagonismoentreidealedinheiro.18Fimdecaptulo.J asegundaparteabresingelaedescontraidamente,noutroregistro,muitobeneficiadapelocontraste.Voltaatrsnotempo,afim decontarahistriadeAurliaedesuafamlia,dasorigensmodestasataheranademil contos.Samosdaesferaelegante,a cenaagorapobre,debairroou deinterior.Como
sever,ashistriasaqui- subenredosquenochegamadeter-minaraformado livro- sodeoutraespcie.PedroCamargoporexemplofilho naturaldeum fazendeiroabastado,aquemtememaisquea morte.Vem Corte paraestudarmedicina.Gostadeumamoapobre,notemcoragemdecontaraopai,casacomelaemsegredo- quefogedecasa,poistambmnafamliadelahoposio,j queo rapazno filho legitimadoepodenoherdar.Do casamentonascemAurliae um meninode"espritocurto".19 Semprecommedodeconfessaraovelho,voltao estudante fazenda,ondeacabamorrendo.Deixamu-
lherefilhosno Rio, naposioequvocadafamliasempaico-nhecido.As mulherescosruramparaviver,o filho viracaixeiroetc.Observe-se,nestesumrio,queemboraestejampresentesoselementosdoromancerealista,adiferenatotal:nemo av-
dequemAurliairherdarafortunamaisadiante- fazfiguradetestvelpor terfilhosnaturais,nemo filho condenadoem
nomedoAmorquenomoveumontanhas,oudaMedicina,quenoeraumavocao,nemasuamulherdiminudaporterdes-respeitadofamliaeconvenincias,enemafamliadela,queafinal
18 Senhora,pp. 1.026,1.028-9.
19 Idem,p. 1.038.
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Ao vencedor as batatas
decontaserapobreenumerosa,podecondenar-seporqueno
incorporaumestudantesemtosto.Noutraspalavras,amor,di-nheiro,famlia,compostura,profisso,noestoaquinaquelesentidoabsoluto,desacerdcioleigo,quelhesderaa ideologia
burguesaecujaexignciaimperativadramatizaeelevao tomparteprincipaldo livro.No soideologiadeprimeirograu.Asconseqnciasformaissomuitas.Primeiramentebaixaa suatenso,queperdeaestridncianormativa,ecom elaa posiocentral,delinhadivisriaentreo aceitveleo inaceitvel.No
sendoummomentoobrigatrioecoletivododestino,o conflito
ideolgiconocentralizaaeconomianarrativa,emqueirfazerfiguracircunstancial,deincidente.Nem permiteo amlgamadeindividualismoeDeclaraodosDireitosdoHomem,dequede-
pende,paraasuavibrao,o enredoclssicodo romancerealis-ta.As soluesnosodeprincpio,masdeconvenincia,econ-formam-se relaode forasdo momento.Arranjosqueno
mundoburgusseriamtidoscomodegradantes,nestaesferasocomocoisasdavida.Note-setambmocarterepisdicodahis-
tria,adispersodeseusconflitos,quedefatosupemamen-cionadadistenso,sema qualapoesiado andamentoerrtico,tobrasileira,ficariaanuviadademoralismo.Paraaprosa,resulta
queasuaqualidadeliterrianoserdaordemdaforacrticaedo problema,masantesdafelicidadeverbal,degolpedevista,deandamento,virtudesestasdiretamentemimticas,queguar-
damcontatosimpticoefcilcomafalaeasconcepestriviais.
Umafugadeacontecimentos,evocadacomarteeindefinidamen-teprolongvel,quevemdesembocarnalgumacoisacomoo re-pertriodosdestinossugestivosnestemundodeDeus.Estamosprximosdaoralidadee talvezdo "causo",estruturamaissim-plesquearomanesca,masafinadacomasiluses- tambmelasindividualistas- denossouniversosocial.Um complementoli-
terriodapredominnciaideolgicado favor:a faltadeabsolu-
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A importao do romance e suas contradies em Alencar
tismonasnormasreflete,sepodemosdizerassim,aarbitrariedadedo arbtrio,aoqualprecisoseacomodar.Da o encantoparamodernosdestamaneiranarrativa,emqueosAbsolutosqueaindahojenosvampirizamaenergiaeo moralaparecemrelativizados,referidosqueestoaofundomovedioehumano- repetimosqueilusrio- dosarranjospessoais.Paraconceberenfimadis-tnciaideolgicatranspostanestamudanaderegistro,digamosqueelacortaou dcircuito,comoumcomutador,nadamenosqueaofetichismoprpriocivilizaodoCapital;- fetichismoqueisolaeabsolutizaoschamados"valores"(Arte,Moral,Cin-cia,Amor, Propriedadeetc.,esobretudoo prpriovalorecon-mico),e queaosepar-losdo conjuntodavidasocialtantoostornairracionaisemsubstncia,quantodepositrios,parao in-divduo,detodaaracionalidadedisponvel:umaespciedefis-coinsacivel,aquemdevemosepagamosconscienciosamenteaexistncia.2o
20 Paraaconstruodo contrasteentrenartativapr-capiralistaetomance
- feitasobreo fundodatransiodoartesanatoptoduoindustrial,transio
queno abrasileita- veja-seo admirvelensaiodeWalterBenjaminsobreo
narrador, in Sehriften,vol. lI, Frankfurt/M.,Suhrkamp,1955.Idealmentee ar-
riscando,digamosqueo "causo"submeteexperinciadeseusouvintes,etra-
dioemqueestesseenttoncam,asimplicidadeinesgotveldeumaanedota.Ex-
perinciaetradiocompostaselastambmdeanedotas,squaisamaisrecente,
malfoi contada,jestseincorporando.Umahistria,destacadacomhabilidade
sobreo fundovriodo repertrioquecompea sabedoriacomum,eisa poesia
, destegneto- dequeestbanidoo conhecimentoconceitual,o conhecimento
quenotenhacauovividaou traduonoutraanedota.O contrriodo quese
passacomo tomance,cujasaventurassoatravessadaseexplicadaspelosmecanis-
mosgeraismascontra-intuitivosdasociedadeburguesa:apoesiadesteestnacon-
juno"moderna"eartisticamentedifcildeexperinciaviva,naturalmenteafim
do esforomimtico,edo conhecimentoabstratoecrtico,referidosobretudo
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Ao vencedor as batatas
Um sromance,masdoisefeitos-de-realidade,incompat-veisesuperpostos- eisaquesto.Aurliasaiforadocomum:seutrajetoirseracurvadoromance,eassuasrazes,queparaseremsriaspressupemaordemclssicadomundoburgus,sotrans-formadasemprincpioformal.J voltadela,o ambientedeclientelaeproteo.O velhoCamargo,DonaFirminaeo Sr.Le-mos,odecenteAbreueohonestoDr. Torquato,afamliadeSeixas,asfacilidadesqueesteencontraparaarranjarsinecuras-, sopersonagens,vidas,estilosqueimplicamumaordeminteiramente
predominnciasocialdo valor-de-trocae smil variantesda contradioentre
igualdadeformaledesigualdadereal.A durezaeaconseqncialgicaestoentre
assuasmarcasdequalidade.Digamosportantoquenoroma'nceo incidenteatra-
vessadodegeneralizao,masqueasuageneralidadereferidaaumtipoparticular
desociedade,oumelhor,aumaetapahistricadamesma,cifradanoconflitocen-
tral.J no causo,o incidentepurodeexplicao,eno entantovai inscrever-se
- adespeitodeseutotallocalismo- no tesouroa-histricoegenricodasmo-
tivaesedosdestinosdenossaespcie,vistasegundoa idiadadiversidadedos
homensedospovos,enodatransitoriedadedosregimessociais.O causocontri-
buiparaumacasusticadassituaeshumanasedastradiesregionais:servepara
desasnaredivertir,fortificaeajudaaviveraquemo saibaouvir.Enquantoo ro-
mance,quepelocontrriosdesilude,temcompromissocomaverdadesobrea
vidanumaformaosocialdeterminada,efazpartedeummovimentodecrtica
mesmoquandonoo queira.Formahistricaentretodas- qualseincorpora
livrementeo conhecimentodito cientfico,emespecialdehistria,psicologiae
economia,almdaintenodoretratodepocaededenncia- o romancepde
barraratcertoponto,entrens,a figuraoliterriado pas.Eis o paradoxo.
Enquantoo causo,incomparavelmentemenosdiferenciadoe banhandono cau-
dalquaseeternoeinespedficodanarrativaoral,combinaaconcepoa-histrica
- osenleiosdavida- eo apreodesimpedidopelareproduodacircunstn-
cia,quelhepermiteum realismoqueentrenso Realismodetradioliterria
nosnoalcanava,comodificultava.No entanto,claroqueAlencarnoum
contadordecausos,jporqueescreve.Por umadestasfalsidadesfelizesdalitera-
60
tis;
A importao do romance e suas contradies em Alencar
diversa.Formalmente,oprivilgiocabeordemdoenredo.Ar-
tisticamente,talprivilgionosematerializa,poisAlencarno
completaapreeminnciaformaldosvaloresburguesescomacrti-cadaordemdofavor,dequeadmiradoreamigo.Assim,afor-manosficasemrendimento,como restringidaemsuavi-gncia:o sinalnegativoquepor lgicae aindatacitamenteelaaporia~matriadequediverge, desautorizado,contrabalan-
adopelasboaspalavras.Ora, o revezamentodepressupostosin-compatveisquebraa espinhafico.Umabasedissociada,aque
turaromntica,elecombinaaveiapopularautnticaaoromantismomodernoe
restaurativodaevocao,cujoritmorespiradoe largoconstriasimbiosedeme-
ditaoeespontaneidade- aligaoprofundaenaturalcomnaturezaecomuni-
dade,fingidanapostura"visionria"- que apoesiadaescolaeo sentimento
do mundoqueelaopesociedadeburguesa.Em estadopuroestesegundomo-
vimentodaimaginaoencontra-seem Iracema,ondejamaiso mundoevocado
sedeixaestarnadistnciaindiferentedaobjetividade.Fraseafrase,oupoucome-
nos,a imagemestsemprepassando,aproximando-se,desaparecendoaolonge,
compensandooutraanterior,noespao,notempo,naafeio- mobilidade"ins-
pirada"quedesfazaesclerosedaobjetividadepuraerestituio elementointeressa-
doepalpitanteemmemriaepercepo.Nestesentidovejam-setambmOguarani
eabeladescrioinicialdeO troncodo ip.Guardadasaspropores,o ritmoda
grandemeditaoromntica,emque custadesilncioe intensidadementala
complexidadedomundoapreendidaeretida,pararecompor-se- emminutos
deplenitudeeclarezaexaltadas- segundoaordemfluente,no-mutilada,daima-
ginao.Note-sepormnestasvises,porafirmativasquesejam,nospoetasin-
glesesouemHolderlinporexemplo,quesempreirrealo mundoquecompem
- o mundoinstvele frementedavisualizaogovernadapelosentidointerior
- cujaplenitude"devolve"aoshomenso sentimentodanaturezaedavidaquea
sociedademodernaIhesteriatomado.A umadiferenaimportante:a natureza
alencarinatemmuitodisso, efetivamenterepassadadenostalgia,maspor ins-
tanteslheacontecedeserapaisagembrasileiraemaisnada.Ondeosromnticos,
polemizandocontrao seutempo,imaginariamenterepristinavampercepoe
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filll
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'11
Ao vencedor as batatas
irocorresponderno planoliterrioa incoerncia,o tomposti-oesobretudoadesproporo.SeemBalzacosmedianosolhammedusadosparaosradicais,quesoasuaverdadeconcentrada- os"tipos",dequefalaLukcs- emAlencarolhamcomes-pantoparaAurlia,cujaveemnciaparecedespropsitoaalguns,gracinhadesalaaoutros,literaturaimportadaaosdois.O aspectoprogramticodossofrimentosdela,quelhesdeveriaavalizaradignidademaisquepessoal,fazefeitodeveleidadeisolada,decaprichodemoa.Ora, amor,dinheiroou aparnciasnosen-
natureza,Alencarcontribuiparaa glriadeseupas,cantando-lhea paisageme
ensinandoospatrciosav-Ia.O sortilgioromnticoserve-lhedefatoparavalo-
rizarasuaterra,enopararedescobri-Iacontraoscontemporneosmenossens-
veis.Assim,aexaltaoromnticadanaturezaveioaperderentrensasuafora
negativa,eacaboufixandoopadrodenossopatriotismoemmatriadepaisagem.
O prestgiodumaescolaliterriamodernaconsagravaaterra,queoutrosconside-
ravamrude,eadescobertadenossaterraconsagravaaverdadedaescolaliterria
(A. Candido,op. cit.,vol.n,p. 9).Com grandesatisfaoesensodeprogressoasnossaselitespunham-seemdiacomo sentimentoquemandadesesperardacivi-
lizao. o quesechamaserumjovempas.Da asuperposiotoesquisitaemIracema,depoesiadadistncia,quedouraderomantismoosnomesndioseos
acidentesgeogrficos,edeintenopropriamenteinformativaepropagandstica
- superposioquedmargemaumazonadeindiferenaentreliteraturaeufa-
nismo,ounostalgiaecartopostal,combinaorecuperadaemveiahumorstica,
esentoverdadeira,napoesiainicialdosModernistas.Em versoignbil,pois
destitudadeingenuidade,aconfusodeparasoepasemprico- a"mentirada
gentil"dequefalavaMrio deAndrade- hojealimentaapropagandaoficial.-
Sejacomofor, o soprodameditaoromnticachegoutambmato romance
realista,emboradiludopelaprosaextensaecontrariadopeloassuntomundano.
Emlugardanaturezaedovilarejo,atotalidadedesenvolvidadomundosocial:para
ofereceroequivalentedaplenitudecontemplativadopoeta,o romancistaobriga-se
afundiremsuaprosaanecessriamassadeconhecimentosfatuais,asuaelabora-
oanalticaecrtica,efinalmenteo movimentodesimpedidodareflexo- sn-
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ii3
A importao do romance e suas contradies em Alencar
do absolutoseexclusivos,nadamaisrazovelquelevaremcon-
taostrsaspectos,emaisoutros,nahoradecasar;oconflitoqueosabsolutizaparecedesnecessrioesemnatural.Idemparaapro-sa,quepareceexagerada.E mesmodopontodevistadacoern-
cialinearhaverdificuldades,poisemborasejaboamoa,com-passivaedesprendida,Aurliadespedechispasdefulgorsatni-coeapliCarigorosamenteamoraldocontrato.Algumdirqueadialtica,ShylockePortianumaspersonagem.No ,poissehmovimentoentreostermos,movimentoatvertiginoso,o
tesequecontrariaemtudoa tendnciado sculo,emqueostrsquesitosbriga-
vamentresi,comocontinuambrigando.Aindaumavezo exemploserBalzac.A
suaposturavisionria,ensaiadaenemsempreconvincente,apresenta-secomoa
faculdade"genial"deabarcarnumasmiradado espritoaFranado capital;de
auscultar-lheo movimentocomplexoa partirdequalquerdetalhesugestivo,de
fantasiarlivrementeaseurespeito,semprejuzodesempredizerverdadesraras,
finais,originaisetc.A naturezado assunto,contudo,atrapalha:a intimidadere-
flexivacomo mundoburgussacustosustentaumclimademeditao- tran-
saesnosopaisagensnemdestinos- dondea ocasionalimpressodequeo
titanismovisionriodeBalzac tambmum descomunalimpulsofofoqueiro.
Alencar,queprocuraamesmaatmosfera,tembonsresultadosquando retrospec-
tivo: deixandosuspensoo conflitodeprimeiroplano(emquenofeliz),volta
atrsparatraar,dasorigens,ahistriadeumdeseuselementos,o quefazcom
olhoseguro,interessanteeeconmico,etambmpotico.Vejam-sealmdahis-
triaprviadeAurlia,adeSeixaseo capo10,parteI,de O troncodo ip.Breveeinformativopor definio,o retrospectolimitaa reflexoideolgicadapersona-
gemou do narrador- queprejudicao romanceurbanoeproblemtico- e as
aventurasdescabeladas- queprejudicamoslivrosmaisaventurosos. realista
pordefinio:asuaregrao encadeamentoclaroesugestivodosatos,comvistas
nasituaoqueestiveranaorigemdoflash-back.Resultaumafiguraomaistran-
qila,interessadanadescrio,enonacrtica,dasforasqueiropesar. umasoluoemquebrilhamo talentomimtico,aculturabrasileiraeavisodecon-
juntodeAlencar,aomesmotempoqueseminimizamosefeitosdesencontrados
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Ao vencedor as batatas
processonoostransforma- Alencaradereaosdois,aumporsentimentodoscostumes,aoutroporapreopelamodernidade,quesaempurosdolivro,taiscomoentraram.Veja-seaindanes-tesentidoo pesoincertodasreflexesdesabusadasdeAurlia:setmrazodeser(comoteriam,seasuaforaformalfosseefe-
tiva),assenhorasquenogostam,porqueasachamimprprias,deveriamfazerfiguradehipcritas;masno,soboasmes.Jos rapazesdo tom, queachampicantee noseofendem,soacusadosdeinsensibilidademoral.Seixasporsuavez,queroman-ticamenteaceitarahumilhar-seafim dereavero apreodaama-da,no finalapresentaentreasrazesdesuaobedincia... aho-
de nossavida ideolgica. Recurso ocasionalem Senhora,esteandamento central
em Til e O troncodo ip, os romancesalencarinosda fazenda.So livros de intriga
abstrusa,ligada a uma noo subliterria do destino e da expiaodasculpas,no-
o que no entanto vem aligeirar-lhes a prosa, maneira do que vimos para o
flash-baek.Em lugar da complexidadeanaltica dos problemas,a fora do destino.
Nos dois casostrata-sede ricos fazendeiros,que deveropagar em detalheos es-
quecidosmalfeitosdajuventude. No entanto, quando sobe cenaeseabatesobre
os mortais, o pesode suaculpa coincide em largamedida - evantajosamente-
com o peso do passado, com o encadeamento e a purgao dos antagonismos
objetivos do mundo da fazenda:filhos ilegtimos, escravosenlouquecidos de pa-
vor, propriedadessubtradas,capangaseassassinatos,incndios,superstio,levantes
nasenzalaetc. Leiam-se, em Til, os captulos em volta do incndio (parteIV, capo
I-IX), para ter idia da fora e amplitude destemovimento. alisna unidade de
flego de seqnciaslongasevariadas,como estaa que nos referimos, que seates-
ta a fora romntica, "subjetiva", do narrador. a tambm, na prestezacom quelhe acodemaspalavrase asimagens- prestezade que nem sempreo bestialgico
estausente- que a dicodeAlencar convergecom a fala comum, pr-literria.
O andamento novelesco,por suavez, decompem-seem episdios breves,com-
patveiscom a narrativade tradio popular. A mim, em matria do que poderia
ter sido, pareceque soestesdois os seusmelhores livros.