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organizao:
no rio de Jane io
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Apoio: Fundao Heinrich Bll
organizao:
CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S459Segurana, trfco e milcia no Rio de Janeiro /organizao, Justia Global.- Rio de Janeiro : Fundao Heinrich Bll, 2008.
Inclui bibliografaISBN 978-85-1. Segurana pblica - Rio de Janeiro (Estado).2. Rio de Janeiro (Estado) - Milcias.3. Trfco de drogas - Rio de Janeiro (Estado).I. Justia Global (Organizao).II. Fundao Heinrich Bll.
08-3477CDD: 363.2CDU: 351.75
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Segurana, trco emilcias no Rio de Janeiro
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1. Termo utilizado para registrar casos de civis mortos durante suposta resistncia priso seguida de conronto. Procedimento inicialmente regulamentado durante a ditadura
militar pela Ordem de Servio n. 803, de 02/10/1969 e publicado no Boletim de Servio do dia 21/11/1969.
APRESENTAO
uma publicao organizada por JustiaGlobal, com o apoio da Fundao Heinrich Bll, e que contacom a contribuio de organizaes da sociedade civil e acad-micos. O livro pretende contribuir com algumas refexes atuaissobre o modelo de poltica de segurana que vem sendo adotadono estado e traz inovadoras anlises sobre a crescente atuaode grupos criminosos.
A publicao apresenta um estudo exploratrio sobre as mil-cias e cinco artigos que trazem para o primeiro plano, atravs dediversas perspectivas de anlise, questes cruciais para o debateatual da segurana pblica no Rio de Janeiro. So analisados o
processo de mudana na economia poltica do crime, as disputasde territrio entre o trco de drogas e os seus modos de coer-o, a expanso das milcias e do seu brao poltico no Estado, aintensicao da violncia de Estado e um acentuado processode privatizao da segurana pblica.
No primeiro artigo, Discursos e Prticas na Construo deUma Poltica de Segurana: o caso do governo Srgio CabralFilho (2007 2008), a Justia Global discute a construo deuma poltica de segurana pblica pautada no enrentamento,que contribuiu para o aumento das violaes de direitos huma-nos e das execues sumrias cometidas pela polcia, comodemonstrou o relatrio preliminar da visita ao Brasil do Relator
da ONU para Execues Sumrias, Arbitrrias e Extrajudiciais,Philip Alston. O artigo analisa algumas maniestaes pblicasdo governador Sergio Cabral e do secretrio de segurana JosMariano Beltrame e evidencia as estratgias para eetivar aesde guerra que oram responsveis pelo aumento signicativodos chamados autos de resistncia1.
Segurana, Trfco e Milcias no Rio de Janeiro
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Jailson de Souza e Silva, Fernando Lannes e Raquel Willadino,do Observatrio de Favelas, no texto Grupos Criminosos Arma-dos com Domnio de Territrio: reexes sobre a territorialidade docrime na regio metropolitana do Rio de Janeiro, trabalham como conceito de domnio de territrio para analisar as prticas rea-lizadas pelo trco de drogas e pelas milcias; mapeia a infun-cia desses grupos em diversas comunidades do Rio de Janeiro eapresenta propostas de polticas pblicas de segurana.
Capitalismo dependente e direitos humanos: uma relaoincompatvel, do proessor da Universidade Federal do Rio deJaneiro, Roberto Leher, amplia o debate ao relacionar as atu-ais polticas de segurana para a Amrica Latina com o processo
histrico de ormao dos Estados nacionais no continente. Deacordo com o autor, o modelo de controle social exemplicadono Plano Colmbia encontrou seguidores no Rio de Janeiro etem resultado em violaes de direitos humanos vinculadas cri-minalizao da pobreza e dos movimentos sociais.
Avaliando o surgimento dos grupos de extermnio na Bai-xada Fluminense nas dcadas de 1970-80, Jos Cludio AlvesSouza, proessor da Universidade Federal Rural do Rio deJaneiro, problematiza o enmeno das milcias na cidade do Riode Janeiro no artigo Milcias: Mudanas na Economia Poltica docrime no Rio de Janeiro. Para o autor, as milcias e os grupos deextermnio so evidncias de que membros do aparato policial
reconguram uma nova relao com o crime. Deixam de serapenas mediadores na economia poltica do crime para esta-belecer seu prprio controle militarizado das reas pobres dacidade, o que possibilita o avano de certas atividades crimino-sas e unciona de maneira complementar prtica de execu-es sumrias adotada por sua poltica de segurana. As redes
do crime so analisadas no emaranhado que abrange a mo-de-obra barata para o trco de drogas, os grupos econmicose polticos envolvidos, e, claro, o Estado.
No artigo Associaes de Moradores de Favelas e seus Diri-gentes: o discurso e a ao como reverso do medo, Itamar Silva,coordenador do Instituto Brasileiro de Anlises Socioeconmicas(IBASE) e Lia de Matos Rocha, doutoranda do IUPERJ, apresen-tam e discutem as percepes de lideranas de movimentos sociais- principalmente lideranas ligadas s associaes de moradoresde avelas - diante de suas possibilidades de ao no contexto pol-tico atual no Rio de Janeiro, da tensa relao com o trco de dro-gas e dos limites da representao poltica nas avelas cariocas.
Por m, a pesquisa Seis por Meia Dzia?Um estudo explorat-rio do enmeno das chamadas Milcias no Rio de Janeiro, deautoria do proessor Igncio Cano, do Laboratrio de Anlise daViolncia (LAV-UERJ) com colaborao da Justia Global, realizauma minuciosa refexo do enmeno das milcias na cidade doRio de Janeiro. Com base em um arto levantamento de dados -notcias da imprensa, inormaes do servio de disque-denn-cia e entrevistas com pessoas que moram em comunidadesdominadas por milcias - a pesquisa evidencia o modus operandidesses grupos armados, a sua extenso no poder poltico local ea sua abrangncia territorial na cidade.
A manuteno do controle exercido pelo trco e, agora a
rpida expanso das milcias, em reas pobres da cidade, aliadasao aumento do nmero de execues praticadas por agentes doEstado so provas contundentes da alncia deste modelo de segu-rana adotado pelo Estado do Rio de Janeiro, que se baseia exclu-sivamente em uma poltica de enrentamento, com uma claraopo por medidas repressivas e pela diuso da violncia estatal.
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CAPITALISMO DEPENDENTE
E DIREITOS HUMANOS: UMARELAO INCOMPATVEL
Roberto Leher
ASSOCIAES DE MORADORES DE FAVELASE SEUS DIRIGENTES: O DISCURSO E A AO
COMO REVERSOS DO MEDOItamar Silva e Lia de Mattos Rocha
SEIS POR MEIA DZIA?: UM ESTUDO
EXPLORATRIO DO FENMENO DASCHAMADASMILCIAS NO RIO DE JANEIROIgnacio Cano e Carolina Ioot
MILCIAS: MUDANAS NAECONOMIA POLTICA DO CRIMENO RIO DE JANEIROJos Cludio Souza Alves
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DISCURSOS E PRTICAS NA CONSTRUO DE UMAPOLTICA DE SEGURANA: O CASO DO GOVERNO
SRGIO CABRAL FILHO (2007-2008)Camilla Ribeiro, Raael Dias e Sandra Carvalho
GRUPOS CRIMINOSOS ARMADOSCOM DOMNIO DE TERRITRIOREFLEXES SOBRE ATERRITORIALIDADE DO CRIMENA REGIO METROPOLITANADO RIO DE JANEIROJailson de Souza e Silva,Fernando Lannes Fernandes,Raquel Willadino Braga
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Camilla Ribeiro, Raael Dias e Sandra Carvalho1
I. IIntroduo
O presente texto reere-se aos discursos e prticas que, desde
o processo eleitoral, o ento candidato Srgio Cabral Filho apre-
sentou publicamente em relao poltica de segurana pblica.
Assim, sero analisadas declaraes e aes na rea de segu-
rana pblica nos dois primeiros anos do governo Srgio Cabral.
Os discursos dos agentes pblicos (governador, secretrio
de segurana, comandantes da polcia militar, etc.) constitu-
ram uma estratgia prtico-discursiva para legitimar uma pol-
tica de segurana baseada, segundo suas palavras, na poltica
do enrentamento ou conronto que tem como eeitos con-
cretos: a disseminao das mega-operaes em comunida-
des pobres da cidade do Rio de Janeiro e o aumento signica-
tivo dos autos de resistncia2 durante o ano de 2007. Mais do
que uma poltica de conronto, a proposta de segurana pblicaposta em prtica pelo governo Srgio Cabral Filho evidencia a
ocorrncia de aes de extermnio por parte do Estado, sem a
devida investigao pblica desses atos.
Utilizaremos como indicador da anlise: a realizao de mega-
operaes policiais em avelas da cidade do Rio de Janeiro e
o concomitante aumento dos autos de resistncia3 no perodo
demarcado (2006-2008).
Para entender a poltica de segurana do atual governo pre-
cisamos azer uma breve contextualizao histrica das polti-
cas de segurana hegemnicas no estado do Rio de Janeiro,
durante a dcada de 1990 e na primeira dcada deste sculo.
II. Breve hIstrIco da poltIca desegurana no rIo de JaneIro
A construo da poltica de segurana militarizada, nas dca-
das de 1980-1990, baseia-se no discurso de combate ao tr-
co de drogas na cidade do Rio de Janeiro e tem como eeito
nmeros crescentes de civis mortos.
Segundo Ceclia Coimbra (2000) a concepo hegemnica
de segurana pblica nas dcadas de 80 e 90 infuenciadapela Doutrina de Segurana Nacional que durante a ditadura
militar enraizou-se no cotidiano e estava voltada contra os opo-
sitores polticos do regime autoritrio. Atualmente, com a utili-
zao de outras estratgias o inimigo interno passa a ser as
parcelas mais miserveis da populao.
dIscursos e prtIcasna construo de umapoltIca de segurana:o si cb Fi (2007-2008)
1. Camilla Ribeiro Coordenadora de Projetos da Justia Global; Raael Dias pesquisador da Justia Global; Sandra Carvalho Diretora Executiva da Justia Global.
2. Termo utilizado para registrar casos de civis mortos durante suposto conronto com a polcia e resistncia priso. 3. No ano de 2007 o nmero total de autos de
resistncia no Estado do Rio de Janeiro oi de 1330 casos.
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Coimbra (2001, p.18) analisa com acuidade os discursos
produzidos pela mdia e agentes de Estado e que conduziram
Operao Rio4. O uso da Doutrina de Segurana Nacional
contra inimigos internos torna possvel a crescente crimina-
lizao dos pobres, negros e moradores de avelas entendidos
como as classes perigosas.
A militarizao da segurana pblica no estado do Rio de
Janeiro ativa no discurso higienista e racista do sculo XIX e no
projeto urbanstico da cidade5 no comeo do sculo XX (Belle po-
que) visava, sobretudo, controlar a populao pobre. A pobreza,era identicada como vetor de doenas e degenerados.
Esse tipo de pensamento higienista, que recorrente na
nossa sociedade, oi expresso recentemente por Marcus Jardim,
Comandante do 1 Comando de Policiamento de rea (CPA) do
Rio de Janeiro, ao armar que: A PM o melhor inseticida
social6, no dia 15/04/08 em reerncia a ao da polcia mili-
tar na avela de Vila Cruzeiro, onde oram mortas nove pessoas
e eridas seis, tendo como justicativa o combate ao trco de
drogas. Agindo dessa maneira, os representantes da poltica de
segurana do estado do Rio de Janeiro visam naturalizar suas
prticas, comparando seres humanos a insetos que podem ser
mortos sem que ocorra qualquer investigao sobre os atos.
A partir de 1980, em nome do combate ao trco de dro-
gas, dierentes governos passam a implementar uma poltica de
segurana cada vez mais repressiva e com rgido controle das
populaes pobres, em especial os negros.
Em relao s polticas neoliberais, que avanam desde
1980, o socilogo Loc Wacquant (2001, p.7) arma que as
polticas de penalidades buscam remediar com o aumento do
Estado policial e penitencirio a diminuio do Estado econ-
mico e social, conhecido tambm como Estado providncia ou
de bem-estar social, que comea a ser desmontado nesse per-
odo. Com isso, as polticas repressivas de Estado investem sobrea populao pobre, que atualmente no serve mais como exr-
cito de reserva para o capitalismo contemporneo. Congura-
se na atualidade um tratamento penal da misria que levado
adiante por polticas de segurana que estimulam a letalidade,
a demonizao de um segmento da populao e a concomi-
tante militarizao de suas prticas.
E isso no uma simples coincidncia: justamente por-
que as elites do Estado, tendo se convertido ideologia do
mercado total vinda dos Estados nicos, diminuem suas
prerrogativas na rente econmica e social que preciso
aumentar e reorar suas misses em matria de segu-
rana, subitamente relegada mera dimenso criminal.
No entanto, e sobretudo, a penalidade neoliberal ainda mais sedutora e mais unesta quando aplicada em pases
atingidos por ortes desigualdades de condies e oportu-
nidades de vida e desprovidos de tradio democrtica e
de instituies capazes de amortecer o choque causado
pela mutao do trabalho e do indivduo no limiar do novo
sculo. (WACQUANT, 2001, p.7).
O aumento do Estado punitivo onde se insere a atual pol-
tica de segurana do Rio de Janeiro, que por meio das mega-
operaes policiais e com os autos de resistncia vem trans-
ormando as aes de segurana pblica em atos de extermnio
e exposio permanente morte da populao pobre e negra.
Loc Wacquant, a respeito da interveno das oras da ordem e
os seus eeitos nas classes populares, arma que:
[...] a insegurana criminal no Brasil tem a particularidade
de no ser atenuada, mas nitidamente agravada pela inter-
veno das oras da ordem. O uso rotineiro da ora letal
pela polcia militar (...) as execues sumrias e os desa-
parecimentos inexplicveis geram um clima de terror entre
as classes populares. (WACQUANT, 2001, p.9).
Diante desse contexto, podemos entender o avano de pol-ticas de segurana autoritrias, enquanto estratgias de con-
trole da vida dos pobres, em sociedades desiguais e hierarqui-
zadas como o caso do Brasil. Na cidade do Rio de Janeiro,
essas polticas repressivas com a grie tolerncia zero,
4. Ocupao militar realizada por Foras Armadas, polcia militar e civil de reas consideradas perigosas que seriam as ontes da violncia e do trco de drogas no Rio
de Janeiro (1994-1995). 5. A remoo do Cortio Cabea de Porco, em 1893, no centro do Rio de Janeiro um exemplo do tratamento dispensado aos pobres pelo
Estado. 6. O Comandante da PM Marcus Jardim ez uma analogia da atuao dos tracantes com a epidemia da dengue em 2008 no Rio de Janeiro, sendo a polcia
militar a orma de combater os tracantes-insetos.
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Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro
importada dos EUA com escala na Colmbia7, so colocadas
em prtica. Com isso, chega-se a nveis dramticos, espe-
cialmente para os pobres e negros, de mortes de civis e uso
extremo da ora policial.
III. o extermnIo como prtIca da poltIca desegurana no rIo de JaneIro.
A violncia est to enraizada no cotidiano do carioca, que
caracterizada por alguns segmentos da sociedade, meios de
comunicao e por autoridades pblicas como guerra, deri-vada de um poder paralelo, impositor do terror e da desor-
dem. No entanto, nesta guerra, a identicao do inimigo
obedece a critrios geogrcos, sociais e raciais, que impe s
camadas mais miserveis da populao a triste generalizao
entre pobreza, raa e crime.
Podemos ver a escalada do poder punitivo do Estado no Rio
de Janeiro e como ela serve a lgica do enrentamento da cri-
minalidade e especialmente no combate ao trco de drogas e
aos narcotracantes.
Sob o manto do fagelo das drogas, tm-se empreendido
em larga escala a criminalizao das populaes excludas que
habitam as avelas, identicadas como principal oco do tr-
co de drogas e diusoras da violncia. Dessa orma, o com-
bate ao trco de drogas, da maneira como tem sido empreen-
dido, serve como pretexto e justicativa para aes violadoras
aos direitos humanos, com o to de limpeza social.
Discutindo as estratgias de criminalizao da pobreza, o
historiador Renato Prata Biar, arma que:
A estratgia no oi de criminalizar o pobre pura e simples-
mente, mas de associar o local onde ele habita ao terror imposto
por um novo e modernssimo grupo de selvagens, assassinos
cruis e sanguinrios: os trafcantes de drogas. A fgura do tra-fcante nessas localidades o que permite que se exera essa
poltica de invaso e de extermnio, mesmo quando se sabe
que ali unciona apenas uma parte do trfco.8
Para a juza Maria Lcia Karam (2003, p.78), o controle do
sistema penal sobre a poltica de drogas no Brasil permite uma
ao militarizada na segurana pblica e o aumento de pes-
soas submetidas priso. No entanto, essa poltica est longe
de promover segurana populao, assim como, enrentar de
orma ampliada o problema do trco de drogas na nossa socie-
dade para alm do comrcio varejista localizado nas avelas.
Sobre essa questo, a sociloga Vera Malaguti Batista (2003)
revela que a juventude, pobre e negra o perl predominante das
pessoas que so presas ou passam por medidas scio-educativas
em relao aos ilcitos relacionados a drogas. A seletividade do sis-tema penal (polcia, judicirio) permite que a populao pobre, negra
e jovem seja alvo do controle repressivo do Estado. Ainda mais, com
aes de extermnio, esses so os chacinados por tal lgica.
A concepo de segurana pblica baseada na guerra contra
o crime, no conronto armado e na criminalizao da pobreza tem
sido constante ao longo de diversos governos no Rio de Janeiro.
No ano de 1995, durante o governo Marcelo Alencar, o ento
Secretrio de Segurana Pblica, General Newton Cerqueira,
implantou a premiao aroeste9 (1995-1997) - graticao
dada a Policiais Militares que praticassem atos considerados de
bravura pelo comando da corporao. Na maioria das vezes, o
policial premiado havia participado de aes que resultaram na
morte de supostos criminosos.10
Em 2003, o ento Secretrio de Segurana Pblica Josias Quin-
tal declarou: Nosso bloco est na rua e, se tiver que ter conito
armado, que tenha. Se algum tiver que morrer por isso, que morra.
Ns vamos partir pra dentro.11 A declarao veio por conta da
implementao da Operao Rio Seguro12. Anthony Garotinho,
sucessor de Josias Quintal na Secretaria de Segurana Pblica,
tambm comemorou a morte de mais de 100 pessoas (supostos
bandidos) em menos de 15 dias no cargo13. O ano de 2003 regis-
trou um nmero de 1.195 civis mortos em decorrncia da ao
policial, em ace de 45 policiais mortos no mesmo perodo.14Por sua vez, antes de se eleger, o atual governador do Rio de
Janeiro, Srgio Cabral Filho, havia sinalizado uma mudana de
rumo na concepo da poltica de Segurana Pblica. No dia de
7. No ano de 2007, o primeiro escalo da segurana pblica da cidade do Rio de Janeiro e o governador estiveram em Bogot para conhecer os programas de segurana
como modelo a ser seguido. In: O Globo 23/03/2007: Em visita Colmbia Cabral conhece programas de segurana. http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/03/23/295068560.
asp 8. A Criminalizaao da Pobreza. Renato Prata Biar, Historiador, Rio de Janeiro. http://www.redecontraviolencia.org/Artigos/233.html 9. A promoo por bravura e grati-
cao por mrito tambm conhecida como premiao aroeste, no perodo de 1995 at 1997, promoveu o acobertamento e ortaleceu os crimes cometidos por agentes
do Estado. In: (COIMBRA, 2000, p.239). 10. Trs dos policiais presos ganharam graticao aroeste. Agncia Folha/AJB 08/04/97. http://www1.olha.uol.com.br/ol/geral/
ge08041.htm 11. O Globo, 27/02/03. 12. Relatrio Rio: violncia policial e insegurana pblica. Rio de Janeiro: Justia Global, 2004. 13. O Globo, 11/05/03. 14. Direitos
Humanos no Brasil 2003: Relatrio Anual do Centro de Justia Global. Rio de Janeiro: Justia Global, 2004.
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sua eleio, 15 de novembro de 2006, declarou que os vecu-
los blindados da polcia, conhecidos como Caveiro15 estavam
com os dias contados. Disse, na ocasio, em relao aos eei-
tos da utilizao do blindado sobre as comunidades pobres:
um trauma para as comunidades. No d para azer Segurana
Pblica com caveiro, acrescentando que a polcia entrar
prestando servios e garantindo segurana populao.16
No entanto, essa mudana de rumo no aconteceu. Em 18
de novembro de 2006, dois dias aps ser apresentado como o
uturo Secretrio de Segurana Pblica do Rio de Janeiro, JosMariano Beltrame, anunciou que no iria transormar os Cavei-
res em sucata e admitiu seu uso de acordo com critrios rgi-
dos17: Diz ele, em entrevista a um jornal carioca:
Se houver necessidade de colocar tropas em determina-
dos locais onde ns no pudermos nos socorrer de outra
orma, o Caveiro ser utilizado. Ele existe para transportar
policiais para reas onde comprovadamente existir risco. O
que no queremos a banalizao do uso. 18
Aps as declaraes de Beltrame, Srgio Cabral voltou atrs:
No podemos dispensar equipamento comprado com recur-
sos pblicos. Seria irresponsabilidade, anunciando a continui-
dade dos veculos blindados19. Iniciava-se a poltica do con-
ronto, que apresenta como critrio de ecincia o extermnio
de pessoas nas comunidades pobres do Rio de Janeiro.
Esse modelo de segurana, pautado na letalidade como indi-
cador de ecincia, toma vulto na dcada de 199020 e se apro-
unda ainda mais na dcada atual. Os indicadores de autos
de resistncia e as mega-operaes rearmam tragicamente
essa concepo blica na poltica de segurana. A utilizao
do Caveiro revela a opo por uma segurana pblica que
criminaliza a parcela mais pobre da populao e cada vez mais
militariza suas prticas de policiamento. O Relatrio da socie-
dade civil entregue ao relator da ONU para Execues Sum-
rias, Arbitrrias e Extrajudiciais, Philip Alston, assinala:
Embora a posio ofcial seja em avor do emprego do Cavei-
ro apenas em momentos especiais e de exceo, na pr-
tica, o que vemos um uso cada vez mais incisivo, regular e
cotidiano sendo justifcado pelo discurso do estado de exce-
o permanente proporcionado pela atual poltica de guerra
contra o trfco. (Relatrio da sociedade civil, 2007).
Esse tipo de concepo de segurana aparece, tambm, na
diuso do que se convencionou chamar de mega-operaes
policiais, a partir de 2007. As denominadas mega-operaes
so incurses policiais nas avelas que contam com um grande
nmero de agentes das oras de segurana estadual e/ou ede-
ral, alm de uma ampla cobertura e espetacularizao dos meios
de comunicao. Essas operaes so apresentadas e justicadas
pelas autoridades pblicas como ao pacicadora para erradicar
a ora armada21. No entanto, as mega-operaes tm se tradu-
zido em aes de alta letalidade, por parte das oras policiais.
Em seu relatrio preliminar22 da visita que ez ao Brasil em
novembro de 2007, Phillip Alston enatiza sua preocupao com
essas mega-operaes realizadas nas avelas do Rio de Janeiro:
(...) apesar da operao, realizada em junho de 2007, no
Complexo do Alemo, ter resultado em 19 mortes, autorida-
des do governo do estado declaram ser esta operao um
modelo para as aes uturas da polcia.
Em entrevista a Revista poca23, o governador Srgio Cabral,
ao comentar a mega-operao policial realizada no dia 27 de
junho de 2007 no Complexo do Alemo, armou:
15. O Caveiro um veculo militar de combate utilizado pelas Policias Militar e Civil do Rio de Janeiro nas suas incurses pelas avelas e demais comunidades pobres.
Tornou-se smbolo de uma poltica de segurana pblica violenta e criminalizadora da pobreza. 16. Srgio Cabral diz que vai aposentar caveires. Terra, 15/11/2006.
http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1248507-EI5030,00.html 17. Futuro xerie anuncia mais vigilncia em via expressa. O Dia Online, 18/11/2006. http://
odia.terra.com.br/rio/htm/geral_68074.asp 18. Futuro xerie anuncia mais vigilncia em via expressa. O Dia Online, 18/11/2006. http://odia.terra.com.br/rio/htm/
geral_68074.asp 19. Ibidem. Futuro xerie anuncia mais vigilncia em via expressa. O Dia Online, 18/11/2006. http://odia.terra.com.br/rio/htm/geral_68074.asp 20.
A Operao Rio (1994-1995) demonstra como a militarizao da segurana pblica chega ao extremo com policiamento realizado com tropas do exrcito na rua. 21.
Polcia prepara ao para pacicar o Complexo do alemo. O Globo OnLine. 24/09/2007. http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/09/24/297858977.asp 22. Philip Alston
apresentou o relatrio preliminar no dia 02 de junho no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. 23.Os bandidos j viram que no estamos de brinca-
deira. Revista poca, Edio 477,06/07/2007. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG77973-5856,00-OS+BANDIDOS+JA+VIRAM+QUE+NAO+ESTAMO
S+DE+BRINCADEIRA.html
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A populao est convencida da necessidade desse con-
ronto. Nos ltimos anos houve um crescimento da muscu-
latura do trfco que a populao no suporta mais. As pes-
soas esto prontas para azer o sacricio porque sabem que
s isso vai melhorar sua qualidade de vida. Durante muitos
anos o campo progressivo, a esquerda, associou a ordem
pblica ditadura, ao autoritarismo. Hoje sabemos que a
ordem pblica a garantia da cidadania. Todos temos que
azer sacricio pela vitria contra a barbrie. No h como
azer omelete sem quebrar os ovos. O prprio presidente Lula
disse que o crime no se combate com ptalas de rosa. Euadoraria que os bandidos se entregassem, que entregassem
suas armas pacifcamente, mas isso no possvel. No h
outro caminho a ser seguido.
Ainda, nessa mesma entrevista o governador declarou que
o objetivo das operaes policiais: no acabar com o tr-
co. Isso ningum conseguiu at hoje. O trco no acabou
em Paris, em Nova Iorque e nem em Estocolmo, que tm muito
mais recursos do que ns. O objetivo chegarmos a nveis civi-
lizatrios de criminalidade. (Revista poca, 2007).
necessria uma anlise mais detalhada do que o governador
entende por nveis civilizatrios de criminalidade, pois em diver-
sas oportunidades seu discurso pode ser entendido como eug-
nico, associando criminalidade, pobreza e limpeza social. A viso
civilizatria do governador Srgio Cabral Filho expressa uma
concepo extremamente conservadora e autoritria em relao
populao pobre moradora das avelas, ao relacionar a taxa de
natalidade da Rocinha produo de violncia. Em entrevista aos
meios de comunicao deendeu o aborto como orma de com-
bate criminalidade. De acordo com suas palavras:
A questo da interrupo da gravidez tem tudo a ver com a
violncia. Quem diz isso no sou eu, so os autores do livroFreakonomics [Steven Levitt e Stephen J. Dubner]. Eles
mostram que a reduo da violncia nos EUA na dcada de 90
est intrinsecamente ligada legalizao do aborto em 1975
pela Suprema Corte, citou [na verdade, oi em 1973] (...)
Voc pega o nmero de flhos por me na Lagoa Rodrigo de
Freitas, Tijuca, Mier e Copacabana, padro sueco. Agora,
pega na Rocinha. padro Zmbia, Gabo. Isso uma brica
de produzir marginal. O Estado no d conta.24
Essa declarao por parte do governador do estado explicita
o processo de criminalizao da pobreza em curso no Rio de
Janeiro: ao mesmo tempo, que ocorre a intensicao de estra-
tgias discursivas que apontam o aumento do poder repressivo
como a nica poltica de segurana possvel. Assim, ao associar
pobreza com criminalidade Srgio Cabral deende uma soluo
baseada na preveno higienista, de triste memria na histriado pas, aliada ao uso das oras policiais.
De ato, os discursos tanto do governador Srgio Cabral
quanto de autoridades pblicas na rea de Segurana Pblica,
tm deendido reiteradamente que as aes letais das oras
policiais nas comunidades pobres do Rio de Janeiro so um mal
necessrio e a nica orma para pacicar esses territrios,
deixando-as com um nvel civilizatrio de criminalidade.
A alta de reao social s presumveis execues que ocor-
rem nas comunidades e que vitimam, de acordo com autori-
dades pblicas, bandidos, crucial para a conduo de uma
poltica de segurana pblica criminalizadora da pobreza, que
estende o conceito de bandido e periculosidade para todos
os moradores das avelas, em especial os negros25. Dessa
orma, os representantes da segurana pblica no estado uti-
lizaram diversas estratgias para desqualicar as aes contr-
rias a concepo de guerra na segurana pblica. A estrat-
gia principal associar as maniestaes sociais ao trco de
drogas ou armar que as crticas ajudam ao trco.26
Por sua vez, o secretrio de segurana, Jos Mariano Beltrame,
apresenta um quadro em que a retrica blica a nica possvel
na conduo da poltica de segurana. Para ele, o cenrio de
guerra onde inevitvel eridos e mortos.
Nesse sentido, em entrevista a Revista Veja, Jos MarianoBeltrame declara que:
O Rio chegou a um ponto que inelizmente exige sacri-
cios. Sei que isso dicil de aceitar, mas, para acabarmos
com o poder de ogo dos bandidos, vidas vo ser dizimadas.
24.Site G1 Cabral deende aborto contra violncia no Rio de Janeiro, 24 de outubro de 2007, http://g1.globo.com/Noticias/0,,FLC0-5597-2821954,00.html. 25. Flau-
zina, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro cado no cho: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro (p.130). Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. 26.Justia
Global reage a crticas do chee da polcia civil. O Globo OnLine, 10/05/2008. http://oglobo.globo.com/rio/mat/2008/05/10/justica_global_reage_criticas_do_chee_da_
policia_civil-427319435.asp
Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro
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(...) uma guerra, e numa guerra h eridos e mortos.27
Reorando ainda mais a lgica de guerra, outros agentes
do Estado expressam a noo de retomada das comunidades
atravs do incremento das aes repressivas. Em entrevista ao
Jornal o Globo o Coronel Marcus Jardim, o ento Comandante
do 16. Batalho da Polcia Militar, deendendo a intensicao
das operaes policiais no Complexo do Alemo, declarou:
Dar um pouco mais de trabalho porque precisaremos de mais
homens, mas isto no vai impedir a retomada dessas comunida-des. Este ser um ano marcado por trs ps: Pan, PAC e Pau.
Essa declarao irnica do Cel. Marcus Jardim reere-se as
aes de retomada de comunidades pobres para a entrada do
Programa de Acelerao do Crescimento (PAC) do governo ederal
e a estratgia de segurana para a realizao dos jogos Pan-Ameri-
canos (junho 2007). No entanto, esse modelo no se restringiu ao
perodo dos jogos, como j demonstramos. Ele transormou-se em
modelo de segurana deendido pelo governo do estado.
Alm do nmero de vtimas letais das mega-operaes, h
ainda um saldo signicativo de pessoas eridas ou mortas em
razo de balas perdidas, sem contar outros inmeros homic-
dios resultantes de incurses policiais de menores propores,
que azem parte do cotidiano dos moradores das avelas.
Agora vamos analisar mais detalhadamente o acontecimento
da mega-operao do Complexo do Alemo, que serviu como
modelo para as operaes policiais que se seguiram, de maneira
constante, com um nmero elevado de mortos e utilizao de
excessivo uso da ora.
Iv. a mega-operao no complexo do ale-mo: um modelo para a segurana pBlIca?
A mega-operao que mobilizou cerca de 1.200 policiais,
realizada no Complexo do Alemo, em 27 de junho de 2007, na
qual morreram ocialmente 19 pessoas, revela como essa pol-
tica de segurana baseada em aes de extermnio. O laudo
independente produzido pela Secretaria Especial de Direitos
Humanos (SEDH)28 indica que houve casos de execuo sum-
ria entre as pessoas mortas nessa mega-operao:
De acordo com o parecer da SEDH a anlise dos laudos
cadavricos evidenciam numerosas leses, em cada corpo,
que incluem:
A anlise da topografa dos oricios de entrada de projteis
de arma de ogo evidencia maior concentrao em regies
letais. Do total de mais de setenta oricios de entrada, cin-
qenta e quatro atingiram regies mortais, o que corres-
ponde a cerca de 75%
Os peritos independentes acionados pela SEDH oramconclusivos em assinalar que: vrias das mortes decorreram
de um procedimento de execuo sumria e arbitrria, e essa
concluso se baseia nos seguintes elementos:
Grandenmerodeorifciosdeentradanaregioposterior
do corpo;
Numerososferimentosemregiesletais;
Elevadamdiadedisparosporvtima;
Proximidadededisparos;
Seqenciamentodedisparosemrajada;
Armasdiferentesutilizadasnumamesmavtima.
O laudo da SEDH chama ateno, tambm, para a ausncia
de indicativos de condutas destinadas captura de vtimas e a
ausncia de indicadores de condutas deensivas por parte das
vtimas. Ou seja, a polcia atirou para matar. Esse ato tambm
chamou a ateno do Relator da ONU, que em seu relatrio
preliminar assinalou:
(...) muitos ofciais do estado do Rio de Janeiro considera-
ram a operao no Complexo do Alemo como um modelo
para aes uturas. Entretanto, os resultados atuais desta
operao no so signifcativos. Os mais importantes traf-
cantes no oram presos ou mortos, e poucas armas e dro-
gas oram apreendidas. Nenhum policial oi assassinado epoucos oram eridos, mas a resistncia encontrada justif-
caria, aparentemente, o assassinato de 19 indivduos.
A evidncia da ocorrncia de execues sumrias na opera-
o realizada no Complexo do Alemo em 27 de junho tambm
est explcita na destruio de provas pela polcia. Na manh do
dia 28 de junho representantes da Justia Global, o Deputado
27. Revista Veja 2032. http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=391382 28. Relatrio Tcnico Visita de Cooperao Tcnica Rio de Janeiro, Julho
de 2007.Secretria Especial de Direitos Humanos, Presidncia da Repblica.
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Estadual Marcelo Freixo e outras organizaes da sociedade civil
estiveram na comunidade da Grota no Complexo do Alemo, ou
seja, logo aps a realizao da mega-operao policial. Durante
a visita oi possvel observar rastros de sangue pelo cho, col-
ches e os utilizados para remover os corpos, carros queimados,
casas incendiadas, lojas saqueadas e tambm conversar com
os moradores e ouvir os seus relatos sobre toda violncia a que
oram submetidos no dia anterior. Um depoimento, em especial,
nos chamou a ateno. Um morador inormou que seu estabe-
lecimento havia sido arrombado pela polcia. Tratava-se de umagaragem em que moradores alugavam vagas para guardar seus
veculos. De acordo com o depoimento, o cadeado do estabele-
cimento oi quebrado, o porto de erro oi metralhado pelos poli-
ciais que roubaram uma Kombi, que serviu para que transportas-
sem os corpos das vtimas que estavam no alto do morro. Depois
de us-la os policiais atearam ogo na Kombi.
Esse depoimento ganha importncia se conrontado com
otos29 e laudos dos mortos na operao, que indicam que os
homens que estavam dentro da Kombi morreram no local da
ao policial e que oram levados para o hospital j mortos, des-
azendo assim a cena do crime e inviabilizando a realizao de
percia do local.
O laudo independente produzido pela SEDH corrobora essa
inormao, pois aponta que os corpos em bito deram entrada
no Hospital Geral de Bonsucesso e no Hospital Estadual Get-
lio Vargas e nos relatrios emitidos pelos mesmos no oram
descritos procedimentos mdicos de ressuscitao. Indica que
deram entrada no Instituto Mdico Legal (IML) despidos, envol-
tos apenas em um ou dois lenis, e as vestes originais no
oram encaminhadas posteriormente para percia.
Em relatrio preliminar apresentado ao Conselho de Direitos
Humanos da ONU, Philip Alston destaca que:Em certo sentido, a operao no Complexo do Alemo
reete a principal estratgia do Governo do Estado. poli-
ticamente motivada e consiste em policiamento pelas pes-
quisas de opinio. Mas popular entre aqueles que querem
resultados rpidos de demonstraes de ora. A ironia que
contra producente..
v. maquIando o extermnIo:autos de resIstncIa
O discurso da guerra contra o crime, da poltica de con-
ronto no se sustenta quando analisamos os indicadores na
rea de segurana pblica. Os indicadores revelam um uso
excessivo da ora no Rio de Janeiro, mesmo considerando a
violncia do contexto em que a ao policia l se insere. Assim,
o nmero de civis mortos durante aes policiais; a propor-
o entre policiais mortos e civis mortos; a proporo entrepoliciais e civis eridos e a proporo entre civis mortos e
presos, revelam que muitas dessas aes so de extermnio
e que pouco impactam na reduo da criminalidade violenta
no Rio de Janeiro.
No Rio de Janeiro, o registro das pessoas mortas pela pol-
cia includo na categoria Autos de Resistncia. O auto de
resistncia um ormulrio em que a Polcia Militar registra
eventos de resistncia armada no decorrer de sua atividade
legal. No entanto, na prtica, uma das ormas que autori-
dades policiais vm utilizando para mascarar as execues
sumrias decorrentes de abusos no exerccio de suas unes.
Sendo o ormulrio destinado ao registro das ocorrncias com
resistncia armada, os autos de resistncia tm cumprido
outro papel, na medida em que acabam sendo utilizados para
o registro de qualquer morte ruto ou no de resistncia
praticada por um policial.30
Esse tipo de registro exclui as mortes realizadas pela pol-
cia dos registros de homicdios, embora de ato sejam homic-
dios. Dessa maneira, alm de subjugar vala comum de um
nico documento todas as mortes perpetradas por agentes da
polcia impedindo uma visualizao, classicao e controle
de suas atividades que resultem em vtimas atais - este docu-
mento contribui de maneira denitiva para descaracterizar ohomicdio policial na medida em que tais mortes no so
classicadas como crime, mas como resultado de operaes
legais de segurana31.
O relator especial da ONU sobre execues, arbitrrias e extraju-
diciais em seu relatrio preliminar da visita ao Brasil, em novembro
de 200732, disse em relao utilizao dos autos de resistncia:
29. As otos so do Instituto Mdico Legal do Rio de Janeiro e de ontes no divulgadas. 30.Relatrio Rio: violncia policial e insegurana pblica. Rio de Janeiro: Justia
Global, 2004. 31. Misse, Michel. Como desarmar a violncia policial? Desarme: Notcias/Opinio. Rio de Janeiro, 04/03/2004. http://www.desarme.org/publique/cgi/cgi-
lua.exe/sys/start.htm?inoid=3139&tpl=printerview&sid=16 32.O Relator esteve no Brasil em misso de 04 a 14 de novembro de 2007 e visitou So Paulo, Pernambuco,
Rio de Janeiro e o Distrito Federal.
Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro
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Na maioria dos casos, mortes causadas por policiais em ser-
vio so registradas como autos de resistncia ou casos de
resistncia seguida de morte. Em 2007, no Rio de Janeiro,
a policia registrou 1330 autos de resistncia, uma fgura
que representa 18% do nmero total de homicdio no Rio
de Janeiro. Em teoria, h circunstncias em que a polcia
usou ora necessria e proporcional em resposta a resistn-
cia de suspeitos de crime a ordens de ofciais encarregados
da segurana. Na prtica, o quadro radicalmente dierente.
A determinao sobre se uma execuo extrajudicial umamorte dentro da lei eita primeiramente pelo prprio poli-
cial. Raramente as auto-classifcaes so seriamente inves-
tigadas pela Polcia Civil. Eu recebi vrias alegaes bastante
crveis de que homicdios por resistncia, que seriam de
ato execues extrajudiciais. Isto reorado por estudos
de relatrios de autpsias e pelo ato de que a taxa de civis
mortos pela polcia surpreendentemente alta.
Ao pesquisar a atuao da Justia Militar, Igncio Cano
indica que ela incapaz de controlar e punir os abusos de
utilizao da ora letal por parte dos policiais militares e os
crimes que possam ser cometidos no uso da mesma. (CANO,
1997, p.33). Ainda hoje no existem mecanismos que pos-
sam investigar com iseno e autonomia os casos de abuso da
ora cometidos pela polcia. Dessa maneira, a utilizao do
termo auto de resistncia unciona como procedimento siste-
mtico para inviabilizar investigaes autnomas da atividade
policial.
Uma das causas desse cenrio , obviamente, a impunidade.
O desembargador Srgio Verani, que estudou casos de autos de
resistncia, mostra que eles eram sistematicamente arquivados
a pedido da promotoria. Quando o juiz negava o pedido de arqui-
vamento, baseado em ortes indcios de execuo, a conrmao
do mesmo pedido pelo procurador em segunda instncia inviabi-
lizava qualquer ao penal. Verani enatiza que:
(...) o Ministrio Pblico e, sobretudo o Poder Judicirio
no podem tornar-se meros rgos homologatrios da arbi-
trariedade e da violncia policiais, eetivando, dessa orma,
a legalizao da impunidade, incompatvel com o Estado de
Direito Democrtico33
Esses assassinatos em nome da Lei abordados por Verani(1996), na dcada de 80, oram agravados no decorrer das lti-
mas duas dcadas com o incremento da noo de guerra ao
crime e a conseqentemilitarizao das polticas de segu-
rana, como j oi indicado.
Em comparao aos anos anteriores, o Governo Srgio
Cabral Filho apresenta uma elevao no nmero de autos de
resistncia. Os dados do Instituto de Segurana Pblica (ISP)
de civis mortos em supostos conrontos com as oras poli-
ciais em relao aos de policiais mortos em servio demonstram
uma proporo de 41 para 1, ou seja, para cada policial morto
em servio existem 41 civis mortos inseridos na categoria de
auto de resistncia. No ano de 2007, oram registrados 1.330
autos de resistncia no estado do Rio de Janeiro contra 23 poli-
ciais mortos em servio.
Nos primeiros trs meses de 2008, 358 civis oram mortos
durante operaes policiais no Rio de Janeiro34, o que repre-
senta um aumento de 12% em relao ao mesmo perodo de
2007. Se essa mdia se mantiver, o Estado do Rio de Janeiro
registrar 1431 autos de resistncia em 2008. Nesse mesmo
perodo, oram 4 os policiais mortos durante o servio.
A proporo entre civis e policiais mortos muito superior
que a mdia internacional e indica o uso excessivo da ora e
prticas de execuo sumria. (CANO, 1997)
33. VERANI, Srgio. Assassinatos em nome da Lei, Rio de Janeiro: Ed. Aldebar, 1996, pg. 64. 34. http://www.isp.rj.gov.br/NoticiaDetalhe.asp?ident=133
cIvIs mortos pela polcIa(autos de resistncia - nmero de vtimas)
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
Estado 300 397 289 427 592 900 1195 983 1098 1063 1330 358*
*os dados so relativos aos 3 primeiros meses de 2008.
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Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro
Dinheiro exigido com violncia. Segundo, para evitar
que faces saiam de seu controle. Pessoas suspei-
tas deornecer inormaes ou colaborar com outras aces,
so mortas. Em terceiro lugar, apesar de alguns no serem cria-
dos como grupos de extermnio de ato, os relacionamentos il-
citos que eles desenvolvem com outros elementos mais pode-
rosos e auentes da comunidade, resulta reqentemente no
engajamento de assassinatos de aluguel.
Uma srie de outros homicdios, registrados como mortes
com tipicao provisria e que inclui encontro de cadver, de
ossada ou morte suspeita, esto em grande parte relacionadosa ao de grupos de extermnio e milcias que muitas vezes con-
tam com a participao de policiais e outros agentes do Estado.
Em 2007 essas mortes somaram 806 casos36.
vI. a poltIca de extermnIo contraproducente
A guerra contra o crime no tem, como alegam as auto-
ridades, tornado o Rio de Janeiro mais seguro. O Estado apre-
senta em mdia uma taxa em torno de 50 homicdios a cada
100.000 habitantes, o que o coloca na terceira posio entre os
mais violentos do Brasil, cando atrs apenas de Pernambuco
e Esprito Santo, respectivamente37. A situao se agrava ainda
mais se analisarmos os homicdios juvenis, em que o Rio de
Janeiro ultrapassa a taxa de 100 homicdios para cada 100.000
jovens38. Os autos de resistncia que no so computados nes-
ses montantes, contribuem para alar o Rio a um patamar ainda
mais elevado no que diz respeito a homicdios.
Por outro lado, a elevao nos registros de autos de resistn-
cia no encontra correspondncia nas taxas de apreenso de
drogas e armas39, que em 2007, apresentaram queda em rela-
o a 2006:
polIcIaIs mIlItares mortos35
Em servio Na olga Total % Folga
2000 20 118 138 85,5
2001 24 104 128 81,3
2002 33 119 152 78,3
2003 43 133 176 75,6
2004 50 111 161 68,9
2005 24 111 135 82,2
2006 27 117 144 81,3
2007 23 ND 23 ND
ND dado no disponvel
Essa discrepncia entre policiais e civis mortos indicam que h
uma incidncia signicativamente menor de conronto armado,
leia-se autos de resistncia, e, por outro lado, como apontam evi-
dncias mdico-legais, muitos casos de execues sumrias.
Chama a ateno o elevado ndice de letalidade de policiais
durante a olga, ou seja, quando em tese, no estariam se envol-
vendo em situao de conronto. Essas mortes tm ocorrido
durante o chamado "bico" (geralmente atividade de segurana
privada para aumentar a renda), em decorrncia de vingana e,
muitas vezes, em virtude do envolvimento de policiais com ativi-
dades criminosas e grupos de extermnio.
Philip Alston, mais uma vez, em seu relatrio preliminar assinala
em reerncia ao engajamento de policiais em ilegalidades, entre
as quais a constituio de milcias e grupos de extermnio diz que:
As polcias estaduais, especialmente a polcia mili-
tar do Estado, trabalha rotineiramente em outro
emprego, quando esto de folga. Alguns formam
milcias, grupos de extermnio, ou esquadres
da morte e outros grupos que agem com violncia,
inclusive execues extrajudiciais, que ocorrem porvrios motivos. Primeiro, procuram dar proteo a
comerciantes, fornecedores de transporte alternativo,
em que outros so forados a pagar para este grupo.
35. Estado do Rio de Janeiro: Policiais Militares Mortos em Servio e na Folga. CESeC- Universidade Cndido Mendes. http://www.ucamcesec.com.br/
est_seg_evol.php 36. Estado do Rio de Janeiro: Mortes com Tipicao Provisria e Homicdios Dolosos. CESeC- Universidade Cndido Mendes. http://www.uca-
mcesec.com.br/est_seg_evol.php 37. Mapa da Violncia dos Municpios Brasileiros, da Organizao dos Estados Ibero-americanos para Educao, a Cincia e a
Cultura (OEI), p. 23. Fevereiro de 2007. 38. Mapa da Violncia dos Municpios Brasileiros, da Organizao dos Estados Ibero-americanos para Educao, a Cincia
e a Cultura (OEI), p. 68. Fevereiro de 2007. 39. Estado do Rio de Janeiro: Apreenses de Armas e Drogas Eetuadas pela Polcia -1991/2007. CESeC- Universidade
Cndido Mendes. http://www.ucamcesec.com.br/est_seg_evol.php
Apreenso 2006 2007
Drogas 13.312 11.062
Armas 10 793 10.178
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Assim, como armou o relator da ONU, Phillip Alston, em
seu relatrio preliminar sobre o Brasil, a poltica de segurana
posta em prtica pelo atual governo do Rio de Janeiro con-
traproducente. Baseada em aes de extermnio, no impacta
sequer no que diz ser seu alvo, o combate ao trco de drogas.
Na lgica de enrentamento da criminalidade posta em pr-
tica pelo governo Srgio Cabral, ou seja, a guerra contra o
crime, no h correlao entre as aes e sua eetividade. O
governo do Rio de Janeiro, como disse o prprio governador,
no pretende acabar com o trco de drogas40. Pretende sub-
meter os moradores de avelas sua ora, ao seu controle.As aes policiais nas avelas esto ocadas apenas no uso
excessivo da ora, em execues sumrias. A proporo entre
as mortes e as prises e apreenses de drogas e armas durante
a realizao das mega-operaes nas avelas indica a ausncia
de aes coordenadas de inteligncia, indica, mais do que isso,
que a ao do Estado se torna cada vez mais criminalizadora da
pobreza, como se as armas ossem ali abricadas e as drogas ali
cultivadas. Ignora a participao ativa de policiais e de outros seg-
mentos sociais na organizao de redes criminosas, como o tr-
co de drogas e de armas, entre outras modalidades. A priso de
integrantes de cpula da segurana pblica do governo anterior
pela Polcia Federal orte evidencia da participao de policiais,
polticos e outros agentes do Estado em atividades criminosas41.
vII. consIderaes FInaIs
O artigo buscou identicar como oi construda, at o
momento, a poltica de segurana do governo Srgio Cabral, a
partir das declaraes pblicas do governador e das principais
aes do seu governo. A atual poltica de segurana est inse-
rida numa escalada da represso e o concomitante desinvesti-
mento nas reas sociais.
Entendemos que a opo por uma poltica de enrentamentose expressa na realidade por aes de extermnio voltada para os
pobres, negros e jovens moradores de avelas. O atual governo
no dialoga com os movimentos sociais e organizaes de direitos
humanos no debate de uma poltica de segurana que seja eetiva-
mente pblica e pautada pela deesa dos direitos humanos
40. Os bandidos j viram que no estamos de brincadeira. Revista poca, Edio 477,06/07/2007. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG77973-
5856,00-OS+BANDIDOS+JA+VIRAM+QUE+NAO+ESTAMOS+DE+BRINCADEIRA.html 41. Deputado lvaro Lins preso em fagrante no Rio, diz PF. G1. 29 de maio
de 2007. http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL582542-5606,00.html
Vrias maniestaes das organizaes e movimentos sociais,
contrrias ao atual modelo de segurana, oram desqualicadas
pelo governador do Estado e pelo seu secretrio de segurana, que
muitas vezes tentaram associar organizaes e movimentos sociais
ao trco de drogas. Esta estratgia autoritria e grosseira visa
impedir qualquer maniestao contrria implementao dessa
poltica de extermnio. At mesmo o relator da ONU, Philip Alston,
oi desqualicado pelo secretrio de segurana pblica do Rio de
Janeiro, na ocasio do lanamento do relatrio preliminar, onde az
duras crticas poltica de segurana do Rio de Janeiro.
Srgio Cabral no recebeu Philip Alston, quando este esteve noRio de Janeiro, evidenciando o desapreo do governador ao meca-
nismo de direitos humanos e ao relator da ONU. Essa postura tam-
bm est expressa na conduo dessa poltica de segurana que
impe s comunidades pobres o modelo das mega-operaes
policiais e o aumento sistemtico dos autos de resistncia.
reFerncIas BIBlIogrFIcas:
CANO, Igncio. Letalidade Policial no Rio de Janeiro: a atuao da Justia Militar.
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Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro
grupos crImInososarmados com domnIode terrItrIo rf b
iii i rimi ri Ji
Jailson de Souza e Silva1
Fernando Lannes Fernandes2
Raquel Willadino Braga3
consIderaes InIcIaIs
Grupos Criminosos Armados com Domnio de Territrio so
redes criminosas territorializadas que atuam em atividades eco-
nmicas ilcitas e irregulares, como o trco de drogas, servios
de segurana e transporte coletivo irregular, dentre outras, a partir
de uma base territorial especca, azendo uso da ora sica e da
coao especialmente pelo uso de armas de ogo - como princi-
pais meios de manuteno e reproduo de suas prticas.
As atividades criminosas, grosso modo, podem ser denidas
a partir de dois padres de uncionamento no que se reere
relao com o espao. Por um lado, h aquelas atividades
que prescindem de um substrato espacial especco para seu
uncionamento. Por outro lado, h aquelas atividades cuja exis-
tncia requer um substrato espacial. Podemos ilustrar esses
padres a partir de dois exemplos prximos.
As quadrilhas de assaltantes de bancos so grupos crimino-sos que no necessitam de uma base espacial especca para
suas atividades. Essas quadrilhas podem se organizar e se reu-
nir em bases logsticas pontuais, como casas ou apartamen-
tos, mas raramente algo mais amplo que isso, porque o tipo de
atividade que realizam requer o mximo de controle sobre as
inormaes que o grupo dispe e sobre a identidade dos parti-
cipantes do grupo. O connamento, neste caso, a base de
seu uncionamento. Assim, quanto mais escondida or, e quanto
menos relao sua base logstica tiver com o local planejado do
crime, melhor.
Um exemplo que nos ajuda a pensar uma atividade criminosa
que necessita de um recorte espacial especco de atuao, o
jogo do bicho. Esta atividade ilcita possui uma estrutura organi-
zacional interna baseada na diviso do espao pelos seus mem-
bros, que atuam dentro de suas reas de infuncia, inclusive para
alm de sua atividade especca, como o caso de suas ligaes
com polticos locais e mesmo com outras mas, como a dos
caa-nqueis ou das vans. Esse exemplo remete a uma relao de
uso, apropriao e domnio do espao como orma de garantia da
reproduo das atividades criminosas o que implica, neste caso,o que os gegraos chamam de territorialidade.
Robert Sack (1986) dene territorialidade como sendo a ten-
tativa de um indivduo ou grupo de aetar, infuenciar ou contro-
lar pessoas, enmenos e relaes, pela delimitao e deesa do
controle sobre uma rea geogrca (p.19). Esta rea, ele dene
1. Coordenador Geral do Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro, Doutor em Sociologia da Educao, proessor Adjunto do Departamento de Educao da UFF,
Consultor do UNICEF e Canal Futura. 2. Coordenador Executivo do Observatrio de Favelas do Rio de Janeiro, Doutorando em Geograa pela UFRJ. 3. Coordenadora de
Direitos Humanos do Observatrio de Favelas. Doutora em Psicologia Social pela Faculdade de Cincias Polticas e Sociologia da Universidad Complutense de Madrid.
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como territrio. Corrobora com esta denio a do tambm
gegrao Marcelo Lopes de Souza (1995), para quem o territrio
dene-se por um espao denido e delimitado por e a partir de
relaes de poder (p.96).
A territorialidade do crime, nestes termos, a expresso espa-
cial das prticas dos grupos criminosos. A sua orma, contudo,
varia de grupo a grupo, bem como os mecanismos utilizados no
processo de territorializao, ou, em outros termos, de apropria-
o e domnio do espao. O peso atribudo a reerncias simbli-
cas na demarcao das ronteiras e limites, bem como o uso daora e da coao, so estratgias que os grupos criminosos lan-
am mo nesse processo. Outros mecanismos, mais sutis, como
a popularidade de um indivduo ou grupo tambm podem ser-
vir de suporte territorializao, garantindo legitimidade sobre a
rea dominada rente aos seus ocupantes ou vizinhos.
No caso do Rio de Janeiro, observa-se que os grupos crimi-
nosos atuantes no ramo do comrcio varejista de drogas quali-
cadas como ilcitas, normalmente denominado de trco de
drogas no varejo ou simplesmente trco de drogas, azem
uso de recortes espaciais especcos para sua atuao. Esses
recortes ocorrem, em particular, a partir do domnio territorial
de avelas e outros espaos pobres e segregados da cidade,
avorecendo-se de caractersticas especcas dessas localida-
des, sendo a mais importante a baixa participao do Estado
como regulador e garantidor de direitos. Em alguns casos
especcos, como as avelas, contribui ainda a organizao
espacial interna marcada por becos, vielas e ruas estreitas,
que dicultam o acesso da polcia. Estes grupos, que come-
am a se organizar como quadrilhas entre o nal dos anos 70
e incio dos anos 80 se ortalecem em sua base territorial de
atuao ao estabelecerem uma relao de reciprocidade or-
ada (DOWDNEY, 2003) com os moradores das reas con-
troladas. Com isso, ocupam algumas lacunas deixadas pelarelao rgil do Estado com estas comunidades, muitas vezes
substituindo os direitos por avores e as obrigaes por rela-
es de cumplicidade.
At a dcada de 80, a atividade desses grupos ocalizava o
comrcio varejista de drogas ilcitas, algo que alimentava boa
parte do mercado consumidor do Rio de Janeiro. A compre-
enso de um relativo monoplio da venda de drogas na cidade
naquele momento importante para se entender as mudan-
as ocorridas ao longo dos anos 90 e 2000. As disputas inter-
nas, resultantes do poder que o trco passa a ocupar ao longo
dos anos 80, tem como resultado a ciso do Comando Verme-
lho, at ento grupo hegemnico e quase que absoluto no tr-
co de drogas no Rio de Janeiro. Desta ciso surge o Terceiro
Comando, que passa a disputar o mercado de drogas ilcitas,
cujas principais bases de reerncia passam a ser as territoria-
lidades assumidas por cada grupo. O local de atuao, neste
sentido, transorma-se em um territrio a ser deendido. A ter-
ritorialidade, ento, assume um papel central para a prpria
sobrevivncia do grupo. Ter uma base territorial no era apenas
um ponto de partida para a venda de drogas, mas para a pr-pria manuteno e reproduo do grupo e de suas atividades.
Esta dinmica contribuiu para a ocorrncia de novas rupturas e
o surgimento de outras aces do trco de drogas no Rio de
Janeiro, como, por exemplo, os Amigos dos Amigos, conhecida
como ADA.
Somada diversicao das aces do trco nos anos 90,
deve-se considerar a disseminao dos pontos de venda de dro-
gas, que gradativamente se espraiam no s pelas avelas da
cidade como por outros espaos, como apartamentos em bair-
ros nobres, produzindo, por um lado, uma nova congurao da
territorialidade do trco no varejo e, por outro, um aumento da
concorrncia pela venda de drogas.
grupos crImInosos armados com domnIode terrItrIo na regIo metropolItana dorIo de JaneIro
Na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro existem gran-
des Grupos Criminosos Armados com Domnio de Territrio que
atuam em dierentes campos e que, eventualmente, entram
em confito. So eles o Jogo do Bicho, o Trco de Drogas no
Varejo, a Mineira e as recentemente denominadas milcias.
Estes grupos possuem bases territoriais organizadas de maneiradierenciada, tanto em termos de consolidao quanto em ter-
mos de controle das ronteiras (remetendo ao que Robert Sack
chama de controle do acesso).
O Jogo do Bicho o grupo que possui uma organizao terri-
torial mais consolidada, tendo sua estrutura interna de unciona-
mento baseada em reas bem delimitadas, onde cada bicheiro
atua, respeitando a rea dos demais. Esta consolidao de um
territrio bem delimitado, estvel, dene, ela prpria, muito da
estrutura de uncionamento do Jogo do Bicho, revelando um
quadro de acertos e ajustes dentro desta rede criminosa em
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que as disputas internas no constituem ameaa ao seu uncio-
namento. Neste caso, a partilha do bolo uncionou como ele-
mento amenizador dos confitos e rupturas, j que cada mem-
bro sabe bem claramente seus limites de atuao.
A Milcia, conhecida em sua origem como Mineira, orga-
niza-se territorialmente a partir de reas de infuncia, no tendo
limites espaciais bem denidos, atuando, sobretudo, a partir da
idia de ronteira, o que signica estar em ranca expanso de
seus domnios territoriais. Sua rea de expanso privilegiada so
os loteamentos ilegais e irregulares da perieria urbana da regiometropolitana do Rio de Janeiro. Atuam em um ramo que vem
ganhando ora desde os anos 70, em que as invases de ter-
renos por grupos autnomos de sem-teto oram substitudas
pela gura de uma espcie de empreendedor imobilirio. Ele
agencia lotes em reas pblicas, muitas vezes sob respaldo de
vereadores e deputados, ou outras guras pblicas que garan-
tem o uncionamento de um esquema de venda ilegal de lotes
na perieria urbana. Esse enmeno, que vem se ampliando
desde os anos 70, ganha ora na medida em que estes grupos,
por sua origem de justiceiros, vendem um modelo de urbani-
zao baseado na segurana, a exemplo do que ocorre, de
maneira sosticada e regularizada, nos empreendimentos imo-
bilirios para ricos que comeam a se multiplicar nos anos 80
os condomnios exclusivos.
A Milcia tambm atua no ramo da segurana privada, oe-
recendo este servio a comerciantes das comunidades popu-
lares onde est territorializada, alm de ter ortes ligaes com
a ma das vans, que envolve o transporte irregular em si e
esquemas de corrupo e lavagem de dinheiro.
A origem da Milcia controversa, mas liga-se em particular,
a uma narrativa quase mitolgica, ocada em justiceiros locais,
como o caso de Rio das Pedras, maior avela da Zona Oeste da
cidade. Segundo relatos de moradores, a ento Mineira come-ou com o agrupamento em torno de um aougueiro que revol-
tado com os constantes assaltos ao seu estabelecimento, resolveu
organizar um grupo para garantir a segurana na comunidade.
Este grupo, que matava ou espancava os assaltantes, com o
tempo, passou a atuar de maneira prossional, expandindo suas
atividades, a partir do poder adquirido, para o setor imobilirio.
Hoje, aquele grupo criminoso possui um orte controle sobre o
loteamento das reas de ocupao, promovendo uma espcie de
organizao das ocupaes irregulares e ilegais.
Cabe destaque ainda ao discurso moralista que permeia
a atuao dos milicianos. O uso e comercializao de drogas
ilcitas no so tolerados, havendo casos de espancamentos,
expulses e mesmo mortes de usurios e/ou supostos vendedo-
res. Trata-se, em linhas gerais, de um novo re-encantamento
do mal, conorme assinalou ZALUAR (1994) quanto viso
construda pela sociedade em torno das drogas e dos tracan-tes. com base nesse re-encantamento do mal que a Milcia
vem ocupando um espao cada vez maior nas reas pobres da
cidade, vendendo um modelo de urbanizao, ainda que ile-
gal ou irregular, centrado na segurana e na moralidade, algo
que, inormalmente, vem seduzindo muitos moradores de ave-
las territorializadas pelo trco - como o caso de muitos que
ao longo dos anos 80 e 90, buscando ugir da violncia dos tra-
cantes, optaram por morar em Rio das Pedras.
Nos anos 2000, a expanso acelerada das milcias para novos
territrios, para alm da Zona Oeste, provoca sua visibilizao
acentuada na cidade. Com isso, o enmeno se torna um dos
principais pontos do debate sobre segurana pblica no Rio de
Janeiro, sobretudo a partir de 2006; nesse ano, as milcias
ocuparam vrias avelas dominadas h dcadas pelos grupos
de tracantes de drogas, tais como o Quitungo, Morro do Bar-
bante, Ramos e Roquete Pinto, aparentemente com velado
apoio das oras de segurana do governo estadual.
Segundo matria publicada no jornal O Globo de 10 de
dezembro de 2006, a cada 12 dias daquele ano uma avela
dominada pelo trco oi tomada por milcias. Relatrio da Sub-
secretaria de Inteligncia da Secretaria de Segurana Pblica
indicava que, entre 2005 e 2006, o nmero de comunidades
dominadas por esses grupos saltou de 42 para 924. Por sua vez,o Gabinete Militar da Preeitura do Rio, calculava que em 2006
haveria 55 comunidades sob o domnio de milcias.
Apesar das divergncias entre os rgos pblicos sobre o
nmero de comunidades controladas por milcias na regio
metropolitana do Rio de Janeiro, h acordo quanto contun-
dncia do avano desses grupos nos ltimos anos e sobre a
4.Entre 2006 e 2007 houve diversas menes na imprensa do Rio de Janeiro a um relatrio elaborado pela Subsecretaria de Inteligncia, no entanto, at o momento
tal documento no oi publicizado integralmente.
Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro
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existncia de uma maior concentrao na zona oeste da cidade,
base anterior da Mineira.
Embora os dados sobre as localidades dominadas ainda sejam
incipientes, a partir das inormaes disponveis, incluindo rela-
tos de moradores destas reas, possvel identicar algumas
caractersticas sobre a composio e os mecanismos de ocupa-
o e dominao das milcias.
Trata-se de grupos compostos principalmente por homens liga-
dos s oras de segurana do Estado, reormados e na ativa, pro-
venientes das polcias civil, militar, do corpo de bombeiros e, emcasos mais espordicos, das oras armadas. Apoiados em um
discurso ortemente moralista centrado na promessa de ordem e
paz, estes grupos dominam e exploram reas antes controladas
pelo trco de drogas. Ao ocupar uma comunidade, as milcias
eliminam o trco de drogas no varejo, mas passam a explorar
as demais atividades ilegais existentes no territrio. Desta orma,
tudo aquilo que era gerenciado pela rede do trco de drogas -
exceto o comrcio ilcito das drogas no varejo passa s mos do
novo grupo. Alm disso, as milcias introduziram uma prtica que
no era utilizada pelo trco: a cobrana de mensalidades por
domiclio para remunerar a segurana privada5.
Em alguns casos, tambm h inormaes sobre dinmicas
de especulao imobiliria, porm, de maneira geral, os gran-
des lucros das milcias esto nas taxas de segurana cobradas
a comrcios e domiclios, no gio dos botijes de gs6, na explo-
rao clandestina da TV a cabo (popularmente conhecida como
gatonet) e na taxao dos servios de transporte alternati-
vos (kombis, vans e moto txis). Isso signica que agentes do
Estado, com conhecimento anterior da dinmica das redes ilci-
tas, optaram por rmar-se enquanto mais um grupo criminoso
organizado e independente, visando assumir de orma exclusiva
os lucros obtidos nos territrios dominados.
A motivao , sobretudo, nanceira. No entanto, o argu-mento central utilizado pelas milcias para obter apoio nas ocu-
paes de que vo estabelecer a paz e a ordem, livrando
as comunidades do trco de drogas e trazendo benesses
para a comunidade. O xito que estes grupos vm obtendo
nos processos de invaso e ocupao de territrios que eram
controlados pelo trco se explica, em parte, pelo conheci-
mento da dinmica e estrutura local derivado de relaes ante-
riores com a rede ilcita, e pela promessa de abolir os conron-
tos armados, a exposio ostensiva a armamentos pesados e
ao trco de drogas.
Alguns grupos contam ainda com o apoio do aparato de
segurana ocial do Estado. As ocupaes costumam se dar de
orma rpida e discreta. De acordo com relatos de moradores de
reas dominadas, so comuns, durante a invaso e ocupao,
os desaparecimentos e as execues de pessoas ligadas ao tr-co de drogas local.
Ao contrrio da polcia mineira - grupo ormado basica-
mente por policiais moradores das comunidades - as milcias
se organizam externamente comunidade e tomam o territ-
rio sem que haja qualquer tipo de pertencimento ao lugar. No
entanto, os dois tipos de organizao criminosa convergem em
alguns aspectos. Tanto na polcia mineira, como na milcia,
o ator explorao-econmica a partir do controle do territrio
aparece como uma caracterstica essencial. Por outro lado, no
se tratam de organizaes com um comando nico.
Cabe destacar que alm da motivao econmica, h
indcios de que as milcias tambm almejam infuenciar a esera
poltica a partir da criao de currais eleitorais e da articulao
com representantes do legislativo e do executivo. Um levanta-
mento realizado pelo Jornal O Globo em 20077, indicou que
das 92 reas dominadas naquele momento pelas milcias, 73
tiveram pelo menos um policial, bombeiro ou militar reormado
entre seus candidatos mais votados nas ltimas eleies. De 9
candidaturas da rea de segurana pblica, 5 se elegeram com
votaes expressivas em reas ocupadas por milcias. nesse
contexto que as milcias vem se expandindo no Rio de Janeiro
com uma velocidade alarmante.
A dominao das milcias se d por meio de monitora-mento e controle permanente sobre a comunidade, de modo
que qualquer iniciativa est sempre sujeita deliberao e aos
interesses do grupo dominante. Isso implica mecanismos de
coao da populao, incluindo a coao armada, ainda que
de orma mais velada que a do trco. Com isso, o morador no
5. Este tipo de cobrana no realizado em todas as comunidades sob domnio das milcias. Foi constatado que em algumas localidades a cobrana eita somente
ao comrcio. 6. Os moradores so obrigados (ou pelo menos intimidados) a adquirirem os botijes vendidos dentro da comunidade, com preos acima da mdia.
7. Publicado na edio do dia 11 de evereiro de 2007.
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ca totalmente livre do convvio com armas de ogo em suasruas, embora sua exposio seja menos ostensiva.
Atualmente, comeam a prolierar relatos sobre diversas or-
mas de violncia utilizadas pelas milcias. As punies cruis
e truculentas dos transgressores, a elevao dos preos dos
produtos no comrcio local, derivado das taxas semanais ou
mensais as quais esto submetidos os comerciantes, associada
obrigatoriedade de realizar compras no interior da comuni-
dade; o ressurgimento de jovens armados pelas ruas de algu-
mas comunidades para garantir a vigilncia e a ordem, e o
monitoramento constante so alguns atores que tem gerado
insatisaes com as milcias e eito com que os moradores dasreas dominadas percebam que, apesar do discurso pautado
nas idias de ordem e paz, na verdade a dinmica de atu-
ao deste grupo implica uma nova modalidade de tirania.
O ltimo grande grupo criminoso armado que disputa o domnio
de territrios na regio metropolitana do Rio de Janeiro o Trco
de Drogas no Varejo. Como indicamos anteriormente, este grupo
atua em reas especcas, tendo nas avelas e conjuntos habita-
cionais seus principais espaos de territorializao. A presena do
trco de drogas nas avelas cariocas no algo recente. Remonta
aos anos 50, quando a maconha era comercializada por peque-
nos tracantes e vendida, sobretudo, para os moradores das pr-
prias avelas. Com a chegada da cocana nos anos 80 e o aumento
da demanda por drogas por parte da classe mdia, o cenrio do
comrcio das drogas ilcitas se modica e seu controle passa a ser
exercido por quadrilhas organizadas (DOWDNEY, 2003).
Os anos de 1983 e 1984 podem ser considerados o marco
temporal da chegada e consolidao do comrcio ilcito de
cocana no Rio de Janeiro. nesse perodo que maosos ita-lianos, ligados ao trco internacional de drogas vm ao Rio
de Janeiro negociar com grupos criminosos locais (ZALUAR,
2004). O Comando Vermelho organizao criminosa original-
mente undada para a deesa dos direitos dos presos, e poste-
riormente centrada em assaltos a bancos - muda seu oco, que
passa a ser o trco de drogas e o roubo de automveis, ativi-
dade paralela de suporte nanceiro ao trco. Tambm nesse
momento que os grupos que controlam a cocana na Amrica
Latina procuram a cpula do Comando Vermelho propondo
uma sociedade (AMORIM, 2003). Cabe considerar ainda que
este perodo oi caracterizado por uma poltica de seguranapblica branda nas avelas cariocas, resultado de uma tentativa
de humanizao da polcia pelo governo Brizola (1983-1985).
Observa-se, com isso, que o cenrio poltico (governo Bri-
zola), somado s caractersticas do contexto scio-espacial do
Rio de Janeiro, como o stio das avelas, a condio de pobreza
de seus moradores e um mercado consumidor promissor
(SOUZA, 1994a; 1994b), tornaram esta cidade um ponto estra-
tgico da venda de drogas, e no mais apenas um ponto de pas-
sagem de seu comrcio internacional. Como arma Dowdney
(2003), as avelas so geogracamente convenientes do ponto
de vista da deesa militar (p. 74).
A chegada da cocana sinaliza, ento, a passagem do para-
digma maconha-38 para o paradigma cocana-AR15
(SOUZA, 2000), segundo o qual a deesa dos pontos de venda
torna-se um dos aspectos centrais na comercializao da droga.
Com isso, observa-se um aumento do uso de armas pesadas
pelos tracantes, algo que, atrelado s disputas internas, dado
o crescimento e visibilidade do negcio do trco, transormou a
disputa e manuteno dos pontos de venda numa disputa mili-
tarizada que passou a envolver os grupos criminosos organiza-
dos em dierentes aces e a polcia.
No se pode esquecer, ao longo desse processo, o papel
ocupado pela polcia. A polcia, por um lado, adotou a lgica daguerra s drogas como paradigma de interveno, resultando
em conrontos blicos e num aumento signicativo do nmero
de mortes, seja de bandidos, seja de policiais, seja ainda de
moradores das avelas, que passaram a sorer diretamente os
eeitos desse conronto. Por outro lado, a polcia, no como ins-
tituio, mas a partir de grupos de policiais corruptos e interes-
sados em lucrar com o comrcio ilcito de drogas, comps um
grupo parte, que passou a disputar com os tracantes uma
atia dos rendimentos do trco atravs da extorso e, em mui-
tas circunstncias, associando-se ao negcio, seja com o trco
Segurana, trfco e milcias no Rio de Janeiro
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de armas, seja colaborando com os circuitos de deslocamentoda droga at os pontos de venda.
Assim, se por um lado a lgica de guerra s drogas ampliou
o grau de violncia dessa instituio nos espaos territorializa-
dos pelo trco, por outro e, contraditoriamente, essa represso
aumentou o poder dos grupos corruptos, j que o preo pela
tranqilidadetornava-secadavezmaisalto.Issolevouaum
aumento abrupto da corrupo, com sua instituio na conta-
bilidade do trco o arrego - e situou os grupos corruptos
em uma nova condio, que aproveitando-se de sua posio
comearam a partilhar dos lucros obtidos pelo comrcio ilegal
de drogas. Dessa orma, os grupos corruptos da polcia passa-ram a estabelecer relaes promscuas com o trco, atuando
em dierentes rentes, desde a extorso at a participao direta
no trco de drogas.
A disseminao e popularizao de novas drogas, especial-
mente as sintticas, a diversicao dos pontos de venda e, por
conseguinte, da concorrncia resultando em uma queda sig-
nicativa no valor nal da droga ao consumidor, acilitado pela
cadeia de corrupo que se consolida e se estende para as ron-
teiras -, a permanncia da irregularidade das prticas comerciais
e de uso do solo, alimentadas pela alta de scalizao, aplica-
o de regulao especca (conorme prevista no Plano Diretor
Decenal) e ainda o uso de mecanismos paralelos de resoluo
de confitos, reoradas pelo descrdito das instituies estatais,
ez com que as avelas e demais espaos populares da cidade
se tornassem o espao ideal de consolidao e ampliao das
redes ilcitas ali instaladas. A rede do trco, diante desse cen-
rio, diversica-se, ampliando seu grau de interveno nos espa-
os avelizados e de participao em atividades econmicas ilci-
tas ou no regularizadas, como o caso do transporte alternativo
(moto-txis e vans), da cobrana por servios de segurana, ou
ainda da cobrana de gio por servios como o gs.
Observa-se que as redes do comrcio varejista de drogas il-
citas consolidam-se ao longo dos anos 90, havendo uma maiordenio quanto s redes de corrupo e controle dos territ-
rios. As guerras entre aces so cada vez menores a partir
do ano 2000, demonstrando uma tendncia acomodao dos
pontos de venda, muito embora isso no tenha implicado no m
de uma certa instabilidade, seja pela ameaa permanente de
incurses policiais de conronto pautadas na lgica da guerra
s drogas, seja pela eventualidade de um grupo rival quererdisputar o territrio. O ato, porm, que o risco vem dimi-
nuindo, azendo com que o custo nal da droga e sua taxa de
lucro -, diminua igualmente. Como sinaliza Machado (1996),
O comrcio de drogas ilcitas tem o carter de atividade
transnacional, opera em escala global, mas seus lucros
dependem da localizao geogrfca dos lugares de produ-
o e de consumo, da existncia de ronteiras nacionais e
da legislao de cada Estado nacional (p. 30-31)
Esses atores infuenciam diretamente o preo nal do pro-
duto: Cada ronteira atravessada aumenta os riscos e, portanto,o investimento em corrupo e logstica. Com isso, os preos
aumentam e com eles a possibilidade de lucros (Ibid.: 30).
Ou seja, o que d lucro o risco que a comercializao
implica. Nesse sentido, avaliamos que, na medida em que o
risco diminui, as taxas de lucro diminuem, aetando diretamente
os mercados locais, especialmente aqueles que se situam na
esera mais empobrecida e precria da rede: as avelas, que
representam a maniestao mais pobre e menos sosticada
do trco de drogas (DOWDNEY, 2003: 75).
A diminuio das taxas de lucro do trco de drogas no varejo
do Rio de Janeiro oi constatada na pesquisa realizada pelo
Observatrio de Favelas entre 2004 e 2006 sobre a participao
de crianas, adolescentes e jovens na rede social do trco de
drogas no varejo8. O principal refexo disso oi a queda signica-
tiva dos rendimentos dos trabalhadores da rede do trco. Veri-
cou-se, por exemplo, que o exerccio de uma uno cujo rendi-
mento situava-se na aixa de 7 a 10 Salrios Mnimos em 2001
como demonstraram alguns estudos -, podia situar-se em 2006
na aixa de 1 a 3 Salrios Mnimos. Os refexos da queda das
taxas de lucro no aparecem apenas na reduo dos rendimen-
tos dos trabalhadores da rede do trco, mas revelam-se tambm
na diversicao cada vez maior das atividades dos grupos crimi-
nosos que atuam no trco de drogas.A diversicao das atividades ilcitas e irregulares pratica-
das pelos tracantes de drogas no algo recente. A antro-
ploga Alba Zaluar mencionava, j em 1982, a cobrana de
pedgio e taxas de proteo a comerciantes pelos tracantes da
Cidade de Deus (ZALUAR, 1994b). Igualmente, a prpria ori-
gem do Comando Vermelho no deixa dvidas de que embora o
8. OBSERVATRIO DE FAVELAS. Caminhada de crianas adolescentes e jovens na rede do trco de drogas no varejo do Rio de Janeiro, 2004-2006. Rio de Janeiro:
2006. Disponvel para download em www.observatoriodeavelas.org.br
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trco viesse a assumir um papel preponderante nas atividadesdo grupo, sua trajetria em atividades ilcitas os colocava em
condies de continuar atuando em outros campos, como men-
cionamos anteriormente quanto ao roubo de veculos. O ato,
porm, que temos observado uma diversicao e expanso
cada vez maior das atividades ilcitas e irregulares praticadas e/
ou nanciadas pelos grupos criminosos que tracam drogas no
Rio de Janeiro.
O chamado transporte alternativo, que na realidade uma
atividade irregular, porm praticada livremente, com rouxa s-
calizao do governo e alimentada por ortes redes de corrup-
o e lavagem de dinheiro, uma das atividades irregulares quemais crescem no Estado do Rio de Janeiro, e que conta com a
participao de grupos criminosos. Os servios de segurana
privada oerecidos nas avelas e a cobrana de gio pelo gs de
cozinha, entre outros servios, so tambm exemplos da expan-
so das atividades dos grupos criminosos que atuam, original-
mente, no ramo das drogas ilcitas.
Com base nisso, acreditamos que as circunstncias atuais
avorecem a denominao desses grupos no mais como tr-
co de drogas pura e simplesmente algo que, a propsito, j
escamoteava na origem os limites de uncionamento destes gru-
pos, pois atuam no varejo em condies limitadas e precariza-
das em comparao ao Trco das redes internacionais, que
envolve outro nvel de penetrao nas eseras de poder. Acre-
ditamos que a denominao mais adequada para estes grupos
seja a de Grupos Criminosos Armados com Domnio de Territ-
rio, algo que, no nosso entender, no se restringe apenas aos
grupos de tracantes, mas tambm aos grupos que se organi-
zam como mineira e milcias, cujas atividades, como vimos,
tambm vm se diversicando cada vez mais.
Contudo, importante ressaltar que no a diversicao
e ampliao das atividades praticadas pelos grupos crimino-
sos o ator explicativo central para essa denominao proposta.
O ponto que nos chama mais a ateno a articulao dessaampliao das atividades com a expanso territorial dos grupos,
em particular a mineira que vem se territorializando em dire-
o s reas de expanso imobiliria irregular de baixa renda
seu principal negcio - e, mais recentemente, as milcias que
vem ameaando a relativa estabilidade nas avelas da cidade,
investindo pesadamente na disputa pelo controle dessas reas.
Trata-se, portanto, de uma relao que envolve o uso de
armas de ogo, negcios ilcitos ou irregulares e o controle de
reas geogrcas. a partir da conjuno desses trs elemen-
tos que esses grupos atuam, e esta a base a partir da qual
propomos essa nova denominao para esses grupos, comoorma de ampliar a capacidade de entendimento sobre sua
atuao.
Nesses termos, pertinente nossa armao anterior de que
o cenrio uturo mais provvel o aumento do nmero
de grupos criminosos armados com domnio de territrio
em avelas e bairros periricos da regio metropolitana
do Rio de Janeiro. Esses grupos vm se envolvendo em
diversas atividades lcitas e ilcitas. A sua caracterstica
marcante o uso de armas de ogo de alto calibre, que
originalmente oram empregadas para a deesa de pontosde venda de drogas ou para a deesa do territrio contra
grupos rivais e que, com o tempo, passaram a ser utiliza-
das como instrumento de extorso, coao e presso, na
comunidade e ora dela. O uso de armas possibilita um
processo de territorializao crescente, no qual o territ-
rio dominado passa a uncionar como base das ativida-
des da quadrilha. A distino intergrupos tambm ocorre
pela reerncia territorial, podendo-se alar, neste sentido,
de uma identidade territorial que passa a defnir a inser-
o em uma aco. A territorializao ocorre, sobretudo,
em reas avelizadas ou de perieria urbana, mas vem se
ampliando para as reas ormais da cidade, em uno
da disputa de mercado. Quanto mais acirrada or esta dis-
puta, mais se ragmentar o territrio da cidade (SOUZA
E SILVA & BARBOSA, 2005: 113)
Com base nisso, podemos apontar alguns eeitos mais ime-
diatos do processo crescente de territorializao dos grupos
criminosos armados com domnio de territrio na cidade, que
constituem, ao nosso ver, o principal obstculo ao alcance das
condies necessrias ao desenvolvimento econmico, social e
humano na regio metropolitana do Rio de Janeiro, dicultando
o exerccio pleno da cidadania.Na escala da metrpole, observa-se a ragmentao do
tecido scio-poltico espacial (SOUZA, 2000), que refete o pro-
cesso de territorializao dos grupos criminosos armados em
avelas e outros espaos populares da cidade acompanhada
pela territorializao das classes altas em espaos auto-segre-
gados, como os condomnios echados. A cidade ragmentada