Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013
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O BARULHO DA CRÍTICA SOBRE O SOM AO REDOR1
THE NOISE OF THE REVIEWS ABOUT "NEIGHBORING SOUNDS"
Cristina Teixeira Vieira de Melo
PPGCOM/UFPE – Doutora – [email protected]
Resumo: A partir de uma perspectiva discursiva de análise, o presente artigo objetiva dar a conhecer as razões
utilizadas pela crítica para legitimar O som ao redor como um filme “original”, “singular”, uma verdadeira
“obra prima”, “um dos melhores filmes do mundo”. O corpus é composto por 43 textos publicados em jornais,
revistas, sites e blogs nacionais e estrangeiros. A análise se apoia nos conceitos de obra, autor, comentário,
formação discursiva e acontecimento discursivo (Michel Foucault, 2005, 2006, 2007).
Palavras-chave: cinema, crítica, O som ao redor
Abstract: From a perspective of discourse analysis, this article aims to discuss the reasons used by critics to
legitimate "Neighboring Sounds" as an "original", “remarkable" movie, a true "masterpiece", “one of the best
films in the world”. The corpus consists of 43 texts published in newspapers, magazines, websites and blogs
from Brazil and abroad. The analysis is based on the concepts of work, author, commentary, discursive
formation and discursive event ( Michel Foucault, 2005, 2006, 2007 ).
Keywords: cinema, review, Neighboring Sounds
1. Mas, por que tanto barulho?
O som ao redor (2012), primeiro longa de ficção de Kléber Mendonça Filho, tem sido
classificado pela crítica como “uma das mais engenhosas e representativas obras do cinema
nacional realizada nos últimos anos”, “um dos mais relevantes filmes realizados no Brasil nas
últimas décadas”, “um grande filme brasileiro, como havia muito tempo não se via”, “um dos
melhores filmes já produzidos no Brasil a partir da retomada”, um filme que ocupa “a
importância para a compreensão do país que tiveram Central do Brasil, Cidade de Deus ou
os dois Tropa de Elite”, “um dos melhores filmes brasileiros de sempre [...] e um dos
melhores filmes feitos recentemente no mundo”.
A abundância e unanimidade de tais valorações me levaram a querer conhecer os
motivos apontados pela crítica para tamanho clamor. Para tanto, analiso 43 textos, entre
críticas, colunas e comentários, publicados em jornais, sites e blogs brasileiros e
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Recepção: processos de interpretação, uso e consumo mediáticos
do XXII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013.
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estrangeiros2. Tomo as noções de autoria, obra, comentário, formação discursiva e
acontecimento (Foucault 2005, 2006, 2007) como motores da investigação. Empreendo uma
análise de natureza discursiva e sustento, de maneira aparentemente tautológica, que o que
garante o sucesso de O som ao redor é sua discursividade. Ou seja, sua inserção como
“estrutura” e “acontecimento” na ordem do discurso. Trocando em miúdos: sua capacidade
de se filiar a redes de memória (no campo da filmografia nacional, dos gêneros
cinematográficos e de certas questões sócio-históricas brasileiras) ao mesmo tempo em que
se apresenta como algo novo. A novidade, por sua vez, seria fruto de uma operação de
montagem, isto é, da maneira como o filme articula determinadas temáticas, materializando-
as a partir de estratégias fílmicas. Trata-se, mais uma vez, de reafirmar a prevalência da
enunciação sob o enunciado, do como se diz sob o que se diz.
2. O ovo e a galinha
Várias críticas afirmam que O som ao redor é “uma obra madura, com pujança para se
tornar um divisor de águas no cinema nacional”, “uma obra prima atemporal e realmente
aplicável a qualquer espaço geográfico”. Foucault (2006) problematiza a noção de obra
mostrando que ela não é autoevidente. Segundo ele, esta noção só pode se constituir a partir
de um correlato, o autor3. É a ideia de autoria que permite se falar de uma obra. O autor é
visto como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas
significações, como foco de sua coerência4.
2 Para a pesquisa dos textos, utilizei o facebook do próprio O som ao redor e realizei buscas nos sites
adorocinema.com, imdb.com, google.com.br. A seguir, dou a conhecer os veículos que publicaram tais textos e
os nomes de seus autores: FSP - Inácio Araújo, Ricardo Calil. Sérgio Alpendre, Marcos Augusto Gonçalves,
Gustavo Fioratti; OESP – Luiz Carlos Merten, Luiz Zanin Oricchio; O GLOBO – Consuelo Lins, Rodrigo
Fonseca, Caetano Veloso, Cacá Diegues; JB – Maria Lucia Dahl, Heloisa Tolipan; GAZETA DO POVO – Paulo
Camargo; NYTimes – A. O. Scott; Variety – Jay Weissberg; Hollywodreporter.com.br – Stephen Dalton; Time
Out Chicago – Michael Atinkson; Chicago Reader – J. R. Jones; jconline – Ernesto Barros, Renato Contente;
Sul21- Samir Oliveira; criticasdeumcinemanu.bogspot.com – Wesley Pereira de Castro; blogdomagno.com.br –
Amin Steple; Revista de Cultura – Jessiel Magalhães; cineweb.com.br – Alysson Oliveira; criticos.com.br –
Carlos Alberto Mattos, Luiz Fernando Gallego; cinetica. com.br – Luiz Soares Júnior; contracampo – João
Gabriel Paixão; cineplayers.com – Bernardo D.I. Brum; cinema.uol.com.br – Chico Fireman; overmundo.
com.br – Ivana Bentes; noticias.r7.com/rubensewaldfilho – Rubens Ewald Filho; omelete.uol.som.br – Marcelo
Hassel; cinealerta.com.br – Wilker Medeiros; cineclick.com.br – Roberto Guerra; cineinsite.atarde.uol.com.br –
João Carlos Sampaio; cinemaemcena.com.br - Pablo Vilaça; revistadecinema.uol.com.br - Celso Sabadin;
Brasil de fato – Maria do Rosário Caetano; Revista Piauí – Eduardo Escorel; Revista Interlúdio – Cesar
Zamberlan. 3 Com aparente circularidade, só há autor onde há obra que possa consistentemente ser a ele associada.
4 Vale lembrar que para Foucault o autor é uma função.
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O que faz de Kléber Mendonça Filho um autor? Por que considerá-lo um diretor autoral?
Como enxergar em sua obra um universo pessoal, criativo, singular? Quais opções éticas,
estéticas e políticas constituem sua obra e O som ao redor em particular? Bernardet afirma
que “são as repetições e as similitudes identificadas na diversidade das situações dramáticas
propostas pelos vários enredos que permitirão delinear a matriz. O autor é, nessa concepção,
um cineasta que se repete, e não raro houve críticos que consideraram cineastas autores pelo
simples fato de se repetirem” (1994, p. 31). Com efeito, em que pese o destaque que dão ao
fato deste ser o primeiro longa do diretor, as críticas sobre O som ao redor frequentemente
citam filmes anteriores de Kléber5 a fim de chamar atenção para a forma como certas
recorrências temáticas (medo, desigualdade social, violência urbana, (in)segurança na cidade,
ascensão de uma nova classe média) e estéticas (cenas correlacionadas ao cinema fantástico,
de terror e de suspense) se atualizam na película de 2012.
[O som ao redor] fala com segurança e coesão sobre a carreira do próprio diretor. Esse
primeiro longa ficcional (seguindo-se ao longa doc Crítico) é uma espécie de súmula
florescente de toda sua carreira pregressa. Lá está o enjaulamento das pessoas atrás de grades
numa cidade violenta, pano de fundo do seu vídeo Enjaulado (1997). O clima de terror de A
Menina do Algodão e o inusitado de Vinil Verde ecoa em algumas cenas do
longa. Eletrodoméstica é citado diretamente na cena da máquina de lavar e Recife Frio ecoa
não apenas no retrato da Recife feia apavorada pela violência, como até na aparição do
protagonista Andres Schaffer como o turista perdido com as garrafas de cerveja.
Essa tensão difusa se torna aguda em algumas seqüências que metem medo e remetem aos
curtas “Vinil Verde” e “A menina do Algodão” que levam a sério a capacidade do cinema de
produzir aquele terror metafísico, de um além no qual não acreditamos, mas experimentamos
cinematograficamente.
5 Os curtas Enjaulado (1997), A menina do Algodão (2003), Vinil Verde (2004), Eletrodoméstica (2005) e
Recife Frio (2010) aparecem como referências intertextuais. Noite de sexta, manhã de sábado (2006), Crítico
(2008) e Luz Industrial Mágica (2009) por vezes surgem nas críticas, mas unicamente para dar a conhecer a
filmografia do diretor, sem que sejam apontadas relações entre estas obras e O som ao redor (2012).
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[...] em “Eletrodoméstica” (2005), por exemplo, uma cena antológica em que uma dona-de-
casa masturba-se com o auxílio de uma máquina de lavar possui uma extensão aprimorada
em “O Som ao Redor”, sendo internamente prenunciada, tanto quanto no filme anterior, por
utilizações inusuais de aparelhos eletrônicos.
Resgatando elementos específicos de seu ótimo curta Eletrodoméstica, de 2005, Mendonça
demonstra carinho particular ao enfocar o cotidiano de Bia (Jinkings), uma dona de casa que
[...] tenta trazer alguma cor aos seus dias ao masturbar-se com o auxílio da máquina de lavar
roupas e ao fumar um baseado cuja fumaça imediatamente suga com o tubo do aspirador de
pó.
Ela (Bia) é uma personagem saída do curta-metragem Eletrodoméstica (2005), a mulher que
usa a lavadora de roupa para fins sexuais.
No divertidamente genial “Recife Frio” (2009), a crítica social bem-humorada, porém
talhante, [...] antecipa a maestria sociológica que o diretor escancara em seu longa-metragem
mais recente.
Em formatos e gêneros distintos, a capital pernambucana sempre esteve presente na produção
de Kleber Mendonça Filho, como nos curtas "A Menina do Algodão", terror de 2002, e no
bem-humorado "Recife Frio" (2009).
Os exemplos acima deixam clara a relação entre autor e obra e remetem à noção de
estilo. Segundo Bernardet (1994, p.21), “o autor está ligado às noções de “estilo”, “maneira”,
“distinção” e até “marca”. O autor deixa em cada trabalho uma impressão particular:
indivíduo e sujeito são palavras indissociáveis da autoria. Em resumo, autor é aquele que diz
„eu‟”.
Numa chave romântica, a noção de estilo é compreendida como a escolha consciente
de um sujeito dono de si que entre várias possibilidades opta por uma delas. Deslocando esta
concepção para o campo discursivo, assume-se que uma escolha não é o gesto de um sujeito
livre de qualquer amarra institucional. Escolher não é um ato de liberdade, mas o efeito de
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exigências enunciativas. O sujeito “age”, assume uma posição com “toda liberdade”, mas
essa “tomada de posição” é meramente o “efeito” das Formações Discursivas (FD)6 nas quais
ele se insere.
A partir da ideia de FD, pode-se dizer que O som ao redor segue os preceitos de uma
escola (hiper)realista de cinema, daí a opção por um olhar-câmera observacional, sons
diegéticos, uso de locações, presença de não atores, mise-em-scène e diálogos de caráter
naturalistas. Estas escolhas não se dão a revelia de uma memória, de um já-dito, um já-sabido
a respeito do realismo no cinema.
O filme é hiper-realista, em relação ao Brasil, aos fatos, à direção e à atuação dos atores.
O tratamento hiper-realista da obra justifica a opção pela câmera ao nível do olho para a
maior parte das cenas.
O hiperrealismo dita o tom dos cenários e figurinos, com predomínio de cores neutras: o
cinza, o preto e, principalmente, o branco, em ambos.
Quase sem trilha sonora incidental, os sons diegéticos transbordam no longa [...] uma
linguagem sonora peculiar que, através do hiper-realismo, nos faz refletir a existência, sentir
a vida, que, já dizia o bardo, é cheia de som e fúria.
Ao mesmo tempo em que se alia a determinadas regras do cinema realista, o diretor
também toma distância de tais preceitos ao inserir na narrativa cenas, sequências e certo jeito
de filmar ligados ao cinema de gênero, particularmente o suspense e o fantástico. Neste
contexto, também ganha proeminência a referência a certos diretores, suas escolas e seus
estilos. Por exemplo, é citado o cinema de horror de John Carpenter, o suspense de
Hitchcock, a tensão de Michael Haneke, as narrativas entrecruzadas de Robert Altman, Paul
6 “Conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma
época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da
função enunciativa”. (FOUCAULT, 2006, p.76 )
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Thomas Anderson e Iñarritu, o cotidiano de Elia Suleiman, a riqueza psicológica e
comportamental de Lucrecia Martel.
Na sua função de desmontar o filme para apontar a relação entre seu modo de ser
construído e os efeitos de sentido que produz, a crítica deixa claras as filiações existentes,
explicitando a maneira como Kléber filma. Neste sentido, “O comentário não tem outro
papel, [...] senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro.
Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca, dizer
pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo
que, no entanto, não havia jamais sido dito.” (FOUCAULT, 2007, p.25).
[...] alie tal realismo a procedimentos clássicos do suspense no cinema, mantendo o
espectador sob tensão do começo ao fim. [...] É a estratégia do suspense do cinema de
Hitchcock aplicada à realidade brasileira, à descrição social em forma de crítica.
O terceiro ato, "Guarda Costas", marcado principalmente [...] pelo forte conteúdo onírico,
composto pelas sequências dos sonhos de João e Fernanda, a filha de Bia, que "vê" seu prédio
sendo invadido por "delinquentes", ou o delírio de Tio Anco (Lula Terra), que vê sua rua
transmutar a aparência para a forma que tinha há décadas. É neste último ato que a montagem
mais se afasta do realismo, lançando mão de fusões e montagem paralela, como a da última
sequência.
E, já citando referências, talvez a maior delas seja John Carpenter, justamente pela
construção de cada tomada. A forma e estilo do suspense desenvolvido nos fazem
imediatamente lembrarmo-nos de seus antigos trabalhos.
O ritmo tenso de O som ao redor lembra o Michael Haneke de Código de acesso, Caché ou A
fita branca.
Há um suspense generalizado, mais próximo dos filmes de Michael Haneke do que dos de
Brian De Palma.
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Talvez O Som ao Redor tenha mais em comum com outro cineasta que Mendonça, enquanto
crítico de cinema, costuma elogiar em seus textos: o palestino Elia Suleiman. A ideia de
encenar a rotina como uma panela de pressão [...] é aproveitada aqui por Mendonça com
máximo efeito. A cena da bola de futebol que cai no vizinho em O Som ao Redor parece
saída direto de Intervenção Divina de Suleiman. A estrutura de roteiro do palestino, em
forma de vinhetas [...] rendem em O Som ao Redor momentos de percepção fina [...] de
fantasmagoria [...] e de puro terror carpentiano.
Há que se acrescentar, também, diálogo (mesmo que involuntário) com Short Cuts – Cenas
da Vida, de Robert Altman.
Lembrei-me de Lucrecia Martel e do cinema argentino. Aliás, sugestivamente, há uma
divertida passagem no filme com um garotão "hermano", que não consegue achar o caminho
de volta para a festa.
[...] o filme cria uma dinâmica com seus personagens que difere do mosaico de Robert
Altman, Paul Thomas Anderson e Iñarritu – onde os personagens desconhecidos entre si se
encontram em um determinado momento –, e aposta mais na interação e comunhão entre eles
naquele espaço. O filme tem uma relação mais estreita com Código Desconhecido (Code
Inconnu, 2000) e Caché (Idem, 2005) do Michael Haneke, e também com O Pântano (La
Cienaga, 2001) da Lucrécia Martel. Ambos possuem essa aura de observação e análise de
comportamento, imersos em um ambiente cheio de tensão e suspense, como se algo ruim
estivesse sempre à iminência de acontecer.
A riqueza psicológica dos personagens ora conversa com o naturalismo da cineasta argentina
Lucrecia Martel, ora os faz íntimos das atmosferas nervosas do austríaco Michael Haneke.
Este híbrido não é pouca coisa.
3. O craque e os demais
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Até aqui está clara a filiação de O som ao redor a discursos que lhe são prévios.
Mas, se por um lado, todo discurso se liga a redes de memória, por outro, todo ele marca a
possibilidade de uma desestrururação-reestruturação dessas redes. E é justo este
movimento que abre a possibilidade para o acontecimento. “Todo discurso é o índice
potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que
ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho.” (PÊCHEUX,
1990, p.56). “Os processos discursivos não poderiam ter sua origem no sujeito. Contudo,
eles se realizam necessariamente neste mesmo sujeito” (PÊCHEUX E FUCHS, 1975,
p.70). Quando fala em “trabalho” e em “sujeito” nessas passagens, imagino ser legítimo
afirmar que Pêcheux está supondo a existência de um sujeito que age. Ou seja, assumindo
uma posição que é histórica, ideológica, institucional, um sujeito pode ser ele mesmo, ou
seja, não ser igual a outro que esteja na mesma posição. Com O som ao redor, Kléber teria
comprovado que é um craque entre os demais. Apesar de considerar “bons” outros
realizadores do estado e apontar semelhanças entre eles, em especial pelo investimento que
realizam em experiências de linguagem, a crítica alçou Kléber ao posto de ícone da
“novíssima geração de diretores pernambucanos”7.
O Som ao Redor [...] é antes o acúmulo virtuoso e o ponto de excelência do próprio cinema
brasileiro recente, do pernambucano em particular e do cinema de Kleber Mendonça Filho
em particularíssimo.
O grande mérito de O som ao redor talvez seja o de se diferenciar não só dos filmes
produzidos por seus colegas, no Recife, como do cinema brasileiro em geral.
Mendonça afirma-se cineasta original, ao mesmo tempo em que reafirma a recente tradição
pernambucana de melhor cinema que se pratica no Brasil.
7 A crítica costuma inserir neste grupo os nomes de Gabriel Mascaro, Daniel Aragão, Leonardo Sette, Renata
Pinheiro, Camilo Cavalcante, Juliano Dornelles, Marcelo Pedroso, Leonardo Lacca, Daniel Bandeira, Marcelo
Lordello e Tião, atribuindo-lhes o desejo de explorar linguagens mais ambiciosas do que a dos responsáveis pela
consagração audiovisual do estado nos anos 2000. Leia-se: Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Paulo Caldas e
Marcelo Gomes.
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“O som ao redor”, de Kléber Mendonça Filho, tornou-se o estandarte de uma nova linhagem
de realizadores pernambucanos. Linhagem essa empenhada em expandir os domínios autorais
do polo que, desde a Retomada, é considerado o maior canteiro de transgressão narrativa do
cinema brasileiro: Recife.
Segundo os críticos, Kléber teria todos os requisitos para se destacar como diretor: sua
obra pregressa, sua atuação como crítico, sua experiência a frente do setor de cinema da
Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e como organizador do Janela Crítica de Cinema. Estes
fatores são ressaltados pelos comentadores quando afirmam que Kléber é “cineasta maduro,
que sabe o que faz”, “que em nenhum momento deslize ou perde a mão”. Seu talento se
revelaria na forma como sabe manejar a linguagem audiovisual.
[...] a forma como Kleber Mendonça Filho utiliza o seu profundo conhecimento de cinema é
uma lição para jovens cineastas brasileiros. Trata-se de fazer da cinefilia não um acervo de
ostentação nem um fetiche a ser manipulado por puro voluntarismo, mas transformá-la em
sabedoria para encontrar a forma expressiva e a medida justa de contar uma história
profundamente brasileira, e ainda assim irresistivelmente universal.
Com formação de crítico, o pernambucano de 44 anos conseguiu unir técnica e cuidado na
interpretação em seu primeiro longa de ficção.
Kleber Mendonça Filho não abdica dos mais inteligentes recursos cinematográficos para
compartilhar com o espectador as suas impressões sociais, concebendo uma obra-prima em
que cada seqüência é prenhe de sentido em si mesma,
O que faz de O Som ao Redor um filme tão significativo e tão bom? A resposta mais evidente
nos leva à capacidade que o diretor Kleber Mendonça teve de somar ousadia e inventividade
estética a uma acurada abordagem de temas essenciais à compreensão de nosso tempo (a luta
de classes, a especulação imobiliária, a violência urbana e rural, o racismo velado à brasileira,
o consumismo desenfreado).
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Kleber maneja com total segurança as ferramentas visuais e sonoras que o cinema oferece: da
tela panorâmica do Cinemascope até uma edição de som que privilegia os ruídos fora de
campo.
"O Som ao Redor" convence como cinema. O diretor vai sem pressa, com mão firme, ironia e
inteligência. Sabe onde quer chegar.
Sua maneira de filmar, com seus longos silêncios barulhentos, com sua dramaturgia
desdramatizada, revela um domínio sem igual do ofício que diz sem jamais evidenciar.
4. Filmar uma coisa normal com um tratamento não tão normal
Investigando a questão da autoria em textos escolares, Possenti (1995) pergunta-se o
que caracteriza os textos que são considerados bons. Segundo ele, não é uma radical
criatividade nem a monótona repetição dos lugares comuns. Trata-se de conceber o
discurso como marcado radicalmente pela heterogeneidade (ou polifonia), e da concepção
de sujeito que lhe é correlata (ou que é com ela compatível): o sujeito-autor. Para Possenti,
não é necessário ficar esperando ou exigindo a originalidade certamente impossível, mas
apenas a capacidade de ordenar, organizar, dar diversos pesos a discursos correntes e
citáveis segundo as circunstâncias. Se se aceita a ideia defendida pela Análise do Discurso
(AD) de que o discurso é basicamente interdiscurso, então deve-se aceitar que falar é em
grande parte deixar falar. A ênfase recai sobre as estratégias e recursos de estilo pelos quais
se pode dar voz a outras vozes e sobre a montagem. Aqui vale retomar a citação de
Pêcheux (1983, 316-317): "discurso de um outro, colocado em cena pelo sujeito, ou
discurso do sujeito se colocando em cena como um outro?”.
O que a crítica enaltece é justamente a habilidade de Kléber de pôr em cena várias
vozes discursivas e fazê-las dialogar. Elogia-se em especial a forma como O som ao redor
une cinema social e cinema de gênero. Do ponto de vista temático, a crítica mostra que em
O som ao redor figuram importantes aspectos históricos, sociológicos e antropológicos da
sociedade brasileira de ontem e de hoje. Do passado, a herança do regime escravocrata
presente nas relações trabalhistas latifundiárias. No entanto, afastando-se da forma que a
filmografia nacional costuma tratar de tais temas (localizando-os no sertão e no passado), o
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filme de Kléber conseguiria expor de “forma sutil” como estas questões irrompem no
espaço urbano contemporâneo. Segundo os críticos, aqui estaria uma das maiores
qualidades do filme: mostrar como “as relações trabalhistas do latifúndio se reproduzem de
maneira mais „cordial‟ na malha de vínculos empregatícios da cidade do século 21”. Desta
forma, a película buscaria “enterrar de vez o mito da cordialidade brasileira”. Neste
contexto, os comentários destacam o tratamento irônico dado à classe média urbana e a
elite rural decadente - com seus preconceitos, conservadorismos e posições reacionárias.
Em função destes aspectos, a crítica destaca que O som ao redor consegue estabelecer um
profícuo diálogo com seu tempo histórico, configurando-se como “uma obra obrigatória
para quem pretende compreender, em toda a sua complexidade, a sociedade brasileira
contemporânea”, “uma trama reveladora sobre o Brasil atual”, “um instantâneo atualíssimo
de um Brasil atravancado por relações arcaicas”.
É um filme que fala dos pobres e dos ricos, empregados e senhores de engenhos de
Pernambuco, sem mostrar folclore, cangaceiro, nem tramas de amor, como os filmes do
Cinema Novo, mas dizendo que o Brasil continua absolutamente igual ao que sempre foi.
Ele (Kléber) irá demonstrar que aquele momento de lazer entre muros - que denota tanto a
divisão de classes quanto o medo da violência do Brasil do século 21- descende da separação
entre casa grande e senzala e da lógica latifundiária dos engenhos do século 19.
O que surge é um retrato sutil de uma sociedade em meio a uma rápida transformação social,
ainda assombrada pela crueldade do passado feudal.
[...] a permanência da velha Pernambuco. Ela está nas empregadas, invariavelmente negras,
que frequentam as cozinhas. Está no falar duro do patriarca, o homem que ainda comanda a
família... velhos hábitos não desaparecem.
O filme, entretanto, não vai para o confronto fácil do bem contra o mal, da elite egoísta e
malvada contra a senzala sofredora e virtuosa. Sua sociologia é também a do açúcar - ecoa
Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. E isso permite uma aproximação mais rica das tensões da
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sociabilidade brasileira, na qual a informalidade predomina e a doçura contracena com a
violência.
A banalidade cotidiana em forma de filme, assombrada por um passado de escravidão, cujos
vestígios estão disseminados por toda a narrativa, mas especialmente na relação entre patrões
e um contingente de empregados domésticos de toda a ordem. Finalmente essa relação
ganhou expressão digna no cinema ficcional brasileiro.
“O Som ao Redor” é mais um painel comportamental, um retrato crítico e irônico de uma
sociedade que se aquartelou em seus domínios, se isolou em si mesma, e perdeu os
referenciais de convívio. Felizmente, o roteiro não cede à tentação fácil de creditar este tipo
de comportamento aos tais “tempos modernos”. Muito pelo contrário: uma bela introdução
formada por fotos antigas relata que este abismo social é histórico, de uma época em que os
escravos viviam nos porões das casas dos senhores de engenho (e que hoje foram substituídos
por prosaicos “quartos de empregada”).
Outro aspecto destacado pela crítica é a forma como o filme revela, nos aparatos de
vigilância, na presença da milícia, na especulação imobiliária e no aprisionamento da
população em condomínios fechados ou residências repletas de grades e cadeados, a paranoia
do medo e da insegurança nos centros urbanos. Mais do que isso, ressalta-se a maneira como
o filme deixa entrever este medo sem que o roteiro incorra numa ação violenta, mas
unicamente criando um clima de tensão constante. Este seria outro ponto de diferenciação
entre O som ao redor e o cinema nacional, acostumado a filmar a violência urbana a partir de
conflitos explícitos, assaltos, lutas8.
[...] uma violência mais rara no cinema brasileiro de nossos dias: miúda, cotidiana, assídua,
encarnada nos gestos e nas falas banais entre indivíduos de diferentes origens sociais, nos
medos e nas inseguranças constantes que atravessam a vida dos moradores das classes médias
e da elite do Recife.
8 O único filme brasileiro citado, em poucas criticas, como próximo de O som ao redor é Trabalhar Cansa, de
Juliana Rojas e Marco Dutra, que fala das relações de trabalho da classe média em chave surrealista.
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A trama é uma crônica da vida num bairro de classe média, sombreado pelas relações
humanas herdadas do Brasil Colônia. Sombreado também pelos arranha-céus criados pela
corrida imobiliária e por um tipo de pacto social muito tênue, que gera um barril de pólvora
prestes a explodir.
O filme mantém-se sustentado em pequenos acontecimentos mundanos, que se revelam ainda
mais inquietantes do que aqueles vistos numa trama comum movida à ação e reação. A vida
desses personagens, sua atitudes e também apatias e tédios diante das próprias existências são
os responsáveis pela dinâmica asfixiante deste filme, por que não dizer, de horror.
Vale ressaltar que, em muitos planos, a câmera localiza-se à frente de gradis, janelas com
grades ou elementos cênicos que o valham, ressaltando com o próprio enquadramento a
condição de aprisionamento não apenas físico, mas moral e emocional daqueles personagens.
Por duas vezes chegamos mesmo a observar plano detalhe de grossos cadeados nos portões,
realçando o clima de clausura.
Devagar, o filme discute, sem recorrer ao didatismo ou a discursos ideológicos
simplificadores, temas diversos, porém entrelaçados, como o conflito entre classes sociais,
violência urbana, o poder paralelo das milícias e a especulação imobiliária nos grandes
centros.
5. O que é preciso não dizer, para dizer
A crítica ocupa páginas e páginas para falar do clima de tensão já referido nas
passagens acima. E quando discorre sobre isso aponta o tratamento sonoro como sendo um
dos principais elementos que consegue instituir esta sensação. Os comentários procuram
explicar para o leitor como esta tensão se corporifica no som e como ela traduz, a partir de
uma experiência sensível, a violência simbólica que o filme aborda. Neste contexto, busca-
se justificar o título da película já que este faz referência direta ao som. Enaltece-se o
cuidado de Kléber com o som tendo em vista não apenas a sua qualidade técnica, mas,
sobretudo, a sua força narrativa, “o som como personagem”.
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[...] há uma tensão, de início apenas sugerida, que sobretudo se apresenta por meio de sons –
daí o título do filme.
O elemento dramático que mais colabora para o terror suspenso do filme é a presença da
trilha.
Como o título do filme sugere, é o som que carrega as inquietantes insinuações de perigo.
Sempre ouvimos mais do que vemos [...] Com seu designer de som, Pablo Lamar, Mendonça
cria a paisagem sonora de um filme de terror.
A câmera segue o som e nos conduz por ele num trabalho singular de desenho sonoro que vai
criando tensão e expectativas em torno do que ouvimos.
E no meio disso tudo, o som do título. O som que circunda tudo, que invade o máximo
possível, [...] ou mesmo o som criado pelo próprio filme para gerar suspense ou terror.
Como se antecipa a partir do título do longa, o som [...] tem um papel preponderante na
narrativa: é um personagem.
“O Som ao Redor” é também um filme onde cada som, cada diálogo, cada efeito sonoro tem
a sua importante função dramatúrgica. Veja não só de olhos, como também de ouvidos bem
abertos.
"O som ao redor", como o próprio título anuncia, tem e trata o som como personagem
principal. A trilha incidental [...] reproduz e incita toda a violência latente do filme. Mas o
que existe de mais moderno é a utilização da trilha, em algumas cenas, como flashbacks e
flash-forwards (enquanto exclusivamente som). Contribuição inestimável (e ainda não
mensurada) para a linguagem cinematográfica. Aí, sim, o cineasta assume a vanguarda.
Apesar da superfície naturalista, estamos vendo o filme ser feito na nossa frente, numa
engenharia quase cabralina. E a perturbadora trilha sonora, se houver dúvida, não nos deixa
esquecer de que há alguém contando uma história.
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[...] as tensões e contradições sociais do Brasil se materializam nos barulhos que cada camada
da sociedade é capaz de fazer.
Kleber [...] construiu densa camada de sonoridades. Sonoridades urbanas que potencializam
de forma arrebatadora este denso painel de estórias de pessoas apavoradas-atormentadas por
medo potencial.
O que nos define é o som que somos capazes de produzir, e não aquele que somos obrigados
a ouvir. É nesse sentido que se dão a luta de classes e o abismo social.
O filme sugere até um exercício: preste atenção aos sons que você é capaz de emitir, e
também naqueles que você ouve todos os dias. Qual a implicação social que existe em cada
um deles?
Os ruídos que produzimos, diz "O Som ao Redor", revelam quem somos. Aqueles que
ouvimos, onde e como vivemos. É nesse plano -- no embate entre os dois-- que se
materializam as contradições sociais de nosso país.
É uma percepção e um viés bastante original para abordar um assunto tão antigo quanto a
vida em sociedade. E assim, Kleber Mendonça Filho fez uma obra-prima, um filme que tem
muito a dizer sobre o estado de coisas contemporâneo do país.
Se o filme é cercado de som por todos os lados, é porque este é um meio “de cultura”
particularmente fecundo (é presente e ausente ao mesmo tempo; é ubíquo no tempo) em
permitir esta vinculação “fantasmagórica” entre o passado soterrado e o presente narrado.
Os sons, elementos estes que jamais podemos precisar com certeza, mas também nunca
podemos desviar o sentido da audição deles, como ocorre com a visão, formam o principal
elo daquele universo. As rimas sonoras criadas pelo diretor, trabalhadas em frequência e
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volume, criam um filme de atmosfera ao mesmo tempo imensa e opressora, mais próximo do
que gostaríamos de estar e distante demais para que possamos nos envolver da forma
dramatúrgica tradicional; no final, a cidade é uma grande prisão e todos nós estamos presos
nela.
Mesmo quando dormimos ouvimos. Uma sonoridade “fóssil" nos envolve permanentemente,
mas na maior parte das vezes não nos damos conta pois somos reféns de um foco
sonoro/visual que dirige nossa percepção.
Explicitar o som como fio condutor de uma trama sem centro e fazer ouvir "O Som ao
Redor" é o primeiro impacto sensorial do longa de Kleber Mendonça Filho, cineasta e critico
de cinema.
O espaço sonoro vai configurando toda uma trama fluída e tensa que faz ver certa classe
média invisível (diferentes grupos sociais que se cruzam) de um bairro de Recife.
6. Vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais
A importância que O som ao redor adquiriu para a crítica e para o público é
indissociável de sua circulação, pois, só se pode interpretar um discurso quando se tem
acesso a ele, para tanto é necessário que ele circule. No caso de O som ao redor, antes mesmo
de sua estreia nas salas de cinema em 04 de janeiro de 2013, ele já havia participado de 8
festivais nacionais e 33 internacionais renomados, obtendo em alguns deles importantes
premiações9. Com esta repercussão, o filme ocupou bastante espaço na imprensa e nas redes
sociais, o que, por sua vez, influenciou a abertura de um número maior de salas para sua
exibição no país e sua venda a distribuidoras estrangeiras. Nas críticas, estes fatores
(participação/premiação em festivais, elogios da crítica e do público) aparecem
constantemente emaranhados sem que se possa saber quem veio primeiro.
9 Roterdã, Compenhague, Polônia, Locarno, Gramado, São Paulo.
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O Som ao Redor rendeu sessões lotadas em mostras nacionais e internacionais, além de um
punhado de prêmios.
Apontado como um dos dez melhores do mundo em 2012, pelo jornal New York Times, e
celebrado na lista da tradicional revista inglesa Sight & Sound em 15º. Lugar, o filme tem
provocado uma onda nas redes sociais.
Com uma credencial dessas, era natural que sua estreia em telas brasileiras [...] fosse bastante
celebrada – especialmente pela imprensa (embora eu não consiga disfarçar a impressão de
que se “Som” não tivesse ganho esse empurrãozinho da crítica internacional, ele ainda estaria
pegando poeira nas estantes dos distribuidores).
... estreou recentemente em apenas 13 salas de cinema do país – em muitas delas, precisa
dividir espaço com outras atrações. No final de semana de estreia, já conquistou uma média
de público superior a de muitas megaproduções nacionais e estrangeiras.
[...] comentários sobre O som ao redor se tornaram coqueluche nas redes sociais, incluindo
cobranças para que o trabalho fosse logo exibido em determinadas cidades.
A imensa repercussão do filme o tem feito galgar mais espaço, com novas salas recebendo a
produção no país.
O Som ao redor - Um cinema que precisa passar em mais salas.
[O som ao redor] dá medo. E medo vende. Portanto, exibidores: dêem uma chance a um dos
filmes mais redondos do cinema brasileiro do ano para que ele possa trazer público usando
suas especiarias cinéfilas de suspensão de certezas e de calma.
Como se anuncia nos comentários reproduzidos logo acima, a competição por espaço
nas salas de cinema entre os filmes chamados autorais e os industriais, representados pelos
filmes hollywoodianos e os da Globo Filmes, é outro aspecto que surge nas críticas e que se
relaciona à questão da circulação. No cerne deste debate esta a questão da qualidade e do
gosto. Em defesa dos filmes autorais ressalta-se sua capacidade de se distanciar dos clichês
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da narrativa cinematográfica tradicional. Sendo assim, ele seria capaz de ampliar o repertório
do público. No entanto, parece que as críticas desacreditam na possibilidade deste público
não iniciado aderir ao filme, que só conseguiria ser plenamente apreciado por já iniciados e
cinéfilos.
O Som ao Redor chegou aos cinemas com missão espinhosa: conquistar o público brasileiro,
acomodado aos blockbusters e às comédias televisivas nacionais, rebatizadas pelo cineasta
Guilherme de Almeida Prado de “globochanchadas”.
[...] o diretor faz um cinema necessário e nos resgata de uma asfixia provocada por super
bilheterias que nos deixam de pernas pro ar. Um cinema que não fala de pacificação, que não
mostra a favela, que não se presta a uma estética Globo Filmes.
[...] é bom lembrar que existem filmes de outros gêneros cheios de qualidade. „O Som ao
Redor‟ é um deles. Que a partir dessa primeira estreia cinematográfica nacional do ano a
gente aprenda a dar valor ao que é bom e não necessariamente faz rir.
O público não-iniciado neste tipo de filme, destituído do glamour dos blockbusters, não deve
esperar o impacto dos arrasa-quarteirão. Os poderes de O Som ao Redor são outros. Residem
na potência de um filme que acredita no cinema, no engenho da construção de uma cena, no
seu poder de provocar reações sem pirotecnias e feitos impossíveis.
Ao referir-se a estas produções vitimadas pela falta de espectadores, Bernardet recorreu à
polêmica expressão “filmes irrelevantes”, cunhada pelo cineasta Eduardo Escorel. Ou seja,
evocou realizações cinematográficas, majoritárias no cinema brasileiro, que não conseguem,
por razões de mercado, dialogar com seu público potencial.
É um cinema de guerrilha, feito longe do império da Globo Filmes, mas que ainda assim vem
conquistando um espaço considerável e com resultados animadores.
“O som ao redor”, já me pegou desde o título, mostrando que sempre existirão formas novas
de se fazer arte sem precisar de clichês.
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Kleber trabalha com uma dupla ética. De um lado, não facilitar a vida do público, deixando
que ele monte sozinho o quebra-cabeças e só compreenda a imagem formada no encaixe da
última peça. Do outro, jamais entediar o espectador, produzindo obra em que a reflexão sobre
a realidade esteja sempre conectada a um clima de suspense permanente, de humor sutil, de
tragédia inevitável.
Ao se aproximar corajosamente de uma série de elementos constantes no cinema
contemporâneo --histórias que se cruzam, narrativa centrada em personagens arquetípicos,
uso abusivo do extracampo, pontas que se amarram somente no final--, o diretor
pernambucano Kleber Mendonça Filho (ex-crítico) driblou as possíveis armadilhas e fez um
filme envolvente e astucioso.
Em quase todas as sequências, "O som ao redor" abdica de ser um filme tradicional (de
narrativa previsível, apoiada em um amplo repertório de diálogos). E passa para a fronteira
do que se poderia se qualificar como "audiovisual", onde as cenas têm autonomia em relação
às outras subsequentes, e prescindem de diálogos ou são extremamente econômicos.
7. Matar a cobra e mostrar pau
Iniciamos este artigo querendo saber por que a crítica fez tanto barulho em torno de O
som ao redor. A análise aqui empreendida mostra que o status de uma obra ou de um autor é
estabelecido por uma rede complexa na qual operam questões de circulação e de construção
de sentido: Por quais espaços tal obra e/ou autor circulam? Quem escreve sobre tal obra e/ou
autor? Em quais veículos? O que se diz sobre a obra e seu autor?
A crítica é fator fundamental para modelar uma imagem da obra/autor, pois faz
circular o discurso, um texto, uma obra. Todo comentário pode ser dobrado por outro. De
acordo com o IMDB, O som ao redor foi foco de 165 diferentes comentários, ficando a frente
de Tropa de Elite (2007), objeto de 127 críticas, e Tropa de Elite, o inimigo agora é outro
(2010), com 117. Perde apenas para Cidade de Deus (2002), com 192 comentários10
. Esses
números mostram a potência do filme.
10
Tomamos estes três filmes para efeito de comparação porque são eles que a crítica costumeiramente retoma
para situar a importância paradigmática de O som ao redor na filmografia nacional. Os dados relativos aos
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Além disso, a crítica é unânime em destacar a qualidade da película, que residiria não
só na sua capacidade de falar de temas que mobilizam as pessoas (violência urbana e medo,
falsa cordialidade nas relações socais de classe), mas de fazer isso a partir de bom cinema. O
mérito de Kléber estaria na forma como ele trata destes temas cotidianos através de um
cinema realista e ao mesmo tempo faz uso do gênero suspense para acentuar a tensão que
ronda as relações sociais na cidade. E como se isso não bastasse, ao dar destaque ao áudio no
jogo entre imagem e som, teria conseguido fazer o espectador imergir sutilmente numa
experiência sensível reveladora destas tensões. Ou seja, a partir de métodos pouco usuais (o
som), ele conseguiria dizer o que não se pode mostrar e mostrar o que não se pode dizer,
fazendo o espectador refletir sobre os processos de subjetivação da sociedade contemporânea.
E isso não é pouco. Justificado, então, o “excesso” de barulho.
filmes mencionados foram todos recolhidos da mesma fonte,
http://www.imdb.com/title/tt2190367/externalreviews, na mesma data, 09/02/2013.
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Referências
BERNARDET, J. O autor no cinema. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
FOUCAULT. M. A arqueologia do saber. 7.ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005.
_____________. O que é um autor. Ditos & Escritos III. Estética: Literatura e Pintura,
Música e Cinema. 2.ed. - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. pp.264-298.
_____________. M. A ordem do discurso. 15.ed. – São Paulo: Edições Loyola. 2007
PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso, in: GADET, F & HAK, T. (orgs), 1990.
pp. 61-161.
_____________. Semântica e discurso; uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:
Editora da Unicamp. 1975.
_____________. Análise do discurso: três épocas, in: GADET, F & HAK, T. (orgs), 1990.
pp. 311-318.
POSSENTI, S. O sujeito como autor, a AD e a escrita escolar. 1995 (mimeo)
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