UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
SEBASTIANA GENY DOS SANTOS
A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA
COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO
Tubarão
2010
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SEBASTIANA GENY DOS SANTOS
A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA
COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO
DE ALFABETIZAÇÃO
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de
Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Ciências da Linguagem.
Orientador: Prof. Dr. Sandro Braga.
Co-orientador: Prof. Dra. Maria Ester W. Moritz.
Tubarão
2010
2
SEBASTIANA GENY DOS SANTOS
A APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NA ESCOLA: O GÊNERO LENDA
COMO INSTRUMENTO DA AÇÃO DIDÁTICO-PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO
Esta dissertação foi julgada adequada à obtenção do
título de Mestre em Ciências da Linguagem e aprovada
em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Ciências
da Linguagem da Universidade do Sul de Santa
Catarina.
Palhoça, 13 de julho de 2010.
______________________________________________________
Professor e orientador, Sandro Braga, Dr.
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________
Professora Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti, Dra
Universidade Federal de Santa Catarina
______________________________________________________
Professora Maria Marta Furlanetto, Dra
Universidade do Sul de Santa Catarina
3
Ao meu pai, Afonso Celestino (in memoriam),
pelo seu esforço e pela sua determinação; à
minha filha, Joanne, amor da minha vida; e à
minha neta, Maria Cecília, pelas belas histórias
contadas ao telefone.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço:
A Deus que me conduziu, passo a passo, nesta longa caminhada. A minha família
que, mesmo de longe, nos momentos de dificuldade soube estar “presente”. Especialmente, a
minha mãe, pelo incentivo e seu eterno amor. Ao Governo do Distrito Federal e à Secretaria
de Estado de Educação do Distrito Federal, pela liberação e investimento em meu potencial
acadêmico. À professora Dra. Maria Ester W. Moritz (UFSC), minha orientadora, que,
corajosamente, desde o início, acreditou na realização deste trabalho e prontamente aceitou o
desafio de estudar uma nova teoria. Especialmente, pela amizade, carinho e competência com
que me introduziu no campo da pesquisa. Ao professor Dr. Sandro Braga, por ter aceitado,
gentilmente, o compromisso de terminar a orientação deste trabalho. À professora Dra. Maria
do Carmo Pereira Coelho (UDF), pela sua amizade, carinho e pelo suporte teórico em todos
os momentos de necessidade. À professora Dra. Maria Marta Furlanetto (UNISUL), pelas
revisões e pela leitura criteriosa. À professora Dra. Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti (UFSC),
pela atenção dispensada às nossas solicitações e pelas valiosas contribuições na finalização
desta pesquisa. Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade
do Sul de Santa Catarina, pela oportunidade de realização desta pesquisa. Especialmente, ao
professor Dr. Sandro Braga, à professora Dra. Jussara Bittencourt e à professora Dra. Maria
Ester W. Moritz, pela receptividade e competência com que conduziram as disciplinas. Aos
colegas professores que, de uma forma ou de outra, fizeram parte desta jornada e sempre
enfatizaram as minhas habilidades. Aos colegas de Mestrado, pelo acolhimento durante os
vinte e quatro meses de estudo. Em especial, a minha amiga Simone, pelas madrugadas de
estudos, conversas e descontração. Aos pequenos aprendizes, meus alunos, que ao longo de
vinte e cinco anos de magistério, têm tornado minha caminhada mais suave, com certeza, sem
eles seria impossível chegar até aqui. Finalmente, agradeço a minha filha, Joanne, pelo seu
amor incondicional e pela confiança depositada em meu trabalho diariamente. Obrigada!
5
“Tudo tem seu tempo. Há um momento oportuno para cada coisa debaixo do céu; tempo de
nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de
matar e tempo de curar; tempo de destruir e tempo de construir; tempo de chorar e tempo de
rir; tempo de lamentar e tempo de dançar; tempo de espalhar pedras e tempo de as ajuntar;
tempo de abraçar e tempo de afastar dos abraços; tempo de procurar e tempo de perder; tempo
de guardar e tempo de jogar fora; tempo de rasgar e tempo de costurar; tempo de calar e
tempo de falar; tempo de amor e tempo de ódio; tempo de guerra e tempo de paz” (Eclesiástes
3).
6
RESUMO
Este estudo tem o objetivo de descrever os processos de apropriação da língua escrita
por crianças em fase de alfabetização, partindo do pressuposto que a língua é usada
socialmente como forma de ação e interação social, fundamentada no universo sócio-
histórico-cultural da criança (VYGOTSKY, 1999). A pesquisa se desenvolveu em sala
de aula com trinta e uma crianças de uma turma da primeira série do Ensino
Fundamental do Distrito Federal. Para explicar o percurso metodológico e analisar o
processo de apropriação da língua escrita, foi coletada a produção textual em três
momentos diferentes. Em 2005, a coleta da primeira amostra ocorreu em março; a
segunda amostra ocorreu em junho e, por último, coletamos a terceira amostra em
novembro. Com base na perspectiva do desenvolvimento da escrita (VYGOTSKY,
1999, 1998; LURIA, 1998) e na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,
NOVERRAZ, 2004), foram detalhadamente preparadas atividades específicas de
língua materna e colocadas à disposição das crianças. Dessas escolhas teórico-
metodológicas, foi organizada e preparada cada etapa de aprendizagem, na certeza de
que as intervenções determinam o modo como as crianças escrevem. Foi utilizada a
lenda como gênero de ação didático-pedagógica para criar situações de ensino-
aprendizagem em que as crianças pudessem estabelecer contato com situações de
escrita. Os resultados apontam que inicialmente as crianças não percebem a
funcionalidade da linguagem escrita e ainda não sabem a função das letras no
aprendizado da leitura e da escrita. E que a aplicação das atividades contribuíram para
desenvolver capacidades de escrita combinadas à produção de texto. A análise dos
dados apontou sobretudo que as estratégias e as intervenções adotadas colaboraram
para um trabalho mais organizado e sistematizado, estabelecendo vínculos entre as
práticas sociais e as práticas escolares mediadas pela ação da linguagem.
Palavras-chave: Alfabetização. Gênero lenda. Apropriação da língua escrita.
7
ABSTRACT
This study aims at describing written language acquisition processes by children going
through literacy process, based on the premisse that language is socially used as a form of
action and social interaction and on the sociohistorical and cultural environment of the
children (VYGOTSKY, 1999). The research was carried out in a first grade classroom of an
Elementary school in the Federal District with 30 children. In order to explain the
methodological steps and to analyse the process of written language acquisition, texts
produced by the children were collected in three different moments. In 2005, the first sample
was collected in March; the second sample was collected in June and the third and final
sample in November. Based on the writing development perpective (VYGOTSKY, 1999,
1998; LURIA, 1998) and on the didactic sequence (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ,
2004), mother tongue activities were detailed developted and displayed for the children.From
these theoretical-methodological choices, each learning stage was organized and prepared
having in mind that these interventions determine the way in which children write. The
childrens’legend was used as genre of the didactic-pedagogic action in order to create
teaching-learning situations involving contact with the written language. Results demonstrate
that initially children did not notice the function of the written language and they still did not
perceive the function of the letters in the literacy process. It was noticed that the application of
the activities contributed to the development of writing skills combined with text
production. Data analysis demonstrated that the strategies and the interventions
adopted contributed to a more organized and sytematized work, establishing links between
social practices and school practices mediated by language actions.
Key-words: Literacy, written language acquisition, childrens’legend as a genre.
8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1- Coordenadas gerais dos mundos discursivos...................................................28
Figura 2 - Esquema da sequência didática .............................................................................32
Figura 3 - Quadro de agrupamento de gênero..........................................................................31
Figura 4 - Reconto coletivo......................................................................................................81
Figura 5- Reconto coletivo: Fases da narrativa.....................................................................83
Figura 6 - Produção B. Realizada em março.............................................................................85
Figura 7 - Produção F. Realizada em junho..............................................................................86
Figura 8 - Produção A. Realizada em março............................................................................88
Figura 9 - Produção E. Realizada em junho ............................................................................................90
Figura 10 - Produção U. Realizada em novembro...................................................................92
Figura 11- Produção M. Realizada em novembro..................................................................94
Figura 12 - Produção P. Realizada em novembro.....................................................................95
Figura 13 - Produção J. Realizada em novembro.....................................................................98
Figura 14 - Produção H. Realizada em novembro..................................................................102
Figura 15 - Produção C. Realizada em março........................................................................109
Figura 16 - Produção L. Realizada em junho.........................................................................112
Figura 17 - Produção B. Realizada em março........................................................................117
Figura 18 - Produção G. Realizada em junho........................................................................................116
Figura 19 - Produção T. Realizada em novembro..................................................................120
Figura 20 - Produção O. Realizada em junho.........................................................................122
Figura 21- Produção K. Realizada em junho..........................................................................124
Figura 22 - Produção N. Realizada em junho.........................................................................126
9
LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Conversão aos grafemas independente do contexto...................................................... 45
Tabela 2. Conversão dependente da posição no início do vocábulo a de antes de vogal ou em
início de sílaba interna, entre vogal ou semivogal orais e vogal ou semivogal........................46
Tabela 3. Conversão dos fonemas dependente de vogal posterior ou não posterior.................47
Tabela 4. Conversão de /j/ e |R| em início de sílaba, depois de vogal nasalizada, |S|, |W| e de
/ej/, /ow/, /aj/; conversão de /z/ depois de /e/ em início de vocábulo e de /w/ entre /k/ ou /g/ e
vogal não posterior....................................................................................................................48
Tabela 5. Conversão dos arquifonemas ou fonemas em final de vocábulo.............................49
Tabela 6. Conversão dos fonemas em final de sílaba não final de vocábulo............................50
Tabela 7. Conversão dos encontros consonantais na mesma sílaba..........................................50
10
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................13
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA................................................................................... 18
2.1 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: ALFABETIZAÇÃO EM CONTEXTO
DE SENTIDO.......................................................................................................................... 18
2.1.1 A alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos
norteadores de apropriação da língua escrita............................................................................19
2.1.2 Os usos sociais da escrita e o conceito de gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao
pensamento de Genebra............................................................................................................23
2.1.2.1 A base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo...........................................26
2.1.1.2 Proposta de intervenção metodológica do interacionismo sociodiscursivo..................29
2.1.3 Gênero lenda: especificidades teóricas e possibilidades didático-pedagógicas...............33
2. 2 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: PARTICULARIDADES DO DOMÍNIO
DO CÓDIGO............................................................................................................................37
2.2.1 Similaridades e diferenças entre oralidade e escrita........................................................38
2.2.2 Relação entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos de
palavra, sílaba e fonema e suas implicações na alfabetização.................................................40
2.2.3 Descrição do sistema alfabético do português no que respeita à escrita..........................44
2.3. O PAPEL DO ALFABETIZADOR NO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM:
RELAÇÕES ENTRE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO NO PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO.................................................................................................................52
2.3.1 A perspectiva histórico-cultural no processo de aprendizagem.......................................53
2.3.2 Zona de Desenvolvimento Proximal................................................................................55
2.3.3 A pré-história da linguagem escrita.................................................................................57
3.PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS....................................................................61
3.1 TIPO DE ESTUDO.............................................................................................................61
3. 1.2 CONTEXTO DA PESQUISA........................................................................................62
3.2.1 A escola............................................................................................................................63
3.2.2 A turma............................................................................................................................64
3.2.3 A sala de aula...................................................................................................................65
3.2. 4 Organização dos dados...................................................................................................66
11
3.2.5 A forma de Análise dos dados........................................................................................68
4 ANÁLISE DOS DADOS ....................................................................................................70
4.1 ALFABETIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A APRENDIZAGEM DA ESCRITA EM
CONTEXTOS INTERACIONAIS CONSTITUÍDOS PELO GÊNERO LENDA...................70
4.1.1 A apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em contextos de uso social da
língua e com base em sequências didáticas...............................................................................71
4.1.2 Aprendizagem da lenda.......................................................................................80
4.1.3 Aprendizagem da estrutura narrativa da lenda...............................................................82
4.1.4 Aprendizagem das categorias de tempo e de espaço na lenda.......................................99
4.2 A apropriação do sistema alfabético: o gênero lenda como instrumento.........................103
4.2.1. A descoberta de que a fala pode ser escrita.................................................................108
4.2.2 A construção da noção de palavra no texto escrito.......................................................113
4.2.3 O aprendizado das relações entre fonemas e grafemas..................................................118
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. ...............128
REFERÊNCIAS....................................................................................................................132
ANEXOS................................................................................................................................136
ANEXO 1 - Produção A.........................................................................................................137
ANEXO 2 - Produção B..........................................................................................................138
ANEXO 3 - Produção C............................................................................................... .........139
ANEXO 4 - Produção D.........................................................................................................140
ANEXO 5 - Produção E......................................................................................................... 141
ANEXO 6 - Produção F..........................................................................................................142
ANEXO 7 - Produção G.........................................................................................................143
ANEXO 8 - Produção H.........................................................................................................144
ANEXO 9 - Produção I...........................................................................................................145
ANEXO 10 - Produção J........................................................................................................146
ANEXO 11 - Produção K.......................................................................................................148
ANEXO 12 - Produção L.......................................................................................................149
ANEXO 13 - Produção M......................................................................................................150
ANEXO 14 - Produção N.......................................................................................................151
ANEXO 15 - Produção O......................................................................................................152
ANEXO 16 - Produção P.......................................................................................................153
ANEXO 17 - Produção Q......................................................................................................154
ANEXO 18 - Produção R.......................................................................................................155
12
ANEXO 19 - Produção S.....................................................................................................156
ANEXO 20 - Produção T.....................................................................................................157
ANEXO 21 - Produção U.....................................................................................................158
ANEXO 22 - Coacyaba- O primeiro beija-flor...............................................................159
ANEXO 23 – As lágrimas da Potira.....................................................................................160
ANEXO 24 - Igaranhã- A canoa encantada............................................................................161
ANEXO 25 – O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo........................162
ANEXO 26 – Arutsãn – O sapo astucioso..............................................................................164
1 INTRODUÇÃO
13
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), que propõem o ensino da língua
materna por meio de gêneros, concentram-se na linguagem em uso e na competência humana
de interagir com a diversidade de gêneros presentes no cotidiano. De fato, do estudo desses
documentos podemos inferir que na escola havia ou há um distanciamento entre as atividades
estruturais que vinham sendo desenvolvidas; como proposta, esses mesmos documentos
recomendam o uso de atividades mediadas pelas ações de linguagem relacionadas às ações
efetivas do cotidiano, à informação, ao exercício da reflexão. Ao propor os gêneros como
objeto de ensino, esse documento, em vigor, fornece aos educadores um instrumento
necessário para desenvolver a compreensão da leitura e da escrita, estimulando a prática de
produção escrita, foco deste estudo.
Na proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (daqui para a frente PCNs,
1997), os gêneros são entendidos como formas relativamente estáveis de enunciados que
apresentam três elementos em sua estrutura: conteúdo temático, estilo e construção
composicional (BAKHTIN1, 1990, 1992). O documento acolhe, também, o interacionismo
sociodiscursivo (BRONCKART, 1985) quanto às suas intenções comunicativas, e a noção de
gêneros como (mega) instrumentos de ensino-aprendizagem (SCHNEUWLY, 1993). Desse
modo, é a partir da proposição segundo a qual “todo texto se organiza dentro de um
determinado gênero” (PCNs, 1997, p. 26) que muitas pesquisas estão sendo realizadas no
Brasil (MARCUSCHI, 2002; BALTAR, 2007; GUIMARÃES, 2000; GUIMARÃES,
CAMPANI-CASTILHOS, DREY, 2008; MACHADO, 2005; ROJO, 2006; SOUZA, 2003;
COELHO, 2003, 2004; BRAIT, 2007; CRISTOVÃO, 2005; LIBERALLI, 1999 entre outras).
Nessa abordagem, os gêneros promovem maior contato entre o aluno e a linguagem em uso e,
desde cedo, incentiva-se a produção de texto oral ou escrito nas diferentes práticas sociais.
Então, é pertinente inserir os gêneros textuais, em classes de alfabetização, por atender à
demanda de diversos textos e porque estão presentes em nossas práticas sociais.
Seguindo essa linha de entendimento, aos poucos o ensino-aprendizagem vem se
modificando com a introdução da noção dos gêneros sendo aplicada ao processo de
apropriação da leitura e da escrita. O trabalho com gêneros em sala de aula favorece as
interações verbais orais e escritas, concebendo-se o indivíduo como produtor de texto; a parte
estrutural da língua passa a ser vista não mais como centro da aprendizagem. O estudo focado
em gêneros parece oferecer uma aproximação da língua em uso com as práticas pedagógicas,
1 Aqui foi usada a tradução de 2006 de Estética da criação verbal, de Mikhail Bakhtin.
14
e ter a noção sobre como os gêneros se organizam pode ajudar a internalizar ou incorporar
essa organização, cujo resultado é a produção textual oral e escrita com sucesso.
Este trabalho assume o pressuposto de que a língua é usada socialmente como
forma de ação e de interação, levando-se em consideração o universo sócio-histórico-cultural
da criança (VYGOTSKY, 1999) e a perspectiva do desenvolvimento da escrita
(VYGOTSKY, 1998, 1999; LURIA, 1998). A pesquisa tem como base, também, o
interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003), que defende os gêneros em qualquer
atividade humana em forma de textos, que são articulados de acordo com as necessidades, os
interesses e as condições de funcionamento das formações sociais que os produzem. Baseia-se
ainda na noção de gênero para o ensino (SCHNEUWLY, 2004) e na sequência didática como
intervenção metodológica (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004).
Embora tenham sido publicados no Brasil trabalhos usando como suporte teórico
a perspectiva do interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003; SCHNEUWLY,
2004; COELHO, 2003, 2004; SOUZA, 2003; MACHADO, 2005; MATÊNCIO, 1994 entre
outros), desconhecemos estudos colocando o gênero lenda como eixo norteador do processo
de apropriação da linguagem escrita. Constatada a escassa publicação de literatura
especializada sobre a escrita focando os gêneros na alfabetização, principalmente na
concepção interacionista sociodiscursiva, o nosso interesse é contribuir com as pesquisas na
área de alfabetização e oferecer aos alfabetizadores uma nova possibilidade para trabalhar o
gênero lenda em sala de aula.
Nessa perspectiva, a construção desta pesquisa levou em consideração a produção
de texto com foco no gênero textual lenda numa classe de alfabetização no Distrito Federal.
Na alfabetização, a escolha desse gênero como objeto de ensino-aprendizagem está centrada
em quatro pilares: i) oferecer à criança o cenário de encantamento necessário à sua faixa etária
e também possibilitar diversas interações necessárias para a aprendizagem; ii) proporcionar
aos alunos o acesso a uma cultura diferente, objetivando a valorização e o respeito às
múltiplas culturas e aos diversos gêneros; iii) promover momentos de aprendizagem por
meio de histórias que serão lidas ou contadas em sala de aula; e iv) colaborar com publicações
na área de alfabetização, tendo o gênero como objeto de ensino.
Nesta dissertação se descrevem as atividades baseadas na sequência didática
(SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004) aplicada numa escola pública do Distrito
Federal e também se analisam as produções textuais recolhidas nos meses de março, junho e
novembro do ano de 2005. O presente estudo pode interessar a futuros alfabetizadores que
pretendam desenvolver atividades baseadas no gênero (BAKHTIN, 2006; BRONCKART,
15
2003; SCHNEUWLY, 2004) englobando o sistema alfabético na aprendizagem da língua
escrita (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b, 2009).
As produções escritas foram recolhidas em três momentos: i) a primeira amostra foi
recolhida em março, com objetivo de diagnosticar como as crianças chegaram à primeira série;
ii) a segunda amostra foi recolhida em junho, após a aplicação das atividades, com objetivo de
acompanhar e analisar o andamento do processo; e iii) a terceira amostra foi recolhida em
novembro, com objetivo de analisar o percurso metodológico do processo de apropriação da
língua. Os dados foram analisados sob duas perspectivas: o uso social da escrita e o sistema
alfabético. Na primeira etapa, a ênfase recaiu inicialmente sobre o encaminhamento do
processo metodológico para desenvolver o gênero lenda. Nesse momento explicamos todo o
processo de aplicação das atividades baseada na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,
NOVERRAZ, 2004). Em seguida, analisamos os textos produzidos pelos alunos. Na segunda
etapa, explicamos as atividades aplicadas para apropriação do sistema alfabético e analisamos,
através dos dados, o percurso dos alunos para a apropriação da escrita alfabética. Assim,
concentramo-nos na observação das capacidades individuais dos alunos e na descrição das
atividades aplicadas.
Em relação ao gênero adotamos a proposta do interacionismo sociodiscursivo
(BRONCKART, 2003), teoria na qual o gênero deve ser visto como (mega) instrumento de
ensino-aprendizagem, e sua elaboração didática acontece por meio de sequências didáticas
(SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004), que são atividades organizadas de forma
sistemática e aplicadas gradativamente. Segundo Schneuwly e Dolz (2004, p. 97), “uma
sequência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um
gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada
numa dada situação de comunicação”. Para aplicar a sequência didática, devemos realizar o
planejamento pedagógico de acordo com as características do gênero a ser estudado e, no
nosso caso, dirigir as atividades para as situações de apropriação da escrita.
Os autores recomendam que, ao elaborar uma sequência didática, os professores
obedeçam a cinco passos: no primeiro momento, apresentar a situação e esclarecer aos alunos
os procedimentos que serão adotados. Em seguida, a primeira produção será dedicada a tomar
conhecimento do que o aluno já sabe a respeito do gênero em estudo. Em outro momento,
após a avaliação da primeira produção, a partir do diagnóstico dessas produções, o professor
seleciona as atividades necessárias para apropriação do gênero e de que forma serão
organizadas. Na produção final, o processo de aplicação da sequência didática será avaliado
como um todo, observando-se as produções dos alunos. Após a aplicação da sequência
16
didática, o professor deve debruçar-se sobre as produções e analisar o desempenho de cada
aluno, com o intuito de obter o perfil não somente do aluno, mas também da turma como um
todo.
Em relação ao sistema alfabético adotamos como pressupostos teórico-
metodológicos os estudos de Scliar-Cabral (2003a; b, 2009). Na obra Princípios do sistema
alfabético do português do Brasil, a autora especifica o que ela considera princípios-chave
para desenvolver o processo da leitura e da escrita e também como aplicá-los
metodologicamente ao português brasileiro. Scliar-Cabral aponta a falta da fundamentação
teórica por parte dos profissionais como uma das principais causas para o frágil desempenho
no ensino-aprendizagem, sobretudo quanto à apropriação dos conceitos de decodificação e
codificação. Segundo ela, se aplicados corretamente, esses conceitos garantem o acesso aos
processos complexos de compreensão e de produção dos textos escritos, daí a importância
deste trabalho que pretende preencher tal lacuna.
Entendemos que, de maneira geral, o aluno iniciante desenvolve a habilidade da
leitura e, em um segundo momento, apropria-se da escrita, ou seja, a leitura precede a escrita
e é primordial no processo de alfabetização. Este trabalho apresenta a escrita como foco de
investigação utilizando os gêneros textuais como metodologia de ensino-aprendizagem, e,
principalmente, acolhe o gênero lenda como estratégia para apropriação do sistema alfabético.
Considerando a alfabetização ainda um problema enfrentado por escolas e professores do
nosso país, e que as abordagens predominantes atuais ainda não incorporaram plenamente a
ideia do gênero textual às práticas da leitura e da escrita, pretende-se aqui descrever a
proposição de encaminhamento metodológico para o processo de apropriação da língua
escrita numa classe de alfabetização, tendo a lenda como gênero-instrumento na ação
didático-pedagógica. Desse objetivo geral, desdobraram-se três objetivos específicos:
i) identificar características do gênero textual lenda que justificam seu uso com
esse público;
ii) descrever o encaminhamento procedimental das atividades com o gênero lenda
no dia a dia da alfabetização, considerando a dupla via – sistêmica e textual – desse processo;
iii) identificar as implicações de um encaminhamento metodológico do processo
de alfabetização por meio de lendas na produção de textos.
Pelo exposto, descrevemos a metodologia adotada para a apropriação da
linguagem escrita, utilizando o gênero lenda numa turma de alfabetização. As aulas passaram
por uma série de atividades de produção de textos do gênero lenda para a apropriação da
17
linguagem escrita. Isso não quer dizer que somente esse gênero foi trabalhado, mas que esse
gênero serviu como ponto de partida para realizar atividades em sala de aula.
O presente estudo divide-se em três capítulos para apresentar as especificidades da
pesquisa: na primeira parte, a introdução. No primeiro capítulo, uma revisão teórica, iniciando
com a alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos
norteadores da apropriação da língua escrita na escola. Logo após essa etapa, enfatizamos os
usos sociais da escrita e o conceito de gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao pensamento
da Escola de Genebra. Em seguida, a base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo e
a sequência didática de Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) como intervenção pedagógica
proposta pelo interacionismo sociodiscursivo. Revisamos ainda o gênero lenda especificando
as bases teóricas. Também contemplamos a apropriação da escrita na escola: particularidades
do domínio do código, passando para similaridades e diferenças entre oralidade e escrita com
base em Scliar-Cabral (2003a, 2003b) e Marcuschi (2008). A seguir esclarecemos a relação
entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos de palavra, sílaba e
fonema e suas implicações na alfabetização. Logo em seguida, passamos a descrição do
sistema alfabético do português no que respeita à escrita com base em Scliar-Cabral (2003a;
b, 2009). Terminamos o capítulo discutindo a relação entre aprendizagem e desenvolvimento
(VYGOTSKY ,1998,1999) no processo de alfabetização. Assim sendo, revisamos o conceito
de Zona de Desenvolvimento Proximal (VYGOTSKY, 1998,1999) e linguagem escrita
(VYGOTSKY, 1998,1999; LURIA, 1998).
No segundo capítulo, apresentamos os procedimentos metodológicos: o tipo de
estudo, o contexto da pesquisa: a escola; a turma; a sala de aula onde foi realizada a pesquisa.
Em seguida, destacamos a organização dos dados e, finalmente, a forma de analisá-los. No
terceiro capítulo, apresentamos a análise e colocamos à disposição do leitor a reprodução e a
transcrição da produção textual dos alunos para facilitar a visualização e o acompanhamento
dos dados. A última parte desta pesquisa constitui-se das considerações finais.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
18
Como mencionado na introdução deste estudo, a perspectiva de trabalhar os
gêneros enquanto objeto de ensino foi legitimada no Brasil após a publicação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais em 1997. A partir desse documento, novas orientações foram
formuladas sobre os usos e as funções sociais da escrita. Nesse direcionamento, quanto ao uso
de gêneros textuais nas práticas educativas, o gênero lenda nos parece adequado para
organizar o processo de apropriação da linguagem escrita na alfabetização. Neste trabalho a
alfabetização é entendida como a apropriação da leitura e da escrita, visando às práticas
sociais, como, por exemplo: escrever um bilhete, uma carta, uma receita culinária; e além das
práticas cotidianas, existem ainda as práticas acadêmicas: artigos científicos, monografias,
dissertações e outros, donde se conlui que as habilidades de escrita serão requisitadas em
maior ou menor grau de dificuldade, dependendo do ambiente em que o sujeito vive e das
atividades que exerce.
Neste capítulo, apresentamos a revisão das teorias que serviram de base para a
sustentação da pesquisa.
2.1 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: ALFABETIZAÇÃO EM CONTEXTOS
DE SENTIDO
Durante o processo de alfabetização, apresentar gêneros diversificados à criança
pode constituir-se numa excelente estratégia de ensino. Essa variedade é fundamental para
que a criança entenda os diferentes objetivos de um texto escrito e seu uso nas práticas
sociais. Entendemos que, a criança em processo de alfabetização deve ter acesso aos dois
processos - leitura e escrita - pois sem harmonizá-los, a alfabetização pode ficar seriamente
comprometida, porque eles estão interligados: um complementa o outro. Como já se viu
aqui, o processo de aprendizagem da leitura não faz parte desta pesquisa, mas reconhecemos
a sua importância em turmas de alfabetização.
2.1.1 A alfabetização segundo os documentos oficiais: os usos sociais da escrita como eixos
norteadores da apropriação da língua escrita na escola
19
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 1997) têm sido frequentemente o
tema de discussões sobre as práticas de ensino-aprendizagem. O foco de interesse é a
concepção dos gêneros textuais, tal como é proposta pelos PCNs de Língua Portuguesa do
Ensino Fundamental. O nosso trabalho se refere ao ensino-aprendizagem da escrita,
adaptando atividades linguísticas fundamentadas na teoria dos gêneros textuais para orientar
as práticas de ensino. Na primeira parte desta seção se discute o que esse documento traz
sobre gêneros textuais e suas implicações para o processo de ensino-aprendizagem. Na
sequência, discute-se o Pró-letramento, outro documento que contribui com as relações entre
a teoria dos gêneros textuais e o sistema alfabético.
Um dos objetivos do ensino de Língua Portuguesa é promover a análise e a reflexão
sobre a língua em uso, introduzindo progressivamente os elementos de natureza
metalinguística (PCNs, 1997, p. 38-39). Aqui se propõe discutir a linguagem sob dois
enfoques: a reflexão sobre o seu uso e a descrição dos seus elementos linguísticos numa classe
de alfabetização. Na primeira, as atividades estão baseadas em situações didáticas que
possibilitem a reflexão sobre os recursos expressivos utilizados pelo produtor/autor do texto, e
sua realização exige um planejamento especializado nas especificidades do gênero a ser
trabalhado. Na segunda, as atividades se desenvolvem com vistas a possibilitar ao aluno o
levantamento de regularidades de aspectos da língua e a sistematização e a classificação de
suas características, abordagem na qual a produção textual assume a posição de reflexão sobre
a língua. Os professores devem apresentar atividades que possibilitem a aproximação da
criança com diferentes formas de realização da linguagem na sociedade, reconhecendo a sua
singularidade e sua composição.
Basicamente, os PCNs (1997) se fundamentam na teoria de Bakhtin (1992, 1997),
no que se refere aos elementos que constituem o enunciado: conteúdo temático, construção
composicional e estilo; e em Bronckart (1996) e seus colaboradores da Escola de Genebra, em
relação à atividade social, especialmente sobre o comportamento dos gêneros nas diversas
situações de práticas de linguagem, correlacionando-os às práticas de ensino em sala de aula.
Esse documento também toma como ponto de partida o entendimento de texto e contexto com
vista ao funcionamento da linguagem em situação de uso, considerando a interação professor-
aluno em sala de aula como indispensável ao desenvolvimento da aprendizagem
(VYGOTSKY, 1999).
A proposta dos PCNs (1997) é que o aluno aprenda a produzir e a interpretar textos,
proporcionando-lhe o conhecimento necessário para interagir produtivamente com seus pares
em diferentes atividades discursivas. Essas atividades devem ser consideradas processos
20
ativos, e a concepção de linguagem como uma ação dirigida com a finalidade de facilitar a
comunicação que se realiza em diferentes grupos sociais. Assim, as intenções comunicativas
surgem do entendimento de que os indivíduos se organizam dentro de determinado gênero
movidos pela atividade social; no presente caso, em sala de aula, a interação professor-aluno
se efetiva concretamente pelo uso dos gêneros textuais nas práticas escolares.
Nesse sentido, aprender a refletir sobre a língua é ter em conta o contexto de uso e
as condições de produção, planejando situações didáticas que possibilitem a reflexão sob os
diferentes enfoques de ensino-aprendizagem. O documento sugere atividades de
metalinguagem que possibilitem ao aluno o levantamento de regularidades, a reflexão das
condições de produção do discurso e as limitações estabelecidas pelo gênero e pelo suporte2.
Dessa maneira, recomenda o planejamento englobando situações didáticas que possibilitem o
entendimento do texto construído socialmente e atividades de análise linguística, isto é, o
ensino de produção textual com base nos diversos gêneros textuais que estão presentes na
vida cotidiana do aluno.
Outro documento disponível é o Pró-letramento, emerso da análise dos dados3 do
Sistema Nacional de Educação Básica (SAEB), que demonstrou o baixo desempenho das
escolas em relação ao ensino de Língua Portuguesa e Matemática nas séries iniciais. Pelos
dados apresentados, observa-se que apenas 4,8% dos alunos que cursavam a 4ª série no ano de
2003 foram considerados leitores com habilidades consolidadas; estabeleceram a relação de
causa e consequência em textos narrativos mais longos; reconheceram o efeito de sentido
decorrente do uso da pontuação; distinguiram efeitos de humor mais sutis; identificaram a
finalidade de um texto com base em pistas textuais mais elaboradas e depreenderam relação
de causa e conseqüência implícita no texto, além de outras habilidades. Em relação à
matemática o resultado não foi diferente: embora na nossa prática essa disciplina seja olhada
com muito cuidado, aqui foge ao nosso objetivo. O Programa se constitui de dois módulos:
um dedicado à alfabetização e linguagem e o outro à matemática.
Esse documento parte da concepção de que a língua é um sistema situado na
interação verbal e se realiza através de textos, ou discursos, falados ou escritos, privilegiando
um trabalho organizado em torno do uso da língua que possibilite a reflexão sobre as
2 Entendemos aqui que suporte de um gênero é uma superfície física em formato específico que suporta, fixa e
mostra um texto, de acordo com Marcuschi (2008, p. 174). 3 Disponível em: <http://www.undime.org.br/htdocs/download.php?form=.doc&id=777>. Acesso em 16 jun.
2010.
21
diferentes possibilidades de emprego da língua em vários contextos (BRASIL, PRÓ-
LETRAMENTO, 2007, p.11. FASCÍCULO 1).
Em tal sentido, a proposta visa a trabalhar conhecimentos, capacidades e atitudes
envolvidas na compreensão dos usos e funções sociais da escrita, envolvendo conhecimentos
específicos sobre o sistema alfabético em relação aos elementos do sistema fonológico e às
suas inter-relações, implicando o manuseio de diversos gêneros presentes em diferentes
suportes (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).
De acordo com o documento, para desenvolver a apropriação do sistema de escrita,
deve-se desenvolver as capacidades, os conhecimentos e as atitudes previstas para o primeiro,
o segundo e o terceiro ano do ensino fundamental. No primeiro fascículo a discussão recai
sobre a escrita e a leitura. Em relação à escrita, que nos interessa nesta dissertação, esse
fascículo se organiza em torno de doze capacidades linguísticas para desenvolver a
apropriação da escrita nos três primeiros anos do ensino fundamental. Resumimos a seguir
essas capacidades.
A primeira capacidade compreende a diferenciação entre a escrita alfabética e
outras formas gráficas, cujo reconhecimento implica distinguir letras de desenhos, letras de
rabiscos, letras de números e letras de símbolos gráficos, como setas, asteriscos, sinais
matemáticos etc. A segunda capacidade diz respeito ao domínio das conversões gráficas da
nossa escrita que se realiza de cima para baixo e da esquerda para direita, indicando a
delimitação de palavras (espaço em branco) e frases (pontuação). A terceira capacidade
compreende a necessidade de orientar e alinhar a escrita da língua portuguesa, capacidade que
deve ser iniciada no primeiro ano do ensino fundamental, ajudando o aluno a diferenciar letras
de desenhos.
A quarta capacidade compreende a função de segmentação dos espaços em branco
e da pontuação de final de frase para compreender que fala e escrita acontecem de maneiras
diferentes, uma vez que fala e escrita são produzidas em sequência linear. A quinta
capacidade reconhece que uma forma de introduzir as unidades fonoaudiológicas como
sílabas, rimas e terminações de palavra em sala de aula é por meio de brincadeiras como
adivinhações, travalínguas e cantigas de roda, entre outras, focalizando primeiramente as
unidades fonológicas com as quais os alunos já são capazes de lidar. A finalidade da sexta
capacidade é conhecer o alfabeto, o que se faz apresentando-o aos alunos e promovendo
situações que os levem a descobrir que se trata de um conjunto estável de símbolos; sugerem
ainda que se comece a familiarizá-los com a sua natureza e o seu funcionamento logo no
primeiro ano, aos seis anos de idade. O propósito da sétima capacidade é compreender a
22
categorização gráfica e funcional das letras e implica compreender que elas variam na forma
gráfica e no valor funcional, levando o aluno a perceber que apesar das diferentes formas
gráficas (maiúsculas, minúsculas, imprensa, cursiva) a letra permanece a mesma e exerce a
mesma função na escrita.
O objetivo da oitava capacidade é promover o conhecimento e a utilização de
diferentes tipos de letras (de fôrma e cursiva), levando o aluno a traçar e a dominar as
diferentes formas de registro alfabético. A intenção da nona capacidade é compreender a
natureza alfabética do sistema de escrita, ou seja, diz respeito à natureza da relação entre a
escrita e a cadeia sonora das palavras que as crianças tentam escrever ou ler. A décima
capacidade nos chama a atenção para o domínio das relações entre grafemas e fonemas como
fundamental para apropriar-se do sistema alfabético. Essas regras de correspondência são
variadas. Há poucos casos de relação entre fonemas e grafemas que não dependem do
contexto fonético, e nem sempre a relação entre fonema e grafema é biunívoca.
A décima primeira capacidade diz respeito ao domínio das regularidades
ortográficas sistematizadas em sala de aula e recomenda o uso do critério de progressão,
partindo do mais simples para o mais complexo, isto é, iniciando com os casos em que os
valores atribuídos aos grafemas independem do contexto para os casos em que os valores
dependem do contexto. Enfim, a décima segunda refere-se às dificuldades do domínio do
sistema ortográfico em relação aos casos em que os valores dependem da posição e do
contexto fonético. Aliás, nesta dissertação as três últimas capacidades foram explanadas
extensivamente na seção de apropriação da escrita na escola: particularidades do domínio do
código.
Esses documentos sugerem atividades que possibilitem ao aluno aprender a
refletir sobre a língua, tendo em conta o contexto de uso e as condições de produção. As
produções textuais nessas abordagens assumem a posição de reflexão sobre a língua. Cabe aos
professores apresentar atividades que possibilitem a aproximação da criança com diferentes
formas de realizar a linguagem na sociedade, reconhecendo a sua singularidade e as suas
propriedades compositivas. A nosso ver, os textos produzidos pelos alunos devem funcionar
como ponto de partida para trabalhar a linguagem em uso e os elementos metalinguísticos,
proporcionando-lhes o domínio da escrita da língua.
23
2.1.2 Os usos sociais da escrita e o conceito de gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao
pensamento da Escola de Genebra
Os Parâmetros Curriculares Nacionais têm como ponto de partida a concepção do
gênero. O documento traz como proposta de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental a
apresentação de gêneros diversificados como estratégia de ensino-aprendizagem. A
necessidade dessa variedade é fundamental para que a criança entenda os diferentes objetivos
de um texto escrito e seu uso nas práticas sociais. Na escola, especificamente na alfabetização,
encontramos o conto de fada, a fábula, a anedota, a piada, o poema, a cruzadinha, a parlenda,
o provérbio, a crônica, a receita, a história em quadrinho, a poesia, a lenda, o relatório etc.
Os gêneros são usados e produzidos de acordo com a situação. Baseando-nos em
autores (BAKHTIN, 2006; BRONCKART, 2003; MARCUSCHI, 2002; SCHENEUWLY,
2004; BALTAR, 2007; GUIMARÃES, 2006; GUIMARÃES, CAMPANI-CASTILHOS,
DREY, 2008; MACHADO, 2005; ROJO, 2006; SOUZA, 2002; COELHO, 2003, 2004 entre
outros) que conceituam os gêneros e esclarecem sobre suas especificidades, levamos os
gêneros para uma classe de alfabetização por entender que eles estão presentes em nossas
práticas escolares independentemente do tratamento que se lhes dê. A respeito da
alfabetização, podemos dizer que a compreensão da língua decorre não somente das regras
gramaticais, mas de diversos contextos linguísticos que compõem o ambiente escolar. Em
outras palavras, o trabalho baseado em gêneros pode levar o aluno a compreender e a
reconhecer as práticas de linguagem em uso no seu cotidiano.
A teoria de Bakhtin (2006) sustenta que todos os campos da atividade humana em
situação de interação estão ligados ao uso da linguagem. Nessa perspectiva, tais situações de
interação entre os falantes são construídas historicamente; organizam-se dentro de certo
domínio social e efetivam-se no centro desses domínios pela necessidade do uso da
linguagem, de forma que cada enunciado é individual, mas cada campo de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os gêneros do discurso
(BAKHTIN, 2006).
Em Os gêneros do discurso, Bakthin (2006) se debruça sobre a questão dos
gêneros. Na sua teoria, os gêneros referem-se à diversidade e à heterogeneidade que decorrem
das práticas sociais nas diferentes esferas sociais e se situam como tipos relativamente
estáveis de enunciados, constituídos nos domínios: social, discursivo e dialógico. Para o autor,
24
há uma infinidade de gêneros circulando na sociedade: no trabalho, nas ações cotidianas, na
arte etc. Em seu domínio de circulação, pode-se dizer que o gênero é insubstituível e alguns
casos são exclusivos, como fichas de matrículas de aluno, boletim, declaração provisória de
matrícula etc., gêneros que circulam exclusivamente em secretarias de escolas. Dessa forma,
os gêneros foram historicamente construídos para atender necessidades de atividades
socioculturais e de inovações tecnológicas num domínio específico. Já no campo acadêmico,
uma tese de doutorado, um artigo científico, por exemplo, exige do produtor e do leitor certo
grau de conhecimento sobre o assunto que será tratado. Cotidianamente circulam por nossas
mãos diversos gêneros, como receita culinária, conta de luz, de água, de telefone; bilhete de
loteria, bilhetes em geral, convites os mais diversos, cartas pessoais etc.
Para Bakhtin (2006) esses gêneros circulam socialmente e se organizam em
primários e secundários. Os gêneros primários se estabelecem no campo da comunicação
imediata, no cotidiano (conversas, bilhetes, relatos, cartas). Os gêneros secundários decorrem
da comunicação cultural mais elaborada (romances, teses, livros), e são organizados e
mediados pela escrita. Para o autor, os gêneros secundários derivam dos gêneros primários,
transformam-se e incorporam a sua estrutura e, ao adquirir um caráter especial, perdem sua
ligação imediata com a realidade concreta e os enunciados reais alheios. Por exemplo: o
romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta conservam sua forma e seu significado
cotidiano apenas no plano do conteúdo, isto é, o romance integrado à realidade é concebido
como evento literário-artístico e não como evento da vida cotidiana (BAKHTIN, 2006, p.
263).
O conceito de interação social é basilar nessa concepção, sustentando que a
linguagem se situa nas relações sociais estabelecidas e mantidas por uso dos gêneros do
discurso. Ou seja, a língua nos diferentes domínios da atividade social, postura que coloca
Bakhtin e colaboradores em oposição ao subjetivismo idealista e ao objetivismo abstrato,
tendências amparadas no início do século XX pela filosofia e pela linguística da época. Na
concepção bakhtiniana, a interação verbal se constrói entre os indivíduos de acordo com a
posição social que ocupam e é organizada pelos meios sociais. Dessas interações serão
consideradas as respostas (orais ou escritas) geradas tanto por parte do locutor quanto por
parte do interlocutor, daí ser imprescindível estabelecer uma sequência lógica entre os
enunciados para que se possa produzir sentido e compreensão do papel social de cada sujeito.
De acordo com o autor, a linguagem se constitui nas práticas sociais e não por orações
isoladas nem por palavras soltas; falar por meio de enunciado é compreender aquilo que foi
25
dito ou escrito, e, portanto, não basta obedecer a um padrão gramatical correto, é preciso
produzir sentido entre locutor e interlocutor.
Tal como Bakhtin, Bronckart (2003) rejeita as teorias que resultam das teorias
subjetivistas, concebendo a atividade de textualização como essencial em sua teoria ao
declarar as condições de produção textual e classificação dos gêneros como parte do
funcionamento sócio-histórico. Para o autor, toda produção linguística é uma “ação situada”
particular movida por indivíduos socialmente envolvidos, assumindo que as únicas
“manifestações empiricamente observáveis das ações de linguagem humanas” são os textos
ou discursos que se apresentam como formas de ação social (BRONCKART, 2003, p. 13-14).
E complementa:
Os gêneros não têm o mesmo estatuto dos textos. Estes são um produto da
ação de linguagem, enquanto os primeiros são ferramentas para sua
realização, em processo de transformação contínua, por meio dessas mesmas
ações. O texto é produto da dialética que se instaura entre representações
sobre os contextos de ação e representações relativas às línguas e aos gêneros
de texto. Todo texto pertence a um gênero, isto é, seu exemplar
(BRONCKART, 2003, p.108).
Bronckart (2003, p.103) afirma ainda que "a apropriação dos gêneros é um
mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas
humanas". Nesse sentido, conhecer um gênero de texto também é conhecer suas condições de
uso, sua pertinência, sua eficácia ou, de maneira mais geral, sua adequação em relação às
características desse contexto social (BRONCKART, 2003, grifo do autor), reforçando a ideia
de que a interação social depende do uso desses gêneros; assim, eles se fundam em ações
coletivas e se realizam nas atividades comunicativas do dia a dia.
Ao considerar os gêneros nas diversas situações de práticas de linguagem,
Bronckart declara:
[...] a atividade de linguagem é, ao mesmo tempo, o lugar e o meio das interações
sociais constitutivas de qualquer conhecimento humano; é nessa prática que se
elaboram os mundos discursivos que organizam e semiotizam as representações
sociais do mundo; é na intertextualidade resultante dessa prática que se conservam e
se reproduzem os conhecimentos coletivos e é na confrontação com essa
intertextualidade sócio-histórica que se elaboram, por apropriação e interiorização, as
representações de que dispõe todo agente humano, representações in fine individuais,
no sentido de que se organizam em função das características específicas do percurso
experiencial de cada agente, erigindo-o, desse modo, em uma pessoa irredutivelmente
singular (BRONCKART, 2003, p. 338).
Com base nesses autores podemos dizer que o texto expressa sentimentos e ideias,
sendo um espaço para a reflexão de valores e de ideologias mediado pela ação de linguagem
oral ou escrita e são concretizadas em forma de textos correlacionados às práticas escolares.
26
Rompe-se o paradigma que tomava como unidades básicas o processo de ensino com
atividades para analisar letras, fonemas, sílabas, palavras e frases, que, descontextualizados,
são destituídos de sentidos e de compreensão. Mais detalhes da teoria interacionista
sociodiscursiva encontram-se na próxima seção.
2.1.2.1 A base epistemológica do interacionismo sociodiscursivo
A teoria do interacionismo sociodiscursivo de Bronckart (2003), Schneuwly, Dolz
e Noverraz (2004), da Escola de Genebra, tem centralizado seus estudos nas interações sociais
e nas formas linguísticas pelas quais a língua materna se organiza. O tema em questão tem
despertado o interesse de muitos pesquisadores brasileiros (ROJO, 2006; GUIMARÃES,
2006; GUIMARÃES, CAMPANI-CASTILHOS, DREY 2008; BRAIT, 2007; MATÊNCIO,
1994; MACHADO, 2005; SOUZA, 2003; COELHO, 2003, 2004; BALTAR, 2007 entre
outros).
Muitas contribuições no campo da linguagem têm sido produzidas em parcerias,
como grupos de pesquisa, teses, dissertações, artigos, livros, monografias, e, sobretudo,
materiais didáticos com a intenção de intervir metodologicamente no ensino da língua
materna e das estrangeiras, proporcionando formação aos professores fundamentada no
interacionismo sociodiscursivo.
Considerando o exposto, podemos dizer que o interacionismo sociodiscursivo
vem expandindo-se ao longo da última década. Neste trabalho, essa corrente teórica está
sendo privilegiada. Ela concebe a língua como fenômeno sócio-histórico, interativo e que é
constantemente modificado pela ação dos sujeitos, além de manifestar o respeito pelo diversos
falares existentes em uma comunidade e conceber a escola como lugar de excelência para
desenvolver as competências da leitura e da escrita.
O interacionismo sociodiscursivo, proposta teórica e metodológica defendida por
Bronckart (2003) em associação com Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) para o ensino de
gênero congrega diferentes abordagens teóricas: Vygotsky (1972, 1999) no que diz respeito à
abordagem psicológica; em Habermas (1987) na questão do agir comunicativo; por Bakhtin
(1978; 1984), em relação à interação verbal, sobretudo à análise dos gêneros e tipos textuais.
27
Apoia-se ainda nas bases filosóficas de Spinoza (1964, 1965) em relação ao agir humano; em
Foucault (1969) na análise das formações sociais, e em Wittgenstein (1961, 1975) quanto ao
jogo de linguagem como produto da interação social. Convém salientar que não é objetivo
deste trabalho detalhar tais influências, mas buscar apoio nas premissas do interacionismo
sociodiscursivo em relação à ação comunicativa dos indivíduos em interação dialógica.
Bronckart (2003) ensina que interagimos socialmente mediados pela ação da
linguagem. A tese central que norteia o interacionismo sociodiscursivo é que “[...] a ação
constitui o resultado da apropriação, pelo organismo humano, das propriedades da atividade
social mediada pela linguagem” (p. 42). Bronckart sustenta, ainda, que toda língua faz parte
de um sistema relativamente estável; dessa forma, essa corrente estimula o estudo do sistema
da língua como um procedimento legítimo e essencial para compreender o contexto de
utilização. Ao mesmo tempo, essa concepção concentra-se na análise da organização e do
funcionamento dos textos usados e produzidos numa comunidade em ação de linguagem.
Para o autor, o texto é entendido como qualquer produção de linguagem situada,
acabada e autossuficiente, e obedece a duas condições: condição interna e condição externa.
Pela condição interna, o autor examina a ordem de combinação de frases mais ou menos
reguladas pelos mecanismos de textualização e mecanismos enunciativos, cuja função é
assegurar ao texto produzido um efeito de coerência sobre o destinatário. Já pela na condição
externa de produção de texto, o autor adota as concepções de gênero de texto e tipo de
discurso. Os textos são produzidos de acordo com as necessidades e as condições sociais do
meio dos quais são produzidos (BRONCKART, 2003, p.71). Mesmo que não detalhemos as
condições internas dos textos, nós as reconhecemos como parte das atividades de apropriação
do código escrito. Neste trabalho, interessa-nos a segunda condição proposta por Bronckart
(2003): especificamente, as concepções de gênero de texto.
Por essa concepção todo exemplar de texto observável pode ser considerado como
pertencente a determinado gênero. Além disso, o autor aponta alguns problemas que surgem
da dilatação desse conceito: primeiramente, a diversidade de critérios utilizados para definir
um gênero. Outra dificuldade indicada pelo autor remete a Bakhtin (2006): alguns gêneros se
modificam, gêneros novos aparecem e ainda há alguns gêneros que desaparecem com o
tempo. Devido a tal magnitude, existem espécies de textos que sequer foram nomeadas, em
termos de gênero, levando-nos a inferir que a ampla capacidade de circulação dos gêneros
dificulta a demarcação do seu limite. Podemos dizer que, devido à complexidade do conceito,
os gêneros são correlacionados com as ações de linguagem e as formas linguísticas. Dessa
correspondência entre a linguagem e as formas linguísticas fundam-se os chamados tipos de
28
discurso. Para delinear o conceito de tipos de discurso, Bronckart (2003) apoia-se em
Benveniste (1966), Weinrich (1973) e Simonin-Grumbach (1975).
Os tipos de discurso são os segmentos que compõem um texto e realizam-se na
arquitetura interna, nas interações verbais orais e/ou nas interações verbais escritas, e
materializam-se linguisticamente em mundos discursivos que, articulados aos mecanismos de
textualização e de enunciação, asseguram a unicidade textual.
A concepção interacionista sociodiscursiva (BRONCKART, 2003, p. 151)
sustenta a construção de dois mundos: o mundo ordinário, representado pelos agentes
humanos, e os mundos virtuais, criados para dar conta da complexidade das ações de
linguagem, chamados de “mundos discursivos”. Os mundos discursivos operam em dois
grandes eixos: na ordem do expor e na ordem do narrar. Na ordem do expor, temos o “mundo
do expor implicado” (discurso interativo) e o “mundo de expor autônomo” (discurso teórico),
enquanto no mundo do narrar encontramos: “o mundo do narrar implicado” (relato interativo)
e o mundo do narrar autônomo (narração). A configuração e a organização desses mundos
discursivos passam do nível psicológico para as operações concretas que são determinadas
pelo conteúdo temático e pelas ações de linguagem. Além disso, Bronckart (2003) identifica o
tipo misto interativo teórico, que aparece nas exposições orais, e o tipo misto narrativo-
teórico, encontrado normalmente nas obras históricas e em monografias científicas. O autor
organiza o mundo discursivo da seguinte maneira:
Coordenadas gerais dos mundos
Relação ao ato
de produção
Conjunção
EXPOR
Disjunção
NARRAR
Implicação Discurso interativo Relato interativo
Autonomia Discurso teórico Narração
Figura 1- Coordenadas gerais dos mundos discursivos.
Fonte: BRONCKART, Jean Paul. Atividades de Linguagem, textos e discursos: por um Interacionismo
sóciodiscursivo. São Paulo: Educ, 2003, p. 157.
Para Bronckart (2003), o mundo discursivo da ordem do narrar é situado num
“outro lugar”, no qual distingue dois polos: o narrar realista e o narrar ficcional. No primeiro,
o conteúdo pode ser avaliado e interpretado de acordo com os critérios de validade do mundo
real. Por outro lado, no narrar ficcional, o conteúdo pode ser avaliado parcialmente. Além
disso, a ordem do narrar, como visualizado na figura acima, opera em duas frentes, a saber:
mundo do narrar implicado e mundo do narrar autônomo. No mundo do narrar implicado
predomina o relato interativo, e no mundo do narrar autônomo, a ênfase recai sobre a
29
narração. De acordo com a proposta do autor, o gênero lenda se encaixa no mundo discursivo
da ordem do narrar ficcional.
2.1.2.2 Proposta de intervenção metodológica do interacionismo sociodiscursivo
O grupo de Genebra desenvolve estudos sobre ensino e aprendizagem da língua:
discute temas centrais sobre textos, discursos e traz como proposta a sequência didática como
estratégia para desenvolver os gêneros no ensino-aprendizagem.
Para Schneuwly (2004), o gênero é entendido, em relação à atividade de
linguagem, como uma ferramenta semiótica complexa em forma de linguagem oral ou escrita,
que nos permite produzir e compreender textos. Dessa maneira, para Schneuwly e Dolz
(2004), os gêneros são (mega) instrumentos elaborados e construídos a partir de um contexto
sócio-histórico para atender determinada situação, e à medida que esses instrumentos são
reinventados, refletem diretamente no comportamento humano. O uso adequado do
instrumento está no domínio humano, e à medida que o homem ressignifica a sua utilização,
torna-se mediador dessa prática.
Schneuwly (2004), como outros autores que se apoiam na concepção de Bakhtin,
considera os gêneros como enunciados relativamente estáveis, com conteúdo temático, estilo
e construção composicional. Para identificar um gênero, o autor considera três dimensões: a)
o reconhecimento do que foi dito e o que foi feito implica a escolha do gênero; b) a sua
estrutura será definida pelo plano comunicacional; c) as marcas da posição enunciativa do
enunciador, sequência textual, tipos de discursos, marcas linguísticas do texto e a estrutura
colaboram para alcançar um nível de entendimento entre os interlocutores, mas é preciso que
eles partilhem da mesma estrutura do gênero em uso.
Schneuwly e Dolz (2004, p.76) alertam para o fato de a escola sempre ter
trabalhado com os gêneros, embora para eles os gêneros não sejam instrumento de
comunicação somente, mas, ao mesmo tempo, objeto de ensino-aprendizagem. Ou seja: a
maioria dos professores usa os gêneros há bastante tempo em sala de aula, mas sem trabalhá-
los como atividade de linguagem voltada para as práticas sociais.
30
Os autores observam, ainda, três maneiras para abordar o ensino da escrita e da
fala: o desaparecimento da comunicação; a escola como lugar de comunicação e, por último, a
negação da escola como lugar específico de comunicação. Pela primeira, os gêneros deixam
de fazer parte do contexto da comunicação da escola e passam a significar somente uma
forma linguística, sendo abordados sem nenhuma “[...] relação com uma situação de
comunicação autêntica” (p.76) e são elaborados “[...] como instrumentos para desenvolver e
avaliar, progressiva e sistematicamente, as capacidades de escrita dos alunos” (p. 77).
Pela segunda concepção, a escola é tratada como um lugar de comunicação e “[...]
os gêneros são aprendidos pela prática da linguagem escolar, por meio dos parâmetros
próprios à situação e das interações com os outros” (p.78).
Pela terceira concepção, os gêneros saíram da condição de obscuridade da
primeira abordagem, deixaram de ser vistos apenas como parte da comunicação escolar
conforme a segunda abordagem e passaram a fazer parte das práticas cotidianas da escola
“[...] como se houvesse continuidade absoluta entre o que é externo e interno à escola” (p.79).
Dessa forma, quando desenvolveram as sequências didáticas, Schneuwly, Dolz e
Noverraz (2004) pretendiam preencher a lacuna de procedimentos metodológicos para ensinar
a escrever textos e a exprimir-se oralmente em situações públicas escolares e extraescolares.
As sequências didáticas são elaboradas em torno de um gênero textual, realizadas
sistematicamente e de forma gradativa as dificuldades das atividades vão sendo propostas.
Por isso, a sequência didática é valioso recurso pedagógico para a compreensão de um gênero:
“uma seqüência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor
um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de maneira mais adequada numa
dada situação de comunicação.” (p. 97). É o que se detalha a seguir.
Apresentação da situação (p. 99): “[...] o momento em que a turma constrói uma
representação da situação de comunicação e da atividade de linguagem a ser executada.”
Nessa etapa, duas dimensões deverão ser trabalhadas: na primeira, é preciso que os alunos
tomem ciência do projeto coletivo de produção de um gênero oral ou escrito que será
desenvolvido, e, também, o professor deverá explanar para o aluno os problemas a serem
trabalhados. Na segunda dimensão os conteúdos serão evidenciados, e os alunos deverão
saber quais conteúdos serão trabalhados pelo professor.
A primeira produção (p.101): “no momento de produção inicial, os alunos tentam
elaborar um primeiro texto oral ou escrito e, assim, revelam para si mesmos e para o professor
as representações que têm da atividade.” Nesse primeiro momento, o professor conduzirá a
turma à produção do gênero desejado, sem interferir no processo de produção do aluno. É um
31
momento importante porque é a partir da primeira produção que o professor traçará os
caminhos para solucionar os problemas detectados. Além disso, permite ao professor tomar
conhecimento e consciência dos problemas em relação à produção do gênero, servindo para
diagnosticar o desenvolvimento real (VYGOTSKY, 1999) do aluno.
Os módulos são as atividades definidas pelo professor e as intervenções são
necessárias para resolver “[...] os problemas que aparecem na primeira produção e dar aos
alunos os instrumentos necessários para superá-los” (p. 103). São as atividades definidas pelo
professor para realizar as intervenções necessárias para resolver os problemas diagnosticados
na produção inicial. Essas intervenções podem ser feitas em três níveis: primeiramente, ao
trabalhar problemas de níveis diferentes, o aluno se depara com as especificidades de cada
gênero e deve ser capaz de solucionar os possíveis problemas encontrados e, em seguida, o
professor proporciona uma variedade de atividades e exercícios; além de diversificar as
atividades, deve-se também diversificar os modos de trabalhos; por último, ao terminar os
módulos, o aluno aprende a capitalizar as aquisições, somando ao seu conhecimento o
aprendizado sobre o gênero abordado.
Produção final (p.106): “[...] a sequência é finalizada com uma produção que dá
ao aluno a possibilidade de pôr em prática as noções e os instrumentos elaborados
separadamente nos módulos”. A finalidade dessa produção é investigar a aprendizagem e
também verificar se as estratégias adotadas foram suficientes, o professor deverá confrontar a
primeira e a última produção, e, então, elaborar um diagnóstico conciso do desempenho do
aluno. Abaixo, podemos visualizar o esquema da sequência didática como proposto pelos
autores para trabalhar o gênero em sala de aula.
ESQUEMA DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA
Figura 2 - Esquema da sequência didática.
Fonte: SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução e
organização: Roxane Rojo; Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004, p. 98.
Considerando que cada gênero de texto necessita de uma situação adaptada para
ser desenvolvido em sala de aula, e que cada gênero oferece características distintas, os
autores propõem que os gêneros sejam agrupados em função de certo número de
regularidades linguísticas e de transferências possíveis. Os autores estabelecem três critérios
para o agrupamento: primeiramente, devem ser consideradas as finalidades sociais atribuídas
Apresentação
da situação PRODUÇÃO
INICIAL
PRODUÇÃO
FINAL Módulo
1
Módulo
2
Módulo
n
32
ao ensino nos domínios essenciais de comunicação escrita e oral em nossa sociedade; em
segundo, os gêneros devem ser retomados como já funcionam em vários manuais,
planejamentos e currículos e, por fim, que sejam relativamente homogêneos quanto às
capacidades de linguagem implicadas no domínio dos gêneros agrupados.
Em função desses três critérios, os autores propõem cinco agrupamentos: da
ordem do narrar, do relatar, do argumentar, do expor e do descrever ações. Schneuwly, Dolz e
Noverraz (2004) enfatizam que seria impossível classificar um gênero de maneira absoluta
num dos agrupamentos propostos. Ao elaborar uma sequência didática, deve-se equilibrar a
distribuição das atividades entre orais e escritas e levar em conta a dificuldade em conduzir as
sequências orais e evitar o desgaste tanto por parte dos alunos quanto por parte do professor.
Embora seja difícil desenvolvê-los de forma sistemática e não façam parte com frequência do
planejamento do professor, os gêneros orais sempre estão presentes em sala de aula: são
conversas informais, rodinhas, interações por meio de jogos, brincadeiras, debates, leituras e
correção das atividades, entre outras. No quadro de agrupamento de gêneros abaixo,
ilustramos a sugestão dos autores para agrupar os gêneros.
ASPECTOS TIPOLÓGIGOS
DOMÍNIOS SOCIAIS DE
CONSIDERAÇÃO
CAPACIDADES DE
LINGUAGENS DOMINANTES
EXEMPLOS DE GÊNEROS ORAIS E
ESCRITOS
Cultura literária ficcional NARRAR
Mimeses de ação através da
criação de intrigas
Conto maravilhoso; fábula; lenda;
narrativa de aventura; narrativa de
ficção cientifica; narrativa de enigma;
novela fantástica e conto parodiado.
Documentação e memorização
de ações humanas
RELATAR
Representação pelo discurso de
experiências vividas, situadas no
tempo
Relato de experiência vivida; relato de
viagem; testemunho; curriculum vitae;
notícia; reportagem; crônica esportiva e
ensaio bibliográfico.
Discussão de problemas sociais
controversos
ARGUMENTAR
Sustentação, refutação e
negociação de tomadas de
posição
Texto de opinião; diálogo
argumentativo; carta do leitor; carta de
reclamação; deliberação informal;
debate regrado; discurso de defesa
(adv.) e discurso de acusação (adv.)
Transmissão e construção de
saberes
EXPOR
Apresentação textual de
diferentes formas de saberes
Seminário; conferência; artigo ou
verbete de enciclopédia; entrevista de
especialista; tomada de rodas; resumo
de textos “expositivos” ou explicativos;
relatório científico e relato de
experiência científica.
33
Instruções e prescrições DESCREVER AÇÕES
Regulação mútua de
comportamentos
Instruções de montagem; receita;
regulamento; regras de jogo; instruções
de uso e instruções.
Figura 3 - Quadro de Agrupamento de gêneros
Fonte: SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução e organização:
Roxane Rojo; Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004, p. 121.
No agrupamento proposto pelos autores, o gênero lenda se insere no domínio da
cultura literária ficcional, e a capacidade de linguagem é da ordem do narrar. Assim sendo, há
muito tempo as lendas vêm desempenhando o papel de transmitir a cultura popular por meio
da tradição oral; entretanto, além disso, neste estudo, as lendas assumem a tarefa de (mega)
instrumento para as atividades de apropriação da escrita.
2.1.3 Gênero lenda: especificidades teóricas e possibilidades didático-pedagógicas
O folclore brasileiro guarda um vasto acervo cultural do universo popular. Para
Inocenti (2005, p. 15), o folclore pode ser classificado, para efeitos de catalogação, em oito
formas: em primeiro lugar, a literatura oral, que são as trovas, travalínguas, literatura de
cordel, provérbios, adivinhações, estórias, lendas, fábulas, mitos, parlendas e as mnemônias.
Em seguida, a forma lúdica, que são as danças, autos, teatro popular, festas tradicionais, jogos
recreativos de azar e os folguedos. O autor comprova, também, a forma espiritual que são as
crendices e superstições, cortejos e procissões. Já nas artes destacam-se a música, o artesanato
(cerâmica, tecido, madeira, metal etc.) e os manufaturados. Também destaca a linguagem
popular, a medicina popular e a alimentação, com a apresentação de comidas e bebidas e, por
último, seriam outras formas como o mutirão, o dísticos de caminhão, os tipos típicos e a
cultura de banheiro. Todo esse contexto folclórico, levantado por Inocenti (2005), reforça a
importância da inserção da criança nas práticas sociais da sua comunidade e nas práticas
pedagógicas da sua escola.
Ampliando nosso olhar sobre o assunto, Machado (2003, p.7) escreve que os
filósofos, dramaturgos, historiadores e poetas da Antiguidade Clássica nos deixaram um
tesouro valiosíssimo de histórias, mitos, lendas, fábulas, tragédias e comédias, cujas marcas
34
nos acompanham até hoje. Em outras palavras, as lendas que hoje nos são apresentadas foram
herdadas por nossos antepassados que as transmitiam basicamente pela oralidade; e, muito
tempo depois, pela escrita. Assim, como as crianças desenvolvem a linguagem por meio das
interações sociais, o conhecimento popular das lendas deu-se igualmente por meio das
interações sociais, enquanto a contação dessas narrativas acontecia de forma oral, inicialmente
no contexto familiar, em aldeias e em comunidades onde havia um contador de história.
Para Góes (1991), o narrar artístico nasceu no momento em que o homem sentiu
necessidade de procurar uma explicação qualquer para os fatos que aconteciam a seu redor.
Assim, na falta da escrita para dar continuidade à memória, na Antiguidade as lembranças
eram preservadas na tradição oral. Portanto, essas narrações são transmitidas de geração em
geração e são modificadas à medida que vão sendo contadas. Nelas aparecem figuras criadas
pelo imaginário popular que não existem na realidade, e que, na maioria das vezes, são usadas
para explicar uma situação ou aparição de algum “ente” fictício da natureza. De acordo com
Góes (1991, p. 65):
A lenda, pois, nasce da propensão do espírito humano de explicar os fatos naturais que
desconhece. Por isso, a lenda, nos começos, não é senão a história das primeiras lutas
do homem, de seu desconhecimento e de sua preocupação por entender o mistério que
o circunda. Naquela época tudo era causa de lenda para ele: o movimento dos astros,
as migrações dos povos e animais, os fenômenos do céu, do mar e da terra ou fatos do
seu quotidiano.
Góes (1991) busca, nessa obra, uma tipologia para as histórias infantis e as
classifica assim: mito e lenda, contos de fada, contos maravilhosos, fábulas, histórias – de
animais, de família, policiais, sentimentais, de ficção científica, maravilhosas modernas –
folclore infantil, aventura, poesia e, por último, o teatro infantil. Aqui destacaremos o mito e a
lenda por ser necessário distinguir os dois termos, tendo em vista a nebulosidade em que estão
envoltos, segundo vários autores.
Conforme Góes (1991, p. 107), o mito “[...] nasce do trabalho da imaginação pura
entregue a si mesma e não adulterada pela intromissão [nem pela] tirania dos elementos
racionais”, e pode ser definido como “uma lenda relacionada com o mundo sobrenatural e que
se traduz através dos ritos”, enquanto a lenda “[...] é uma narrativa localizada,
individualizada, objeto de fé”. Podemos dizer que lendas são narrações nas quais aparecem
figuras criadas pelo imaginário popular que não existem na realidade e, na maioria das vezes,
são usadas para explicar uma situação ou aparecimento de algum “ente” da natureza que
dispensa comprovação científica.
35
Para alguns autores, mitos e lendas apresentam significados semelhantes. Coelho
(2003) também observa essa obscuridade entre os dois termos, e, baseada em alguns
estudiosos, aponta algumas características dos mitos: primeiramente, o seu aspecto de
permanência e de duração é uma particularidade da presença de seres sobrenaturais em um
mesmo conjunto de mitos e símbolos, podendo aparecer em várias sociedades. Os mitos
também representam o alargamento de um “espaço sagrado” para um “universo profano” e
constitui-se em histórias, usualmente a respeito de Deus e de outros seres sobrenaturais.
Essencialmente, os mitos podem ser vistos como uma resposta ao universo e seus fenômenos,
fazendo-se conhecer ao assumir “uma dimensão histórica”. Assim, possibilitam a
organização/compreensão do mundo e das coisas, e, finalmente, configuram-se como uma
forma privilegiada de se passarem ensinamentos para a própria cultura em que emergem ou
para fora dela.
Já as lendas, ainda de acordo com Coelho (2003), são narrativas, mais
precisamente, são textos que ora descrevem entes sobrenaturais, ora apresentam uma história.
São textos que se referem a acontecimentos do “passado distante”, enfocando feitos de
personagens, explicando particularidades anatômicas de certos animais. Elas podem ser
contadas por qualquer pessoa a qualquer momento, podem transmitir os ensinamentos e os
valores da sociedade à qual estão vinculadas, apresentam regras de conduta e explicam
fenômenos da natureza. Isso significa, numa linguagem simples, que as lendas permitem
misturar fatos reais com fatos imaginários; transmitidas de geração em geração, vão sendo
modificadas à medida que são contadas e recontadas porque não precisam de comprovação
científica.
No centro dessa questão, com a intenção de submeter as lendas a uma sistemática
adequada o mais próximo possível de um critério científico de classificação, Oliveira (1951,
1965) julga necessário distribuí-las da seguinte forma: lendas cosmogônicas, lendas heróicas,
lendas etiológicas, lendas de encantamento, lendas ornitológicas e lendas mitológicas. As
lendas cosmogônicas são aquelas que procuram explicar fenômenos de natureza astronômica
ou meteorológica; enquanto as lendas heróicas se referem a um herói. Já as lendas etiológicas
procuram explicar a origem de coisas e fenômenos. Diferentemente das lendas heróicas, nas
lendas etiológicas a personagem age como herói civilizador. Nas lendas de encantamento, os
fenômenos podem ganhar materialidade e se transformar em algo concreto. Há, também, as
lendas ornitológicas, que se referem aos pássaros que exercem determinadas influências,
algumas atribuídas à sua natureza de alma penada, outras devidas a certas qualidades
especiais. E, por último, aparecem as lendas mitológicas, que se subdividem em cinco ciclos:
36
da Iara, da Boiúna, do Boto, do Curupira, da Mati-taperê. As contribuições de Oliveira (1951,
1965) e as discussões de Coelho (2003) foram fundamentais para compreender o linguajar
típico desse gênero, fornecendo-nos subsídios teóricos e uma coletânea de elementos
folclóricos que podem ser usados em sala de aula.
Coelho (2000) salienta que, ao longo da vida, o ser humano passa por cinco fases
de interesse pela leitura: a primeira fase é a de pré-leitor; em seguida, é a fase do leitor
iniciante; na terceira fase, o leitor está em processo; na quarta fase, o leitor torna-se fluente; a
última fase é a do leitor crítico, aquele que é capaz de fazer suas próprias escolhas e tirar
proveito da própria leitura. Aqui interessam-nos duas fases: a do leitor iniciante e a do leitor
em processo. A fase do leitor iniciante acontece por volta de seis a sete anos, perfil no qual se
encaixa a turma estudada na pesquisa. Embora manifeste uma preferência pela linguagem
visual, na escola a criança passa a ter contato direto com os signos linguísticos, que são
escritos de maneira sistematizada nessa fase; além disso, a criança passa a se preocupar em
socializar suas ideias. Para Coelho (2000), a fase do leitor em processo, que também nos
interessa, abrange a faixa de oito a nove anos, quando o aluno já domina a construção da
leitura. Para a autora, nessa fase algumas particularidades nos textos infantis deverão ser
observadas: a presença de diálogo nas imagens; as narrativas devem girar em torno de uma
situação central; as frases devem ser simples e na ordem direta, preservando os períodos
simples com a introdução gradativa de períodos compostos. O gênero lenda, escolhido para
ser desenvolvido em classe de primeira série, foco do presente trabalho, oferece os requisitos
necessários para contemplar essas duas fases de leitura.
Nessa perspectiva, ao planejarmos o trabalho de alfabetização com os gêneros é
preciso atenção ao gênero escolhido para trabalhar leitura e escrita. Na verdade, um texto que
não seja do interesse do leitor pode causar a sensação de que a leitura é uma prática
desagradável, daí a importância de, nesse período, a leitura ser sedutora. Também o gênero
em questão, de modo geral, contribui para o entendimento referente a determinado assunto e
para a compreensão do mundo e suas representações; além disso, nessa fase, a criança
manifesta sua preferência pelas narrativas.
Assim, a escolha da lenda para compor o presente trabalho se deu por três razões
distintas. Em primeiro lugar, a criança entra, deste cedo, em contato com as narrativas; em
segundo lugar, trata-se de um grupo de leitores iniciantes que apresentam uma predisposição
para a leitura de encantamento, com personagens mirabolantes e com finais surpreendentes. E,
por último, como já afirmado anteriormente, o tema folclore se constitui em importante
37
recurso de ensino-aprendizagem em sala de aula, porquanto esse tema está atrelado às práticas
sociais.
Em termos gerais, o gênero lenda foi escolhido com base no interesse da criança
em ouvir histórias que envolvam muitas ações entre as personagens, favorecendo a interação
entre professor e aluno. Essa predisposição de ouvir e prestar atenção às conversas das
pessoas pode ser observada desde muito cedo no comportamento da criança. O primeiro
contato com a narrativa acontece por intermédio da voz de pais, avós, tios, enfim, de pessoas
próximas da criança. De tal forma, essas interações, no início da vida, oferecem à criança
momentos de descoberta que aguçam a sua capacidade criativa e de interação com o
imaginário, interações essas que são aprimoradas na infância. Podemos dizer que é na infância
que as interpretações sobre o mundo começam a fazer sentido para a criança por meio de
brincadeiras e fantasia, principalmente a imaginação. Para Kramer (2007), a criança interessa-
se por brinquedos e bonecas atraída pelas personagens dos contos de fadas, mitos e lendas.
Em suma, a cultura infantil é permeada por sonhos e brincadeiras, num mundo do “faz de
conta”. Portanto, dentre as narrações preferidas pelas crianças, as lendas ocupam um lugar de
destaque por suscitar a emoção, a magia, o encantamento, o medo, o suspense. Além do mais,
a criança sente muito prazer em compartilhar esses momentos com os adultos.
2. 2 APROPRIAÇÃO DA ESCRITA NA ESCOLA: PARTICULARIDADES DO DOMÍNIO
DO CÓDIGO
Na introdução deste estudo, destacamos que o nosso objetivo é descrever a
apropriação da língua escrita numa classe de alfabetização, valendo-nos da lenda como
gênero-instrumento na ação didático-pedagógica, considerando a dupla via – sistêmica e
textual – desse processo. Sendo assim, nesta seção julgamos necessário abordar as
similaridades e diferenças entre oralidade e escrita; a relação entre consciência fonológica e
aprendizagem da escrita: os conceitos de palavra, sílaba e fonema e suas implicações na
alfabetização, e finalizamos com a descrição do sistema alfabético do português no que
respeita à escrita conforme Scliar- Cabral (2003a; b; 2009).
38
2.2.1 Similaridades e diferenças entre oralidade e escrita
A oralidade e a escrita constituem práticas e usos da língua. Para Marcuschi
(2005, p. 34) “as relações entre fala e escrita não são óbvias nem lineares, pois elas refletem
um continuum que se manifesta entre essas duas modalidades de uso da língua”, sinalizando
que as diferenças entre fala e escrita se dão no continuum tipológico das práticas sociais de
produção textual e não na relação dicotômica de dois polos opostos (MARCUSCHI, 2005, p.
37). Koch (2007) partilha também da ideia de que a escrita formal e a fala informal
constituem os polos opostos de um contínuo, ao longo do qual se situam os diversos tipos de
interação verbal.
Dessa maneira, oralidade e escrita são eventos diferenciados, ainda que
pertençam ao mesmo sistema linguístico, pois suas regras e seus meios de uso são diferentes
(MARCUSCHI, 2005). Para Koch (2007), frequentemente a modalidade escrita é retratada
como planejada, não-fragmentária, completa, elaborada, com o predomínio de frases
complexas e com subordinação abundante, emprego frequente de passivas etc. Já a
modalidade falada não é planejada, é fragmentária, incompleta, pouco elaborada, com a
predominância de frases curtas, simples ou coordenadas. Mas, para a autora, essas diferenças
nem sempre distinguem as duas modalidades, porque dependendo do tipo de situação
comunicativa, existe uma escrita informal que se aproxima da fala e uma fala formal que se
aproxima da escrita formal, dependendo do tipo de situação comunicativa (KOCH, 2007, p.
78).
Uma diferença é o fato de os interlocutores estarem presentes na hora da fala,
existindo uma negociação entre eles, intercalando os turnos de fala, ora um se manifesta, ora o
outro, isto é, eles não só colaboram, como “co-negociam”, “co-argumentam”, um com o outro
(KOCH, 2007). Scliar-Cabral (2003a) afirma que a modalidade oral permite a inserção de
sons inarticulados, bem como a presença da expressão facial e corporal, além da modulação
da voz. A modalidade escrita permite uma reflexão do que se quer expressar no texto e é
marcada pela apreensão inicial da criança em relação aos “sons” e silêncios e de sua
imaginação e ainda pelas formas cristalizadas de cultura do seu grupo de convívio (SCLIAR-
CABRAL, 2003a).
39
Nessa mesma direção, o fascículo sete do Programa de formação continuada Pró-
letramento (2007) discute modos de falar e modos de escrever e adverte que a principal
diferença entre os textos produzidos oralmente e os textos escritos é que nos produzidos
oralmente existe o apoio do contexto em que está sendo produzido. E quando escrevemos não
dispomos das informações contextuais porque o leitor nem sempre está inserido no mesmo
contexto de produção.
De fato, na modalidade oral qualquer problema de interpretação ou compreensão
pode ser imediatamente retomado e solucionado, pois locutor e interlocutor estão no mesmo
espaço-tempo. E nos valemos da própria linguagem do nosso corpo, como gestos, expressões
faciais e tons de voz com intuito de completar o que queremos dizer; além do mais, a
oralidade admite repetições, pausas, inserções.
Na modalidade escrita, estamos em espaço-tempo diferente de quem vai ler o
texto que escrevemos, daí ser necessário considerar o objetivo ou intenção do produtor do
texto. Na verdade, há uma exigência maior para o texto escrito; geralmente os modos de falar
são marcados por menos atenção e menos planejamento que os modos de escrever, embora
em certas circunstâncias os modos de falar requeiram quase tanta monitoração quanto os
modos de escrever (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007, p. 13. FASCÍCULO 7). A esse
respeito Marcuschi (2005, p. 38- 39) declara que oralidade e escrita:
“São [...] realizações de uma gramática única, mas que do ponto de vista
semiológico podem ter peculiaridades com diferenças acentuadas, de tal modo que a
escrita não representa a fala. Além disso, os textos orais têm uma realização
multissistêmica (palavras, gestos, mímica etc) e os textos escritos também não se
circunscrevem apenas ao alfabeto (envolvem fotos, ideogramas, por exemplo, os
ícones do computador e grafismos de todo tipo). [...] não postulamos uma simetria
de representação e sim uma simetria sistêmica no aspecto central das articulações
estritamente linguísticas.
Scliar-Cabral (2003a) esclarece que a fala é adquirida naturalmente, pois ao longo
da história está presente onde quer que sejam encontrados traços de humanidade e não existe
nenhuma dificuldade – salvaguardando as patologias – para adquirirmos a linguagem oral
desde que sejamos expostos à situação linguística. A autora lembra ainda que o sistema
alfabético apareceu mais tarde, é uma invenção da humanidade, e foi preciso acumular
conhecimentos para se descobrir o princípio de que as palavras eram constituídas. Assim, o
sistema verbal escrito, ao contrário do sistema verbal oral, precisa ser aprendido de maneira
sistemática.
Para a autora, a modalidade oral e a modalidade escrita podem ser usadas como
instrumento de reflexão sobre a própria língua, fenômeno a que se dá o nome de
40
metalinguagem. Essa reflexão sobre a linguagem oral é necessária porque todos os falantes de
uma língua, alfabetizados ou não, percebem a cadeia da fala no seu uso cotidiano como um
continuum, enquanto no início do processo da escrita, a criança não percebe a separação entre
as palavras. Dessa forma, com o conhecimento do sistema alfabético, é possível perceber que
a sílaba pode ser desmembrada em unidades menores, os fonemas. Scliar Cabral (2003a; b)
adverte ainda que a falta de reflexão metalinguística leva o aluno a eliminar a consoante
inicial da vogal seguinte com a qual se coarticula e essas articulações em cada nível são
representadas através da linguagem verbal, tanto oral quanto escrita. Segundo a autora, existe
uma reciprocidade entre a consciência fonológica e a aprendizagem do sistema alfabético.
2.2.2 Relação entre consciência fonológica e aprendizagem da escrita: os conceitos de
palavra, sílaba e fonema e suas implicações na alfabetização.
A alfabetização tem sido objeto de estudo em diferentes áreas de pesquisa
(SCLIAR-CABRAL, 2003a, 2003b, 2009; SOUZA, 2003; GONTIJO, 2008, 2003;
COLELLO, 1995; BORTOLOTTO, 2001; LEMLE, 2003; CARVALHO, 2005; FERREIRO,
2006; MASSINI-CAGLIARI, 2001; POERSH, 1990 entre outros). Conceber a alfabetização
como um processo complexo e multifacetado implica investigar como se dá o processo de
ensino-aprendizagem da leitura e da escrita pela criança. Na presente pesquisa, nosso foco
recai na aprendizagem da escrita. Nesta seção, procuramos esclarecer os conceitos de palavra,
sílaba e fonema, por considerá-los fundamentais para o entendimento de nossa prática
pedagógica. Abordamos também o desenvolvimento da consciência fonológica como
facilitador da aprendizagem da língua escrita pela criança.
Como mencionado anteriormente, para Scliar-Cabral existe uma influência
recíproca entre a consciência fonológica e a aprendizagem do sistema alfabético:
A consciência fonológica insere-se na consciência metalinguística. Elas decorrem da
capacidade de o ser humano poder se debruçar sobre um objeto, no caso, a língua, de
forma consciente, utilizando uma linguagem. No caso da consciência fonológica, o
objeto sobre o qual você se debruça conscientemente são os fonemas, e a linguagem
utilizada é o alfabeto. Uma primeira distinção a fazer é entre conhecimento não
consciente dos fonemas para o uso e o seu conhecimento consciente dos fonemas.
Todo o falante-ouvinte nativo, alfabetizado ou não, tem conhecimento não
41
consciente dos fonemas e os utiliza com propriedade: quando escuta ou quando fala,
sabe a diferença entre /´bala/ e /´mala/. Já o conhecimento consciente dos fonemas
se desenvolve com a aprendizagem do sistema alfabético da respectiva língua.
(SCLIAR-CABRAL, 2009. p.35).
Baseando-nos em Scliar-Cabral (2003 a, b, 2009), podemos dizer que a
consciência fonológica pode ser definida como uma habilidade de reconhecimento dos
fonemas nas palavras, desde substituí-los até segmentá-las em unidades menores (palavras
em sílabas e sílabas em fonemas). No processo de alfabetização, analisar as palavras
utilizando-se das regras de correspondência entre fonemas e grafemas4 constitui-se em pré-
requisito para o ensino-aprendizagem da escrita. Portanto, a aprendizagem de palavras faz
parte do processo de alfabetização.
Scliar-Cabral (2009) ensina que o reconhecimento da palavra ocorre por análise e
síntese dos traços, letras e grafemas associados aos fonemas, morfemas5 e frases para chegar
à compreensão textual. Essa capacidade de perceber a articulação dos traços da palavra
escrita, com função de distinguir significados, os grafemas, associados ao respectivo fonema
(SCLIAR-CABRAL, 2003), significa atribuir os valores fonológicos que envolvem a língua,
e esses conhecimentos ajudam o aluno a fazer a separação entre as palavras e/ou entre
consoantes e vogais. Dito de outra forma, o reconhecimento dos grafemas da palavra se faz
associando o traçado à realização do fonema que o grafema representa, e para especificar a
construção da palavra é necessário analisar seus constituintes, discriminando os fonemas e
os grafemas cuja função é distinguir sentidos e significados.
Segundo Scliar-Cabral (2009), a razão primordial que fundamenta a fônica são os
grafemas que representam um fonema (classe de sons com função de distinguir significados).
Em relação à sílaba, a autora julga importante examinar o contraste entre as unidades que
constituem a sílaba para desmembrá-la e fazer a associação de um fonema a um grafema. Para
a autora, na sílaba o que define uma consoante e uma vogal são as pistas acústicas e também
seus respectivos gestos fonoarticulatórios, em virtude da co-articulação. A autora afirma ainda
que a fala é percebida como um contínuo antes da alfabetização, sendo essa a maior
dificuldade na aprendizagem da leitura e da escrita. E como solução, sugere “um trabalho
sistemático [...] para que o indivíduo reconstrua de modo consciente a percepção da fala e
4 O grafema é a menor unidade da escrita, constituída de uma ou duas letras para distinguir significados. Se for
desmembrado, como ch, deixará de ser um grafema. É uma unidade abstrata (SCLIAR-CABRAL, 2009, p. 11). 5 Os morfemas se referem às classes, categorias e relações gramaticais. São morfemas os afixos, os pronomes, as
preposições, as conjunções, os advérbios de lugar, os artigos. (SCLIAR-CABRAL, 1976).
42
possa desmembrar a cadeia da fala em palavras e a sílaba em seus constituintes”. (SCLIAR-
CABRAL, 2009, p.11).
Para Mattoso Câmara Jr. (1977, p. 69):
A aquisição e a estruturação da língua na mente infantil é toda baseada na unidade
silábica: as primeiras enunciações infantis, valendo por vocábulos e frases, são as
sílabas, e o processo da criança, que utiliza a reduplicação desses elementos para
construir palavras (dadá, papá etc), é um modo de insistir na unidade fonética
espontaneamente sentida.
Esse mesmo autor (1977) considera que existe nebulosidade na definição precisa e
científica da sílaba, porque os debates a têm focalizado como realização física, sem levar em
conta a sílaba funcional. E apresenta alguns conceitos de sílaba, como sílaba dinâmica ou
expiratória, “enquanto se fala, o ar é emitido numa série de impulsos a cada um dos quais se
pode dizer que corresponde a uma sílaba”; sílaba intensiva destaca “o acento silábico ou
maior energia da emissão, durante a articulação de uma sílaba, o qual está para os fonemas
componentes como o acento”; e a sílaba sonora, “emitida num único impulso de expiração,
mas num só impulso também se podem articular duas sílabas sonoras, que ficam assim
reunidas numa única expiratória ou dinâmica” (MATTOSO CÂMARA JR, 1978 p.70).
Mattoso traz também o conceito de sílaba funcional, que é “aquela que impõe os tipos de
concatenação dos fonemas de uma língua dada, conforme o tratamento crescente ou
decrescente nas várias situações dos contextos”.
Scliar-Cabral (2009) reafirma que desenvolver a consciência fonológica pode
ajudar a vencer a dificuldade em segmentar a sílaba e alerta que não se deve confundir
consciência fonológica com habilidades para discriminar diferenças entre sons, pois o fonema
é uma entidade que tem a função de distinguir as significações básicas. E assim a autora
levanta uma discussão a respeito do fonema com o intuito de aclarar a compreensão de
consciência fonológica.
O que é um fonema? Muitos confundem fonema com som. No entanto, a definição
clássica de fonema, estabelecida pelo linguista R. Jakobson, é: O fonema é um feixe
de traços distintivos. O fonema tem uma função distintiva, isto é, serve para
distinguir um significado básico de outro, como já no citado exemplo de /’bala/ e
/’mala/. Veja bem, o fonema não tem significado: serve para distinguir significados.
Quer dizer que /b/ e /m/ não significam nada, mas trocando um pelo outro no
contexto /’_ala/, o significado se altera (2009, p. 35).
Outro questionamento da autora:
43
Por que o fonema não é som? Porque o fonema é uma unidade psíquica: assim como
não se pode colocar uma cadeira dentro da cabeça, as moléculas de ar que se
comprimem e se rarefazem para produzir as ondas acústicas também não podem
entrar dentro da cabeça. [...] O fonema é um feixe de traços invariantes, de natureza
abstrata, que são reconhecidos por sua função de distinguir significados, permitindo
que as pessoas se comuniquem através da língua verbal oral. Não importa como as
pessoas pronunciem o terceiro segmento que aparece na palavra carta [r], pois o som
que o carioca produz só tem de parecido com o que um gaúcho de Bagé diz no fato
de ambos serem consoantes, e só! Mas o fonema é o mesmo! (2009, p. 35).
Mattoso Câmara Jr. (1977, p. 48-66) considera o fonema como um conjunto
mínimo (de efeitos acústicos ou de movimentos dos órgãos fonadores) com um papel, ou uma
FUNÇÃO, na representação e na comunicação linguística. A sua troca por outro conjunto
mínimo muda o valor representativo do que é enunciado: comparem-se má e pá. Para o autor,
os fonemas apresentam a divisão fundamental entre consoantes e vogais, do ponto de vista de
sua produção oral e efeito acústico. O autor também esclarece que o fonema é produzido
dentro do som da fala por certas qualidades articulatórias, com resultantes qualidades
acústicas que opõem cada um deles aos demais.
Scliar-Cabral (2003b, p. 248) salienta que a correspondência entre fonemas e
grafemas gera determinadas dificuldades: primeiramente, perceber a distinção do traço
fonético num par mínimo e sua respectiva codificação grafêmica. Em segundo lugar, a
dificuldade de perceber os traços gráficos. A terceira dificuldade é levar o aluno a adivinhar
ou alfabetizar pelos nomes das letras, caso em que se deve processar o sinal acústico para
codificá-lo em grafemas pelas letras. A quarta dificuldade é a falta de domínio das regras de
codificação determinadas pelo contexto fonético. E, por último, a dificuldade da resposta
aleatória.
Assim, a falta de exatidão na correspondência das qualidades fônicas e seus
respectivos valores pode gerar algumas dificuldades, mas reconhecemos também que sem
possibilitar à criança exercitar no texto essas dificuldades é praticamente impossível que ela
as supere somente com atividades de ordem estrutural. Ter claros esses conceitos pode
significar um planejamento didático voltado para as especificidades da língua materna, e é
importante trabalhá-los para proporcionar à criança o contato com o sistema alfabético, além
de proporcionar o reconhecimento e a formação de novas palavras a partir de outras pré-
existentes.
2.2.3 Descrição do sistema alfabético do português no que respeita à escrita
44
Na seção anterior abordamos os conceitos de palavra, sílabas e fonemas e a
importância da consciência fonológica como facilitador da aprendizagem da leitura e da
escrita na alfabetização. O objetivo desta seção é descrever o processamento da escrita,
segundo Scliar-Cabral (2003a; b). Uma das razões para o grande interesse de tais descrições
reside no fato de elas explicarem quais são as dificuldades pelas quais passam os aprendizes
do sistema escrito do português do Brasil. Além do mais, encontramos no trabalho da autora
os subsídios necessários para fundamentar a nossa análise em relação ao código, no nosso
caso, a conversão de fonema-grafema.
As pesquisas de Scliar-Cabral (2003a; b) concentram-se em dois eixos: na
decodificação e na codificação. A primeira refere-se ao processo da leitura, ao
reconhecimento das letras e à atribuição dos valores aos grafemas. A segunda refere-se à
conversão dos fonemas em grafemas na escrita da palavra. Em nosso estudo, interessa-nos a
codificação, isto é, a aprendizagem da escrita. De acordo com Scliar- Cabral (2003a; b), as
regras de codificação se subdividem em: regras independentes do contexto; regras
dependentes da posição e/ou do contexto fonético; as alternativas competitivas; as regras
dependentes da morfossintaxe e do contexto fonético e a derivação morfológica. Destas,
abordamos as regras independentes do contexto: algumas ocorrências das regras dependem da
posição e/ou do contexto fonético intercalando com alguns casos de alternativas competitivas.
Para Scliar-Cabral (2003a; b), a conversão aos grafemas independente do contexto
ocorre quando os fonemas correspondem aos grafemas e não dependem da posição e/ou do
contexto fonético. Como observamos no quadro abaixo nas palavras: “pato” → /p/→ “p”;
“bola”→ /b/→ “b”; “tatu” → /t/→ “t”; “dado”→ /d/ → “d”; “faca”→ /f/→ “f”; “uva”→/v/→
“v”; “nata” → /n/→ “n”; “bolha” → / λ /→ “lh”; “anéis” →/ej/ →éi; “dói” → /ói/→ ói
(ditongos abertos éi e ói, respectivamente). Observem na tabela, a seguir:
Tabela 1 - Conversão aos grafemas independente do contexto
Fonema Grafema Exemplos Fonema Grafema Exemplos
/p/ p pato /b/ b bola
/t/ t tatu /d/ d dado
/f/ f faca /v/ v uva
/m/ m mato /n/ n nata
/ ŋ / nh linha / λ/ lh bolha
/ej/ éi anéis /ói/ ói/ dói
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 78.
45
Podemos observar que ocorre correspondência biunívoca entre fonemas e
grafemas em /p/ → “p”, /b/→ “b”, /t/ → “t”, /m/→ “m”, /ŋ/ → “nh”, /d/ → “d”; /v/→ “v”, /n/
→ “n”, / λ/→ “lh”, um fonema corresponde a um grafema e vice-versa. Assim, os fonemas
/p/, /b/, /t/, /d/, /f/, /v/, /m/, /n/, /ŋ/, /λ/, serão sempre representados pelos grafemas “p”, “b”,
“t”, “d”, “f”, “v”, “m”, “n”, “nh”, “lh”, respectivamente.
A conversão dos grafemas dependente da posição e/ou do contexto fonético é
subdividida pela autora em: consoantes e vogais. Primeiro, abordaremos as consoantes e em
seguida as vogais. Em relação às consoantes, Scliar-Cabral (2003b) ressalta que somente o
fonema /l/ tem sempre a mesma conversão em início da palavra e de sílaba interna, pois em
tais posições sempre se escreve com o grafema “l”, como, por exemplo, “Lula”; os fonemas
/z/ e o arquifonema |R| têm a mesma conversão em início de palavra, posição na qual sempre
se escrevem com os grafemas “z” e “r”, respectivamente. O arquifonema |R| em final de sílaba
e palavra, a substituição de /R/ e /r/ não altera o significado da palavra; esses dois fonemas só
têm a mesma conversão no início da sílaba interna. Assim, o fonema /r/ pode vir entre
semivogal e vogal, mas o fonema /R/ não pode vir depois de semivogal. O fonema /s/, em
início de palavra, pode ser convertido no grafema “s”, antes da vogal posterior, no início da
palavra e, também em vários outros grafemas no início da palavra, antes da vogal não
posterior pode se converter em “c”.
Scliar-Cabral (2003b) esclarece ainda que, pela regra, a realização dos fonemas
/l/, /z/, /R/, que ocorrem no início do vocábulo, se convertem nos grafemas “l”, “z” e “r”,
respectivamente. Por exemplo: “lata”, “zero”, “rato”. A realização do fonema /l/ no início de
sílaba interna se converte no grafema “l”,como, por exemplo em “calo”, “calem”, “baile”,
“caule”. O fonema /R/ também no início de sílaba interna, não depois de semivogal, se
converte no grafema “rr”, como na palavra “carro”. Já o fonema /r/ no início da sílaba interna
se converte no grafema em “r”. Ex: “caro”, “beira”, “doura”, “cárie”. A realização do fonema
/s/ ocorre só depois de vogal posterior ou /w/, caso em que se converte no grafema “s”. Ex.:
“sala”, “som”, “suave”. Vejamos na tabela:
Tabela 2 - Conversão dependente da posição no início do vocábulo antes de vogal ou em
início de sílaba interna, entre vogal ou semivogal orais e vogal ou semivogal
No início do vocábulo No início da sílaba interna
Fonema Conversão Exs. Fonema Conversão Exemplos
/l/ l lata /l/ l calo, calem,
46
baile, caule
/z/ z zero
|R| r rato
/R/ não depois
da semivogal
rr Carro, correm
/r/ r Caro, beira,
doura, cárie
Só antes da vogal posterior ou /w/
/s/ s sala
som
suave
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 80.
Scliar-Cabral (2003a) enfatiza que quando houver alternativas competitivas para o
mesmo contexto fonético, é necessário selecionar no léxico mental ortográfico o item que
emparelhe semântica e morfossintaticamente com a forma fonológica. Para realização do
fonema /S/ nos contextos competitivos a autora define as regras:
A realização do fonema /s/ em início de vocábulo, antes de vogal oral ou nasalizada
não posterior, [...], ou antes de semivogal /j/ pode se reescrever ou com o grafema
“s” ou “c” (153).
As realizações do fonema /s/ podem se reescrever “ss”, “c”, ou “sc” em início de
sílaba, entre vogal oral e vogal não posterior oral ou nasalizada, ou semivogal não
posterior [...] , e /j/ entre a vogal /e/ em início de vocábulo, precedida ou não de
prefixos, e vogais não posteriores orais ou nasalizadas não altas, [...] e /ẽ/ ainda pode
se reescrever com “xc”... (p. 153-154).
A realização do fonema /s/ em posição intervocálica, se a segunda vogal começar a
terminação - /imu/→ “imo” ou - /imi/ → “imi” e suas reflexões pode ser grafadas
com “x”, por exemplo: próximo, proximidade. (p.154).
A realização do fonema /s/ em início de sílaba, entre vogal oral e vogal posterior
oral ou nasalizada que não a [+alta], posteriores, [...], pode se reescrever com os
grafemas “ss”, “ç”. Dois contextos competitivos mais restritos ocorrem para o
grafema “sc”, que pode ocorrer entre /e/ ou /a/ e /u/, /a/, /õ/ ou /ã/ e “xs”, que pode
ocorrer entre /e/ e vogal oral arredondada [...] (p. 155).
A realização do fonema /s/ em posição inicial de sílaba interna, entre vogal
nasalizada e vogal oral ou nasalizada ou semivogal não posteriores, [...] pode se
reescrever “s”, “c”, ou “sc” (p. 156).
A realização do fonema /s/ pode ser codificada seja pelo grafema “s” ou “c” em
início de sílaba entre vogal nasalizada e vogal oral ou vogal nasalizada posteriores
[...] ou entre / ě/ e a semivogal /w/ (p. 156).
A realização do fonema /s/ em início de sílaba, entre os arquifonemas |R| ou |W| e
vogal oral ou nasalizada ou semivogal não posteriores, [...] pode se reescrever tanto
por “s” quanto por “c” (p. 157).
A realização do fonema /s/ em início de sílaba, entre os arquifonemas |R| ou |W| e
vogal oral posterior ou nasalizada ou posterior que não a [+alta], [...] e /ã/, pode se
reescrever tanto “s” quanto “ç” (p. 158).
Observando a tabela abaixo, verificamos que a conversão dos fonemas dependente
de vogal posterior ou não posterior apresenta duas ocorrências: antes de vogal posterior /w/ e
antes da vogal não posterior /j/. Na primeira ocorrência, o fonema /k/ antes da vogal posterior
pode ser convertido no grafema “e” nos casos em que não ocorrem as vogais, isto é, /u/, /ã/,
como em “conta”. Encontramos ainda o fonema /g/ que pode ser convertido no grafema “g”,
47
por exemplo, “gula”, “agüenta”. A realização do fonema /z/ seguido de uma vogal posterior
se transcreve “j”, como em “loja”. A realização do fonema /s/, seguido de uma vogal
posterior, oral ou nasalizada, depois do fonema /j/ se transcreve “ç”, por exemplo, “feição”.
Na segunda ocorrência, antes da vogal não posterior /j/, os fonemas /k/ e /g/ podem ser
convertidos nos grafemas “qu” e “gu”, respectivamente. Por último, se a realização do fonema
/s/ figurar em início de sílaba entre a semivogal /j/ e uma vogal não posterior, isto é, /i/, /e/,
/i~/, /e~/, se grafa “c”, por exemplo, “foice”.
Tabela 3 - Conversão dos fonemas dependente de vogal posterior ou não posterior
Antes de vogal [+post], /w/ Antes da vogal [-post], /j/
Fonema Conversão Exemplos Conversão Exemplos
/k/ e (que não as
vogais /u/, /ã/)
conta qu queixo
/g/ g gula, agüenta gu guerra
/z/ j loja
/s/ ç depois de /j/ feição c foice
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 80.
Na tabela 4, conforme a regra, a realização do arquifonema |R| em início de sílaba,
seguido de vogal posterior nasalizada, /w/ ou /S/ se transcreve “r”, conforme o exemplo de
“enruga”, “melro”, “desrespeito”, respectivamente. Se a realização do fonema /∫/ for
nasalizada, /ej/, /ow/ ou /aj/, nestes casos se grafa “x”, por exemplo, “enxame”, “deixa”,
“trouxa”, “caixa”, respectivamente. Se a realização do fonema /z/ figurar em /e/ em início de
vocábulo, precedido ou não de prefixo, se grafa “x”, “enxame”, “reexame”. Caso a realização
do fonema /w/ figurar depois de / k/ ou /g/ antes de vogal não posterior, se grafa “u” como em
“eqüino”, “agüentar”.
Tabela 4 - Conversão de /j/ e |R| em início de sílaba, depois de vogal nasalizada, |S|, |W| e de
/ej/, /ow/, /aj/; conversão de /z/ depois de /e/ em início de vocábulo e de /w/ entre /k/ ou /g/ e
vogal não posterior
48
Fonema Conversão Depois de Exemplos
|R| r Vogal nasalizada enruga
/W/ melro
/S/ desrespeito
/∫/ x Vogal nasalizada enxame
/ej/ deixa
/ow/ trouxa
/aj/ caixa
/z/ z /e/ em início de vocábulo,
precedido ou não de
prefixo
enxame, reexame
/w/ ü /k/ ou /g/ antes de vogal
não posterior
eqüino, aguentar
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 81.
A tabela abaixo mostra que pela regra a realização do arquifonema |R| no final
da palavra pode ser convertido em “r” depois da vogal oral, por exemplo, beber, mulher,
gostar etc. Em sua realização, o arquifonema |S| pode ser convertido em “s”, em sílaba tônica
depois de vogal oral e semivogal, como em “casas”, “livros”, “bebes”, “fáceis”. Pela regra, o
fonema /j/ pode ser convertido em “e” (depois de /ã (s)/), em “m” no ditongo nasalizado, em
tônico não seguido de /s/ (depois de /e/) e “n” em ditongo nasalizado átono ou quando tônico,
seguido de /S/ (depois de /e/), por exemplo, “beber”, “casas”, “mãe”, “bem”, “ele detém”,
“hífen”. O fonema /j/ realizado no final do vocábulo pode ser convertido em “i”, em ditongo
decrescente, depois da vogal oral, como nas palavras “pai”, “pais”. Por último, o fonema /w/
pode ser convertido em ditongo nasalizado tônico, depois de /ã/, como, por exemplo, “vão”,
“darão”, “salão”, “mãos”.
Tabela 5 - Conversão dos arquifonemas ou fonemas em final de vocábulo
Arquifonema ou
Fonema
Conversão Depois de Exemplos
49
|R| r Vogal oral beber, mulher, gostar
|S| s em sílaba tônica Vogal oral, SV casas, livros, bebes,
fáceis
j
e /ã (s)/ /õ (s)/ mãe, mães, mão, mãos
m no ditongo
nasalizado
bem, ele vem, alguém
tônico não seguido de
/s/
/~e/ ele detém, eles vêm, ele
detém
n no ditongo nasalizado
átono, ou quando
tônico, seguido de /S/
/~e/ hífen, homens, itens,
bens, deténs
/j/ i no ditongo
decrescente
Vogal oral pai, pais
/w/ no ditongo nasalizado
tônico
/ã/ vão, darão, salão, mãos
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 81.
Continuando as alternativas competitivas, Scliar-Cabral (2003b) explica:
O fonema /z/ se grafa competitivamente s ou z em início de sílaba depois de
qualquer vogal ou semivogal, exceto se a vogal oral no início do vocábulo for /e/,
precedida ou não de prefixo, pois então se grafa obrigatoriamente x, como em
“exame” [...] (p. 92).
O fonema /∫/ em início de vocábulo ou posição intervocálica oral ou nasalizada se
converte em ch ou x. Ex.: “cheque” e “xeque, “chá” e “xá”; “fechou” e “vexou” [...]
( p. 92).
O fonema /з/ em início de sílaba externa ou interna, antes de vogal não posterior oral
ou nasalizada, se converte em g ou j, conforme os exemplos: “gira” e “jipe”;
“degelo” e “rejeito”; “eu gelo” e “jeca”; “ginga” e “jinga” (p. 93).
O arquifonema |R| em algumas variedades socioliguísticas, como o chamado dialeto
caipira, em sílaba travada terminada em /R/, /l/ e /R/, neste contexto, realizam-se
como a retroflexa /r/. Neste caso, a homofonia se estende a toda uma série de pares e
só é desmanchada na escrita, como “pulga” (inseto)/ “purga” (laxante),
“mal”/”mar”, por exemplo (p. 93). Aqui a autora adverte que “o redator, de acordo
com o assunto (esquema mental) sobre o qual estiver escrevendo, deverá recordar
como se escreve a palavra cuja grafia memorizou”, já que se trata de homófonos não
homógrafos (p. 93).
A semivogal /j/ se reescreve competitivamente i ou e nos ditongos crescentes orais
(também pronunciáveis como hiatos), antes de vogal oral posterior, em final de
sílaba não final de vocábulo, ou final de vocábulo, seguida ou não de consoante. Ex.:
→ “acordeona” e “piolho”, “veado” e “viaja”; “páreo” e “Mário”, “área” e “ária” (p.
93-94).
O arquifonema |W| se escreve competitivamente o ou u nos ditongos crescentes
orais (também pronunciáveis como hiatos), em sílaba não final de vocábulo ou em
final de vocábulo, seguida ou não do arquifonema |S| [...];
O ditongo decrescente, em sílaba interna, reescreve-se u ou l. Aplique-se,
também, a restrição da crase quando a semivogal /w/ for precedida pela vogal /u/,
como em /’vutu/ → “vultu” [...];
Em final de vocábulo, nos ditongos decrescentes, a semivogal /w/ poderá ser
codificada como o, u ou l; no último caso, em algumas variedades sociolinguísticas,
ocorre a neutralização entre /l/ e /R/ que se realiza como a retroflexa [...].
50
No ditongo seguido do arquifonema |S|, a semivogal /w/ só admite a conversão
como o ou u. Ex.: “ateus”; “tios”; “caos”. (p. 94-95). Desse modo, trata-se, dentre
outras que foram mostradas, de uma das codificações mais complexas do português
do Brasil, uma vez que “é particularmente difícil decidir quando escrever ‘mal’ ou
‘mau’, [...] dada a semelhança semântica, somente os conhecimentos de morfologia
e de sintaxe podem resolver” (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p. 95).
Pela regra, a realização do fonema |R| em final de sílaba, seguido de uma vogal
posterior oral, se transcreve “r”, como em “carta”, “porta”; o fonema |S| depois da vogal oral,
menos depois de /e/ em início de vocábulo precedido ou não por prefixo, isto é, /S/ se realiza
surdo antes de /p/, /t/, /k/, /f/ e sonoro antes das demais consoantes, a regra determina que se
grafe “s” como em “caspa”, “pasta”, “lesma”, “asno”. Se a realização do fonema /j/ figurar
depois da vogal oral, se grafa “i”, como em “feira”, conforme se vê na tabela 6, a seguir.
Tabela 6. Conversão dos fonemas em final de sílaba não final de vocábulo
Final de sílaba Depois de Exemplos
Fonema Conversão
|R| r Vogal oral Carta, porta
|S| s Menos depois de /e/ em início de
vocábulo precedido ou não por prefixo
Caspa, pasta, lesma,
asno
/j/ l Vogal oral feira
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 82.
A tabela 7 mostra que /r/ e /l/ se realizam em “r” e “l” nos casos de encontros
consonantais na mesma sílaba, isto é, sendo o primeiro fonema /p/, /b/, /t/, /d/, /k/, /g/, /f/, /v/
se converte nos grafemas “p”, “b”, “t”, “d”, “k”, “g”, “f”,”v”, como em “prato”, “simples”,
“cobra”, “blusa”, “letra”, “vidro”, “crise”, “ciclo”, “grande”, “globo”, “fruta”, “flor”, “livro”.
Tabela 7- Conversão dos encontros consonantais na mesma sílaba
Fonema Conversão 1º fonema Conversão Exemplos
/r/ e /l/
r e l
/p/ p prato, simples
/b/ b cobra, blusa
/t/ t letra
/d/ d vidro
/k/ k crise, ciclo
51
/g/ g grande, globo
/f/ f fruta, flor
/v/ v livro
Fonte: SCLIAR-CABRAL, Leonor. Guia Prático de alfabetização. Contexto: São Paulo, 2003b, p. 83.
Por fim, Scliar-Cabral (2003b) examina a conversão das vogais nos grafemas que
as representam, levando-se em consideração: a intensidade da sílaba; o timbre da vogal; e a
caixa de ressonância, isto é, as vogais orais e nasalizadas. Para a autora, a percepção da sílaba
mais forte no vocábulo ajuda a criança a identificar onde cai o acento de intensidade.
Conforme Scliar-Cabral (2003a; b), o alfabeto do português do Brasil apresenta apenas cinco
letras (a, e, i, o, u) para representar as vogais, embora existam sete vogais orais (a, ô, ó, u, ê, é,
i) e cinco nasalizadas (ã, ~e, ~i, õ, ~u).
De acordo com Scliar- Cabral (2003b) o acento gráfico marca a intensidade,
podendo grafá-lo com acento agudo ou circunflexo, conforme as regras:
Nos vocábulos proparoxítonos, se as vogais forem orais, o acento circunflexo cai
sempre sobre /e/ ou /o/ e o agudo sempre sobre /i/, /u/, /E/, /j/, /a/ como em “débito”,
“árvore”. [...] Se as vogais forem nasalizadas, o acento circunflexo cai sobre /e/, /o/,
/a/ e o agudo cai sobre /i/e /u/, como em “cúmplice”, “tímpano”. (p. 84)
Os vocábulos oxítonos ou monossílabos tônicos terminados em /e/, /o/, /E/, /j/, /a/,
seguidos ou não do arquifonema |S| a atribuição depende de dois critérios, ou seja,
se a vogal for [+ alta] ou [+nas], deixando a questão do timbre. Ex. “bebê”, “três”,
“pé”. (p. 85)
Os vocábulos paroxítonos terminados em /û/, /õ/, /ã/ ditongo oral decrescente ou
crescente, [...] seguidos ou não do arquifonema |S|, como em “álbum”, “álbuns”. [...]
Vogal seguida de /p (i)/ e /k (i)/ seguidas do arquifonema |S|, como em “tórax”. [...]
O |R| como em “açúcar”. A regra contempla a variação sociolinguística em que
houve neutralização entre /l/ e |R|, realizado como retroflexa /r/, como em
“possível”. (p. 86)
A intensidade nas vogais orais /i/ e /u/, em segundo lugar no hiato, sozinhas na
sílaba (salvo quando seguidas de |S|) as vogais /i/ ou /u/ devem se diferentes da
vogal precedente, seguidas ou não de |S|na mesma sílaba como em “caí”, “país” [...]
mas, rainha não tem acento gráfico, pois a segunda vogal do hiato é nasalizada. (p.
86)
Quanto à grafia das vogais nasalizadas, Scliar- Cabral (200b) esclarece que o til,
além de assinalar a nasalização das vogais /ã/ e /õ/, marca a sua intensidade mais forte nos
ditongos nasalizados em monossílabos tônicos, como em “hão”, “cães”. Já as letras m ou n
marcam a nasalização das vogais em final de sílaba interna e também em final de sílaba que
não esteja em final de vocábulo; antes de /p/ e /b/ que iniciem sílaba seguinte é marcada pela
letra m, como em “tempo”, “tumba”. Antes das demais consoantes, a nasalização é assinalada
pela letra n, como em “longe”, “anzol”, “sons”. A nasalização das vogais /i/, /õ/ com ou sem
intensidade, em final de vocábulo, é assinalada graficamente pela letra m; a nasalização da
vogal /õ/, sem intensidade, é assinalada pela letra n. Antes de |S| em final de vocábulo, a
52
nasalização das vogais mencionadas acima é assinalada obrigatoriamente pela letra n, por
exemplo em “ruins” “fins”, “atuns” e outros. A vogal nasalizada /ã/, com ou sem acento de
intensidade, seguida ou não de |S|, em final de vocábulo, é marcada graficamente pelo til,
como em “lã”, “maçã”, “fãs”.
Nesta seção, descrevemos o sistema alfabético escrito com intuito de compreender
as dificuldades pelas quais o alfabetizando passa ao desmembrar a cadeia da fala. A seguir,
passamos a apresentar alguns aspectos da perspectiva histórico-cultural de Vygotsky,
enfatizando a Zona de Desenvolvimento Proximal. E por último, a apropriação da linguagem
escrita pela criança e suas implicações pedagógicas.
2.3 O PAPEL DO ALFABETIZADOR NO PROCESSO DE ENSINO E
APRENDIZAGEM: RELAÇÕES ENTRE APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO
NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
Neste trabalho, a alfabetização é entendida como a apropriação da leitura e da
escrita visando às práticas sociais, como, por exemplo: escrever um bilhete, uma carta, uma
receita culinária. Mas, além dessas práticas domésticas cotidianas, existem ainda as práticas
acadêmicas: artigo científico, monografia, dissertação e outros. Para fazer isso, importa
dominar o código alfabético, pois sem esse conhecimento é inviável a realização dessas
práticas sociais. Todo processo de ensino-aprendizagem demanda teorização de base
educacional. Dessa forma, como o trabalho aborda a alfabetização, precisamos de uma teoria
de aprendizagem e desenvolvimento que fundamente esse processo. Assim sendo, elege-se a
revisão de pontos pertinentes da teoria de aprendizagem de Vygotsky (1999), por entender
que a mediação, a troca de experiência e a importância da contextualização contribuem para o
aprendizado.
2.3.1 A perspectiva histórico-cultural no processo de aprendizagem e desenvolvimento
53
A obra de Vygotsky, sobretudo nas décadas finais do século XX, foi largamente
discutida nas áreas da Educação e da Psicologia. O estudo concentra-se em descrever e
explicar as funções psicológicas superiores, principalmente o conjunto de conhecimentos e
habilidades específicas, no que se refere à importância da linguagem e da cultura como
peculiaridades do homem. Sua teoria histórico-cultural parte do pressuposto de que é na
relação com o outro que nos constituímos como sujeitos, enquanto a apropriação da cultura
pelo homem ocorre pela mediação social.
Para Vygotsky (1999), a capacidade do ser humano de planejar ações, tomar
decisões, armazenar conhecimentos e imaginar situações que não existem constitui fenômenos
complexos que implicam funções psicológicas superiores. Esse autor defende que a mediação
de um interlocutor mais experiente possibilita o acesso ao conhecimento do objeto de
aprendizagem; defende ainda a linguagem como essencialmente de natureza psicológica
humana. Tal mediação passa a existir na interação homem-ambiente pelo uso de instrumentos
e de signos, o que exige do homem a habilidade para modificar e transformar a natureza a sua
volta. Desse modo, as funções psicológicas superiores operam como mediadoras no mundo
real, e as ferramentas usadas para essas mediações determinam, fundamentalmente, o
resultado do percurso escolhido, mudando a maneira de ser e de agir do homem. As
mediações são indispensáveis para o desenvolvimento dos processos mentais superiores; as
operações indiretas (ou mediadas) acontecem gradualmente como resultado de “[...] um
processo prolongado e complexo, sujeito a todas as leis básicas da evolução psicológica”
(VYGOTSKY, 1999, p. 60).
De acordo com Vygotsky (1999), ao longo da trajetória do desenvolvimento
humano os processos de mediação mais aprimorados das funções psicológicas começam a se
organizar quando a criança é capaz de compreender a função e o uso dos signos externos,
melhorando consideravelmente o seu desempenho.
Vygotsky constatou também que as crianças menores operam de forma direta.
Para as crianças pequenas a representação por signo não faz muito sentido. Apesar de
demonstrar ser capaz de relacionar a palavra à imagem, ela não consegue relacionar a imagem
à palavra. O signo (imagem) por sua vez traz à tona uma série de novas associações, e então
uma imagem pode desencadear uma série de lembranças. Ao adquirir a capacidade de realizar
a correspondência entre palavra e imagem e vice-versa, a criança estabelece uma correlação
por meio de signos. Vygotsky (1999) ensina que inicialmente o interesse da criança depende
54
apenas dos signos externos, mas com o passar do tempo o seu interesse começa, por meio da
mediação, a operar plenamente com o processo interno. Essa internalização resulta da
reconstrução de uma atividade externa que começa a operar internamente, passando do
processo interpessoal (social) para o intrapessoal (individual). E, após uma série de
acontecimentos, os processos externos vão sendo incorporados gradativamente ao
desenvolvimento humano. Nas palavras de Oliveira (2008) é como se, ao longo de seu
desenvolvimento, o indivíduo “tomasse posse” das formas de comportamento fornecidas pela
cultura, num processo em que as atividades externas e as funções interpessoais se
transformam em atividades internas, intrapsicológicas.
Em experimentos realizados em laboratórios, Leontiev observou que as crianças
de cinco a seis anos geralmente são incapazes de usar os cartões para completar a tarefa;
mesmo após a explicação, não conseguiram identificar sua função; os estímulos externos
oferecidos não ajudaram a criança a resolver o problema apresentado. Observou também que,
quando fica mais velha, a criança utiliza os cartões com a finalidade de resolver o problema
apresentado, e o seu comportamento passa a ser mediado por uso de signo. Assim, o uso de
signos externos começa a operar a partir de oito anos, aproximadamente. Nessa idade, a
criança é capaz de compreender a sua função e melhorar seu desempenho por meio dessa
mediação. Desde cedo a criança apresenta a capacidade de realizar operações complexas, mas
Leontiev constatou, em seus experimentos, que existem os sistemas psicológicos de transição
decorrentes do nível inicial (comportamento elementar) e dos níveis superiores (formas
mediadas de comportamento), processo ao qual foi atribuído o nome de história natural do
signo.
Apoiando-se nessas pesquisas desenvolvidas por seus colaboradores, Vygotsky
(1999) afirma que, para entender signo e instrumento em profundidade e confirmar a real
ligação entre eles, ou pelo menos dar um indício de sua existência, são necessárias três
condições: em primeiro lugar, existe similaridade entre signo e instrumento; em ambos os
casos, a materialização acontece por meio da mediação, portanto podem “ser incluídos na
mesma categoria” (VYGOTSKY, 1999, p.71). A segunda condição, a diferença entre signo e
instrumento, reside na organização do comportamento humano. Se, por um lado, o
instrumento se “constitui em um meio pelo qual a atividade humana externa é dirigida para o
controle e domínio da natureza” (VYGOTSKY, 1999, p.73), por outro lado, o signo é
essencialmente interno e é controlado pelo próprio sujeito. E, por último, a origem de signo e
instrumento, condição ancorada na filogênese e na ontogênese: ao provocar mudança na
natureza, o homem muda a si próprio; ou seja, ao modificar o uso de instrumentos
55
culturalmente e atribuir-lhes novas funções, o homem se vê compelido a modificar seu
próprio comportamento.
Finalmente, a criança desenvolve a capacidade de interagir com os adultos, que
lhe proporciona o contato direto com a cultura. Como já se viu aqui, as características dos
indivíduos originam-se das trocas de uns com os outros, basicamente nas interações com os
signos e nas mediações com os mais velhos. Isso é, a interação social, seja diretamente com
outros membros da cultura, seja através dos diversos elementos do ambiente culturalmente
estruturado, fornece a matéria-prima para o desenvolvimento psicológico do indivíduo
(OLIVEIRA, 2008, p. 38). Assim, é na interação entre os indivíduos, que o sujeito ao mesmo
tempo valoriza e interioriza as idéias de uma outra pessoa e de uma sociedade, e também pode
agir sobre o meio do qual faz parte e provocar constantes transformações. Ou seja, a vida
social é um processo dinâmico, em que cada sujeito é ativo e acontece a interação entre o
mundo cultural e o mundo subjetivo de cada um (OLIVEIRA, 2008, p. 38).
2.3.2 Zona de Desenvolvimento Proximal
Para estudar o comportamento, é impossível excluir o fator biológico e as funções
psicológicas superiores de origem sociocultural (VYGOTSKY, 1999). As descobertas de
Vygotsky evidenciam a importância dos instrumentos e símbolos fornecidos pelas mediações
sociais na relação entre o indivíduo e o mundo: a criança vive e interage em contextos sociais
diferentes; é praticamente impossível não ter nenhum contato com o mundo a sua volta por
menor que seja. Ao estabelecer esses contatos, a criança inicia o aprendizado de uma série de
conceitos inicialmente experimentados com a ajuda de adultos ou pessoas mais experientes e
que mais tarde passam a dominar e realizar sem a ajuda de terceiros. Ou seja: o que a criança
pode fazer hoje com o auxílio dos adultos, poderá fazê-lo amanhã por si só (VYGOTSKY,
1998, p. 113).
Portanto, aprendizagem e desenvolvimento estão inter-relacionados desde o
primeiro dia de vida da criança (VYGOTSKY, 1999, p. 110), embora não coincidam. Na
perspectiva defendida por esse autor, o aprendizado é o aspecto necessário e universal, uma
espécie de garantia do desenvolvimento das características psicológicas especificamente
56
humanas e culturalmente organizadas (REGO, 1999, p. 71). Sobre o desenvolvimento
humano, Vygotsky não chegou a formular uma concepção estruturada a partir da qual
pudéssemos interpretar o percurso psicológico do ser humano; em sua obra ele enfatizou a
importância dos processos de aprendizagem (OLIVEIRA, 2008, p. 56).
Na concepção de Vygostky (1999), para determinar o processo de
desenvolvimento e a capacidade de aprendizado, devemos determinar pelo menos dois níveis
de desenvolvimento: o nível de desenvolvimento real corresponde ao que a criança domina e
realiza sozinha sem a ajuda de adultos ou parceiros mais velhos, e o nível de
desenvolvimento potencial corresponde ao que a criança é capaz de fazer por intermédio das
mediações com adultos ou membros mais experientes de seu grupo. O percurso realizado do
nível real para o nível potencial, Vygotsky denominou Zona de Desenvolvimento Proximal.
Nas palavras de Oliveira (2008, p. 60):
A Zona de Desenvolvimento Proximal refere-se, assim, ao caminho que o indivíduo
vai percorrer para desenvolver funções que estão em processo de amadurecimento e
que se tornarão funções consolidadas, estabelecidas no seu nível de desenvolvimento
real. A Zona de Desenvolvimento Proximal é, pois, um domínio psicológico em
constante transformação; aquilo que uma criança é capaz de fazer com a ajuda de
alguém hoje, ela conseguirá fazer sozinha amanhã é como se o processo de
desenvolvimento progredisse mais lentamente que o processo de aprendizado; o
aprendizado desperta processos de desenvolvimento que, aos poucos, vão tornar-se
parte das funções psicológicas consolidadas do indivíduo.
Esse conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal de Vygotsky (1999) auxilia-
nos a compreender como acontece a aprendizagem de determinado conhecimento. Ele serve
para explicar o percurso que o indivíduo faz ao desenvolver ações de maturação de algum
conceito e como em contato com determinada situação por mediação de outro indivíduo, com
mais experiência, essas ações são concretizadas, atingindo o nível de desenvolvimento real do
indivíduo.
Uma das implicações do conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, pelo
viés pedagógico, é considerar o processo de aprendizagem integralmente e não apenas a
finalização das atividades, isto é, o produto. O percurso para resolver um problema, tanto por
parte do professor quanto por parte do aluno, é muito importante: ambos devem examinar as
práticas vivenciadas em sala de aula. O desafio desse novo “modelo” de professor é trazer
como possibilidade, novas ações para a apropriação de um conteúdo específico. Dessa forma,
amadurecer ou desenvolver funções mentais é algo que deve ser encorajado e medido pela
57
colaboração, e não por atividades independentes e isoladas (MOLL, 1996, p. 5). Podemos
então inferir, com o respaldo das pesquisas de Vygotsky (1999), que numa turma de
alfabetização é preciso considerar o contexto sócio-histórico-cultural em que a criança está
inserida; usar o que ela já domina como ponto de partida para desencadear o processo da
aprendizagem; analisar e traçar o percurso para realização das atividades e, por fim, oferecer
estratégias pedagógicas que a auxiliem a desenvolver suas potencialidades.
2.3.3 A pré-história da linguagem escrita
Dominar a linguagem escrita significa um extraordinário avanço no
desenvolvimento humano. Tal sistema complexo de signos aumenta a possibilidade de
registrar informações. Dessa perspectiva, as contribuições de Vygotsky (1999) nos auxiliam a
compreender o processo de desenvolvimento da linguagem escrita. Segundo esse autor (1999,
p. 139), “ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se
ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que
acaba-se obscurecendo a linguagem escrita como tal”. Afirma, ainda, em relação à linguagem
falada, que a criança pode desenvolver-se por si mesma, enquanto o ensino da linguagem
escrita depende de um treinamento artificial; assim, a escrita precisa ser ensinada.
Para Vygotsky (1999), a linguagem escrita é um sistema de símbolos e signos,
chamado de simbolismos de segunda ordem e que gradativamente se torna um simbolismo
direto. O autor identifica três aspectos importantes para o desenvolvimento da escrita: os
gestos e signos visuais, o brinquedo e o desenho. O gesto é o signo visual que contém a futura
escrita da criança, e existem momentos em que os gestos estão ligados à origem dos signos
escritos: o primeiro rabisco das crianças.
O desenvolvimento do simbolismo no brinquedo, o segundo aspecto, que une os
gestos à linguagem escrita, diz respeito aos jogos das crianças. Para elas, alguns objetos
podem logo denotar outros, substituindo-os e tornando-se seus signos: assim, um cabo de
vassoura pode transformar-se num cavalinho de pau. A representação simbólica no brinquedo
ocorre quando a criança pega um objeto e com ele desenvolve uma atividade imaginária;
assim, um objeto adquire uma função de signo. Por fim, o desenho começa quando a
58
linguagem falada já teve grande progresso. As crianças desenham apenas de memória, não
desenham o que veem, mas o que conhecem, e esses desenhos têm por base a linguagem
verbal, que é o primeiro estágio do desenvolvimento da linguagem escrita. Com o passar do
tempo, o que foi desenhado (escrita pictográfica) adquire a formalidade da escrita ideográfica.
Ou seja, o desenho acompanha a frase, processo essencial para o desenvolvimento da escrita e
do desenho na criança (VYGOTSKY, 1999, p. 151).
Dentre os pesquisadores que colaboravam com Vygotsky, Luria (1998) oferece os
subsídios para compreendermos o processo pelo qual a criança inicia o aprendizado da
linguagem escrita. Nas suas próprias palavras (1998, p. 144):
Iniciamos onde pensamos encontrar as origens da escrita e [...] se formos capazes de
desenterrar essa pré-história da escrita, teremos adquirido um importante
instrumento para os professores, o conhecimento daquilo que a criança era capaz de
fazer antes de entrar na escola, conhecimento a partir do qual eles poderão fazer
deduções ao ensinar seus alunos a escrever.
Assim, para o estudioso, o escrever pressupõe a habilidade para usar alguma
insinuação (por exemplo: uma linha, uma mancha, um ponto) como signo funcional auxiliar,
sem qualquer sentido ou significado em si mesmo, mas apenas como uma operação auxiliar
(LURIA, 1998, p. 145). Ou seja: antes de entrar na escola para aprender a escrever, a criança
traz consigo um conjunto de habilidades que foram desenvolvidas anteriormente. Portanto, se
tomarmos como ponto de partida essas habilidades que foram construídas naturalmente pela
própria criança, teremos a circunstância propícia para combinar e criar novas maneiras de
ensinar a escrever distintas da anterior.
Baseando-se em seus experimentos com crianças, Luria (1998) apresentou um
percurso para a pré-história da escrita. Oliveira (2008) reconhece três fases de produção
escrita de crianças não alfabetizadas na obra de Luria (1998): a primeira fase, denominada
rabiscos mecânicos, não tem nenhuma função instrumental; nessa fase, a criança é incapaz de
utilizar sua produção escrita como apoio para recuperar a informação a ser lembrada. Em
outras palavras, a criança não faz associação entre o rabisco e a sentença ditada; assim, ela é
capaz de imitar os adultos, mas é completamente incapaz de apreender os atributos
psicológicos específicos que qualquer ato deve ter, caso venha a ser usado como instrumento
a serviço de algum fim (LURIA, 1998, p. 149).
Na segunda fase, Oliveira (2008) reconhece as marcas topográficas, nível mais
avançado de escrita em que as crianças distribuem seus rabiscos pelo papel na tentativa de
mapear o que deve ser lembrado e também para lembrar o conteúdo, pela posição dessas
59
marcas no papel. Em outro momento, a criança passa a diferenciar pelo conteúdo o que é dito,
preocupando-se em distinguir quantidade, forma e outras características concretas das coisas
ditas. Ou seja, o signo auxiliar (linhas, bolinhas, pontos, manchas) começa a servir para
relacionar o que foi produzido com o que deve ser recordado. Assim, a criança passa por um
processo de criação de um sistema de auxílios técnicos da memória, semelhante à escrita dos
povos primitivos (LURIA, 1998, p. 157).
Finalmente, Oliveira (2008) identifica a fase de representações pictográficas,
quando os desenhos não são utilizados como forma de expressão individual, mas como
instrumentos, como signos mediadores que representam determinados conteúdos, de forma
que a criança consegue expor suas ideias por meio de desenhos ou figuras simbólicas
contendo um significado pessoal. Mais tarde esses caminhos levam a criança à escrita
simbólica; primeiramente, transformando o desenho num significado simbólico, e depois num
significado funcional. É oportuno lembrar que a criança aqui não sabe usar a escrita, mas já
inicia seu processo de compreensão da escrita alfabética.
Resumindo, este capítulo foi dividido em três seções. Na primeira seção,
abordamos a apropriação da escrita na escola: alfabetização em contextos de sentido.
Inicialmente priorizamos os documentos oficiais, em virtude do nosso foco de interesse, a
concepção dos gêneros textuais, tal como é proposta pelos PCNs de Língua Portuguesa do
Ensino Fundamental. Em seguida, explanamos sucintamente sobre os usos sociais da escrita e
o conceito de gêneros textuais: da matriz bakhtiniana ao pensamento da Escola de Genebra,
viés pelo qual a interação entre os falantes organiza-se em forma de enunciados relativamente
estáveis (BAKHTIN, 2006). Escrevemos ainda sobre a base epistemológica do
interacionismo sociodiscursivo (BRONCKART, 2003; SCHNEUWLY, DOLZ,
NOVERRAZ, 2004), que concebe a língua como fenômeno sócio-histórico, interativo, e
constantemente modificado pela ação dos sujeitos. Essa corrente teórica apresenta a sequência
didática (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004) como proposta de intervenção
metodológica para desenvolver um determinado gênero. Finalizamos a seção discutindo o
gênero lenda como possibilidades didático-pedagógicas, com base no interesse da criança em
ouvir histórias.
Na segunda seção, tratamos das particularidades do código. Primeiramente,
discorremos sobre as similaridades e as diferenças entre oralidade e escrita, por entender o
processo da cadeia da fala como um contínuo que reflete diretamente na escrita. A seguir,
tratamos da importância da consciência fonológica; o reconhecimento das letras que
compõem as palavras, as sílabas e os fonemas-grafemas, estes dois últimos com a função de
60
distinguir significados. No tema a seguir descrevemos as dificuldades para reconhecer as
letras que compõem as palavras com as quais a criança entra em contato ao iniciar o processo
de apropriação de escrita.
Na terceira seção, apresentamos uma discussão sobre o papel do alfabetizador no
processo de ensino-aprendizagem da alfabetização baseando-nos na teoria Vygotskiniana
sobre desenvolvimento e aprendizagem. No tópico a seguir abordamos a Zona de
Desenvolvimento Proximal. E por último, examinamos os princípios que conduzem a
aprendizagem da escrita pela criança de acordo com Luria (1998). Após a apresentação da
fundamentação teórica, passamos aos procedimentos metodológicos.
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
No capítulo anterior apresentamos os aportes teóricos que orientaram a pesquisa.
Este capítulo destina-se à metodologia. Como mencionado anteriormente, o objetivo da
presente pesquisa é descrever a proposição de encaminhamento metodológico para o processo
de apropriação da língua escrita numa classe de alfabetização tendo a lenda como gênero-
61
instrumento na ação didático-pedagógica. Por questão de ética de pesquisa, os nomes reais
foram substituídos com o propósito de preservar a identidade da criança, razão pela qual
adotamos a ordem alfabética, letras maiúsculas, para nomear as produções textuais.
Apresentamos o tipo de pesquisa realizada; em seguida o contexto da pesquisa e a
organização dos dados, e finalmente a forma como foram analisados.
Convém salientar que, para descrever a escola, a turma e a sala de aula, usamos os
documentos: Plano de Ação, em forma de grade, que se refere ao cronograma de atividades e
determina a ordem de realizá-las; o Projeto Político-Pedagógico (P P P) que atendeu o biênio
de 2004-2005, cuja meta principal foi orientar o trabalho pedagógico para formação do
educando na busca de uma convivência fraterna no meio social e inseri-lo no mundo da
cultura e do conhecimento científico do processo ensino-aprendizagem (p. 3). Usamos ainda
uma máquina fotográfica para registrar as atividades; e também o caderno de planejamento,
que foi importante não somente em relação às atividades, mas para descrever as intervenções
realizadas ao longo do processo. E por último, o diário de classe, documento que registra
diariamente os conteúdos que foram trabalhados. Em alguns casos, examinamos o relatório
individual do aluno, documento solicitado à secretaria da escola com antecedência. Dos
documentos: Plano de Ação e Projeto Político-Pedagógico, a coordenadora pedagógica da
escola nos forneceu uma cópia em CD.
3.1 TIPO DE ESTUDO
Por se tratar de pesquisa na área educacional, optou-se por uma abordagem que
documenta a realidade, a dinâmica e a complexidade do contexto de sala de aula. Segundo
Ludke e André (1986), à medida que avançam os estudos da educação, mais evidente se torna
seu caráter de fluidez dinâmica e de mudança, natural a todo ser vivo. E mais claramente se
nota a necessidade de desenvolver métodos de pesquisa que atentem para esse caráter
dinâmico.
A abordagem qualitativa foi utilizada porque envolve a obtenção de dados
descritivos, colhidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais
62
o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes
(LUDKE, ANDRÉ, 1986). Sendo assim, é imprescindível um contato direto com a situação
pesquisada para fornecer, em sua análise, elementos necessários para compreender
determinada situação adequadamente. Estudos dessas ocorrências específicas são essenciais
para oportunizar ao pesquisador entender e suscitar a realidade dinâmica e complexa em que
se insere determinado objeto de estudo.
Nesta pesquisa, com base no referencial teórico procurou-se compreender e
interpretar a realidade estudada. Para tanto, estabeleceu-se uma interação entre os dados reais
e suas possíveis explicações teóricas que permitem estruturar um quadro teórico dentro do
qual o fenômeno pode ser interpretado e compreendido (LUDKE, ANDRÉ, 1986).
Por se tratar de uma única turma da rede pública de ensino do Distrito Federal, o
estudo de caso foi escolhido como metodologia por melhor instrumentalizar o contexto da
pesquisa, tomando a aplicação das atividades e as produções dos alunos como interesse único
e respeitando sua singularidade. Assim, o princípio básico deste estudo é que, para uma
apreensão mais completa do objeto, é preciso levar em conta o contexto em que ele se situa
(LUDKE, ANDRÉ, 1986).
3.2 CONTEXTO DA PESQUISA
Apresentamos nesta seção o contexto da pesquisa: a escola, a turma e a sala de
aula onde foi realizada a pesquisa. Em seguida, destacamos a organização dos dados e,
finalmente, a forma de analisá-los.
3.2.1 A escola
A pesquisa foi realizada numa escola pública do Distrito Federal; e os dados
foram coletados numa turma de primeira série no de 2005.
A coleta de dados foi realizada no Centro de Ensino Fundamental 06, situado na
Quadra 03, Área Especial 1/2, na cidade satélite de Sobradinho/DF. De acordo com o Projeto
63
Político-Pedagógico (2004-2005), essa escola passou a existir a partir da fusão da Escola
Classe 02 com a Escola Classe 08, iniciando suas atividades em 14 de maio de 1977. Ainda de
acordo com o documento, no ano de 2005, foco desta pesquisa, o Centro de Ensino
Fundamental 06 atendeu 645 alunos de 1ª a 4ª série no turno matutino, distribuídos em vinte
turmas; 696 alunos de 5ª e 6ª séries no turno vespertino divididos em vinte turmas; três turmas
de Educação Infantil e 950 alunos do segundo segmento da Educação de Jovens e Adultos no
noturno. O Projeto Político-Pedagógico (2004-2005) relata que a comunidade apresentava
uma renda familiar médio-baixa, e a maioria dos pais cursara o ensino fundamental série
inicial. A formação das famílias era convencional e não convencional: existiam famílias em
que o sustento da casa dependia exclusivamente do trabalho da mulher e/ou dos filhos
menores; alunos que moravam com avós; pais separados que mantinham relacionamentos
diversos; portanto, as famílias que representavam a escola tinham organizações variadas.
Os dados coletados no Projeto Político-Pedagógico (2004-2005) mostram que a
renda familiar era composta pelo trabalho de mais de um membro da casa. Na verdade, essa
realidade dificultava o acesso à vida escolar dos filhos por parte da família, pois nenhum
membro da família podia assumir o compromisso de acompanhar suas atividades escolares.
Grande parte dos alunos morava distante e necessitava de transporte para chegar à escola.
Devido a ser maior a demanda do que a oferta e à estratégia de matrícula exigida pela
Secretaria de Educação de Estado do Distrito Federal, as turmas eram formadas com um
número excessivo de alunos, tornando o espaço físico inadequado, o que dificultava o
atendimento individualizado do professor ao aluno. A realização das atividades que exigiam
movimentação da turma ficava extremamente comprometida. Nesse quadro, alguns fatores
influenciaram diretamente a dinâmica escolar: a falta de acompanhamento dos pais, a
superlotação das salas, a indisciplina, a falta de material pedagógico e desconhecimento das
regras que fazem parte do bom andamento da escola, entre outros. Essas influências
interferiram na aprendizagem dos alunos, gerando um considerável quadro de repetência
(PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO, 2004-2005, p. 4).
3.2.2 A turma
64
Para registro dos dados, usamos o diário de classe da turma; cópias dos relatórios
de desempenho dos alunos, visto que os originais já tinham sido entregue aos pais em
reuniões, e o caderno de planejamento. Esses documentos foram requisitados à escola com
antecedência de quinze dias, pois o elevado fluxo de atendimento diário da secretaria
inviabilizou o recebimento imediato. Ter acesso aos documentos nos possibilitou registrar o
perfil da turma, sobretudo as particularidades das práticas de linguagem de que participam.
De acordo com o Diário de Classe no início do ano letivo de 2005, a turma era
composta de quarenta e dois alunos. As transferências foram concedidas por diversos
motivos, entre os quais: mudança de cidade, para escolas mais próximas de suas residências e
até mudança para outros Estados da Federação. Transferências foram feitas no mês de julho,
gerando uma distorção nos resultados, pois saíram alunos que já estavam adiantados no
processo de escrita e, em contrapartida, chegaram alunos iniciantes no processo. Mesmo com
as entradas e saídas, restavam trinta e uma crianças, donde se conclui que ocorreram onze
transferências. Das trinta e uma crianças matriculadas na turma, a maioria já frequentara a
pré-escola, o que significa que elas já haviam tido contato com a linguagem escrita. Dessa
maneira, terminamos o ano letivo com trinta e um alunos com idade entre oito e dez anos. Do
conjunto, vinte e nove haviam frequentado a Educação Infantil em escola pública; um aluno
era procedente do lar e um aluno era repetente da série. A maioria era do sexo feminino.
Conforme o diagnóstico inicial da turma registrado no Diário de Classe, de modo
geral, no início do ano alguns alunos demonstravam dificuldade em respeitar regras
estabelecidas pela escola e pela turma. Eles eram inquietos e conversavam demais. Alguns
alunos apresentavam comportamento disperso, baixa concentração, falta de interesse e muita
dificuldade para realizar as tarefas. Algumas crianças apresentavam traços de violência e
intolerância com os colegas da sala e da escola. Na verdade, eles precisavam desenvolver as
habilidades de saber ouvir, falar, participar, colaborar e interagir uns com os outros. A maioria
dos alunos gostava de programas infantis. Mas, ao contrário disso, de acordo com os
depoimentos, assistiam com frequência a programas voltados para o público adulto. O Diário
de Classe registra ainda que as crianças apresentavam disposição para atividades musicais,
danças, teatros, jogos e brincadeiras livres e dirigidas. Em relação à matemática, eles
apresentavam dificuldades nos conceitos de seriação, inclusão, classificação, sequência
lógica, interpretação e resolução de situação problema simples (oral). Grande parte da turma
realizava a contagem até 9, mas não era capaz de estabelecer a correspondência biunívoca,
isto é, não relacionava de um para um a correspondência entre os elementos, em ambas as
65
direções (LEMLE, 2003, p. 17). Em relação ao alfabeto, foi registrado que boa parte das
crianças era capaz de “recitá-lo” oralmente em sequência; mas, quando solicitadas que
apontassem letras de maneira alternada e aleatória, elas não conseguiam. E também não
reconheciam uma letra prontamente, mas eram capazes de utilizar a memória até encontrar a
letra pedida.
3.2.3 A sala de aula
A aplicação das atividades propostas para o ano letivo de 2005, demandou
algumas medidas: reorganizar a sala de aula, rever o planejamento e a execução das
atividades; analisar e selecionar o material pedagógico, entre outras.
De acordo com as anotações do caderno de planejamento, para atender às
especificidades das atividades aplicadas, o ambiente de sala de aula era organizado de
diversas maneiras, servindo essa reorganização também para dinamizar as aulas. As carteiras
da sala ora eram organizadas em dupla, ora em trio, ora em grupos maiores, ora em grupos
menores; e, em determinados momentos, os alunos também foram agrupados de acordo com
suas dificuldades individuais e coletivas. Foi registrado no caderno, o costume de no início de
ano letivo, a sala de aula ser decorada com cartazes, alfabetos com diversos tipos e tamanhos
de letras, painéis, desenhos. Toda essa preparação era entendida como mais uma forma de
estimular o aluno, pois se acreditava que ele deveria ser exposto ao maior número possível de
estímulos visuais externos. Assim, logo no primeiro dia de aula e com esse excesso de
estímulo, a previsão era de se obter um aprendizado mais rápido e eficiente.
No entanto, no ano da realização da pesquisa não aconteceu dessa forma: a ideia
era construir todo esse aparato lúdico com as próprias crianças, e por isso o que elas
encontraram foi apenas um cartaz de boas-vindas. Inicialmente, houve um estranhamento
referente à quantidade de cartazes, mas independentemente de sua efetiva realização, a
finalidade era provocar discussões sobre a escrita no momento da preparação dos cartazes.
Nessa ocasião, os alunos também ajudaram a construir o alfabeto. Durante todo o ano letivo
eles participaram da organização e da decoração da sala de aula.
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Conforme o caderno de planejamento, a biblioteca da sala de aula consistia em
uma caixa, chamada de Caixa Mágica, com diferentes portadores de gêneros de texto:
folhetos, jornais, encartes de supermercado, catálogos de viagem, gibis, revistas, livros etc.
Ali os estudantes poderiam encontrar vários gêneros: receitas, poesias, história em
quadrinhos, quadrinhas, piadas, fábulas, lendas, conto de fada etc. Esses materiais ficavam à
disposição das crianças e foram responsáveis por interações extremamente valiosas. Alguns
exemplares foram doados pelos pais, mas a grande maioria pertencia ao meu acervo didático.
Foram organizados com ajuda e cuidado das crianças, chegando ao final do ano com poucos
danos. Também incentivamos as crianças a frequentarem a biblioteca da escola. Embora com
poucos títulos para essa faixa etária, entendemos que esse espaço de leitura deveria ser
aproveitado pela criança.
Ainda de acordo com o registro, a sala não era grande, o mobiliário era velho,
com carteiras e cadeiras de diversos tamanhos; as janelas precisavam de reparos, e as paredes
eram rabiscadas e descascadas, causando uma impressão desagradável. Grande parte de tal
desajuste se atribui ao grande movimento no local: no período vespertino a escola atendia
alunos maiores e, no noturno, adultos.
3.2.4 Organização dos dados
Como apontado anteriormente, os dados foram recolhidos e organizados em três
momentos distintos, obtendo-se um total de vinte e oito produções escritas em cada amostra.
Para a escrita da produção textual, procuramos propiciar um ambiente com o
menor estímulo visual possível: cartazes, faixas, letras e desenhos foram retirados com o
intuito de coletar o texto da criança sem interferência de estímulos externos, para que
pudéssemos, de fato, ter uma amostra real do seu aprendizado. Tentou-se também controlar o
barulho externo, com o intuito de proporcionar à criança um ambiente mais propício à
concentração; mas a tentativa resultou infrutífera, pois a condição da escola impossibilitou o
acesso a uma situação adequada para a produção textual escrita. Infelizmente, não foi possível
calcular até que ponto essas interferências externas comprometeram o desempenho da criança.
Os textos coletados no início do mês de março serviram para diagnosticar como os
alunos chegaram à 1ª série. Assim, com base nas evidências existentes preparamos as crianças
para o início do processo de apropriação da linguagem escrita. O recolhimento desses
67
exemplares de texto se deu com vistas à necessidade de monitorar e encaminhar
metodologicamente o desempenho dos alunos. Portanto, a proposta da atividade se constituía
em coletar uma amostra de produção textual de escrita espontânea, ou seja, naquele momento
não era importante fazer intervenções nem mediações na escrita das crianças, interpelando-as
com perguntas e nem questionando sobre o que foi escrito. Na verdade, a intenção era
diagnosticarmos o seu nível de desenvolvimento real (VYGOTSKY, 1999); saber como se
sairiam na primeira produção de texto e se as crianças eram capazes de memorizar e recontar
a lenda.
Para a coleta desta primeira amostra, inicialmente contamos a lenda Potyra - As
lágrimas eternas, de Walde-Mar Andrade e Silva (1999), e realizamos diversas atividades,
tais como: conversas informais sobre as ações das personagens, ilustração, dramatização e
reconto oral coletivo. E, após a troca de ideias entre as crianças, convidamo-las e as
incentivamos a realizarem a primeira produção individual de texto escrito.
A primeira amostra serviu para diagnosticar o que as crianças já dominavam. A
partir dali, concentramos a nossa atenção na aplicação de atividades selecionadas, conduzindo
as crianças a desenvolverem a capacidade de compreender as características do gênero lenda e
o sistema alfabético. O objetivo, ao recolher esse conjunto de exemplares de textos originais
produzidos pelas crianças, era confirmar e examinar a eficiência da realização dessas ações
para a apropriação da linguagem escrita.
No final do mês de junho coletamos a produção textual espontânea dos alunos
logo após a aplicação dessas atividades. Tais amostras serviram para acompanhar e observar o
desempenho das crianças na realização das tarefas, cujos resultados foram analisados com a
finalidade de avaliarmos se havia necessidade de modificação, de melhoria ou de recuperação
das atividades para o semestre seguinte.
No final do mês de novembro de 2005 concretizou-se a terceira coleta de
produção textual espontânea. Privilegiamos as interações verbais (VYGOTSKY, 1999) e as
contribuições comunicativas no momento das discussões e chamamos a atenção para a
estrutura da narrativa do gênero lenda: a situação inicial, o conflito, as ações, a resolução do
problema e a situação final (BRONCKART, 2003). As produções foram recolhidas após a
conclusão do texto. Em nenhum momento houve correção nem intervenção no processo de
escrita do aluno. Ao final das produções, fizemos anotações sobre o desempenho dos alunos e
sobre a aplicação das oficinas. Essas amostras nos forneceram dados importantes acerca da
necessidade de capacitar o aluno para diferenciar um gênero de outro e também serviram para
analisarmos o desenvolvimento do processo de apropriação da linguagem escrita. Convém
68
ressaltar que, o objetivo de recolher tais amostras foi examinar como transcorreu o processo
de apropriação da língua escrita por meio do reconto de lendas produzidas com base no
conceito de sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ, NOVERRAZ, 2004).
3.2.5 Forma de análise dos dados
Os dados foram analisados sob dois enfoques: o uso social da escrita e o sistema
alfabético. No uso social da escrita, primeiramente a ênfase recaiu sobre o encaminhamento do
processo metodológico para desenvolver o gênero lenda. Nesse momento explicamos todo o
processo de aplicação das atividades baseadas na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,
NOVERRAZ, 2004). Em seguida, analisamos os textos produzidos pelos alunos. Quanto ao
sistema alfabético, explicamos as atividades aplicadas e analisamos através dos dados, o
percurso dos alunos para a apropriação da escrita alfabética.
Em relação ao gênero trabalhado, atentamos para a preocupação de preservar o
título original ou criar outro título. Também verificamos o contexto de ação dos personagens e
as fases da sequência da narrativa. Outros aspectos detalhados foram: as superstições e
crendices; a preservação das sequências dos fatos peculiares da lenda ou criação de outras
sequências diferentes das oferecidas pelo autor; a capacidade para conservar as ações dos
personagens ou criar novas ações; a relação imagem e texto; quanto ao tema das lendas,
observamos se o aluno respeitou a sequência lógica das fases da narrativa e se demonstrou
clareza ao expor suas ideias ao produzir o texto.
Em relação ao código, analisamos como os alunos se apropriaram do sistema
alfabético, mostrando, através dos dados, o seu percurso no processo de apropriação da escrita.
Em relação à estrutura linguística, examinamos a escritura convencional de palavras e frases e a
separação silábica quando necessário. Não nos esquecemos de observar também o uso
adequado de letras maiúsculas e minúsculas, emprego do vocabulário e os mecanismos de
coesão e coerência.
Passamos à análise de dados.
69
4 ANÁLISE DOS DADOS
Neste capítulo, apresentadas as considerações sobre os fundamentos teóricos e
metodológicos que orientaram nosso estudo, a finalidade é descrever o processo de
apropriação da escrita apoiando-nos no gênero lenda como instrumento da ação didático-
pedagógica. Especificamente, este estudo apresenta um recorte do trabalho realizado com o
gênero lenda numa classe de alfabetização. Iniciamos descrevendo as atividades mediadas
pela linguagem escrita no contexto da sala de aula e prosseguimos analisando a produção dos
70
alunos. Colocamos à disposição do leitor a reprodução e a transcrição da produção textual,
para facilitar a visualização e o acompanhamento dos dados. Na transcrição dos textos não
houve correção de nenhuma espécie, respeitando-se a escrita da criança. Para registrar as
atividades, foram usados: máquina fotográfica, caderno de planejamento e o diário de classe.
4.1 ALFABETIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A APRENDIZAGEM DA ESCRITA EM
CONTEXTOS INTERACIONAIS CONSTITUÍDOS PELO GÊNERO LENDA
Para Schneuwly (2004, p. 24), o instrumento torna-se o lugar privilegiado da
transformação dos comportamentos, explorando as suas possibilidades para enriquecê-los,
transformá-los, mantendo-os ligadas à sua utilização. Dessa forma, na prática em sala de aula
as atividades estruturais são importantes à medida que a sua aplicação faça sentido para
criança, e não a cópia pela cópia e a repetição de famílias silábicas sem nenhum significado.
Por outro lado, não podemos deixar de considerar também, que relações sociais são
experimentadas em sala de aula e o papel que o aluno exerce enquanto sujeito constituído
socialmente é construído dialogicamente na perspectiva de trabalhos com textos; isto é,
defendemos aqui que tomar o gênero como instrumento da ação didática pedagógica serve
para compor estratégias que levem a criança a vivenciar situações adaptadas à sua prática
social.
Neste capítulo tomamos duas direções que, a nosso ver, se complementam entre
si. A primeira diz respeito à apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em
contextos de uso social da língua com base em sequências didáticas; acolhemos a
aprendizagem da lenda; aprendizagem da estrutura narrativa da lenda, e por último a
aprendizagem das categorias de tempo e de espaço na lenda. Na segunda, admitimos a
importância do código no processo de alfabetização. Abordamos a apropriação do sistema
alfabético: o gênero lenda como instrumento; a representação de que a fala pode ser escrita; a
construção da noção de palavra no texto escrito e finalizamos a seção com o aprendizado das
relações entre fonemas e grafemas.
71
4.1.1 A apropriação do gênero lenda: aprendizagem da escrita em contextos de uso social da
língua com base em sequências didáticas
O objetivo desta seção é explanar a aplicação das atividades usando um trabalho
com o gênero lenda. Schneuwly e Dolz (2004) defendem o gênero como (mega) instrumento
de ensino-aprendizagem e sua elaboração didática por meio de sequências didáticas
(SCHNEUWLY, DOLZ , NOVERRAZ, 2004) organizadas de forma sistemática e aplicadas
gradativamente. Portanto, os gêneros como (mega) instrumentos têm a função de mediar a
atividade humana. Dessa maneira, as atividades foram aplicadas para levar a criança a tornar-
se usuário competente da sua língua materna em diversas situações comunicativas: agindo,
buscando soluções para os problemas, intermediando situações, modificando as
representações que fazem do mundo, expressando ideias e pensamentos em diferentes
contextos sociais.
As atividades envolvendo o gênero lenda foram planejadas seguindo-se um
conjunto de recomendações com a finalidade de regular a seleção do que deve ser trabalhado
com a criança, como se discrimina a seguir.
Inicialmente verificamos a disponibilidade de títulos, relacionando-os com as
fases de interesse propostas por Coelho (2000). Fixamo-nos nas duas primeiras, que abrangem
as classes de alfabetização: a fase do leitor iniciante (6/7 anos) e a do leitor em processo (7/8
anos). Depois consideramos que o gênero lenda é o preferido da faixa etária do leitor iniciante
e do leitor em processo, por se tratar de uma história de cunho narrativo, que teve seu início
pela oralidade. E mais: as características encontradas nesse gênero ajudam a criança a
produzir linguagem em condições diferentes daquelas praticadas habitualmente no convívio
familiar.
O gênero em questão permite o uso de estratégias que podem facilitar as
intervenções metodológicas, possibilitando estudos relacionados a outros temas, como: a
cultura indígena, a diversidade cultural, o preconceito cultural, o homem e a natureza, os
valores, as regras, as normas e as leis de uma comunidade. Além disso, apresenta os
elementos essenciais que compõem o processo de escrita, pois os textos podem ser
construídos de maneira diferente dos modelos apresentados pelas cartilhas, uma vez que as
crianças que têm a cartilha como único modelo de escrita construirão uma concepção de
72
“texto escrito” amarrada a esse modelo único (MASSINI-CAGLIARI, 2005). Da perspectiva
do gênero, é possível reunir os elementos para compor a sua inter-relação com o social.
Ao classificar as lendas em cosmogônicas, heróicas, etiológicas, de encantamento,
ornitológicas e mitológicas, Oliveira (1951, 1965) pretendia submeter as lendas a um critério
científico, além de proporcionar aos leitores subsídios apoiados em estudiosos do folclore
pátrio. Para o autor, existem as lendas que explicam a origem das coisas e fenômenos do
universo (nascimento da noite, do dia, criação dos rios etc.); as que expressam os sentimentos
que fazem parte do humano (amor, ódio, vingança, medo); as que enaltecem os heróis etc.
Enfim, de certa forma, entrar em contato com esse gênero pode ajudar a criança a interpretar a
realidade a sua volta de maneira lúdica e prazerosa, expressando um pensamento, uma
conduta social ou mesmo representando uma situação simbolicamente e, sobretudo,
compreendendo os valores, as normas e as leis de uma cultura diferente da sua.
Ainda no intuito de justificar a escolha do gênero, consideramos que a lenda, além
de ser um gênero comunicacional (BRONCKART, 2003) que preserva e desperta a
curiosidade das crianças, aguçando sua imaginação. E, por fim, o trabalho com as lendas
permite inúmeras pesquisas e descobertas nas diversas áreas, como linguísticas, geográficas,
filosóficas, sociológicas, antropológicas etc.
Dezesseis lendas serviram de fundamento didático:
1. Potyra – As lágrimas eternas
2. Yara a rainha das águas
3. Igaranhã – A canoa encantada
4. Thainá Khan
5. João-de-barro
6. Lenda do café
7. O Sol e a Lua
8. A lenda da fogueira
9. Irapuru, o canto que encanta
10. Tucanã: o surgimento da noite
11. Lenda do Guaraná
12. Mumuru: Vitória- Régia
13. O cervo Berá – O troféu do amor
14. Mandioca – O pão indígena
15. Guaraná – A essência dos frutos
16. Negrinho do pastoreio
73
Explanadas as recomendações, passamos a descrever os passos para desenvolver o
reconto coletivo, atividade que foi fundamental para o processo de escrita. Para aumentar as
possibilidades de aprendizagem, de recontar oralmente e escrever as lendas, foi programado
um conjunto de atividades obedecendo a um roteiro. Algumas atividades foram realizadas em
um período de tempo prolongado, outras tiveram curta duração, dependendo do interesse das
crianças. O conjunto de atividades foi baseado na sequência didática proposta por Schneuwy,
Dolz e Noverraz (2004). A seguir, resumimos o roteiro de realização das atividades:
a) Primeiro passo: a escolha. A lenda ora era escolhida por nós, ora era escolhida
pela turma, e normalmente era submetida a votação. Quando a escolha partia dos alunos,
colocávamos uma quantidade de títulos à disposição. Naquele momento, era interessante
observar o critério de escolha deles. Uns escolhiam pelas personagens, outros pelas
ilustrações, outros ainda pela capa do livro, e havia aqueles que se mostravam curiosos em
relação ao tema. Com o avançar das aulas, eles ampliaram o leque de perguntas e queriam
saber quem era o autor, e nitidamente aos poucos se consolidou a preferência pelo livro
Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros, do pesquisador Walde-Mar Andrade e Silva.
Atribuímos essa preferência a dois motivos: primeiramente, os textos são bem escritos e o
estilo do autor prima pelo zelo e cuidado com o leitor. Em segundo lugar, as ilustrações, que
são do próprio autor, são delicadas e de bom gosto, elevando a qualidade da publicação.
b) Segundo passo: leitura. A maior parte da leitura foi feita por nós e por alguns
convidados, como, por exemplo: um aluno de segunda série, professores e eventualmente uma
contadora de história. O primeiro contato com a lenda geralmente já desencadeava as
atividades que seriam desenvolvidas. Segundo Coelho (2003), o aparecimento do termo lenda
já indica uma característica do gênero, preparando o leitor/ouvinte para o mundo ficcional, o
que exigia preparações específicas, tais como: leitura prévia, treino de voz (entonação), leitura
fiel do texto escrito etc.
c) Terceiro passo: conversa informal. Nesse momento, as crianças
compartilhavam suas impressões sobre a lenda e, com a nossa mediação, diversos assuntos
eram tratados focalizando o conteúdo do texto. Por exemplo: os valores sociais, morais e
afetivos, a integração do homem à natureza, a diversidade cultural, as normas, as condutas e
as leis, entre muitos outros. O livro do qual a antologia foi retirada foi apresentado às
crianças, destacando-se: autor, personagens, título, ilustrações. As contribuições das crianças
eram sempre bem recebidas. Esse momento de interação era bastante aproveitado, com muitas
reflexões sobre o comportamento humano colocadas em pauta. As crianças apreciavam as
74
discussões e opinavam sobre as atitudes das personagens, permitindo que os mais novos
adquirissem experiência com os mais velhos (VYGOTSKY, 1999).
d) Quarto passo: reconto oral. Era realizado de várias maneiras e se constituía em
um processo muito rico devido à participação das crianças. Nesse momento, na maioria das
vezes o coletivo prevaleceu sobre o individual. Numa opção de atividade realizada, as
crianças sentavam no chão, em fileira, e cada uma completava o dizer da anterior. Outra
opção com resultados positivos era dividir a turma em grupos variados e cada grupo
contribuía para a montagem completa da lenda. Outra opção, muito apreciada, foi trabalhar
em dupla; um contava a lenda para o outro. E também a opção de usar a “rodinha” para
compor a lenda; depois, a partir dos fragmentos e com a colaboração de todos, construía-se
um todo. Nessa atividade, desenvolvemos a ideia de que ao juntar os fragmentos podemos
constituir um todo e, ao contrário, também podemos fragmentar um todo em vários pedaços.
e) Quinto passo: dramatização. Atividade muito prazerosa para as crianças,
porque lhes exercitava a imaginação e criava situações para representar as personagens, os
lugares, os objetos, a natureza etc. E, com intervenções sistemáticas, podia-se ativar a
compreensão da lenda. A turma era dividida de diferentes formas: grupos grandes, duplas,
trios, ou cada um por si, em trabalhos individuais. Todo esse fazer dependia da disposição do
planejamento feito e do objetivo traçado para aquela atividade. O trabalho coletivo favorecia a
interação social das crianças, que se influenciavam mutuamente em busca da organização do
grupo (VYGOTSKY, 1999).
f) Sexto passo: lista de palavras. As listas foram construídas para esmiuçar a
lenda, como, por exemplo: lista de sentimentos, de personagens, de objetos etc. Elas eram
dirigidas em forma de jogos: lengalengas6, adivinhas, fichas, rebus
7 etc. As listas de palavras
podiam ser produzidas em grupo ou individualmente; em forma de desenho, oralmente ou por
escrito.
g) Sétimo passo: atividades. Foram aplicadas do mês de março até o final do mês
de novembro, época da coleta da terceira amostra de textos, e serviram para operacionalizar o
encaminhamento do processo de apropriação da linguagem escrita. Como descrito
anteriormente, no quarto passo era produzido o reconto escrito por meio de atividades orais;
essas atividades foram pensadas para desenvolver a capacidade de entendimento da criança. A
6 Sequência de frases curtas que normalmente rimam ou repetem determinadas palavras ou expressões. As
lengalengas estão associadas a brincadeiras e jogos folclóricos. 7 Nota de rodapé do livro História concisa da escrita. Chama-se ”rebus” a tentativa de representação dos sons
da língua, sobretudo sílabas, por meio de figuras cujos nomes tenham esses sons e cuja combinação possa
representar uma palavra. (HIGOUNET, 2003).
75
entrada do reconto escrito foi fruto da parceria professor-aluno. A princípio, coube-nos a
tarefa de escriba, mas depois os alunos assumiram a função. O reconto escrito era realizado
após aplicação da série de atividades relatadas no quarto passo. Na etapa da aplicação das
atividades iniciaram-se efetivamente as primeiras experiências relativas ao processo de escrita
na turma. Pelos conhecimentos que exigiam, as atividades deviam ser muito bem planejadas e
executadas, não podendo ser produzidas levianamente, de qualquer maneira. Eram atividades
importantes, porque foram elas que sustentaram todo o processo de escrita. Portanto, podemos
considerar essas atividades do reconto da lenda como base para todo o encaminhamento
metodológico. E a partir da produção do reconto, outras atividades foram aplicadas. Convém
reafirmar que é necessário um cuidado especial na aplicação das atividades. Elas foram
aplicadas após a produção do reconto coletivo. Na verdade, a intenção era apresentar esse
gênero à criança e valorizar seu primeiro contato com a produção escrita.
Dentre as atividades realizadas, destacamos as desenvolvidas para compor os
personagens. Uma delas foi destacar e desenhar o personagem principal, relembrando suas
características. Nas conversas com as crianças, foram enfatizadas as ações dos personagens.
Outra atividade foi a pesquisa na biblioteca da escola e também na internet, sobre os
personagens; após conclusão, as crianças compartilharam o resultado com os colegas. Uma
opção bastante apreciada era a troca de personagens entre uma história e outra. A
dramatização foi uma atividade recorrente, porque permite explorar diversos aspectos dos
personagens, como sentimentos, ações, comportamentos, atitudes etc. Outra atividade era a
leitura de um trecho da lenda, e a criança era levada a fazer um levantamento de hipóteses
sobre o que aconteceria a seguir. Outra atividade era atribuir uma qualidade aos personagens
e escrevê-las. Outra ainda foi a elaboração de uma história em quadrinhos usando os
personagens da lenda. Também utilizamos a brincadeira das cores: cada personagem foi
representado por uma cor e posteriormente comparamos entre os grupos as respostas; também
fizemos essa atividade em grupo e as crianças estabeleceram o significado de cada cor; e,
noutro momento, foram socializadas as atribuições dadas aos personagens. Em outra
atividade, foi montado o quadro de semelhanças e diferenças entre os personagens das
diversas lendas estudadas. Também realizamos atividades que nos auxiliaram a diferenciar e
aproximar um gênero do outro. Por se tratar de primeira série, o foco foi dirigido para
exemplificar e estabelecer as diferenças e semelhanças entre o conto de fadas e a lenda. Essas
atividades serviram para promover debates e reflexão sobre a organização do gênero, as
palavras, frases, entre outras possibilidades. Elencamos, aqui, o conjunto de atividades que
76
permitiram subsidiar as crianças com elementos que contribuíssem para a reflexão da língua
materna a partir do reconto da lenda.
Após o reconto da lenda (descrito no quarto passo), a primeira atividade permitiu
às crianças acesso ao reconto escrito. Levamos o reconto mimeografado para a sala de aula, e
novamente a produção coletiva foi lida por nós. Esse primeiro contato com o texto impresso
proporcionou às crianças ter em mãos um produto “materializado” a partir da sua fala. O fato
de as crianças reconhecerem que podem escrever sua própria fala enfatiza as diferenças e
semelhanças entre a escrita e a fala. Esse exercício de diferenciar e aproximar fala e escrita
pode facilitar a aprendizagem, uma vez que a linguagem verbal é a base para desenvolver a
linguagem escrita (VYGOTSKY, 1999).
Outra atividade realizada era comparar o texto escrito no quadro-de-giz com o
texto mimeografado, explorando cada parágrafo do texto e ressaltando a palavra que o
começa e a palavra que o finaliza. A realização dessa atividade favorece o exame do texto,
parte a parte, provocando a verificação das palavras que formaram cada parágrafo. Agindo
dessa forma, a criança passa a perceber que o texto escrito no quadro de giz e o texto
mimeografado, embora estejam em suporte diferente, permanece o mesmo, percebendo que a
escrita das palavras se conserva independentemente do suporte. Além disso, diferencia a
forma de escrita do quadro de giz e a escrita mimeografada, isto é, uma mesma palavra pode
ser escrita com letra cursiva, letra de fôrma, letra minúscula etc. A despeito das diferentes
formas gráficas das letras em nosso alfabeto, cada letra permanece a mesma e exerce igual
função no sistema escrito, ou seja, é sempre empregada obedecendo às normas ortográficas
das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007, p. 29. FASCÍCULO 1).
Uma nova atividade foi assinalar as palavras-chave do texto. Para isso, as crianças
discutiam para decidir, em conjunto, quais palavras seriam assinaladas. Em um primeiro
momento, essas palavras eram sublinhadas com a nossa ajuda, no quadro de giz, e as crianças
acompanhando passo a passo. Esse procedimento reforça a leitura das palavras e permite
explorar as diferenças entre a segmentação da fala e a da escrita, conhecimentos que serão
aplicados na ortografia das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO
1). É interessante observar que a realização dessa atividade demandava um acordo entre elas
para assinalar as palavras-chave; esse acordo fazia com que muitas palavras fossem citadas e
examinadas, e, sem que percebessem, indiretamente, essas palavras eram trabalhadas. Num
segundo momento, essas palavras passaram a ser assinaladas por elas. Isso foi um avanço,
pois ao se dirigir para o quadro de giz, muitas vezes a criança era orientada por outra criança.
77
Essa troca de saberes promove uma interação (VYGOTSKY, 1999) que se consolida na
aprendizagem dos conteúdos.
Mais uma atividade foi perceber e encontrar as palavras que apareciam repetidas
no texto e pintá-las com lápis de cor, utilizando a mesma cor para as palavras iguais. Com
essa atividade pretendeu-se avançar o processo de reconhecimento de palavras nas dimensões:
fonológica e semântica (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1), e também
fazer com que a criança percebesse que a mesma palavra pode aparecer várias vezes no
mesmo texto, e que algumas, embora escritas da mesma forma, são completamente diferentes
no significado. A ideia de usar a mesma cor para palavras iguais parte do princípio da
conservação da escrita, como já mencionado antes.
Em outra atividade, desmembramos o texto. A criança devia fatiá-lo, respeitando
a ordem dos parágrafos, com o objetivo de discriminá-los. A criança cortava os parágrafos e
depois remontava o texto na carteira para compará-lo com o texto escrito do quadro de giz.
Com essa atividade pretendíamos revelar à criança que um todo dividido em partes pode ser
remontado novamente sem perder o sentido, permitindo-lhes correlacionar a leitura e a escrita
das palavras (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Observamos que
muitas crianças tiveram dificuldade em assimilar que, apesar de o texto estar dividido em
várias partes na carteira, ainda continuava a ser o mesmo texto que se encontrava exposto no
quadro de giz. Portanto, essa atividade pode causar aflição na criança, caso não seja bem
conduzida, levando-a a desistir. O planejamento foi feito com bastante antecedência com o
intuito de prever eventuais situações que pudessem dificultar a sua aplicação.
Na atividade seguinte, após lermos um parágrafo de cada vez, a criança deveria
tentar encaixar os parágrafos seguindo a ordem do texto, ou seja, obedecer à sucessão natural
dos fatos do reconto. Essa atividade foi uma continuação da anterior, daí a semelhança de
função: destacar os parágrafos para estabelecer a ligação entre eles seguindo a ordem do
reconto da lenda. É uma atividade cuja aplicação requer disponibilidade de tempo.
Observamos com atenção que muitas crianças ficaram apreensivas devido à movimentação
exigida pela atividade; por isso, no início do processo permitimos que elas fizessem o encaixe
dos parágrafos em grupo (duplas, trios), para só depois de mais descontraídas e seguras o
fizessem sozinhas.
Na atividade seguinte – colagem do texto numa folha de papel – a criança podia
perceber a separação do todo em partes e depois a junção desse todo novamente, isto é, pôde
perceber o texto fatiado e o texto completo. Após completar a colagem, as crianças puderam
observar o texto integralmente e retiraram as palavras-chave escolhidas anteriormente.
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Dando prosseguimento às atividades para desenvolver a dimensão composicional
do plano de texto, realizamos uma atividade de ilustração das palavras que foram escolhidas
por elas e lidas por nós. A quantidade de palavras foi estabelecida pelas crianças (elas
determinaram quais palavras seriam retiradas do texto). Nessa atividade, as crianças
receberam o texto e as palavras-chave mimeografadas, e com as palavras escolhidas eram
misturadas palavras novas. As crianças deveriam identificar o lugar e a palavra certa para
cada espaço e colá-las para completar o sentido do texto, nesta ocasião trabalhamos a técnica
de cloze8. Escolhidas as palavras, os alunos exploraram o texto e fizeram o reconhecimento
das letras e das palavras ou até mesmo das frases. E, finalmente, criamos novas maneiras de
brincar com as palavras retiradas do texto: fizemos acrósticos, quadrinhas, poesias, bilhetes,
palavras cruzadas etc.
Desenvolvemos também atividades de caracterização da lenda, como:
apresentação das personagens; presença da magia e do encantamento; características de tempo
e da ambientação; nomes que representam os padrões de referência dos personagens;
determinação dos momentos da ação complicadora; importância dos títulos. O objetivo dessas
atividades foi entender o processo de apropriação da língua escrita em contexto de sentido por
meio da lenda, com a presença dos elementos mágicos (OLIVEIRA, 1951, 1965) e das fases
da narrativa (BRONCKART, 2003).
Também planejamos atividades que serviram para apresentar os autores, os
personagens, os títulos, a qualidade dos textos, a adequação à idade, o interesse, a influência
da ilustração sobre o texto escrito etc. Uma alternativa foi levar livros para que as crianças
tomassem contato com autores diferentes e selecionassem os títulos de interesse.
Invariavelmente, essas escolhas terminavam em sorteio ou votação. Outra opção de atividade
era a escolha das personagens, concentrada nas especificidades da lenda, isto é, eram dirigidas
à ilustração das personagens, às caricaturas, à representação, à colagem e à montagem das
personagens, entre outras.
As fases da narrativa (situação inicial, complicação, ações, resolução, situação
final) aparecem no gênero lenda (COELHO, 2003). A intenção era pôr em prática a contação
de histórias, o que ocorreu de três maneiras: ora as lendas foram contadas por nós, ora por
8 Essa técnica consiste em retirar de palavras do texto, substituindo-a por um espaço pontilhado. O objetivo é
reconstituir o texto preenchendo a lacuna de acordo com o contexto. Pode ser aplicada com maior ou menor
grau de dificuldade. SANTOS, Acácia A. Angeli dos; PRIMI, Ricardo; TAXA, Fernanda de O. S;
VENDRAMINI, Claudette M. M. O Teste de Cloze na Avaliação da Compreensão em Leitura.
Psicologia: Reflexão e Crítica, 2002, 15(3), p. 549-560.
79
convidados ou ainda por alunos de outras séries. Nesse momento, as crianças puderam
participar escolhendo as lendas, trazendo livros e revistas, contando as lendas que ouviram
dos pais e também puderam interagir com os convidados. Também escolheram uma lenda
para o reconto.
Em uma atividade recontamos as lendas “Igaranhã – a canoa encantada” e
“Cervo Berá – o troféu do amor”, ambas do mesmo pesquisador, Walde-Mar Andrade e Silva.
Após a leitura oral, destacamos as fases da narrativa para escrever uma lenda (situação inicial,
complicação, ações, resolução, situação final). Para cada lenda que foi estudada procurou-se
estabelecer os traços específicos do contexto linguístico que envolve esse gênero. Entendemos
que a elaboração coletiva de qualquer produção de texto em classe de alfabetização é o
momento mais importante da aula, pois os fragmentos da história vão se juntando e, passo a
passo, as crianças acompanham a organização do texto.
O reconto individual serviu para aperfeiçoar o procedimento de escrita.
Finalizado o texto, cada aluno leu o seu para a turma. Cumpre lembrar que os textos não
sofreram correção de nenhuma espécie, pois o objetivo era promover atividades em que as
crianças pudessem escrever o próprio texto a partir do gênero lenda, isto é tencionávamos ter
um diagnóstico real de sua aprendizagem (VYGOTSKY, 1999).
Com isso, finalizamos a descrição das atividades relacionadas ao gênero lenda e
passamos a analisar as produções textuais dos alunos.
4.1.2 Aprendizagem da lenda
O trabalho com os gêneros textuais em sala de aula pressupõe endossar o texto
como objeto de ensino, considerando a manifestação da linguagem em uso. Sem dúvida, o
gênero é o ponto de partida para aulas de língua materna, uma vez que alfabetizar somente por
meio de palavras, letras, sílabas e frases soltas mostra-se insuficiente para servir de base ao
ensino-aprendizagem. Isso ocorre porque, na perspectiva dos PCNs (1997), todo texto se
organiza dentro de determinado gênero em função das intenções comunicativas, como parte
das condições de produção dos discursos, as quais geram usos sociais determinados pelos
80
gêneros em forma de textos. Portanto, os gêneros são determinados historicamente e usados
nas práticas de linguagem. Como enfatiza Bronckart (1999, p.48), “Conhecer um gênero de
texto também é conhecer suas condições de uso, sua pertinência, sua eficácia, ou de forma
mais geral, sua adequação em relação às características desse contexto social”.
Concordando com o exposto acima, passamos à análise das produções escritas. No
mês de março, em contato inicial, observamos que a maioria das crianças, de alguma forma,
teve contato com esse gênero, levando-nos a inferir que essa familiaridade pode ter ocorrido
na Educação Infantil, pois pela discussão realizada em sala de aula, algumas características
pertencentes ao gênero não eram totalmente desconhecidas das crianças. Além do mais, esse
gênero é bastante trabalhado em agosto, por ocasião do folclore.
Na perspectiva do gênero, ao final da aplicação das atividades, a análise dos textos
produzidos revelou significativo progresso das crianças, demonstrando capacidade de utilizar
as características próprias do gênero lenda (COELHO, 2003). Iniciamos nossa análise pelo
reconto coletivo, por entender que a passagem desse gênero em sala de aula foi recorrente, e
também porque o reconto coletivo foi o eixo central da nossa prática pedagógica de
apropriação da linguagem escrita.
O reconto coletivo da lenda: Coacyaba, primeiro beija-flor, além de iniciar o
processo de apropriação da linguagem escrita, também serviu de base para orientar as
produções narrativas escritas posteriormente. Com esse procedimento (reconto coletivo)
observamos que uma criança mais experiente pode ajudar outra menos experiente no início do
reconhecimento da escrita, comprovando que a troca de experiências é importante nas
relações interpessoais (VYGOTSKY, 1999). O conhecimento obtido por meio dessas
interações sociais resultou de um esforço coletivo e individual em produzir sentido a partir
das considerações do outro (VYGOTSKY, 1999). Essa negociação entre as crianças, para
optar por uma ou por outra sentença na composição do texto escrito, demonstrou que,
inconscientemente, há uma preocupação em manter a estrutura narrativa do gênero. Nossas
intervenções didático-pedagógicas organizaram de maneira indireta as contribuições dos
alunos de modo a formar uma história completa. Em decorrência das experiências adquiridas
por meio de interações com os mais velhos ou membros mais experientes, passamos a atuar
individualmente, e assim o desenvolvimento ocorreu de forma gradativa (VYGOTSKY,
1999). Abaixo, o reconto.
81
Coacyaba, o primeiro beija-flor
Os índios acreditam que as almas viram borboletas.
Coacyaba era uma índia, que ficou viúva muito cedo e sentia muitas saudades do marido.
Seu único consolo era sua filha Guanamby.
Muito tempo depois Coacyaba, angustiada, faleceu.
Guanamby enfraqueceu e também morreu. Ela ficou aprisionada dentro de uma flor perto
do túmulo da sua mãe.
A mãe, em forma de borboleta, ouviu um choro triste e logo reconheceu o choro de
Guanamby.
Coacyaba pediu a Deus Tupã que transformasse ela num pássaro veloz. Deus Tupã
atendeu o seu pedido e transformou Coacyaba em beija-flor. Ela pegou Guanamby e levou para o céu.
Figura 4 - Reconto coletivo
Para Góes (1991), a lenda explica os fatos naturais que desconhecemos. No caso
dessa lenda, a personagem Coacyaba foi criada para explicar a origem de um pássaro. No
texto recontado pelas crianças, observamos que esse fato define o enredo e, logo no primeiro
parágrafo, o leitor, mesmo sem familiaridade com a escrita desse gênero, reconhece a situação
que desencadeia a história. À medida que o reconto coletivo era discutido e tomava a forma
de escrita, notou-se a satisfação das crianças quando percebiam que a linguagem falada pode
transformar-se em linguagem escrita. É oportuno lembrar que estabelecer a diferença e a
semelhança entre as duas modalidades significou estabelecer um parâmetro de comparação
entre elas, embora os princípios e os canais de uso desses eventos sejam diferentes, a escrita e
a fala são propriedades de um mesmo sistema linguístico (MARCUSCHI, 2005).
Outro ponto que destacamos nessa produção coletiva (FIGURA 4) é que foi
preservada a mistura dos fatos reais com os fatos imaginários característicos do gênero lenda
(COELHO, 2003). Na frase “A mãe, em forma de borboleta, ouviu um choro triste e logo
reconheceu o choro de Guanamby,” entendemos que essa combinação serve para criar uma
expectativa devido à verossimilhança, característica recorrente nesse gênero. Para Góes
(1991), as lendas nascem da necessidade do homem de explicar os fatos que desconhece, e
nessa lenda cria-se uma situação para esclarecer a aparição do beija-flor na natureza.
4.1.3 Aprendizagem da estrutura narrativa da lenda
82
Ao transcrever as produções percebemos que inicialmente as crianças
desconhecem as fases da narrativa do gênero lenda, prevalecendo apenas a noção de conflito
da situação que envolve as personagens (BRONCKART, 1999). Como pode ser constatado no
reconto da lenda: Potyra, as lágrimas eternas, grande parte das crianças produziu apenas um
segmento do que foi apresentado, com em “Era uma vez índio” (ANEXO 1), “Era uma vez
índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu” (ANEXO 2), “Era uma vez uma índia
chamada Potyra” (ANEXO 3). E também podemos observar que tratando-se de uma primeira
produção, entendemos que, em certa medida, o tema central girou em torno da apresentação
das personagens “índio”, “guerreiro”, “Potyra” como nas produções A, B e C, (ANEXOS 1,
2, 3 respectivamente). E o texto produzido foi suficiente para enlaçar o drama do personagem
principal.
Esses exemplos de textos evidenciam que as crianças enfrentaram dificuldade em
estabelecer a diferença entre a lenda e o conto de fadas, e também que, no início do processo,
o título não faz parte da construção do texto, pois apenas três crianças o escreveram; para o
restante da turma, essa informação foi considerada desnecessária e irrelevante, embora, no
caso específico dessa lenda, o título seja um prenúncio do que vai ser contado e instigue a
capacidade de imaginação do leitor. Ainda sobre essas produções, convém salientar que os
alunos ainda não desenvolveram a capacidade para delinear as ações dos personagens,
concentrando-se em sintetizar as nuances do texto, embora, numa visão ampla, possamos
dizer que, em certa medida, as crianças não abandonaram o enredo, dedicando-se àquilo que
mais lhes chamou atenção; no caso, o personagem principal, que se destaca na história por
seus feitos morais e éticos, mas, ao mesmo tempo, acaba morrendo pelos seus valores.
Bronckart (2003) aponta cinco fases necessárias para o texto narrativo e mais duas
que podem ou não aparecer no texto. Das fases apontadas pelo autor, encontramos a situação
inicial e a complicação com maior número de ocorrências. O fato de reconhecer a relevância
de apenas duas fases nos mostra que no início do processo de escrita a criança tem dificuldade
de organizar e ordenar cronologicamente os acontecimentos dos fatos, e também percebemos
uma economia de palavras ao retratar as ações dos personagens. No reconto coletivo, a
Figura 5 mostra que a primeira tentativa de escrita de texto realizou-se em conformidade com
as fases narrativa (BRONCKART, 2003, p.220) do gênero lenda (COELHO, 2003). Vejamos:
83
Coacyaba, o primeiro beija-flor
TÍTULO
Os índios acreditam que as almas viram borboletas.
Coacyaba era uma índia, ela ficou viúva muito cedo e sentia muitas
saudades do marido. Seu único consolo era sua filha Guanamby.
SITUAÇÃO
INICIAL
Muito tempo depois Coacyaba, angustiada, faleceu.
Guanamby enfraqueceu e também morreu. Ela ficou aprisionada
dentro de uma flor perto do túmulo da sua mãe.
A mãe, em forma de borboleta, ouviu um choro triste e logo
reconheceu o choro de Guanamby.
COMPLICAÇÃO
Coacyaba pediu a Deus Tupã que transformasse ela num pássaro
veloz.
AÇÃO
Deus Tupã atendeu o seu pedido e transformou Coacyaba em
beija-flor.
RESOLUÇÃO
Ela pegou Guanamby e levou para o céu. SITUAÇÃO FINAL
Figura 5 - Reconto coletivo: fases da narrativa
Do exposto restou comprovado que a produção coletiva é um momento rico de
interação; uma criança pode completar a ideia da outra, e, além disso, a nossa intervenção
conduzindo-os à reflexão sobre a composição do texto contribuiu para direcionar a sua
construção, como vimos na produção acima. Portanto, traçar estratégias em que as crianças
possam aprender a estrutura da narrativa, desde o início do ano letivo, significa levar os
alunos a tomarem conhecimento de que para cada gênero, oral ou escrito, elaboram-se tipos
relativamente estáveis de enunciados (BAKHTIN, 2006, p. 262). Assim, a organização
mental e cognitiva assume uma grande importância para o individuo que domina o sistema de
escrita, bem como outros sistemas simbólicos, pois a apropriação do código não pode ser feita
de maneira mecânica e externa, ao contrário, a intenção é fazer avançar, na criança, um
processo de desenvolvimento de funções comportamentais complexas (VYGOTSKY, 1999).
Para compreendermos o desenvolvimento inicial da escrita, utilizamos as
pesquisas de Luria (1998). De acordo com esse autor, no momento em que a criança conhece
letras isoladas e sabe como essas letras registram algum conteúdo, ela finalmente aprende
suas formas externas e também a fazer marcas particulares. Seguindo essa linha de
raciocínio, Gontijo (2008) afirma que, no momento em que as crianças começam a diferenciar
84
as grafias para escrever, a atividade gráfica passa a ser regulada, observando certos critérios
que, inicialmente, são orientados pela apropriação das características externas da escrita.
Dessa forma, de modo geral, as crianças demonstraram que conhecem algumas
letras isoladas e sabem que esses símbolos registram os conteúdos, mas sua relação com a
escrita é puramente externa, ou seja, elas apresentaram indícios de que compreendem que a
escrita serve para fazer registro, mas não foram capazes de utilizá-la. Evidenciamos, ainda,
que elas permanecem completamente ligadas à experiência inicial, como podemos visualizar
abaixo:
Figura 6. Produção B. Realizada em março.
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Na produção acima, realizada no mês de março, na sentença
LAPDPIREPAIOIAIO as últimas letras apresentam uma sequência repetida de vogais e
apontam a presença de marcas (bolinhas) em cima de algumas dessas letras, destacando-as
das demais. Luria (1998, p. 158) nos alerta que a função dessas marcas é ajudar a criança a
lembrar e relembrar uma sentença, e também ajuda a organizar o comportamento da criança.
Essas marcas indicam a presença de algum significado para a criança, embora não determine
qual seja esse significado e nem tenha um conteúdo próprio.
Como foi dito, as crianças encontram-se em fases diferentes de escrita, o que
podemos verificar nas produções D, E, e G (ANEXOS 4, 5, 7) colhidas no mês de junho. Mas,
em relação ao gênero lenda, observa-se nessas produções que houve um avanço em relação à
apropriação das sequências narrativas. Em nosso entender, elas demonstram certo domínio em
relação à compreensão da estrutura do gênero em relação à primeira amostra colhida no mês
de março, embora os autores tenham iniciado o texto impropriamente com o termo “era uma
vez”, comumente usado nos contos de fadas. Observe na transcrição da produção “F” abaixo.
86
Figura 7. Produção F. Realizada em junho.
A/ FESTA/ DE/ SA/ JÃO/
ERA/UMA /VEZ/
UMA/ FESTA/ DE/ SÃ /JOÃO/
O /ÍNDIO/ ESTAVA/ ISIMA/ DA OMSA/
O /USO/ ACEDEU/A/FUGEIRA/
A/CHEGOU/
87
A/NOITE/ E/ AI /ESTAVA/
ARRUMADO/ A/ FESTA/
DE/ SA/JOÃO/
O /USO/ESTAVA/
PEGADO/ UMA/
CORDA/ AI/
ELE/ESTAVA/ PERTO/DO/FOGO. Transcrição. Produção F.
Acima, podemos verificar que essa produção é um reconto da lenda intitulada O
menino e a onça - Como os Kaiapós conquistaram o fogo, retirada do livro do Walde-Mar
Andrade e Silva. O texto apresenta certa clareza na exposição de ideias, demonstrando que o
aluno compreende o processo de produção do gênero lenda. Percebe-se uma tentativa de
preservar as ideias do texto original. O interessante é que a criança fez uma adaptação dessa
lenda para narrar uma história de São João. Nota-se que o título também foi alterado para A
festa de São João, donde se infere que a proximidade entre a lenda original e a contada pela
criança está focada no elemento fogueira, que fez a criança relacionar a lenda com festividade
junina. Entretanto, observa-se um controle sobre a escrita dos termos usuais do gênero lenda,
recontando-a sem alterar o enredo, embora não se detenha nos detalhes. E há também
sentenças que comprovam a preocupação com o encadeamento e com o sentido do texto, isto
é, ao desenrolar a situação, intencionalmente mantém a sequência da lenda (COELHO, 2003).
Essa produção demonstra também a perspicácia da criança em adaptar um texto para criar
outro, explorando o seu enredo e preservando suas características.
A aprendizagem da língua escrita percorre um longo caminho. Essa trajetória
exige um acompanhamento constante dos conhecimentos e do desenvolvimento da criança.
Dessa forma, comparando a primeira produção A e a segunda produção E com a terceira
produção U, da mesma criança, embora na segunda produção ainda persista certa
nebulosidade entre a maneira particular de escrita da lenda, no final de novembro o problema
da incorporação da organização do gênero lenda parece ter sido superado, como se pode ver
nas produções ( A, E e U) logo abaixo.
A produção A foi realizada no mês de março. Convém ressaltar que a transcrição
escrita foi feita com base no relato oral da criança. Nesse primeiro momento, vimos que as
frases são curtas; são reguladas pelas ações do personagem principal “índio” e pelas suas
ações “foi pra guerra e morreu”. Isso significa, que o desenvolvimento envolve não só o
domínio de signos arbitrários, mas também a atenção e a memória (VYGOTSKY, 1999). Em
suma, a organização mental e cognitiva tem uma grande importância para o indivíduo que
88
domina o sistema de escrita, bem como outros sistemas simbólicos, sendo assim a apropriação
do código não pode ser feita de maneira mecânica e externa, ao contrário, a intenção é fazer
avançar, na criança, o processo de desenvolvimento de funções comportamentais complexas
(VYGOTSKY, 1999). Além disso, vale ressaltar a importância dos momentos de produção
textual, nestes momentos a escrita se concretiza em sinais gráficos, isto é, a forma como a
criança se apropria do conhecimento da escrita e de outros sistemas simbólicos, estabelece a
sua relação com os demais (VYGOTSKY, 1999), expandindo e ajustando a sua conduta em
relação à tomada de consciência do mundo.
Figura 8. Produção A. Realizada em março.
Era uma vez índio.
Ele foi pra guerra e morreu.
A segunda produção E foi realizada no mês de junho. Trata-se do reconto da lenda
intitulada “O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo”, do pesquisador
Walde-Mar Andrade e Silva. O texto não apresenta uma narrativa com elementos motivadores
do gênero lenda. Não há propriamente componentes extraordinários no texto, ao contrário: a
criança parece encaixar a lenda em seu cotidiano, como observamos na denominação da
personagem “JOSUA AUGUSTO”, diferentemente do nome indígena do texto original, e no
89
desfecho final “E /O /PAI/ DO/JOSUA/AUGOSTO FALOU/ PARA/ELE /NÃO/ VAI/”.
Mas, conforme Coelho (2003), as lendas permitem misturar fatos reais com fatos imaginários.
A sequência narrativa não é linear, e as personagens alternam a aparição: “JOSUA
AUGUSTO”, a “ONSA” e o “RATO” de acordo com a sua importância, no andamento do
texto. Há menção ao lugar em que o fato ocorreu “ANDOU/AFLO/RESTA/ TODA, mas não
desenvolve detalhes quanto ao cenário nem ao tempo da narrativa. Assim, o que podemos
verificar na produção, abaixo, são as adequações que o aluno realizou em seu texto,
explicitando, em nosso ver, a dificuldade em reconhecer os modelos preexistentes desse
gênero.
O /RATO/ NA /FOGEIRA/ NA TARDE/SIGINTE
O /JOSUA /AU GUSTO/ A NÃO /DOUNA
NA/ ONSA/ DO/PAI / DE ELE /ANDOU/AFLO/
RESTA/ TODA/ VIU /MUNITO/ BICHOS/
E/ COM PAROU / UM/ MUNITO/ DI FERENTE
VIU /QUE – ERA- UM – RATO PERTO DA
FOGEIRA/
O/RATO/ COM-UMA CORDA
MANDO/ A /ONSA/CORE/ E/ FOI/DIRETO
NO /PAI / O/ PAI-DE-ELE/ FOI/LAVE
CHE GOU / E/ VIU/O/RATO/FAZENDO
FOGEIRA/ E /O /PAI/ DO/JOSUA/AUGOSTO
FALOU/ PARA/ELE /NÃO/ VAI/
MAIS/ PARA/ NÃO/VE/AQUELE/RTO
NÃO/I /PARA/ NUMCA/ MAIS/ VE/A/VE/O RATO
FLORESTA/NUMCA/ MAIS/AVE/ RTO
FINAL 1ª E.
Transcrição. Produção E.
90
Figura 9. Produção E. Realizada em junho.
A terceira produção U, realizada no mês de novembro, foi marcada pela riqueza de
detalhes na escrita da criança. O texto apresenta uma linguagem clara; as palavras estão
acessíveis e de acordo com o gênero; apresenta frases longas. O texto situa o leitor em relação
91
ao lugar em que se passa a ação “Em uma tribo”. Utiliza organizadores temporais “No dia
sequite” e “Um dia” para sustentar as ações das personagens, e retrata os sonhos de Mara
“quer se casar”, e seu sofrimento “descobriu que estava grávida”. O final é surpreendente, as
dificuldades enfrentadas por Mara culminam com a doença “Mandi ficou doente” e a morte
“Mandi para morre” de sua filha. A narrativa explica que Mara “sonhou com um jovem que
descia da lua e falava que amava” com a reiteração dos fatos “eo sonho serrepetiu muitas
ves”, “mara se apaixonou por um jovem”, ”Mara descobriu que estava grávida”, criando uma
perspectiva no leitor para uma provável solução do problema. Como pode ser observado na
transcrição da produção U, a seguir.
Mandioca- O pão indígena
Em uma tribo uma índia que quer
se casar.
No dia sequit todomundo deitou e
Mara ficou cotempla a lua.
Um dia mar sonhou com um jovem
que descia da lua e falava que amava e
eo sonho serrepetiu muitas ves.
No dia sequite mara se apaixonou por
um jovem. Mara não sonhou mas o sonho.
Um dia Mara descobriu que estava gravida.
Mandi ficou doente.
No dia descobriu que Mandi estava
doente e Mandi para morre
Um dia sequite o cacique descobriu pra
que servia a mandioca. porque fazer – pão e
farinha.
92
Figura 10. Produção U. Realizada em novembro.
93
Para estabelecer os parâmetros de comparação entre um gênero e outro foi preciso
inicialmente buscar suas similaridades, não apenas no aspecto lexical, mas no aspecto
organizacional, e num segundo momento, estabelecer também as diferenças para que
pudéssemos confrontá-los. Dessa maneira, examinando simultaneamente as produções de
texto dos três períodos, verificamos que houve um significativo avanço na composição das
produções, principalmente em relação à composição e ao conteúdo exigido pelo gênero
(BAKHTIN, 2006), à influência direta do gênero na escrita das crianças, e as mediações
foram fundamentais para entender como ocorre a escrita desses exemplares de gênero. Assim,
reafirmamos a necessidade de oferecer aos alunos acesso à diversidade de textos escritos e
orais como fonte para a reflexão da linguagem. Entretanto, não podemos esquecer que aqui
estamos tratando de uma turma de primeira série.
As produções demonstraram o uso das sequências narrativas (BRONCKART,
2003) focando o domínio das particularidades do gênero lenda e contemplaram a análise e a
reflexão, pois tal abordagem representou significativas mudanças relacionadas às escolhas
linguísticas (COELHO, 2003). É o que se pode ver abaixo, nas produções M e P.
Potyra – As lagrimas eternas
a muito tempo esistia um casau que queria
casar mas foi que chegou a guerra mas antes da
guerra eles ficarão um pouco juntos nabira do rio
e quando a guerra comesou e a Potyra esperava
os amigos de itajiba falou que ele tinha
morrido e a Potyra chorou muito e
deus Tupã transformou as lagrimas dela em
diamante a perda do seu amor.
Transcrição. Produção M.
94
Figura 11. Produção M. Realizada em novembro.
Madioca – O pão indígena
Mara era filha do cassique ela tem sonhos de
paixão ela sonhou com um jovem loiro
de pele branca ela sonhou muitas zezes e se apaixonol
por ele e passou muito tempo e ela descobril
que estava grávida.
Mara Del a luz a uma menina dos
cabelos loiros e pele branca que del o
o nome de Mandi a menina adoesseu e morrel.
Sua mãe interrol ela na oca para que
95
não separe dela.
O cassique despresava a menina
e aparessel uma planta que del o nome o nome
de mandioca e aparessel no sonho do cassique
e inssinol a fazer a farinha.
Transcrição. Produção P.
Figura 12. Produção P. Realizada em novembro.
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Dessa forma, tomando os 28 textos coletados no mês de novembro, identificamos,
na maioria deles, as fases: situação inicial, complicação, ações e situação final, como se vê
nas produções H, I, J, K, L, M, O, P, R, T e U (ANEXOS 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 18, 20 e
21), o que nos garante que as estratégias utilizadas foram essenciais na construção de todo o
processo ensino-aprendizagem, porquanto a criança inicia o processo de apropriação da língua
escrita por meio de produções coletivas e termina escrevendo o próprio texto. Em seguida,
vamos analisar a produção J representando essas fases.
Madioca- O pão indigena
Em uma tribo uma índia jovem cha_
mada Mara ela queria se casar e ter filhos.
Um dia um jovem de cabelos loiros
desia da Lua seu sonho pasava se repi_
ti varias vezes Mara se apeixonou.
Um dia Mara pesebeu que estava gravida
Mara contou ao seu pais sea meã apoio
mais seu pai começou e destresava
Mara.
Mara deu a luz a uma menina.
a mandi ficou doente e falheseu
seu mãe ficou muito triste e ela
enterrou na sea oca.
um dia o jovem apareceu no sonho
do cacique ele insinou aprepara o
vegetal o cacique a basou seu
filha.
a onde mandi foi seputa se a
meã removeu a terá dero o nome
de mandioca que foi enterada na
oca.
Transcrição. Produção J.
97
98
Figura 13. Produção J. Realizada em novembro.
Para analisar cada fase da produção J, tomamos como modelo de caracterização
do gênero lenda de Coelho (2003 p. 83-87). Na fase inicial, foi possível identificar a presença
da personagem principal explicando o seu sonho: casar e ter filhos. Na fase de complicação,
aparece o personagem secundário “um jovem de cabelos loiros” e o fator complicador: “mara
pesebeu que estava grávida”. Em seguida, são descritas as ações em que Mara toma uma
atitude “mara contou al seu pais” . A postura tomada por Mara causou uma oposição entre os
membros da família: “sea mea apoio” e seu pai “a destresava”. Dando continuidade, o texto se
encaminha para a resolução “Mara deu a luz a uma menina” e, logo, em seguida nos remete a
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outra situação de complicação “mandi ficou doente e falheseu”. Em seguida, aparece a
solução para o primeiro conflito “o jovem apareceu no sonho do cacique” e ensina a preparar
o “vegetal”. E, finalmente, há uma retomada do segundo conflito “a onde mandi” foi
sepultada a mãe “removeu a terá”; esse nome, “mandioca”, é porque ela “foi enterada na oca”.
Resumindo, trata-se de um enredo muito intenso, em cuja estrutura temos, a situação inicial
bem definida: duas situações complicadoras; várias ações dos personagens, tanto o principal
como os secundários; duas resoluções de problemas e uma situação final. Observamos,
portanto, um total controle sobre o gênero e a ausência de traços da organização do conto de
fadas após a aplicação das atividades baseadas na sequência didática (SCHNEUWLY, DOLZ,
NOVERRAZ, 2004).
3.1.4 Aprendizagem das categorias de tempo e de espaço na lenda
Como pode ser comprovado nas produções A, B, C, D, G, Q, S (ANEXOS 1, 2, 3,
4, 7, 17, 19), outro aspecto evidenciado na análise das produções dos alunos é que
praticamente todas iniciaram o texto com o tradicional “era uma vez”. Essa incorporação da
organização do conto de fadas ao gênero lenda é perfeitamente aceitável e previsível. Temos
observado ao longo da nossa prática pedagógica que parece haver entre professores do ensino
fundamental de séries iniciais, sobretudo na primeira série, uma predileção pelo conto de
fadas, e essa preferência se reflete diretamente na produção da criança. Então, para a maioria
das crianças nessa fase, as histórias começam com “Era uma vez” e terminam invariavelmente
com “felizes para sempre”, independentemente do gênero. Góes (1991) explica que tanto as
crianças de outrora como as de hoje e o homem primitivo se sentem presos de encantamento
ao ouvir as histórias maravilhosas que começam com as palavras mágicas “antigamente”, “era
uma vez”.
Outro aspecto que nos chamou a atenção foi o contexto no qual esse gênero se
insere. Tudo isso não foi somente apreciado enquanto literatura; os valores e os princípios
revelados se sobressaíram por intermédio das ações das personagens. Essas discussões foram
interessantes, pois revelavam como as crianças operavam no mundo social. Além disso, não
podemos esquecer que uma das muitas atribuições da escola é levar a criança a conhecer e
100
analisar criticamente os usos da língua como veículo de valores e preconceitos de classe,
credo, gênero ou etnia (BRASIL, PCNs, 1997, p. 42). Essas ações foram apresentadas no
encadeamento das frases. Além disso, o uso dessas expressões também serviu para apontar as
circunstâncias psicológicas das personagens. Por exemplo, as crianças utilizaram as
expressões “e falava que amava” (ANEXO 21), “Mara ficou muito triste” (ANEXO 10), “e
ficou muito triste e também morreu” (ANEXO 17), “potyra ficou triste e chorando” (ANEXO
9), “Potyra chorou muito” (ANEXO 13) “anhurawi um guerreiro muito corajoso se apaixonou
por ela” (ANEXO 18) “sua mãe ficou muito triste” (ANEXO 10), “O cacique pai da mara
desprezava Mara” (ANEXO 8) entre tantas outras. Essas expressões contribuíram
significativamente para preservar a continuação lógica e temporal do texto.
Observamos, ainda, que as crianças já são capazes de relacionar os fatos no texto
respeitando a ordem em que eles aconteceram. Isso quer dizer que, para a maioria delas, a
temporalidade marca a ordem natural dos acontecimentos, que pode ser confirmado na frase
“a muito tempo atas existia um casau que queria casar” (ANEXO 13). Esse marcador serve
para ajudar a criança a situar, no texto, o rompimento entre a mãe e a filha, apresentando logo
a seguir um novo acontecimento. Segundo Coelho (2003), esses organizadores temporais
estão presentes no início da fase de complicação, o que assegura o desenrolar da
temporalidade da narrativa.
A apresentação de um elemento organizador temporal no texto narrativo
transporta as crianças para um mundo de fantasia, diferente do momento da escrita da criança
(COELHO, 2003). Nos textos delas, o organizador temporal inicial aparece de várias formas.
Por exemplo: “um dia”, “todo dia”, “no outro dia”, “no dia seguinte”, “muito tempo atrás”,
“anoiteceu”, “chegando a noite”, “certo dia”, entre outros. Constatamos que essas expressões
foram usadas com bastante propriedade e ajudaram a criança a dominar e a organizar o texto
em parágrafos. Comprovamos ainda sua eficácia na construção de palavras e frases que
refletiam nitidamente a intenção de colaborar com a construção de sentido na totalidade do
texto, e não apenas a formulação de frases sem compromisso com o texto. Nas produções I, J,
L, M, U (ANEXO 9, 10, 12, 13, 21) observamos que o uso desses organizadores temporais
ajudou as crianças a identificar ações em diferentes espaços e tempos, caracterizando o lugar
onde aconteceu o fato, ligando-os ao tempo cronológico. Em nosso entender, essas relações
são importantes porque nessa fase ajudam a criança a estabelecer a ordem dos
acontecimentos.
Na produção H, abaixo, podemos interpretar com clareza a importância dos
organizadores temporais para o gênero. O aluno inicia o seu texto informando a localização
101
dos acontecimentos com a expressão “Em uma tribo”, iniciando a partir daí a sequência da
narrativa. Nesse contexto, essa expressão situa o leitor em relação ao lugar físico em que
ocorrem os fatos. Na sequência, situa a história no tempo como em “até que um dia ela
sonhou com um jovem”, expressão que dá pistas de existir uma ordem natural dos fatos em
andamento no texto. As personagens vão aparecendo no texto à medida que a
sequencialização dos acontecimentos se desenrola no enredo. Primeiramente aparece a
personagem principal, cujo nome curiosamente só aparece na quarta linha (Mara). Logo
depois surge o cacique, o antagonista, que contradiz as ações da personagem principal.
Depois, relata a situação complicadora atrelada ao tempo do acontecido: “Um dia mandi
faleseu”. Obedecendo a uma ordem da noção espaço-tempo, estes são utilizados para situar o
leitor no enredo da história, isto é, conseguindo estabelecer a distância temporal necessária
entre os eventos que se vão desenrolando ao longo da narrativa. Por fim, no fechamento da
história: “o cacique pediu desculpa e derão o nome de mandioca em omenage o imterro da
Mandi”, constatamos que os acontecimentos coincidem com a lenda contada.
Mandioca- O pão indígena
En uma tribo uma índia jovem sonhava en ter
filhos.
Ate que um dia ela sonhou com um jovem desedo da lua dezedo que o amava o sonho
se repitiu muitas Veze Mara descobri que estava esperando um filho.
O cacique pai da Mara desprezava Mara mas os índios da tribo amavão Mandi.
Um dia mandi faleseu a sua mãe enterrou
na sua oca para que separase dela.
O jovem apare seu no sonho do cacique
falu como prepara o vegetal o cacique
pediu descupa e derão o nome de mandioca
em omenage o imterro da Mandi.
Transcrição. Produção H.
102
Figura 14. Produção H. Realizada em novembro.
Em relação às características do gênero textual lenda, mostramos que os subsídios
teóricos deram suporte à funcionalidade das atividades. Nota-se que a compreensão
organizacional deu à criança conceitos relevantes para a construção do gênero. E numa
primeira série, elaborar uma narrativa escrita é uma tarefa complexa, pois exige uma série de
conhecimentos linguísticos, tais como: vocabulário adequado ao gênero, encadeamento lógico
entre os acontecimentos, domínio da temporalidade e do espaço em que ocorre a história etc.
103
A análise das produções dos nossos alunos teve o objetivo de observar, em momentos
distintos, como traçamos o caminho do processo de apropriação da escrita.
4.2 A apropriação do sistema alfabético: o gênero lenda como instrumento
Durante a aplicação das atividades, as crianças se apropriaram de conceitos
fundamentais que as levaram a desenvolver a escrita. As atividades foram desenvolvidas
levando-se em conta a consciência fonológica, a palavra, a sílaba e o fonema, em atividades
contextualizadas em recontos coletivos da lenda, nas quais analisamos o processo de
construção da escrita.
As atividades foram distribuídas de três formas: as coletivas, em sala, ora em
grupos de quatro, ora em duplas, ora em trios, ora na turma inteira. Nas atividades individuais,
as crianças eram estimuladas a refletir e desenvolvê-las sem interferência de outros e,
posteriormente, elas poderiam ser compartilhadas com os colegas. Por último, as atividades ao
ar livre (fora da sala), com o objetivo de trazer novidades e acrescentar novas formas de
trabalho, geralmente aconteciam em forma de jogos e brincadeiras.
Em nosso entender, é impossível alfabetizar uma criança sem desenvolver o
sistema alfabético do português. Admitindo isso, nesta seção descrevemos as atividades que
habilitaram as crianças a usar esse conhecimento. Convém ressaltar que não se trata de todas
as atividades aplicadas, mas de um recorte dessas atividades, a partir do estudo do gênero
lenda, que contribuíram com o aprendizado da língua materna.
A atividade “seleção de palavras” foi realizada com o objetivo de levar as crianças
a perceberem, pela pronúncia, quais palavras iniciam da mesma maneira e quais começam de
forma diferente. Por exemplo: “panela”, “pequi”, “periquito”, “pajé”, “papagaio”, “Ponain”,
“Potyra → /p/→ “p”; “tatu”, “tupi”, “tucunaré”, Tupã”, “tupi”, “tucunaré”, “tucumã”, → /t/→
“t”; “fogo”, “filha” → /f/→ ”f”; “viúva”, “velho”, “vila”, “voar” →/v/→ “v”; “maracá”,
“mata”, “Mara”, “madeira”→/m/ → “m”. Ora as palavras eram escritas no quadro de giz, ora
em fichas coloridas, ora apresentadas oralmente, ora mimeografadas. Retirávamos as palavras
das lendas que eram contadas em sala. Uma variação dessa atividade consistia na associação
entre a gravura e o som inicial das palavras retiradas do reconto. De acordo com Scliar-Cabral
104
(2003b), as palavras em que os fonemas correspondem aos grafemas independentemente da
posição e do contexto fonético são ideais para iniciar o processo de alfabetização.
Atividade interessante era registrar em fichas ou quadro de giz uma sequência de
palavras retiradas do reconto para as crianças perceberem quais delas compartilhavam o
mesmo fonema em início de sílaba, por exemplo, “roça”, “rocha”, “Lua”, “lagoa”, “lagos”,
“zarabatana”, “luta”. Nessas atividades, procurávamos explorar a relação fonema-grafema em
início de sílaba, uma vez que os fonemas /l/, /z/ e o arquifonema |R|, nesta posição, se
escrevem com ‘l’, “z” e “r”, respectivamente, conforme mostrado por Scliar- Cabral (2003b).
Numa outra atividade registramos no quadro de giz palavras que apresentavam o
fonema /s/, como, por exemplo, “nascimento”, “desconsolada”, “essência”, “desceu”,
“pássaro”, “pesca”, “passear”, “assustada”, “nasceu”, e logo após solicitamos que as crianças
identificassem e separassem as palavras de acordo com os grafemas que representavam o
fonema /s/ ou o arquifonema |S|. Nessas atividades, procuramos enfatizar que as realizações
do fonema /s/ podem ser grafados “ss”, “c” ou “sc” em início de sílaba, entre vogal oral e
vogal posterior oral ou nasalizada, ou semivogal não posterior, isto é, /i/, /e/, /E/, /ẽ/ e /j/
(SCLIAR-CABRAL, 2003a). Dessa forma, não há uma regra geral que atenda todas essas
ocorrências nas palavras. A autora alerta que se pode compreender o grafema como uma ou
mais letras que representam um fonema, e no sistema alfabético do português do Brasil, não
mais que duas letras.
Outra atividade era com palavras que em início de sílaba começavam com o
fonema /s/ e as crianças identificavam e separavam as palavras de acordo com o fonema. Por
exemplo: “sol”, “sapé”, “sufoco”, e nesse caso, o fonema /s/, em início de sílaba, antes de
vogal posterior ou /w/ grafa-se com “s” (SCLIAR-CABRAL, 2003b).
Em outra atividade, apresentando palavras que começavam com o mesmo padrão
silábico e palavras que começavam com outro padrão, solicitamos que as crianças
identificassem e separassem as palavras de acordo com o fonema inicial da sílaba e/ou final
de sílaba. Em seguida, apresentamos as palavras à turma, escrevendo-as no quadro de giz, e as
palavras foram lidas coletiva e individualmente, confirmando ou redirecionando as hipóteses
levantadas pelas crianças. Essas atividades serviram para salientar a composição e a
decomposição da palavra, a relação fonema-grafema e os movimentos de escrita da esquerda
para a direita (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).
Um jogo que as crianças apreciavam era trocar a letra inicial por outra: ora as
palavras eram ditas oralmente, ora eram escritas em fichas ou no quadro de giz. Nessa
atividade, era explorado o som inicial e o significado da palavra. Por exemplo: FALA,
105
BALA, CALA, MALA, RALA, SALA, TALA, VALA, que, embora mantenham as três
últimas letras, com a troca do grafema/fonema o significado muda completamente. Além
disso, a discriminação de sons tem a função de distinguir sentidos e significados (SCLIAR-
CABRAL, 2009).
O procedimento de encontrar a palavra correspondente à figura agradava as
crianças. Outra forma de exposição da atividade era apresentar primeiro a figura para depois
encontrar a palavra, que também servia para diferenciar as figuras das letras (BRASIL, PRÓ-
LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Também apresentamos a palavra faltando a
primeira letra, para a criança identificar o fonema/grafema inicial da palavra e relacionar a
palavra à figura correspondente. Nessas atividades trabalhamos o fonema /s/ nos contextos
competitivos, especificando os grafemas usados em relação à posição realizada pelo fonema
/s/ (SCLIAR-CABRAL, 2003, p. 153-158). A seguir, as crianças separaram e escreveram as
palavras com “ss”, “c”, ou “sc”.
Uma atividade era separar em sílabas as palavras retiradas do texto, como, por
exemplo: “barco”, “cabaça”, “pajé”, “Sol”, “tribo”. Essas atividades serviam para que o
aluno percebesse que “enquanto se fala, o ar é emitido numa série de impulsos a cada um dos
quais se pode dizer que corresponde uma sílaba” (MATTOSO CAMARA, 1977, p. 70.).
Nessas atividades, separávamos as palavras em sílabas, tanto oralmente quanto por escrito;
quer dizer, a identificação e a percepção da representação gráfica dos fonemas favoreciam a
decomposição e a composição da palavra (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007.
FASCÍCULO 1).
Também trabalhamos fonemas que figuram em final de sílaba como em
“ariranha”, "piranha”, “lenha”, “jatobá”, “tarobá”; incentivamos a comparação entre o número
de sílabas e a relação de fonemas e de grafemas na palavra. A análise fonológica pode ajudar
na reflexão de como cada fonema pode ser representado por grafema na escrita (SCLIAR-
CABRAL, 2003a).
Algumas atividades eram realizadas para distinguir as consoantes, /d/ → “d” →
“dedo”; /b/ → “b” → “bela”, porquanto no caso dessas consoantes a similaridade não se
restringe à articulação, mas se estende à escrita. Essas atividades não somente buscam
familiarização com as letras, como objetivam a sistematização da correspondência entre
fonemas e grafemas. Dessa forma, a escrita da palavra deve observar o traçado de cada letra,
sempre reforçando a atenção nas hastes e curvas, respeitando o movimento da direita para a
esquerda (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).
106
Atividade muito interessante foi o jogo das palavras, cujo objetivo era
desmembrá-las fazendo novas combinações, quer dizer, em um primeiro momento a
combinação fica restrita à primeira sílaba de cada palavra. Por exemplo: a primeira sílaba da
palavra “copo” com a primeira sílaba da palavra “braço” forma a palavra “cobra”; em
seguida, combinavam-se as sílabas do final das palavras; por exemplo, a última sílaba da
palavra “bico” com a última sílaba da palavra “bela” forma a palavra “cola”. A intenção era
que as crianças reconhecessem que com a sílaba de uma palavra podem formar novas
palavras, bastando para isso examinar as unidades que constituem a palavra para desmembrá-
la. Em suma: o reconhecimento da palavra ocorre por análise e síntese (SCLIAR-CABRAL,
2009).
Colocamos as crianças sentadas em círculo e distribuímos os cartões de forma que
elas não pudessem ver a figura. Trabalhamos dez figuras por vez, por exemplo: barco, canoa,
Lua, maracá, tatu, onça, cobra, peixe, Sol, índio. Nessa atividade o desafio era relacionar o
som da primeira sílaba com a figura. A palavra era lida primeiro por nós, depois pelas
crianças, e por fim era escrita no quadro de giz.
Uma atividade era descobrir a palavra secreta. Nessa atividade, relacionamos a
palavra ao desenho e em seguida acrescentamos palavras que rimam com a palavra secreta,
por coincidir o fonema no final da sílaba. Por exemplo: “panela”, “bela”, “mela”, “vela”,
“gamela” e assim por diante. Exploramos também os constituintes das palavras “mela” e
“gamela”, casos em que, segundo Scliar- Cabral (2003b), a realização do fonema /l/ no início
de sílaba interna se converte no grafema “l”; e também ressaltamos a formação de uma
palavra a partir de outra já existente.
Destacamos também a primeira e a última sílaba da palavra: ora recortadas, ora
pintadas com cores diferentes, ora circuladas. A finalidade era destacar palavras polissílabas,
trissílabas, dissílabas e monossílabas, além de ajudar o aluno a perceber a extensão da
palavra até segmentá-la em unidades menores, isto é, palavras em sílabas e sílabas em
fonemas (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b).
Outra atividade era recortar as gravuras de objetos que apareciam na lenda; a
criança era convidada a identificar o fonema repetindo o início e o final da palavra. Essas
atividades foram aplicadas e desenvolvidas para trabalhar a assimilação dos fonemas a partir
de rimas, isolamento da primeira letra e da última sílaba. As gravuras foram selecionadas
segundo o fonema a ser trabalhado.
Realizamos também atividades que contemplassem os grafemas “o” e “u” em
final de palavras. As crianças participavam da confecção da lista de palavras. Realizamos as
107
atividades em duas etapas. No primeiro momento, atividades orais possibilitaram exercitar a
percepção da extensão da palavra, pois a economia ao pronunciar uma palavra pode acarretar
omissão/troca de letras, uma vez que nosso sistema de escrita sofre influência da oralidade,
embora a escrita não seja sua representação exata (MARCUSCHI, 2005). No segundo
momento, as crianças escreveram uma lista de palavras em que observassem a percepção do
arquifonema |W|. Conforme Scliar-Cabral (2003b), há várias formas convencionadas de
representá-lo podendo-se escrever competitivamente O ou U em sílaba não final de vocábulo
ou em final de vocábulo, seguida ou não do arquifonema |S|.
Também foram desenvolvidas atividades que contemplassem o “desdobramento”
das vogais orais (a, ô, ó, u, ê, é, i) e nasalizadas (ã, ~e, ~i, õ, ~u) (SCLIAR-CABRAL, 2003a;
b), na tentativa de evitar os problemas de escrita das vogais nasalizadas como nas palavras
“muito”, “Mandi”, “mandioca”. No primeiro momento, essas atividades eram realizadas
oralmente, e só após analisar e registrar esse desdobramento é que eram propostas atividades
de escrita. Outra variação era reforçar a sonoridade da sílaba inicial. Por exemplo: levar o
aluno a identificar a diferença na pronúncia da sílaba BO nas palavras BOLO e BOLA.
Levamos atividades em que as crianças pudessem observar que existem palavras
com pronúncia diferente da grafia, principalmente no final de silaba, tal como em
TOMATE/TOMATI. Para a realização das atividades de discriminação do fonema foi
fundamental a percepção da sílaba como constituinte da palavra em que um grafema
representava mais de um fonema, e também trabalhamos palavras em que um fonema podia
representar mais de um grafema (SCLIAR-CABRAL, 2003 a; b).
As atividades de rima e lengalenga eram frequentes: as palavras eram retiradas
das produções coletivas. Essas atividades serviram para que as crianças percebessem e
refletissem sobre como as palavras terminam e suas múltiplas combinações, isto é,
desenvolver a habilidade de refletir sobre os sons da língua usando a linguagem escrita –
metalinguagem – (SCLIAR-CABRAL, 2003a).
As atividades orais também eram realizadas, por exemplo, com as crianças
tentando descobrir e separar pela pronúncia aquelas que começavam com o mesmo fonema
das que começavam com fonemas diferentes, e em seguida faziam a leitura. Essas atividades
serviram para despertar a consciência de que ao escrevermos é preciso tomar consciência da
estrutura sonora de cada palavra (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).
Terminada a apresentação das atividades que foram aplicadas para desenvolver o sistema
alfabético, passamos à análise das produções.
108
4.2.1. A descoberta de que a fala pode ser escrita
Nesta seção, analisamos a produção textual dos alunos a partir da proximidade
entre fala e escrita.
Na produção A (ANEXO 1), observamos que na sua primeira produção textual a
criança usou algumas letras do alfabeto (A, P, U, L, K, R, D, E, I, O, V, T) para recontar a
lenda: Potyra - as lágrimas eternas. De um lado, identificamos na produção cinco vogais (A,
E, I, O, U) e sete consoantes (P, L, K, R, D, V, T). A predominância das letras A e I refletem,
em parte, a familiaridade com a escrita do seu nome, e de outra parte a presença muito forte
do ensino tradicional sistematizado e ensinado a partir das vogais. A esse respeito, com base
no Pró-letramento (2007) podemos afirmar que frequentemente as escolas têm organizado sua
prática apresentando primeiro as vogais (a, e, i, o, u) adotando uma abordagem que não leva
em conta que o alfabeto do português do Brasil apresenta apenas cinco letras (a, e, i, o, u),
para representar as vogais, mas possui sete vogais, orais (a, ô, ó, u, ê, é, i) e cinco nasalizadas
(ã, ~e, ~i, õ, ~u) (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b).
Por outro lado, ao fazer tentativas de escrita, como a produção C, o aluno parece
perceber que é preciso usar as letras do alfabeto para registrar as suas ideias. No momento da
produção C a criança tinha seis anos, completando sete anos no mês de abril. Ao iniciar a
produção, a criança construiu um bloco de quatro sentenças do mesmo tamanho. Para registrar
a primeira sentença, ela usou nove letras (ACEFUOHIO), dentre as quais percebemos que seis
são vogais (A, E, U, O, I, O), algumas (O, U, I) escritas com letra cursiva; a única letra
repetida é a letra O. A segunda sentença consiste de sete letras (ELIUFUO), das quais cinco
são vogais; houve a inclusão da letra L, permanecendo o restante das letras da primeira
sentença e as letras I, U, O novamente foram grafadas de forma cursiva e foi repetida a letra
U.
Na terceira sentença contamos sete letras (USUEFIH), sendo quatro vogais; a letra
S foi acrescentada às existentes; as letras U e I outra vez foram grafadas de forma cursiva. A
última sentença deste bloco consistia de 11 letras (USEHERIHJSU), cinco vogais (U, E, E, I,
U) e seis consoantes (S, H, R, H, J, S), dentre estas as letras E, I, J grafadas com letra cursiva.
A seguir, ela repetiu a última sentença (USEHERIHJSU), intercalando com a letra É,
completando com a sentença (NAPUVRIOUELTMNA) usando quinze letras; dentre as quais
sete são vogais (A, U, I, O, U, E, A). Dessa forma, para escrever utilizou-se do repertório de
dezessete letras (A, C, E, F, O, H, I, L, V, S, U, R, J, N, P, T, M), sendo doze consoantes e
109
cinco vogais. Observamos que as vogais foram repetidas várias vezes na mesma sentença,
mais do que as consoantes. Percebemos ainda que as letras R, I, O, J, E, N estão em letra de
fôrma, enquanto I, N, E, R foram escritas em minúsculas. O traçado da letra se manteve no
mesmo padrão e, ao repetir a primeira parte na última sentença, conservou as mesmas letras e
a mesma configuração. Observamos que no conjunto de letra da sentença (N, A, P, U, V, R, I,
O, U, E, L, T, M, N, A) três letras foram repetidas (N, A, U). Abaixo, a produção C.
Figura 15. Produção C. Realizada no mês de março.
Ainda em referência a produção C, na última sentença a criança parece registrar
os enunciados relacionando-os ao ritmo e à entonação da fala, estratégia da criança para
transformar a fala em texto escrito, mas isso não significa uma correspondência entre a fala e
110
a escrita fonética. A esse respeito, Scliar-Cabral (2003) afirma que os falantes de uma língua,
sejam eles alfabetizados ou não, percebem a cadeia da fala para seu uso cotidiano, mas a
percebem como um continuum, tanto é que, quando começa a escrever, a criança não faz a
separação entre as palavras. Isso quer dizer que, no início da alfabetização, por sua
inexperiência, a criança não sabe que a escrita tem um modo próprio de representar a fala, ou
seja, a passagem da fala para a escrita não é a passagem do caos para a ordem: é a passagem
de uma ordem para outra ordem (MARCUSCHI, 2005).
Podemos inferir, portanto, o predomínio da aprendizagem focado nas vogais por
sua incidência no texto escrito. Além disso, as vogais foram grafadas com letra cursiva, com
exceção da consoante J, que também foi grafada em cursiva, o que pode indicar que
anteriormente foram apresentadas outras formas de grafar essas letras.
A propósito de compararmos o dito oralmente com o escrito pela criança,
podemos inferir que ela usou da fala para narrar o escrito baseando-se na lenda que foi
contada, embora não faça relação entre a sentença escrita com a produzida oralmente. Isto
pode se justificar, pois os meios orais permitem a inserção de sons inarticulados, a expressão
facial e corporal e também a modulação da voz, refletindo sobre o que se quer expressar no
texto (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Além do mais, inicialmente
há relação entre os sons e silêncios e sua imaginação (SCLIAR-CABRAL, 2003a).
Foi possível observar que as crianças no início do processo de escrita apoiaram-se
na oralidade, que serviu de âncora para construir e compor o texto, a palavra, a sílaba. Mas,
observamos também que à medida que oferecemos contato com uma diversidade de gêneros,
as crianças se sentiram mais à vontade para usar os recursos linguísticos que aprenderam ao
longo do ano. Dessa forma, o aproveitamento desses conhecimentos pode amenizar os
impactos ao acesso do funcionamento da língua escrita e, também, harmonizar o
distanciamento entre escrita e oralidade.
Na produção L, as sequências “fesumpidido” (fez um pedido), “eapareceu” (e
apareceu), “umsenhor” (um senhor), “esivelho” (esse velho), “suairmãdisi” (sua irmã disse),
“foipomato” (foi pro mato), “nomato” (no mato), “edisi” (e disse), “ esua” (e sua) na junção
das palavras observa-se uma influência muito forte da oralidade na escrita da criança. Fala e
escrita são produzidas em sequência linear, e compreender que essa linearidade acontece de
maneira diferente na fala e na escrita é fundamental no início da alfabetização (BRASIL,
PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1). Isso significa que as marcas que usamos na
escrita para distinguir palavras, frases e sequências de frases não são “óbvias” nem
“naturais” (BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1), a criança precisa
111
familiarizar-se com as convenções ortográficas, separando as palavras por espaço em
branco, regras de escrita aprendidas na escola. Conforme Scliar-Cabral (2003), a capacidade
de perceber a articulação dos traços da palavra escrita com função de distinguir significados,
os grafemas, associados ao respectivo fonema, representa atribuir os valores fonológicos que
envolvem a língua, e esses conhecimentos ajudam o aluno a fazer a separação entre as
palavras e/ou entre consoantes e vogais. Abaixo, apresentamos a produção L.
112
Figura 16. Produção L. Realizada no mês de junho.
Thaina Khan
113
Uma índia fesumpidido que
queria casa i pajé pidi o
para o Tupã realisa o dese
jo eapareseu umsenhor Danace di
si minha irmã não vai casa
com esi velho sua irma disi vose
qui casa comigo i Thaina di
si quero e Thaina foi pomato e
Tupã trasformou em um jovem
fote e sua molhe foipro cu
r Thaina nomato edisi m
eu marido e Danece dise e la
não podi fica com e si
gatão e Tupã tras for mo e la
em passaro.
Transcrição. Produção L.
4.2.2 A construção da noção de palavra no texto escrito
A nossa pesquisa para o ensino fundamental de Língua Portuguesa em classe de
alfabetização focaliza a produção de textos escritos combinados com a reflexão sobre as
estruturas da língua. Essas atividades devem ser consideradas como processos ativos, e a
concepção de linguagem como uma ação dirigida com a finalidade de facilitar a comunicação
que ocorre em diferentes grupos sociais por meio do texto oral ou escrito.
Nas produções A, B e C (ANEXOS 1, 2, 3) notamos que as crianças não
dominavam o alfabeto completo: conheciam algumas letras, mas não sua função. Ao contrário
disso, os textos recolhidos em junho nos mostraram claramente que as crianças alcançaram a
compreensão da função das letras do alfabeto. Elas estavam praticando nas palavras estudadas
114
que fonemas isolados ou combinados representam um ou dois grafemas (SCLIAR-CABRAL,
2009).
Observamos também que, nessa fase, as crianças que inicialmente trabalham com
a perspectiva do texto parecem não se preocupar com a grafia correta das palavras; suas
preocupações centram-se em desenvolver a concepção geral do texto. Em nosso olhar, nesse
momento inicial da alfabetização, a ortografia não é tão importante, pois a excessiva
preocupação com a grafia correta das palavras pode acarretar desinteresse pelo texto; nesse
momento o importante é valorizar a criação da criança. Acreditamos que, aos poucos, ela terá
acesso às regras ortográficas, mesmo porque essas regras fazem parte do currículo das séries
posteriores. No entanto, não se trata de negar ao aluno o acesso a tais regras, mas de
encaminhar situações de produção de textos criadas em sala de aula que possam oportunizar o
surgimento de diferentes questões dos alunos sobre a forma correta de grafar as palavras
(BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO1).
As crianças usam a fala para colocar no papel a mensagem do texto. Essa
ansiedade se reflete nas palavras “emendadas”, porque durante a escrita do texto elas usam a
fala para organizar os seus pensamentos. Dessa maneira, tomar consciência de que a
articulação dos traços da palavra escrita com função de distinguir significados ajuda o aluno a
fazer a separação entre as palavras e/ou entre consoantes e vogais (SCLIAR-CABRAL,
2003).
Apresentamos a produção B recolhida no mês de março, por apresentar algumas
características da turma. Trata-se do reconto da lenda intitulada Potyra - As lágrimas eternas.
Comparando a primeira produção com a segunda produção G, recolhida no mês de junho, da
mesma criança, nota-se um avanço significativo nas tentativas de escrita. Abaixo, as
produções B e G para melhor visualização e comparação.
115
Figura 17. Produção B. Realizada no mês de março.
Era uma vez índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu. Transcrição. Produção B.
116
Figura 18. Produção G. Realizada no mês de junho.
NEGRINHO DO PASTOREIO
1. E AR/ UM/ VSI/ O /MENNO/ RINÃO/ LIDA /MARIDA
2. COMO/ LIRASVO /DINERINHO/ COVIDOU /RA /UMMA
117
3. CORIDA/ I /E LIE/ PRA /UMMA /CORIDA
4. E /NOU /FINAL /DA /CORIDA /ELI /DEU /A /CORIDA
5. I /CODOU /RUCUPAEPACIDAU /UMA /CARA /DE /XICODE
6. COMU /EL /NÃO /XIP /ARAEDO /MARIRA/ ELE /DOMIPO
7. I/ O /CAVALO /SIS OU /NERIRO / ACODOU
8. I /O /MENIN/ DO /PASTOR /VOSE /E /LEVOU /UMM MA /DURA
9. RA/ ELE /FOI/ ROC RA/ O/ CAVALO/ I / LEVOU/ UMMA/ VE
10. LA / ADA /BIGO/ DA/ VELA /APARECEU/ UMA /LUES
11. I/ CADA/ CAVALO/ A PARESIA/ CAVALO/ O/ DOUCNO
12. O /ILO/ DO/ PATOP /ERO /SOU/ O /CAVALO/ I/ COREU/ CU
13. PAI/ RIMÃO /SODOU/ CVLO/ NO/ FUMIGERONNE
14. SIREOLO /PARA/ NOOROIDO/ A /FORMIGRU
15. IEL/ CPDOOU/ NO/ ANOS /I / ELI/ POUS NO LDOCO/ SINO3O
Transcrição. Produção G.
Na produção acima (figura 18), podemos observar que o traçado das letras
apresenta indícios de que, ao escrever, o aluno imprimiu uma “força” adicional ao lápis, tanto
no primeiro quanto no segundo texto. O texto consiste de 15 linhas. Não apresenta
parágrafos. Observamos que a criança já domina todo o repertório de letras do alfabeto e faz
várias tentativas de escrita para a mesma palavra (cavalo, cvl; uma, umma, ummma). Apesar
da repetição da palavra “corida”, a sua escrita permaneceu a mesma em todas as ocorrências;
a palavra foi grafada com a falta de um “R”, o que não implica alteração do significado da
palavra, por isso supõe-se que não se trata de uma variação linguística, mas de uma
dificuldade em relação à posição ocupada pelo fonema /r/ na palavra (SCLIAR-CABRAL,
2003b); isso não acontece com a escrita da palavra “uma”; verifica-se um conflito, ora
aparece com duplicação da letra “m”; ora aparece com triplicação de “m”, isto é, para grafar
o vocábulo “uma”, a criança adotou três formas diferentes: “uma”, “umma” e “ummma”.
Refletindo a representação da fala na escrita, a duplicação e triplicação da letra “m”
justificam-se na medida em que a criança ainda não percebe que a sonoridade na sílaba é o
que define uma consoante e uma vogal, isto é, a sílaba sonora “em princípio é emitida num
único impulso de expiração, mas num só impulso também se podem articular duas sílabas
sonoras, que ficam assim reunidas numa única expiratória ou dinâmica”. (MATTOSO
CÂMARA JR, 1978 p.218). Convém salientar que em ambos os casos não há
comprometimento na estrutura textual.
118
Observamos, ainda, que na primeira produção B a criança não se preocupou com
o título da lenda; já na segunda, embora tenha escrito o título em letra cursiva, o restante do
texto foi escrito em letra de imprensa maiúscula, o que significa que a letra cursiva ainda não
é do seu domínio. Outro ponto interessante é que na primeira produção necessitamos da
“leitura” do aluno para compreender a escrita, enquanto na segunda produção é possível
compreender a forma escrita do seu texto e sua intenção ao desenvolver suas ideias, e também
a estrutura do gênero textual.
Na transcrição é possível compreender a produção G e também verificar como as
palavras foram construindo-se à medida que o reconto avança para o final. Em algumas
palavras, como “EAR” (era), “VSI” (vez), “MENNO” (menino), “LIDA” (linda), “MARIDA”
(madrinha), “COVIDOU” (convidou), “ELI” foram suprimidos alguns grafemas e em outros
casos, como em “RA” (para), “SVO” (escravo), “NERIRO” (negrinho) “ROCRA” (procurar),
a sílaba também foi esquecida; também encontramos excesso de letras “DOUCNO” (dono);
ao mesmo tempo na construção da palavra “formigueiro”, observamos que a primeira
tentativa “FUMIGERO” parece basear-se na oralidade, enquanto a segunda tentativa
“FORMIGRU” mostra uma evolução significativa, pois o fonema /g/ antes da vogal não
posterior se converte em “gu” (SCLIAR-CABRAL, 2003b), então a criança para realizar esse
fonema, lança mão de um artifício sonoro “GRU”. Percebe-se ainda que a nasalização
assinalada pela letra “n” ainda não é do domínio da criança, como se vê em “lida” (linda),
“covidou” (convidou). Na escrita da palavra “BIGO” (pingo) parece que a criança ainda não
está segura em relação à conversão do fonema /p/ no grafema “p”, pois é nítida a dificuldade
da criança em distinguir graficamente o grafema “B” do grafema “P”. Mas essas inúmeras
tentativas de escrita são importantes para dominar as relações entre grafemas e fonemas
(BRASIL, PRÓ-LETRAMENTO, 2007. FASCÍCULO 1).
4.2.3 O aprendizado das relações entre fonemas e grafemas
Para analisar as produções tomamos como base que os grafemas representam os
fonemas, e também que fonemas são unidades sonoras distintas mais simples da língua que
entram na formação do vocábulo com a função de distinguir significados (SCLIAR-
119
CABRAL, 2003a, b). Das produções coletadas no mês de novembro, tentaremos resumir um
panorama desses casos para melhor compreensão da produção final.
Para Scliar-Cabral (2003b), a nasalização da vogal em final de sílaba que não
esteja em final de vocábulo, antes de /p/ e /b/ é marcada pelo grafema m; antes das demais
consoantes, a nasalização é assinalada pelo grafema n; trata-se de uma das conversões mais
econômicas do português, e no caso da codificação com m, a grafia também assinala a
antecipação da bilabialização dos gestos bucais. A esse respeito encontramos os casos “mudo”
(mundo), “sague” (sangue), “esinou” (ensinou), “plata” (planta), etc. Encontramos também a
nasalização assinalada graficamente pelos grafemas m e n, como nas palavras “muimto”
(muito), “anmava” (amava), “quenme” (queime), “quenmado” (queimado), etc. Encontramos
em menor número de ocorrências a vogal nasalizada /ã/ com ou sem acento, seguida ou não
de /S/ nas palavras “tupam” (Tupã), “maçam” (maçãs), “lam” (lã) etc.
Outra situação encontrada é em relação à troca de letras com a escrita semelhante
nas palavras grafadas com m e n, como em “irnã” (irmã), “con” (com), “senpre” (sempre),
“comseguiu” (conseguiu), “comtou” (contou) etc. Encontramos também a nasalização da
vogal /ã/ nos vocábulos marcados pela letra m e n “arrumãdo” (arrumando), “pegãdo”
(pegando), “quãdo”(quando), “manham” (manhã), etc. Nesses casos, há falta de exatidão na
correspondência das qualidades fônicas e seus respectivos valores; conforme Scliar-Cabral
(2003a, b), as letras m ou n marcam a nasalização das vogais em final de sílaba interna e em
final de sílaba que não esteja em final de vocábulo.
Na produção T abaixo, realizada no mês de novembro, a sequência
“chamadajatoba” o contínuo da fala foi retratado na escrita, daí a importância de trabalhar a
diferença entre fala e escrita na alfabetização, como foi mencionado na seção anterior. Nessa
mesma produção, a troca do grafema u no final da palavra foi encontrada nos textos com
muita frequência em situações diferentes. Por exemplo: “encontrol” (encontrou), “tomol”
(tomou), “colocol” (colocou), “rolbada” (roubada), “fugio” (fugiu), “vio” (viu), “comeo”
(comeu), “falol” (falou), “perguntol” (perguntou), subil” (subiu), “comeo” (comeu), “dividio”
(dividiu) entre outras (ANEXOS, 16, 20). No português do Brasil na maioria das regiões, não
se diferencia na fala o fonema /w/ do fonema /l/ no final de vocábulo. Nesse sentido, essas
ocorrências nos levam a inferir que os ditongos /iw/ e /ow/, nessas situações, foram grafados
“io”,“ol”, “il” e “eo”, refletindo a neutralização dos fonemas /u/ e /l/ em posição final de
sílaba.
120
Figura 19. Produção T. Realizada em novembro.
Igaranhã – A canoa encantada
O indeo escolheo a arvore chamadajatoba
para fazer canoa a o terminar não encontrol a canoa
ele pen sou agun animal destoril a canoa com o
roido ele tomou um susto e a canoa veio e diresão dele
121
com olhos e boca e colocol o nome de Igaranhã
o indio mandou na canoa e os primeiros peixes
a canoa comeo e as partes maiores era para
o indio não queria dividio as peixes e a
canoa come ele.
Transcrição. Produção T.
Constatamos a maior incidência de omissão de grafemas foi encontrada na
realização do fonema /R/. Por exemplo, “corida” (corrida) “enterou” (enterrou), “moreu”
(morreu), “interada” (enterrada) etc. De acordo com Scliar-Cabral (2003b), pela regra, as
realizações do fonema |R| entre vogal final de sílaba e vogal oral nasalizada que não a mais
alta, ou semivogal no ditongo crescente, arquifonema |R| escreve-se com o dígrafo “rr”.
Ao mesmo tempo verificamos que o sistema de escrita alfabética do português do
Brasil apresenta como característica essencial a correspondência entre fonemas e grafemas,
embora não exista a correspondência biunívoca entre alguns fonemas e grafemas. Scliar-
Cabral (2003a, b), apresenta situações em que a correspondência entre fonema e grafema não
é estavel, como no caso do fonema /s/ e o grafema “s”, porque o fonema /s/ pode ser
representado por diversos grafemas: “s”, “ss", “c”, “ç”, “x”, “z”, “sc”, "sç” e “xc”. Por
exemplo: “naseu” (nasceu), “paseava” (passeava),“pasava” (passava), “pasaro”(pássaro),
“creseu” (cresceu), “espozo” (esposo), “onsa” (onça), “paciava” (passeava), “faleseu”
(faleceu), “percebeu” (percebeu), “casique” (cacique), “escureseu” (escureceu), “cassique”
(cacique), “pasado” (passado), “ves” (vez), “falheseu” (faleceu) etc. Essas ocorrências podem
ser comprovadas nas produções E, H, J, K, N, O, P, Q, U (ANEXOS 5, 8, 10, 11, 14, 15, 16,
17, 21, respectivamente).
Na produção O abaixo, observamos o uso do arquifonema |S| em várias situações.
A criança oportunamente usou o grafema “s” em início de sílaba para grafar a palavra
“sosinha”, na qual foi empregado o grafema “s” para representar o grafema “z”; oposto disso,
na palavra “espozo” o grafema “s” foi substituído pelo grafema “z”. Em outra situação está a
palavra “felois” (veloz) em que o fonema /z/ foi trocado pelo fonema /s/ no final do vocábulo.
Em outra passagem a criança grafou a palavra “peçoa” substituindo o grafema “ss” pelo
grafema “ç”. Usou o grafema “s” para grafar a palavra “pasaro”. Observamos ainda na
palavra “fareseu” a troca do grafema “c” pelo grafema “s”. Essas ocorrências evidenciam a
falta de domínio da criança sobre as convenções ortográficas para representar o fonema /S/ em
contexto competitivo (SCLIAR-CABRAL, 2003a, b). É interessante observar ainda nessa
mesma produção, que a criança grafou três vezes a palavra “tupan”, conservando nas três
122
ocorrências a mesma escrita, sempre com a nasalização do fonema /ã/ representada em final
de sílaba pela letra n, situação em que, segundo Scliar-Cabral (2003a, b), as letras m e n têm o
mesmo valor sonoro do til. Outra faceta que encontramos foi a troca do grafema “r” pelo
grafema “l” como em “Ela” (era), e o contrário: a troca do grafema “l” pelo grafema “r” em
“fareseu” (faleceu).
Figura 20. Produção O. Realizada em novembro.
123
Ela uma vez uma índia que a cretitiva que quando as
peçoa mo ri virão em borboreta e espozo da Coacyaba
mo réu guanamby fico tristi e enfaleceu e Coacyaba
Morreu e Coacyaba fico sosinha e foi visitar a sua
mamai. Coacyaba em fareseu com a mote da sua mamai e
seu papai Guanamby pidiu pra o deus tupan istranfor
ma la em um pasaro felois e fote pra leva a sua firia
para o sell.
Deus tupoacyaba estranfor a Coacyaba em um beja-flor
Deus tupan a tenteu o desejo da coacyaba.
coacyaba asi coacyaba pote levar a sua firia pra
as duas pra la o sell.
Transcrição. Produção O.
Na produção K, abaixo, verificamos algumas dessas ocorrências. Comparando-a
com a segunda produção N, da mesma criança, ambas realizadas em junho, podemos verificar
a escrita das palavras. Na palavra “vose” (você) houve a troca do grafema “c” pelo grafema
“s”; evidências de que a criança está em processo de aprendizagem quanto ao domínio das
regras de codificação determinadas pelo contexto fonético. Percebemos a segmentação das
palavras “es ta va” (estava) e “ dei cho” (deixou) que aparece duas vezes, mas nas
ocorrências permanece a mesma escrita. Nesse caso, podemos inferir que a criança usou a fala
para auxiliá-la na escrita, uma vez que a separação silábica está correta. Comprovamos isso
pelas palavras “Mai” (mãe), que se repetiu quatro vezes no texto; nas quatro ocorrências,
percebemos a conservação da escrita. Em nosso entender, isso é um indício da presença da
oralidade no momento do registro. Observamos também a omissão de letras nas palavras
“dise” (disse) e “gaiou” (ganhou); em ambos os casos, isso está relacionado à percepção da
distinção do traço fonético num par mínimo e sua respectiva codificação grafêmica.
(SCLIAR-CABRAL, 2003a, b). Já no caso da palavra “casique” houve a troca do grafema “c”
pelo grafema “s”, o que é muito comum devido à realização do fonema /s/ em contexto
competitivo (SCLIAR-CABRAL, 2003b). Na palavra “fote” (forte) a letra “r” foi suprimida;
pela regra, a realização do fonema |R| em final de sílaba seguido de uma vogal posterior oral se
escreve com “r” (SCLIAR-CABRAL, 2003b), mas ficou evidente que isso ainda não é do
domínio da criança.
124
Figura 21. Produção K. Realizada em junho.
A LENDA DO GUARANÀ
MINDORÊ/ ERA/ UM/ MENINO/ MU
ITO/DO EM TE/.
E /TODOS/ FOI/ COM MONICADO/ PARA/
UMA/ LUTA/ E/ QUEIM/ PERDER/ MORRERA/ E /MINDO/
RE/. PERDEU / E /CASIQUE/:
- DISE/ VOSE/ MORRARA
125
/ SUA /MAI / DISE/ NÃO/
MATE/ MEU/ FILHO/ MEU/ MARIDO/ ERA /O /MAS/ FOTE/
E /SUA/ MAI /FOI /PARA/ FLORESTA/ E /MINDORE/
ES TAVA/ COM/ FOME/ E/ SUA / MAI /A CHO/FRUTA/
E RA /DURA / E/SUA / MAI /FEZ /UM/
CHA/ E / DEU/ U /CHA / / ELE/ FOI / CRE SE NO/
E /PULO NA/ OMÇA / E / EM COMTRO/ A /FILHA/
DO /CASIQUE/ E /FOI / NA /TRIBO /E / EM PLRO / PARA
E /O/ CASIQUE/ NÃO/ MATO/ E / IS PUÇOU/
E /SUA/ MAI /FOI /PARA/ FLORESTA/ E /MINDORE/
A/ LUTA/ ELE / DEI CHO/ VOÇE / TEM / QUE/
LUTA/ CO TRA/ OS / GERREIROS / MAIS/ FORTE/
ELE / LUTOU/ E /GAIOU / E / DEI CHO/ ELE/ VOU TA
Transcrição. Produção K.
126
Figura 22. Produção N. Realizada em junho.
A LENDA DO BOITATÁ E OS FASANDEROS
UM FAZENDERO QUE SICHAMAVA FRANCISCO QUE
QUE CUIDAVA DA FLORESTA E OS FAZENDEIROS PIGIGOSOS.
127
QUE FICAVA DEITADOS NOBENBOM
QUANDO ESCURESEU ELES FOI CON PRAR GASULINAS
PARA QUENMAE A FLORESTA.
-- E FALOU DETRAS DO MATO:
NÃO QUENME E PER GUNTO QUEIN ESTA AI
SOEU BOI TATA E SAI QUENMANDO TODO MUNDO
A CA BOU A ES TORIA.
Transcrição. Produção N.
A análise mostra que o modo de aplicação das atividades relacionadas ao sistema
alfabético, privilegiando a consciência fonológica, pode influenciar diretamente o resultado.
Concordar com a importância dos aspectos fonológicos presentes neste estudo implica
compreender a relação entre fonema-grafema, e também transformar o “erro” ortográfico em
aprendizado, isto é, compreender o contexto da aprendizagem da escrita.
Registramos muitas tentativas de escrita “correta” e percebemos que alguns casos
são recorrentes: omissão e troca de letras, apoio na oralidade (que produz algumas distorções),
segmentação ou junção de palavras ou letras, terminação das palavras e nasalidade fonética,
entre outros. Consideramos que o trabalho com o gênero de texto pode minimizar essas
dificuldades iniciais e preparar as crianças para uma fase posterior. Dessa maneira, nesta
última fase de análise, ratificamos a relevância entre a produção de texto e o sistema
alfabético, sendo imprescindível que ambos façam parte das atividades desde a primeira série.
128
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É consensual entre muitos autores (VYGOTSKY, 1998, 1999; LURIA, 1998;
SCLIAR-CABRAL, 2003a, 2003b, 2009; SOUZA, 2003; GONTIJO, 2008, 2003;
COLELLO, 1995; BORTOLOTTO, 2001; LEMLE, 2003; CARVALHO, 2005; FERREIRO,
2006; MASSINI-CAGLIARI, 2001 entre outros) que as crianças chegam à escola com uma
bagagem própria de experiência e algumas já dominando uma variedade de usos do sistema
escrito, entre os quais rótulos, propagandas, panfletos, placas etc, enquanto outros alunos
apresentam menos familiaridade com o sistema escrito, pois seu entorno sociocultural oferece
poucas possibilidades de interação com a leitura e a escrita. Desse modo, grande é a
diversidade de saberes circulando no ambiente social da criança, inclusive na sala de aula.
Esses saberes evidenciados no cotidiano geralmente são aprendidos por experiência própria
com a participação daqueles que fazem parte da vida da criança, eles estão relacionados à
comunidade na qual a criança está inserida, uma sociedade urbanizada, com possibilidades de
interação em diversas situações mediadas por experiências com a linguagem escrita. Já o
processo de ensino-aprendizagem institucionalizado ocorre na escola.
Antes do aporte do texto nas práticas escolares, os professores da primeira série
priorizavam os aspectos gramaticais e ortográficos das palavras e das frases; ou seja, no início
da escolarização, a ênfase recaía sobre o aprendizado do código, sem a preocupação de
estabelecer vínculos entre as práticas sociais e as práticas escolares. Hoje, entre os professores
já se percebe uma movimentação, ainda discreta, no sentido de promover intervenções com
base nas características específicas do gênero que está sendo estudado na escola. Os
professores começam a se conscientizar que somente os estudos sobre o ensino do sistema
alfabético parecem insuficientes para atender às necessidades do processo da alfabetização.
Nesta pesquisa, descrevemos a proposição de encaminhamento metodológico para
o processo de apropriação da língua escrita em uma classe de alfabetização, tendo a lenda
como gênero-instrumento na ação didático-pedagógica. Desse objetivo geral, desdobraram-se
três objetivos específicos: identificar características do gênero textual lenda que justificam seu
uso com esse público; descrever o encaminhamento procedimental da atividade com o gênero
lenda no dia a dia da alfabetização, considerando a dupla via – sistêmica e textual – desse
processo; e, por último, identificar as implicações desse encaminhamento metodológico.
129
Assim sendo, descrevemos o encaminhamento metodológico adotado nesta
abordagem para apropriação da língua materna. Dada a impossibilidade de descrever todas as
atividades aplicadas, concentramo-nos em apresentar um panorama acerca do gênero lenda
em sala de aula de uma primeira série, argumentando sobre a pertinência de tal escolha e
apresentando atividades de linguagem, tal como sugerido pelos PCNs no volume de língua
portuguesa para o ensino da língua materna.
Conforme já visto aqui, registramos em nosso corpus de pesquisa as atividades
iniciais para recontar o gênero lenda. As atividades foram direcionadas e envolvem a
linguagem escrita. As atividades que objetivaram o reconto da lenda coletiva e
individualmente foram descritas na análise. Consideramos a organização das situações de
escrita observadas em sala de aula, tomando como referência o gênero lenda para a aplicação
das atividades. Essa escolha foi definida com base nas ideias desenvolvidas por Vygotsky
(1999, 1998, 2008) em relação à aprendizagem da linguagem escrita, e em Bronckart (2003)
no que concerne ao conceito de texto e gêneros textuais nas relações comunicativas, bem
como nos estudos de Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004) com relação à sequência didática.
Organizada a proposta de trabalho, concluímos que as atividades de reconto
privilegiaram a interação professor-aluno e aluno-aluno. Enfim, com esse conjunto de
atividades deu-se início ao processo de aprendizagem da linguagem escrita. Essas atividades
permitiram antecipar respostas, pois frequentemente era requisitado das crianças o que já
haviam aprendido sobre o gênero.
As atividades elaboradas contemplaram a linguagem verbal e a não verbal. Por
exemplo: embora à primeira vista a dramatização não envolvesse diretamente a escrita, as
crianças foram levadas a discutir a organização do gênero lenda e posteriormente aplicar esse
ensinamento no reconto escrito. Em relação à linguagem não verbal, procuramos focalizar os
personagens e seus aspectos faciais, a caracterização, a ilustração e o cenário para a
disposição da imagem, a linguagem oral, a textual, a gestual e as ilustrações dos livros.
Também nos baseamos na sequência didática proposta por Dolz, Schneuwly,
Noverraz (2004), que contribuiu para desenvolver as representações no contexto do gênero
lenda e colaborou para a reflexão sobre os valores implícitos nessas narrativas,
contextualizando-os em situações comunicativas. Convém salientar que as atividades
destinadas a caracterizar esse gênero serviram para enfatizar sua função e levar os gêneros
como opção para as práticas pedagógicas.
Dessa maneira, na busca de como ensinar a língua materna através do gênero
lenda, empreendemos uma reflexão sobre os valores, os princípios morais e, ao mesmo
130
tempo, propiciamos à criança subsídios para o registro de conhecimentos, cuja finalidade é
desenvolver o complexo sistema alfabético em uma abordagem adequada aos propósitos deste
trabalho. Descrevemos o processo tanto pelo viés do gênero quanto pelo viés do sistema
alfabético. Procuramos utilizar atividades para estabelecer os princípios teóricos, articulando-
os aos procedimentos, visando a outros domínios do ensino da língua materna. Impõem-se
aqui dois esclarecimentos: a) as atividades não foram rigorosamente aplicadas à sequência
descrita, mesmo porque algumas se repetiram ao longo da sua aplicação e outras foram
criadas; b) existiu uma preocupação com a aceitação das atividades, porque entendemos que a
criança participa do seu processo de aprendizagem, exigindo flexibilidade no planejamento
pedagógico para contemplar as diversidades encontradas em sala de aula.
Ao examinar as produções escritas das crianças, nota-se que o processo escolhido
facilitou o entendimento da organização do gênero lenda, desenvolvendo as suas
características. Do ponto de vista metodológico, infere-se que inicialmente as crianças não
percebem a funcionalidade da linguagem escrita e ainda ignoram a função das letras no seu
aprendizado. Os dados revelam ainda que as atividades contribuíram para desenvolver
capacidades de escrita combinadas à produção de texto. Cada criança representou as suas
ideias por meio de sinais gráficos, isto é, ao final do processo percebeu-se que as crianças
evoluíram de uma escrita sem significado para uma escrita mais aprimorada. As estratégias e
as mediações colaboraram para organizar e sistematizar o trabalho em sala.
Assim, este estudo corroborou os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua
Portuguesa (PCNs, 1997), que têm o mérito de oferecer novas perspectivas para o ensino de
línguas. Além do mais, constitui-se em grande avanço ao apresentar os gêneros como objeto
de ensino-aprendizagem, relacionando-os às práticas sociais. Portanto, ao propor os gêneros
textuais como objeto de ensino para desenvolver a escrita, este estudo pode fornecer aos
educadores um instrumento necessário para incrementar a compreensão da leitura e da escrita,
sobretudo a prática de produção textual.
Limitamo-nos aqui a descrever o encaminhamento teórico-metodológico de uma
classe de alfabetização, mas cabe um aprofundamento maior, através de pesquisas específicas
sobre os gêneros nas modalidades de ensino oferecidas para que possamos detectar e evitar os
eventuais equívocos, os problemas, as necessidades e as singularidades de tal prática de
ensino. Diante dessa realidade, enfatizamos a importância da fundamentação teórica em nossa
pesquisa, principalmente no processo ensino-aprendizagem, buscando ações que nos ajudaram
a superar as dificuldades encontradas no ambiente escolar. Sugerimos o gênero lenda como
131
uma das possibilidades nas práticas docentes, porquanto sua utilização nos levou a comprovar
que ele pode facilitar a compreensão da língua portuguesa.
132
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SOUZA, Lusinete Vasconcelos. As proezas das crianças em textos de opinião. Campinas,
São Paulo: Mercado das letras, 2003.
SCHNEUWLY, Bernardo. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e
ontogenéticas. SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na
135
Escola. Tradução e organização: Roxane Rojo; Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de
Letras, 2004.
SCHNEUWLY, Bernardo; DOLZ, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução
e organização: Roxane Rojo; Glaís Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.
SCLIAR-CABRAL, Leonor. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São
Paulo: Contexto. 2003ª.
____. Guia prático de alfabetização. São Paulo: Contexto. 2003b.
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1999.
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136
ANEXOS
137
ANEXO 1 – PRODUÇÃO A
Produção A. Realizada em março.
Era uma vez índio.
Ele foi pra guerra e morreu.
138
ANEXO 2 – PRODUÇÃO B
Produção B. Realizada em março.
Era uma vez índia que casou com um guerreiro e ai ele morreu.
139
ANEXO 3- PRODUÇÃO C
Produção C. Realizada em março.
Era uma vez uma índia chamada Potyra.
Ela era apaixonada por Itagiba.
Itagiba foi pra guerra e morreu.
140
ANEXO 4 – PRODUÇÃO D
Produção D. Realizada em junho.
141
ANEXO 5 – PRODUÇÃO E
Produção E. Realizada em junho.
142
ANEXO 6 – PRODUÇÃO F
Produção F. Realizada em junho.
143
ANEXOS 7 – PRODUÇÃO G
Produção G. Realizada em junho.
144
ANEXO 8 – PRODUÇÃO H
Produção H. Realizada em novembro.
145
ANEXO 9 – PRODUÇÃO I
Produção I. Realizada em novembro.
146
ANEXO 10 – PRODUÇÃO J
147
Produção J. Realizada em novembro.
148
ANEXO 11 – PRODUÇÃO K
Produção K. Realizada em novembro.
149
ANEXO 12- PRODUÇÃO L
Produção L. Realizada em novembro.
150
ANEXO 13 – PRODUÇÃO M
Produção M. Realizada em novembro.
151
ANEXO 14 – PRODUÇÃO N
Produção N. Realizada em novembro.
152
ANEXO 15 – PRODUÇÃO O
Produção O. Realizada em novembro.
153
ANEXO 16 – PRODUÇÃO P
Produção P. Realizada em novembro.
154
ANEXO 17 – PRODUÇÃO Q
Produção Q. Realizada em novembro.
155
ANEXO 18 – PRODUÇÃO R
Produção R. Realizada em novembro.
156
ANEXO 19- PRODUÇÃO S
Produção S. Realizada em junho.
157
ANEXO 20 – PRODUÇÃO T
Produção T. Realizada em novembro.
158
ANEXO 21 – PRODUÇÃO U
Produção U. Realizada em novembro.
159
ANEXO 22- Coacyaba - O Primeiro Beija-Flor
Walde-Mar Andrade e silva
Os índios do Amazonas acreditam que as almas dos mortos transformam-se em
borboletas. É por esse motivo que elas voam de flor em flor, alimentando-se e fortalecendo-se
com o mais puro néctar, para suportarem a longa viagem até o céu.
Coacyaba, uma bondosa índia, ficara viúva muito cedo, passando a viver
exclusivamente para fazer feliz sua filhinha Guanamby. Todos os dias passeava com a menina
pelas campinas de flores, entre pássaros e borboletas. Dessa forma pretendia aliviar a falta que
o esposo lhe fazia. Mesmo assim, angustiada, acabou por falecer.
Guanamby ficou só e seu único consolo era visitar o túmulo da mãe, implorando
que esta também a levasse para o céu. De tanta tristeza e solidão, a criança foi enfraquecendo
cada vez mais e também morreu. Entretanto, sua alma não se tornou borboleta, ficando
aprisionada dentro de uma flor próxima à sepultura da mãe, para assim permanecer ao seu
lado. Enquanto isso, Coacyaba, em forma de borboleta, voava entre as flores, colhendo seu
néctar. Ao aproximar-se da flor onde estava Guanamby, ouviu um choro triste, que logo
reconheceu. Mas, como frágil borboleta, não teria forças para libertar a filhinha. Pediu, então,
ao Deus Tupã que fizesse dela um pássaro veloz e ágil, que pudesse levar a filha para o céu.
Tupã atendeu ao seu pedido, transformando-a
num beija-flor, podendo, assim, realizar o seu desejo.
Desde então, quando morre uma criança índia órfã de mãe, sua alma permanece
guardada dentro de uma flor, esperando que a mãe, em forma de beija-flor, venha buscá-la,
para juntas voarem para o céu, onde estarão eternamente.
160
ANEXO 23 – As lágrimas de Potira
Theobaldo Miranda Santos
A descoberta das minas de diamantes, no Brasil, deu origem a diversas lendas.
Vejamos uma das interessantes:
Há muito tempo, vivia à beira de um rio uma tribo de índios. Dela fazia parte um
casal muito feliz: Itagibá e Potira. Itagibá, que significa braço forte, era um guerreiro robusto
e destemido. Potira, cujo nome quer dizer flor era uma índia jovem e formosa.
Vivia o casal tranqüilo e venturoso, quando rebentou uma guerra contra uma
tribo vizinha. Itagibá teve de partir para a luta. E foi com profundo pesar que se despediu da
esposa querida e acompanhou os outros guerreiros. Potira não derramou uma só lágrima, mas
seguiu, com os olhos cheios de tristeza, a canoa que conduzia o esposo, até que a mesma
desapareceu na curva do rio.
Passaram-se muitos dias sem que Itagibá voltasse à taba. Todas as tardes a
índia esperava, à margem do rio, o regresso do esposo amado. Seu coração sangrava de
saudade. Mas permanecia serena e confiante, na esperança de que Itagibá voltaria à taba.
Finalmente, Potira foi informada de que seu esposo jamais regressaria. Ele
havia morrido como um herói, lutando contra o inimigo. Ao ter essa notícia, Potira perdeu a
calma que mantivera até então e derramou lágrimas copiosas.
Vencida pelo sofrimento, Potira passou o resto de sua vida, à beira do rio,
chorando sem cessar. Suas lágrimas puras e brilhantes misturavam-se com as areias brancas
do rio.
A dor da índia impressionou Tupã, o rei dos deuses. E este, para perpetuar a
lembrança do grande amor de Potira, transformou suas lágrimas em diamante. Daí a razão
pela qual os diamantes são encontrados entre os cascalhos dos rios e regatos. Seu brilho e sua
pureza recordam as lágrimas de saudade da infeliz Potira.
161
ANEXO 24 - Igaranhã- A canoa encantada
Walde-Mar de Andrade e Silva
Um índio da tribo Kamaiurá iniciou a construção de uma canoa com a casca do
jatobá. Ao terminá-la, retornou para junto de sua mulher, que há pouco dera à luz, lá
permanecendo por alguns dias. Algum tempo depois, voltando à mata onde havia deixado a
canoa, não mais a encontrou. Entristeceu-se e, pensativo, tentou imaginar o que ocorrera.
Talvez a tivessem roubado ou algum animal a tivesse destruído. Como poderia pescar agora?
Absorto, despertou com um ruído. Foi grande o seu espanto ao perceber que em
sua direção movimentava-se lentamente, por si mesma, uma canoa, a mesma que ele
construíra, agora com vida e olhos na proa. Talvez houvesse se transformado em um animal,
pensou. Deu-lhe, então, um nome: Igaranhã - o Jacaré.
Entrou na canoa, ordenando-lhe que seguisse em direção ao lago. Assim que
Igaranhã tocou a água, cobriu-se com muitos peixes, dos mais variados tipos, cores e
tamanhos, que saltavam sem cessar da água para dentro da embarcação. Os primeiros, a
própria canoa devorou, ficando, no entanto, a maior parte para o índio.
À sua mulher, maravilhada, falou apenas que havia encontrado um lugar ideal
para pesca.
Dias depois, retornando ao mesmo local, nada encontrou sob a frondosa árvore.
Como por encanto, a canoa surgiu novamente da mata, dirigindo-se ao lago, e o fenômeno
repetiu-se. O índio, ambicioso, recolheu rapidamente os peixes, sem deixar a Igaranhã sua
parcela do alimento. Esta, então, muito contrariada, acabou por devorar o seu próprio dono.
162
ANEXO 25 – O menino e a onça – Como os Kaiapós conquistaram o fogo
Walde-Mar Andrade e Silva
Há muito tempo, muito tempo, os índios não conheciam o fogo, alimentando-se
de polpa de madeira, frutos silvestres e carne, que preparavam sobre pedras aquecidas pelo
Sol.
Certo dia, dois meninos Kaiapós caminhavam pela floresta, quando um deles
percebeu, sobre um rochedo, um ninho de araras-vermelhas. Pediu ajuda ao companheiro para
encostar um tronco na rocha, conseguindo assim alcançar o ninho. Mas, ao subir, esbarrou
numa pedra, que caiu e feriu o amigo. Com raiva, o menino atingido tirou dali o tronco,
deixando o outro sem meios para descer.
Após algumas horas, apareceu no local uma onça macho. Ao ver a sombra do
menino, a onça pôde localizá-lo sobre o rochedo, ao lado do nunho das araras-vermelhas,
pássaros que sabiam carregar o fogo Em troca de ajuda, a onça pediu que o menino lhe
jogasse os filhotes. Concordando com a proposta, o índio pôde finalmente descer.
Por haver permanecido muito tempo exposto ao calor, o menino ficou corado,
fazendo a onça crer que se tratava do filho do Sol. Convidou-o para conhecer sua toca, onde a
onça fêmea passava o dia assando carne ao fogo e fiando algodão. Apresentou a ela, pedindo
que o tratasse muito bem, e saiu em seguida para caçar. A fêmea, entretanto pôs-se a ameaçá-
lo, rugindo e lhe mostrando os dentes.
Ao tomar conhecimento disso, a onça macho resolveu ensinar o menino a usar o
arco e flecha para que pudesse se proteger. No dia seguinte, assim que o macho saiu, a fêmea
tentou atacar o índio, que com muita habilidade, matou a inimiga à primeira flechada.
Ao voltar, a onça macho soube o que ocorrera, aprovando e elogiando o menino,
que facilmente tudo havia aprendido. Pediu-lhe que voltasse à sua aldeia, levando o fuso e
uma tocha, e cuidasse para que a tocha não se apagasse.
Regressando aos seus, o indiozinho os ensinou a usar o fogo e depois a fiar o
algodão.
163
Em comemoração, fizeram uma grande festa, na qual o biju, a mandioca, a carne e
o peixe foram preparados ao fogo, que mantiveram aceso por muito tempo, alimentando-o
com lenha seca.
Certo dia, porém, a chuva apagou a chama, deixando todos muito tristes. Então,
Begorotire, o homem-chuva, desceu do céu para ensinar-lhes a produzir fogo com dois
pedaços de madeira: segurando, com os pés, as extremidades de um deles, que deveria Ter um
orifício no centro, faria girar entre as mãos o outro, encaixando no primeiro, até o fogo surgir.
Nesse dia, voltou a alegria entre os índios Kaiapós.
164
ANEXO 26 - Arutsãm – o sapo astucioso
Walde-Mar Andrade e Silva
O sapo Arutsãm foi ao encontro de seu cunhado onça, para dele tomar
emprestado um arco e uma gaita de bambu.
Aproximando do seu território, foi alertado por outros animais, com ironia, do
perigo que estava correndo. Mesmo assim, prosseguiu.
A onça mostrou-se gentil ao recebê-lo, convidando-o para um banho no lago,
cuidando, porém, para que sempre caminhasse atrás do convidado. Arutsãm, desconfiado,
manteve-se atento.
Ao anoitecer, a onça esperou ansiosa que o cunhado adormecesse, aguardando
o momento ideal para devorá-lo.
Arutsãm, entretando, passou, sobre seus olhos, a parte fosforescente de um
vaga-lume, ludibriando assim a onça, que o julgava acordado e não ousou atacá-lo.
No dia seguinte, já de posse do arco e da gaita de bambu, despediu-se
agradecido de seu anfitrião.
Esperto que era, espalhou formigas no caminho, que, atacando a onça, faziam
com que ela batesse as patas no chão, acusando sua proximidade.
Arutsãm seguia o seu caminho. Passava agora pelo território das serpentes, a
quem seu inimigo incansável pedira que o apanhassem. O astuto sapo atraiu-as até o lago,
saltando velozmente para a outra margem, escapando à sua perseguição.
Alcançando a aldeia das cobras, apressaram-se em quebrar todas as panelas de
barro de suas fêmeas. Ao verem o estrago, estas, o perseguiram enfurecidas. Nesse momento,
partiu Arutsãm para seu grande salto: como num toque de mágico, pulou a Lua, onde,
zombeteiro, está eternamente a tocar sua gaita de bambu.
Ainda hoje, em noites claras, a onça contempla a Lua, lamentando o fracasso
do seu traidor.