UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO PÚBLICO MESTRADO
SHEILLA MARIA DA GRAÇA COITINHO DAS NEVES
PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS - ALTERNATIVA DE PUNIÇÃO JUSTA: UMA ANÁLISE DOS FINS DAS PENAS
RESTRITIVAS DE DIREITOS À LUZ DA TEORIA DIALÉTICA UNIFICADORA DE CLAUS ROXIN
Salvador
Agosto 2007
SHEILLA MARIA DA GRAÇA COITINHO DAS NEVES
PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS - ALTERNATIVA DE PUNIÇÃO JUSTA: UMA ANÁLISE DOS FINS DAS PENAS
RESTRITIVAS DE DIREITOS À LUZ DA TEORIA DIALÉTICA UNIFICADORA DE CLAUS ROXIN
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Auxiliadora Minahim
Salvador 2007
TERMO DE APROVAÇÃO
SHEILLA MARIA DA GRAÇA COITINHO DAS NEVES
PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS - ALTERNATIVA DE PUNIÇÃO JUSTA: UMA ANÁLISE DOS FINS DAS PENAS
RESTRITIVAS DE DIREITOS À LUZ DA TEORIA DIALÉTICA UNIFICADORA DE CLAUS ROXIN
Dissertação julgada aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito,
Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:
Maria Auxiliadora Minahim _________________________________________ Doutora em Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Doutora de Direito, Universidade Federal do Paraná (UFPR) Alessandra Mascarenhas Prado_______________________________________ Doutora em Direito Penal, Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC)
Cláudio Alberto Gabriel Guimarães ___________________________________ Doutor em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco Doutor em Criminologia pela Universidade Federal de Santa Catarina
Salvador, 21 de setembro de 2007.
A
André, Daniel e Thereza Cristina, filhos queridos, por terem me transformado em uma pessoa mais justa e humana.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por ter-me permitido a realização da pesquisa.
À Maria Auxiliadora Minahim, orientadora sábia e dedicada, pela forma profunda e humana de ministrar o conhecimento.
A Luiz Carlos, meu esposo, pela paciência, companheirismo e apoio fundamental na infra-estrutura familiar e doméstica.
À Leda Terezinha, minha mãe, por ter me ensinado a importância da aquisição do saber.
À Andréia Cristina, minha irmã, pelo auxílio, esforço e incansável dedicação dispensados.
À Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto, Procurador Geral de Justiça do Estado da Bahia, Hermenegildo Virgílio de Queiroz, Procurador Geral de Justiça Adjunto, Washington Araújo Carijé, Corregedor Geral do Ministério Público da Bahia, José Gomes Brito, Ouvidor Geral do Ministério Público da Bahia, Elna Leite Ávila Rosa, José Cupertino Aguiar Cunha, Leonor Salgado Atanázio, Miria Valença Gois, Oseneide de Calazans Barbosa, Regina Helena Ramos Reis, Rita Maria Silva Rodrigues e Vera Lúcia de Azeredo Coutinho, Procuradores de Justiça integrantes do Conselho Superior do Ministério Público - Gestão 2004-2006, pelo apoio à minha qualificação profissional, autorizando o afastamento parcial de minhas atividades para a conclusão do curso de Mestrado.
A Rômulo de Andrade Moreira, colega do Ministério Público, pelo grande estímulo e suporte bibliográfico.
À Nágila Maria Sales Brito, colega do Ministério Público, pelos úteis conselhos e ensinamentos na Metodologia da Pesquisa Científica.
À equipe de bibliotecárias do Ministério Público da Bahia, pela valiosa colaboração na pesquisa realizada.
A Leandro Fon Simões, assessor do Ministério Público, pelo acúmulo de tarefas resultante das horas em que me dediquei aos estudos.
A João Carlos Rodrigues Silva Filho, através de quem foi possível a realização das entrevistas. Ao corpo técnico de funcionários da Central de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas da Bahia: Andréa de Araújo, assistente social, Maria Célia Vaz, psicóloga, e Fernanda Pontual, bacharela em Direito, pelas ricas e ilustradas entrevistas concedidas.
Aos magistrados Jefferson Alves de Assis, Jaqueline de Andrade Campos Reges, Cássio Miranda; ao advogado Sebastian Borges de Albuquerque Mello; e aos colegas do Ministério Público Vera Lúcia de Azeredo Coutinho, Arx Tadeu e Maria Luiza Pamponet, pela confiança em prestarem seus sábios depoimentos.
“O fim das penas não é outro senão impedir o réu de causar novos danos a seus cidadãos e de demovê-lo de praticar outros iguais. As penas, portanto, e
o método de infligi-las devem ser escolhidos de modo que, guardando as proporções, causem a impressão mais eficaz e duradoura nos homens, e a
menos penosa no corpo do réu.”
Cesare Beccaria. Dos delitos e das Penas.
RESUMO
A pena pública vem registrando, ao longo dos séculos, sensível mudança em sua finalidade e execução. Sanções cruéis foram aplicadas, durante grandes períodos, na história da humanidade, tais como as mutilações, açoites, ferrete, galés e outras dessa natureza, até se chegar à pena privativa da liberdade, a qual se mostrou inapta à ressocialização dos condenados. Congressos internacionais são realizados com a finalidade de buscar uma forma mais humana de repressão estatal, nos quais começam a ser delineadas mudanças nas regras punitivas, através de alternativas ao regime prisional. Surgem, em diversos países, penas alternativas à prisão, e, no Brasil, a Lei 7 209/84 reformou a Parte Geral do Código Penal em que estão editadas a prestação de serviço à comunidade, a interdição temporária de direito e a limitação de fim de semana. A Lei 9 714/98 estabeleceu a prestação pecuniária e a perda de bens e valores. Surgem outras penas restritivas de direitos, através de leis especiais, o que demonstra a aceitação no sistema penal brasileiro das penas alternativas. Passa-se, então, a questionar sobre a existência de certo exagero do legislador na edição dessas leis, levantando-se a seguinte problemática: as penas restritivas de direitos são uma proposta adequada para a punição de pequeno e médio potencial ofensivo? São elas eficazes no sentido da realização dos fins retributivos, preventivos gerais e especiais da pena? A hipótese que restou comprovada é a de as penas restritivas de direitos são adequadas para a punição de infratores de pequeno e médio potencial ofensivo, a depender das condições subjetivas, pois possuem plena eficácia, ao realizar os fins gerais e especiais da pena, mas dependem de uma criteriosa aplicação judicial e de uma infra-estrutura de execução. Apurou-se, ainda, que a sistemática de cominação, aplicação e execução das penas restritivas de direitos encontra muitos pontos em comum com a Teoria Dialética Unificadora, de Claus Roxin, tomada, na pesquisa, como marco de justificação do poder do Estado de imposição de penas. Concluiu-se, ao final, que a justa punição em crimes de pequeno e médio potencial ofensivo se faz com sanções restritivas de direitos, e ficou reservada a prisão para autores de crimes graves, agentes perigosos e/ou habituais, enquanto outras sanções eficazes não surgirem no contexto punitivo. Palavras-chave: penas restritivas de direitos; eficácia; Teoria Dialética Unificadora.
ABSTRACT
Along the centuries, public penalty has been going through significant change in its purpose and execution. During large periods in the history of mankind, cruel sanctions were applied, such as mutilations, flogging, branding irons, forced labor at galleys and other ones of the same nature until getting to the freedom-taking penalty, which showed not to be suitable to the resocialization of the ones who were convicted. International congresses are held with the intention of searching for a more humane way of repression by the state and by means of these congresses changes start to arise in punishing rules, through alternatives to the prison disciplinary rules. In several countries, penalties that are alternative to prison arise and, in Brazil, Law 7 209/84 reformed the General Part of the Penal Code, in which community service rendering, temporary interdiction of rights and weekend limitation are foreseen. Law 9 714/98 established the pecuniary provision and the loss of assets and values. Other penalties restricting rights arise by means of special laws, which demonstrate their acceptance in the Brazilian penal system of alternative penalties. We start then questioning the existence of certain exaggeration of the legislator when issuing these laws and the following problem is brought up: are the penalties that restrict rights an adequate proposal for the small and medium offensive potential punishment? Are they efficient in the sense of the accomplishment of the retribution, general preventive and special purposes of the penalty? The hypothesis proven is that the penalties that restrict rights are adequate to punish transgressors of small and medium offensive potential, depending on the subjective conditions, since they have total efficacy, when accomplishing the general and special purposes of the penalty, but they depend on clear-sighted judicial application and execution infrastructure. It was also found that the system applied in the decision, application and execution of penalties that restrict rights has many points in common with the Unifying Dialectical Theory, by Claus Roxin, which was taken in research as sign of justifying the State power to impose penalties. In the end, the conclusion was that the just punishment related to crimes of small and medium offensive potential is applied by means of sanctions that restrict rights, and prison was reserved for the authors of grave crimes, for dangerous and / or usual agents, while other efficient sanctions do not arise in the punishing context. Keywords: penalties that restrict rights; efficacy; Unifying Dialectical Theory.
LISTA DE FIGURAS Figura 1 Número de Processos novos recebidos por ano – período: 2001 a 2005 (1.semestre) 189 Figura 2 Casos acompanhados pela Equipe Psicossocial 189 Figura 3 Atendimentos efetuados pela Equipe Psicossocial por mês 190 Figura 4 Número de Processos por tipo de Pena Recebidos no 1º Semestre 191 Figura 5 Tipo de Pena 192 Figura 6 Sexo Feminino e Masculino 207 Figura 7 Escolaridade 208 Figura 8 Faixa Etária 208 Figura 9 Tipos de crime 209 Figura 10 Percentual de penas aplicadas 210
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Medidas restritivas de direitos aplicadas no RJ 185 Tabela 2 Penas restritivas de direitos aplicadas no RJ 186 Tabela 3 Serviços realizados com penas e medidas alternativas no RJ 187 Tabela 4 Serviços de execução de penas e medidas alternativas no Brasil 194 Tabela 5 Resultados da prestação de serviços à comunidade em Salvador 206 Tabela 6 Resultados da prestação pecuniária em Salvador 206 Tabela 7 Penas alternativas aplicadas ou propostas em Salvador 210 Tabela 8 Interdições temporárias de direitos aplicadas ou propostas em Salvador 211
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AJURIS Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul CEAPA Central de Penas e Medidas Alternativas CEAPA/BA Central de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas da Bahia CGPMA Coordenação Geral do Programa de Fomento às Penas e Medidas Alternativas CENAPA Central Nacional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas CAOPEPMA Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Execução Penal e Medidas Alternativas do Ministério Público do Estado Do Paraná CEPA Central de Execução das Penas Alternativas da Comarca de Curitiba CEPMA Central de Penas e Medidas Alternativas CONAPA Comissão Nacional do Programa de Penas e Medidas Alternativas DEPEN Departamento Penitenciário Nacional FDE Fundação para o Desenvolvimento para a Educação NOAD Núcleo de Orientação e Atendimento a Dependentes Químicos Unafri Instituto das Nações Unidas Africanas para a Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente SEBES Secretaria do Bem-Estar Social do Município de São Paulo UNIFACS Universidade Salvador VEPA Vara de Execuções de Penas Alternativas VEPMA Vara de Execuções Penais de Penas e Medidas Alternativas
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 13
2 ORIGENS E FINS DA PENA 18
2.1 BREVES DADOS HISTÓRICOS SOBRE A ORIGEM E A EVOLUÇÃO DA
PENA
18
2.2 OS FINS DA PENA: TEORIAS DESLEGITIMADORAS 35
2.3 TEORIAS LEGITIMADORAS 43
2.3.1 Teorias Absolutas ou Retributivas 43
2.3.2 Teorias Relativas ou Utilitárias 47
2.3.2.1 Teoria da Prevenção Geral Negativa 49
2.3.2.2 Teoria da Prevenção Geral Positiva 52
2.3.2.3 Teoria da Prevenção Especial 55
2.3.3 Teorias Ecléticas ou Mistas 59
2.3.3.1 Teoria Dialética Unificadora 61
3 O SURGIMENTO DE UMA FORMA ALTERNATIVA DE PUNIÇÃO 70
3.1 DECLÍNIO DA PENA DE PRISÃO PARA OS CRIMES MENORES 70
3.2 ORIGEM DAS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS NO PANORAMA
LEGISLATIVO INTERNACIONAL
77
3.3 UMA ANÁLISE DO SISTEMA ALTERNATIVO À PENA DE PRISÃO NA
LEGISLAÇÃO DE OUTROS ESTADOS
86
4 A RESPOSTA PENAL ADEQUADA AOS CRIMES DE PEQUENO E
MÉDIO POTENCIAL OFENSIVO
102
4.1 AS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS ESTABELECIDAS NA
LEGISLAÇÃO PÁTRIA: COMINAÇÃO, APLICAÇÃO E EXECUÇÃO. UMA
ANÁLISE DE SUA ADEQUAÇÃO E EFICÁCIA
4.1.1 Surgimento e expansão das penas restritivas de direitos
4.1.2 Sistemática de cominação, aplicação e execução das penas restritivas de
direitos
4.1.3 As penas restritivas de direitos e os princípios constitucionais
4.1.4 Penas restritivas de direitos: menos dispendiosas e mais humanas
102
102
105
110
114
4.1.5 As penas restritivas de direitos e o movimento de repressão legal
4.1.6 As penas restritivas de direitos e sua eficácia
116
123 4.2 AS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS EM ESPÉCIE 125
4.2.1 A prestação pecuniária 125
4.2.2 A perda de bens e valores 136
4.2.3 A prestação de serviços à comunidade 142
4.2.4 A interdição temporária de direitos 147
4.2.4.1 Proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública bem como de
mandato eletivo
151
4.2.4.2 Proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de
habilitação especial
157
4.2.4.3 Suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo 160
4.2.4.4 Proibição de freqüentar determinados lugares 164
4.2.5 Limitação de fim de semana 166
4.2.6 Outras penas restritivas de direitos estabelecidas em leis especiais 171
4.3 BREVE CONCLUSÃO SOBRE A ADEQUAÇÃO E A EFICÁCIA DAS
PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS
175
5 A MECÂNICA DE CUMPRIMENTO E FISCALIZAÇÃO DAS PENAS
RESTRITIVAS DE DIREITOS
5.1 O MONITORAMENTO DAS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS NO
BRASIL
5.2 O MONITORAMENTO DAS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS NA
BAHIA
5.3 A EXECUÇÃO DAS MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS
ESTABELECIDAS NA TRANSAÇÃO PENAL: UM PROBLEMA
6 A TEORIA DIALÉTICA UNIFICADORA E O SISTEMA BRASILEIRO DE
COMINAÇÃO, APLICAÇÃO E EXECUÇÃO DAS PENAS RESTRITIVAS
DE DIREITOS: A BUSCA DA JUSTIÇA PUNITIVA
7 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
APÊNDICES
180
180
200
213
228
252
263
276
13
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho versa sobre o tema “As penas restritivas de direitos no
ordenamento jurídico brasileiro: alternativa de punição justa à luz da Teoria Dialética
Unificadora, de Claus Roxin”.
As penas restritivas de direitos constituem assunto atual e um dos mais polêmicos na
área do Direito Penal contemporâneo, tendo sido inseridas no Código Penal pátrio, através da
Reforma Penal (Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984) e aperfeiçoadas pela Lei n. 9.714, de 25
de novembro de 1998.
A sociedade espera, apesar de algumas teorias pensarem em sentido contrário, a
efetiva punição de quaisquer agentes que cometem crimes e, numa concepção restrita do que
se conceitua “punir”, exige, em grande escala, a aplicação de uma pena privativa de liberdade.
Porém, o organismo estatal vem observando que a sanção segregativa, aplicada ao indivíduo
que pratica delitos menores, cria sérios obstáculos à sua ressocialização, além de ferir direitos
fundamentais do cidadão.
O Código Penal de 1940 não contemplava penas restritivas de direitos; estabelecia,
entrementes, a pena de multa; e, considerando-se que esta, naquele estatuto de lei, quando
fixada alternativamente à privativa de liberdade, em alguns tipos, cominada em “cruzeiros”,
não acarretava a punição desejada, em face das constantes desvalorizações da moeda.
Verificava-se, em diversas ocasiões, a culminação de processos cujo resultado era a
condenação de agentes que praticavam crimes pouco gravosos a penas privativas de liberdade.
Com a reforma de 1984, timidamente, o legislador inseriu no ordenamento jurídico
brasileiro as penas restritivas de direitos (prestação de serviços à comunidade, interdição
temporária de direitos e limitação de fim de semana), em substituição às penas privativas de
liberdade inferiores a um ano, nos crimes dolosos, ou sem limite quantitativo de pena, nos
crimes culposos, obedecendo-se aos critérios de ausência de reincidência e de requisitos
subjetivos favoráveis ao condenado, ou seja, a culpabilidade, os antecedentes, a conduta
social, a personalidade, bem como os motivos e as circunstâncias indicassem que a
substituição seria suficiente.
A Lei nº 9.714/98 acrescentou outras penas restritivas de direitos: a prestação
pecuniária e a perda de bens e valores, possibilitando a substituição da pena privativa de
liberdade, não superior a quatro anos, em crimes dolosos, delitos esses cometidos sem
violência ou grave ameaça à pessoa, ou em qualquer quantidade de pena, nos crimes culposos.
A reincidência exigida, com a nova disposição legal, passou a ser em crime doloso, ou ainda,
14
a específica, desde que em face de condenação anterior, a medida seja socialmente
recomendável, devendo considerar-se, também, os aspectos subjetivos do condenado,
inseridos no art. 44, inciso III, do Código Penal.
Surgem, ainda, outras penas restritivas de direitos, através de leis especiais, a
exemplo da Lei dos Crimes Ambientais (Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998) e da nova
Lei de Tóxicos (Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006), o que demonstra que ocorreu a
ampliação do sistema de penas alternativas na legislação pátria.
Assim, houve significativo aumento de abrangência das penas restritivas de direitos
em relação a vários tipos penais, evitando o encarceramento de muitos sentenciados que se
enquadram nos requisitos estabelecidos no dispositivo de lei supramencionado. Passa-se,
então, a questionar sobre a existência de certo exagero do legislador na edição dessas leis, o
que sugere a problemática que se levanta na pesquisa: as penas restritivas de direitos são uma
proposta adequada para a punição de pequeno e médio potencial ofensivo? São elas eficazes
no sentido da realização dos fins retributivos, preventivos gerais e preventivos especiais da
pena?
É importante declinar, inicialmente, que as leis supramencionadas são o resultado de
uma sensível mudança de paradigma punitivo que vem-se processando ao longo dos séculos,
pois a pena pública está perdendo, gradativamente, o seu caráter expiatório, e transformando-
se em sanção menos aflitiva. Muitos países vêm lançando mão de penas alternativas à prisão,
já que esta também se mostrou inapta a promover uma sadia reintegração do infrator à
sociedade.
Diante desse contexto, propõe-se, neste trabalho que, uma vez atendidos os requisitos
legais, as penas restritivas de direitos são, no atual contexto, as mais adequadas para
proporcionar uma oportunidade de mudança de comportamento no sentenciado, além de se
constituir-se num modelo que respeita os direitos fundamentais do cidadão, e de cumprir a
função de reprovação do crime, ao realizar os fins gerais e especiais da pena.
Desperta-se, dessa forma, o completo reconhecimento da necessidade de aplicação
criteriosa das penas restritivas de direitos, pelos magistrados. Deve-se levar em conta, não
somente os pressupostos objetivos, estabelecidos no art. 44, do Código Penal, mas, sobretudo,
as condições subjetivas do agente, que também se encontram reguladas no inciso III, do
mesmo dispositivo legal, e a adequação ao caso concreto, devendo ficar evidenciado, assim,
não se constituir em única solução de punibilidade legítima do organismo estatal brasileiro.
Nesse lanço, para justificar a legitimidade de aplicação das penas restritivas de
direitos, pelo ordenamento jurídico brasileiro, e de sua amplitude de aplicação, pela Justiça
15
Criminal, nos casos previstos em lei, fez-se indispensável a busca de um embasamento teórico
que encontrasse sustentáculo nas teorias que se dedicam ao estudo dos fins da pena.
Dentre elas, afirmou-se, na investigação, que a “Dialética Unificadora”, de Claus
Roxin1, é a teoria que melhor se aproxima dos fundamentos da sistemática adotada na
legislação brasileira no que tange à legitimidade, adequação e eficácia das penas restritivas de
direitos. Isto porque sustenta a admissão de um Direito Penal mínimo, realmente necessário
no controle racional da criminalidade e que se faz necessário somente quando for
indispensável para a ordenação da vida em comum, procedendo, além da seleção de condutas
típicas, numa esfera subsidiária, também à seleção de sanções, que deverão ser mais suaves
para condutas de menor ofensividade.
Ademais, trata-se de teoria que somente admite a legitimidade do Estado para aplicar
uma pena quando esta é o resultado da medida de culpabilidade do agente, adicionada de um
plus, a saber, quando a sanção for necessária para a prevenção geral e especial. Trata-se de um
fator de política-criminal que se agrega à culpabilidade do infrator com o escopo de justificar
o direito de punir, momento em que considera plausível a possibilidade de se restaurar a paz
pública com sanções menos graves.2
Para tanto, a investigação analisou a Teoria Dialética Unificadora, de Claus Roxin,
em confronto com o ordenamento jurídico brasileiro, no que tange à legislação
infraconstitucional pertinente às penas restritivas de direitos. A pesquisa também examinou as
três fases da pena (cominação, aplicação e execução), apontando, em cada uma delas, os fins
da prevenção geral (intimidação dos membros da sociedade) e especial (ressocialização do
sentenciado), apresentando razões pelas quais as penas restritivas de direitos, desde que
aplicadas adequadamente ao caso concreto, devem ser utilizadas pelos magistrados.
O estudo objetivou, ainda, pesquisar a forma como vem sendo feita a execução das
penas restritivas de direitos, além dos motivos que vêm obstando a aplicação ou freqüência de
aplicação das penas e medidas3 restritivas de direitos. Procedeu-se também a uma análise
comparativa dos custos que norteiam a fiscalização de cumprimento e execução das penas e
medidas alternativas em confronto com as penas privativas de liberdade.
Buscou-se, enfim, demonstrar, que a justa sanção, no Direito Penal contemporâneo,
constitui-se da equilibrada cominação e criteriosa fixação, além da execução eficiente de
1 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. Tradução: Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz. 3.ed. Lisboa: Vega Universidade, 2004, p.43. 2 Ibidem, p.40. 3A expressão “medidas restritivas de direito” são aqui referidas como aquelas propostas pelo Ministério Público, quando da transação, nos Juizados Especiais Criminais.
16
penas restritivas de direitos, nos crimes de pequeno e médio potencial ofensivo, reservando-se
a prisão, para os agentes perpetradores de crimes graves e/ou criminosos perigosos ou
habituais.
O método aplicado no trabalho em epígrafe foi o analítico. Procedeu-se à
comparação entre as penas restritivas de direitos e a privativa de liberdade, ressaltando-se as
qualidades positivas e negativas de cada uma delas e refutando-se a segunda como forma de
punição justa e adequada em crimes de menor potencialidade lesiva. Para tanto, utilizou-se de
consulta a publicações diversas, tais como livros, revistas, sites, artigos, regramentos
nacionais e estrangeiros, jurisprudência e outras publicações oficiais.
Além das análises supramencionadas, recorreu-se, também, a dados oriundos de uma
pesquisa de campo, coletados a partir de uma amostra intencional, através de entrevistas com
alguns Juízes e Promotores Criminais da Comarca de Salvador, Advogados, e funcionários da
CEAPA4, sendo que algumas dessas entrevistas se encontram gravadas e transcritas, na
íntegra; e outras foram fornecidas por escrito. Essas entrevistas subsidiaram as discussões
teóricas desenvolvidas no trabalho.
De posse das informações levantadas, foram realizadas análises dedutivas sobre a
eficácia e adequação de cada pena restritiva de direitos, no ordenamento jurídico brasileiro,
tendo-se anotado as conclusões em favor do seu uso conforme as limitações estabelecidas em
lei.
Com esses instrumentos, procedeu-se, inicialmente, a uma breve pesquisa sobre a
origem e os finalidades da pena, sobre o declínio da pena de prisão na história da humanidade
e também sobre a origem das penas restritivas de direitos no panorama legislativo
internacional. Posteriormente, lançou-se ao estudo a respeito das penas restritivas de direitos
estabelecidas na legislação pátria e de seu sistema de cominação, aplicação e execução.
Para isto, tratou-se, no capítulo segundo, item um (01), de importantes dados
históricos sobre a origem e a evolução da pena, fazendo-se necessário esse exame para
estimular a reflexão no que tange às mudanças de paradigmas punitivos, que se processaram
durante todos esses séculos, até a implantação das penas restritivas de direitos, na atualidade.
Em continuidade, no item dois (02), fez-se uma análise das teorias legitimimadoras e
deslegitiminadoras, o que objetivou fundamentar a opção de legitimação do direito de punir
do Estado, que foi adotada na investigação.
4 BAHIA. Central de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas da Bahia. Relatório Geral de Atividades e Resultado CEAPA. Ano 2006.
17
Prosseguiu-se, no capítulo terceiro, em seu item um (01), com o exame do declínio
da pena de prisão para os crimes menores, com o escopo de verificar, tanto no contexto
nacional, como internacional, os defeitos dessa sanção para que não permaneça sendo
utilizada nos crimes de pequeno e médio potencial ofensivo, onde se sustenta bastarem as
penas alternativas. O item dois (02) dedicou-se ao estudo da origem das penas restritivas de
direitos que se delinearam no panorama legislativo internacional, apurando-se o efetivo
surgimento dessas sanções, em nível mundial, ao responder à crise da pena privativa de
liberdade que se mostrava impotente para solucionar os problemas resultantes da
criminalidade de pequeno e médio potencial ofensivo. Já o item três (03) procede a uma
análise do sistema alternativo à pena de prisão na legislação de outros Estados, constatando-se
que vários países já vêm adotando a sanção alternativa em suas legislações, o que milita em
favor da adequação dessas penas no Direito Penal.
No capítulo quarto, tratou-se da resposta penal adequada aos crimes de pequeno e
médio potencial ofensivo, investigando-se, no item um (01) se as penas restritivas de direitos
que se encontram estabelecidas na legislação infra-constitucional obedecem a um sistema de
cominação, aplicação e execução adequado ao texto constitucional e aos seus princípios
basilares, e também legítimo frente ao Estado de Direito que se encontra assentado nos
direitos fundamentais do cidadão. E no item dois (02), procedeu-se à análise das penas
restritivas de direitos em espécie, examinado-se cada uma, em separado, para perquirir se
atingem os fins da prevenção geral, especial, além da retribuição justa, na medida da
culpabilidade do agente, anotando-se também as hipóteses em que se fazem adequadas.
A mecânica de cumprimento e fiscalização das penas restritivas de direitos foi
examinada no capítulo quinto, onde se analisou como está sendo feito este monitoramento no
Brasil (item 1) e na Bahia (item 2). O item três (03) ficou reservado ao estudo dos problemas
causados por uma lacuna na Lei 9099/95, que deixou de consignar uma solução para os casos
de descumprimento injustificado da sentença homologatória de transação, fato que pode
repercutir na ineficácia das penas (medidas) restritivas de direitos transacionadas.
O capítulo sexto se dedicou ao exame comparativo entre a sistemática de cominação,
aplicação e execução das penas restritivas de direitos que se encontram estabelecidas na
legislação pátria e a Teoria Dialética Unificadora, de Claus Roxin.
Nesse passo, lança-se, nas próximas linhas, o resultado de uma investigação que
objetivou apurar a legitimidade, a adequação e a eficácia das penas restritivas de direitos, que
emergiram através do novo paradigma punitivo, cujas conclusões, que explicitam reflexões
significativas a respeito do tema, são reveladas no presente trabalho.
18
2 ORIGENS E FINS DA PENA 2.1 BREVES DADOS HISTÓRICOS SOBRE A ORIGEM E A EVOLUÇÃO DA PENA
A compreensão da importância que hoje se reconhece às penas restritivas de direitos
recomenda uma análise sobre a sanção criminal ao longo da história da humanidade. Trata-se
de uma longa caminhada desde a imposição de penas extremamente cruéis até as sanções que
possam impingir menos sofrimento ao homem.
No que tange à sua origem, pode-se afirmar que a pena nasceu em tempos remotos,
mas é muito difícil estabelecer seu marco inicial.5 Sabe-se, entretanto, que as bases da pena
pública estão na própria evolução política da sociedade e no reconhecimento da autoridade de
um chefe a quem era deferido o poder de castigar em nome dos súditos.
Para Carrara, “procurar a origem da pena é fórmula escolástica, mas vazia de sentido,
quando se considera a pena de um ponto de vista abstrato e especulativo”. Aqui o penalista
italiano faz uma analogia da procura da “origem da pena” com a procura da “origem da vida
no homem”, afirmando que é exatamente “como se o homem, conservando sua natureza,
pudesse ter existido um instante sem possuir vida”.6
Ao fundamentar seu posicionamento, afirma:
Em toda a parte em que viveram homens existiram ofensas recíprocas, pelo impulso das paixões egoísticas, e o direito foi violado; onde quer que tenha havido violação do direito, imediatamente existiu o desejo de repressão, ao qual se seguiu (em sendo possível a repressão). É vaidade procurar em um ser qualquer, com a fórmula origem, a gênese de uma condição de fato, que foi congênita e inerente ao mesmo ser.7
Da leitura atenta de suas considerações a respeito da origem da pena, verifica-se que o
magistério de Carrara continua atual, pois a sanção pelo ato desconforme às condutas
reiteradas e aceitas pelo senso comum numa sociedade nasceu, sem qualquer sombra de
dúvida, com o próprio homem e sua vida em comunidade. Destarte, tentar-se-á imprimir aqui
um rápido esboço da existência da pena ao longo da evolução histórica da humanidade, com o
5 “A história da pena revela que a sua existência foi modelada por totens e tabus que lhe imprimiam contornos místicos enquanto os diversos castigos corporais até a morte traduziam as expressões cruentas da defesa e da vingança. O infrator também poderia ser condenado à perda da paz que se caracterizava pela expulsão do clã e a impossibilidade de sobrevivência diante das forças hostis da natureza, da agressão dos animais ou da dificuldade na colheita de alimentos”. (DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. São Paulo: RT, 1998, p. 31). 6 CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral. Tradução Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: São Paulo, 2002, v.2, p. 13-14. 7 Ibidem, p.14.
19
efetivo escopo, sem fugir do tema que aqui se propõe: compreender-se a vultosa importância
das penas alternativas à prisão, na era contemporânea.
Sem dúvida, a história das penas é o registro vivo de uma longa e contínua caminhada,
desde a imposição de sanções severas e impiedosas, até aquelas que impingem menos
sofrimento ao homem.
Miguel Reale Júnior afirma, com acerto, que a “história do Direito Penal é a história
de um longo processo de humanização da repressão”.8
Assevera Franz von Liszt que a história do desenvolvimento da pena apresenta, entre
os povos, traços muito comuns. Esse fato demonstra que, em toda a parte, a pena seguirá em
sua evolução de modo a esperar-se, no futuro, uma reforma eficaz da legislação penal. Este
que será o guia e conselheiro de uma Política Criminal com consciência de seu fim e que
saiba, ao mesmo tempo, prender-se de forma prudente e avisada ao passado.9
Tal assertiva de Liszt nada mais é do que a constatação de que o homem não pode
prender-se, em definitivo, às formas positivadas em tempo pretérito para solucionar as
pendências sociais, devendo, para tanto, buscar o aperfeiçoamento do sistema punitivo. Desta
feita, não se deve deixar dominar puramente pela razão tecno-instrumental, o que pode
repercutir na perda da referência do ser humano com o seu sujeito cognoscente, e propiciar o
desprestígio das possibilidades do conhecimento crítico mediante a auto-reflexão.
Na esteira desse raciocínio, expressa-se Habermas, em Conhecimento e Interesse:
“Um ato da auto-reflexão que altera a vida é um movimento da emancipação. De modo igual
como aqui o interesse da razão não pode corromper a força cognitiva da razão[...]”10
Habermas se contrapõe a essa forma de pensar arraigada na razão instrumental;
formula uma teoria do conhecimento que passa a relacionar as ciências da natureza com as
ciências humanas. Para ele, também existem muitas transformações no contexto da
modernidade e da pós-modernidade que devem levar à reflexão uma nova forma de
organização da vida, seja no campo social, cultural, econômico ou político. Portanto, para
Habermas, o homem deve ter consciência dessa tendência de instrumentalização da vida e
assumir o controle de forma ordenada, inclusive de suas próprias relações com a natureza.
Assim, partirá para um “projeto” que deverá ser corrigido e completado na esfera de relações
8 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: Parte Geral. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 2 p.3. 9 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tradução e comentários de José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russel, 2003, v. 2, p.74. 10 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982, p. 232.
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do campo científico com o próprio homem.11
Do enlace do quanto leciona o filósofo alemão, há de se concluir que, na modernidade
e pós-modernidade, é preciso que a política criminal exercite novas formas de punição, que
podem ser mais adequadas a esses momentos históricos. Assim, passa-se à reflexão no sentido
de deixar de tomar como absolutos dogmas do passado para buscar o consenso edificante de
um novo paradigma punitivo para as infrações de pequeno e médio potencial ofensivo.
Nesse passo, urge como necessário o exame das penas que foram adotadas desde o
início da história da humanidade, com o objetivo de estimular a “reflexão” sobre a mudança
de paradigmas punitivos que se processaram durantes esses séculos.
Desde que o Estado passou a monopolizar a administração da pena, as sanções penais
mais utilizadas até Idade Moderna podem ser assim enumeradas: a pena de morte (pena
capital12), as penas corporais13 (ex: mutilações, acoites, ferrete14), as pecuniárias15, que se
dividiam em multa e confisco, além das infamantes16.
Ao estudar-se a história da persecução penal, observa-se, de início, o quase completo
desinteresse do Estado em assumir tal múnus. Esta era deixada à iniciativa do ofendido ou de
um cidadão qualquer: trata-se da fase da vindita privada, em que as famílias é que detinham o 11 HABERMAS apud MEDEIROS, Arilene Maria Soares de; MARQUES, Maria Auxiliadora de Resende Braga. Habermas e a Teoria do Conhecimento. Disponível em: <http://www.bibli.fae.unicamp.br> .Acesso em: 23 jun. 2007. 12 “Nas leis romanas nem sempre a pena capital exprimia a perda da vida. Esta denominação foi usada também para designar a morte civil (diminutio capitis maxima vel media) não acompanhada de morte natural”. (CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral. Tradução Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: São Paulo, 2002, v. 2, p.111). 13 Carrara denominou as penas corporais de “aflitivas diretas ou positivas”, que poderiam ser indeléveis ou deléveis. São indeléveis aquelas que deixam sobre o corpo um sinal permanente, como o ferrete e a mutilação, e são indeléveis as que não produzem tal resultado, como a fustigação, as correntes, etc. (Ibidem, p.121-122). 14 Carrara assevera:“Do primeiro pensamento decorreu que o ferrete se impusesse através da impressão indelével de uma letra do alfabeto no corpo do réu, lembrando justamente, pela inicial, o delito cometido, ou a pena sofrida; pelo que Pancirolo (Thesaurus variarum lectionum, cap. 241. Lião, 1617) recorda que os marcados dessa maneira eram chamados homines litterati: e foram também chamados homines stigmatici, daí surgindo a expressão homines integrae frontis, usada por Papiniano para designar o homem isento de qualquer condenação. Henkart, Diss., de stigmate faciei humanaes non inurendo, Leipzig, 1776. Do segundo pensamento derivou que o membro eliminado fosse justamente o que melhor podia servir para o delito. E, nesse sentido, se usou cortar o nariz às adúlteras, a fim de que a deformidade afastasse delas os galantes (Crell, Dissetationes, fasc.2, dissert.6, cap. 2, p.91. De jure manuun in foro criminali)”. (CARRARA, op.cit., p.125). 15 Carrara define como pena pecuniária toda a diminuição de riqueza dos homens, sancionada pela lei como punição de um delito. Quando a lei exige do delinqüente, como sanção do delito, todo o seu patrimônio, toma a pena o nome de confisco, mas se for apenas uma parte desse patrimônio, esta recebe o nome de ammenda ou multa.Diz não ser possível definir cientificamente os critérios entre a ammenda e a multa, porque a diferença entre esses critérios nasce do direito positivo de vários povos. (CARRARA, op.cit., p. 139). 16 Penas infamantes, no dizer de Carrara, são “aquelas que ferem o delinqüente no patrimônio da honra”. O penalista italiano contesta a existência dessas penas, uma vez que “a natureza mesma do delito ou da punição pode operar o efeito de manchar a fama do réu, como conseqüência espontânea de si própria”. Adverte que se chama pena infamante somente aquela em que a infâmia é irrogada por uma “formal declaração da lei”. A infâmia nascida da lei era expressamente decretada pelo juiz, que o declarava infame. Poderia, ainda, o decreto judicial ser acompanhado de uma manifestação material, como, por exemplo, o pelourinho, a mudança de vestimentas e a equitação sobre asno. (CARRARA, op.cit., p. 136-137).
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dever de vingar com o sangue suas próprias vítimas.
Nas sociedades de estrutura familial, as quais precederam a fundação do Estado
(comunidades que têm o sangue por base), encontram-se duas espécies de pena, a saber: a
punição do membro da tribo, o qual se fez culpado para com ela ou com seus companheiros; e
a punição do estranho que veio de fora invadir o círculo do poder e da vontade da sociedade
ou de alguns de seus membros.17
No antigo Direito Germânico, “o crime (Verbrechen) era uma forma de quebrar a
paz... ‘um procurar sofrimento (Wehtun)’ ”, afirma Francisco de Assis Toledo, invocando o
magistério de Karl von Amira.18 E a palavra latina poena, entre seus inúmeros sentidos, tinha
também o significado de “dor”, “sofrimento”, adverte, aduzindo que este significado continua
“bem vivo, entre nós, na linguagem literária”, conforme preconiza o Novo Dicionário da
Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.19
Posteriormente, o Estado passou a agir em lugar do ofendido, entretanto era nítido que,
tanto nas formas procedimentais, quanto na qualidade e quantidade de penas eleitas, como
pelo modo cruel e bizarro de executá-las, muitas vezes aplicadas a meros suspeitos de um
delito, nada guardavam de respeito ao ser humano. A pena passava a ser pública, mas estava
impregnada pela vingança, penetrava nos costumes sociais e procurava alcançar a
proporcionalidade através das formas do talião e da composição.
No Direito Romano, conferia-se ao paterfamiliae grande parcela da potestade
punitiva, especialmente em relação aos escravos, sendo previstas penas de caráter perpétuo
com trabalhos forçados, que eram impostas a pessoas de classes inferiores, e que duravam até
esgotar a capacidade de trabalho do condenado. 20 Na fase inicial da monarquia, o rei detinha
as funções religiosas supremas, sendo que a pena tinha caráter sagrado e era executada por
imposição divina. Nesse período, o Direito estava enraizado no costume religioso e a religião
encontrava-se estabelecida no culto doméstico da família. Nos crimes públicos (traição ao
Estado, homicídio de homens livres, o incêndio, a corrupção de juízes, a sátira injuriosa, as
assembléias noturnas e o sortilégio), o Estado atuava como titular do direito de punir,
17 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tradução e comentários de José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russel, 2003, v. 1, p. 75. 18 Karl von Amira, Germanishes Recht, apud Iside Mercuri, Introduzione, Códice Penalle della República Democrática Tedesca, apud TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal: de acordo com a Lei n. 7.209, de 11-71984 e com a Constituição Federal de 1988. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 217. 19 TOLEDO, op. cit., p.217. 20 CRUZ, Rogério Schietti Machado. A punição no Brasil do Século XIX. Processo Penal: pensado e aplicado. Brasília: Brasília Jurídica, 2005. p. 41.
22
prevalecendo quase sempre a pena de morte.21
Já com a República, esse mesmo Estado assumiu o monopólio da justiça punitiva, em
Roma, quando a pena de morte começou a ser reduzida, dando-se preferência a penas mais
amenas como o exílio e a deportação, ao lado dos trabalhos forçados.22 “As práticas criminais
vão abrandando-se, até a quase extinção da vingança privada, o desuso da pena de morte e a
adoção do princípio da legalidade (Lex Corneliae e Lex Juliae), que exigia a prévia
cominação da pena nos crimes públicos”.23
Com a instauração do Império, surgiu o chamado “processo extraordinário”, que
paulatinamente foi substituindo o “processo ordinário”. O primeiro era promovido por um
magistrado e baseava-se na lei prévia, nas fórmulas processuais rígidas e nas decisões, que se
restringiam a declarar a procedência ou a improcedência da acusação, e a imposição da pena
era tarefa da lei e do magistrado da execução. O processo extraordinário cuidava de crimes
que não estavam previstos em lei, mas que eram entendidos como reprováveis, além de ser
destinado ao julgamento de pessoas consideradas não-cidadãos e dos escravos. Aos poucos, as
formas foram flexibilizadas e as penas ganharam elasticidade, sendo recuperado o prestígio da
pena de morte.24 Os romanos não usaram o cárcere como pena, mas como custódia.25
Na Idade Média, merece relevo o surgimento da jurisdição eclesiástica da Santa
Inquisição e a jurisdição secular, adotada com apoio no direito comum (romano-canônico) e
nos costumes locais, sedimentadas entre os povos originários da Europa e os bárbaros que, a
partir do Século V, foram se instalando nesse continente.26
Nos primórdios da Inquisição, o processo era de competência exclusiva dos bispos
que, para a descoberta da verdade, utilizam-se das “ordálias” ou “juízos de Deus”, método que
era admitido, oficialmente, como prova até o ano de 1157.27
O processo iniciava-se por denúncia ou de ofício, sendo, também, inquisitivo e
secreto, com o escopo de impossibilitar a conspurcação das provas. Os delitos eram
classificados em: eclesiásticos, seculares e mistos; embora tal divisão não fosse clara, porque
a legislação secular considerava crime toda a ofensa aos preceitos da igreja (crime de lesa-
21 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. História do Direito Penal (crime natural e crime de plástico). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 36-37. 22 CRUZ, Rogério Schietti Machado. A punição no Brasil do Século XIX. Processo Penal: pensado e aplicado. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 41. 23 FÜHRER, op. cit., p.39. 24 Ibidem, p. 40-41. 25 CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral. Tradução Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: São Paulo, 2002, v. 2, p. 130. 26 CRUZ, op.cit., p. 42. 27 FÜHRER, op.cit., p.42.
23
majestade divina), daí, porque um crime eclesiástico era automaticamente um crime comum.28
Objetivava-se o arrependimento do suposto “pecador”, quando, então, seria
encerrado, sendo que o confessor do acusado aplicava-lhe o perdão ou as penitências
religiosas, tais como rezas, missas, jejuns, obrigação de portar determinados sinais nas vestes,
flagelação, peregrinações, multa e prisão. E se não fosse alcançada a confissão, aplicava-se a
pena que era, geralmente, a pena de morte, executada pela justiça secular, preferencialmente
na fogueira.29
Sobre a Santa Inquisição, atesta Rogério Schietti Machado Cruz:
Ao contrário do que se costuma dizer, a Inquisição não se apresentou como pioneiro modelo cruel de se realizar justiça, mas apenas reverberou, com o paradoxo de ser uma justiça praticada em nome de Deus, o que era rotina no Direito secular a ela contemporâneo, também encarregado de impiedosa ferocidade, mercê de um espírito vingativo e utilitário que animava a persecução penal.30
O Direito Romano, o Germânico e o Canônico contribuíram para a formação de um
Direito Penal comum, embora apresentassem graus de evolução e princípios diferentes, e este
Direito Penal regeu a prática da justiça punitiva em diversos países da Europa, durante a Idade
Média e épocas posteriores.31
O Direito Romano predominava sobre os demais, principalmente depois que, no
século XII, a Escola dos Glosadores passou a comentar e interpretar os velhos textos
imperiais. Dessa escola, surgiu a “Escola dos Práticos” ou “Pós-Glosadores”, que fundiu o
Direito Romano ao Germânico.32
O Direito dos glosadores e dos práticos foi estruturado na Alemanha, através da
Constituição Carolina, ordenada por Carlos V (1532), e que possuía uma vertente processual
demarcada, com amplo reflexo, no direito material e na vida do cidadão.33
As sanções penais utilizadas até esse período histórico poderiam ser enumeradas como
a pena de morte (pena capital34), as penas corporais35 (ex: mutilações, acoites, ferrete36), as
28 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. História do Direito Penal (crime natural e crime de plástico). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 43. 29 Ibidem, loc.cit. 30 CRUZ, Rogério Schietti Machado. A punição no Brasil do Século XIX. Processo Penal: pensado e aplicado. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 42. 31 BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte geral. Revista e atualizada por Raphael Cirigliano Filho. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 1, p. 43. 32 Ibidem, p. 44. 33 Ibidem, loc.cit. 34 “Nas leis romanas nem sempre a pena capital exprimia a perda da vida. Esta denominação foi usada também para designar a morte civil (diminutio capitis maxima vel media) não acompanhada de morte natural”. (CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral. Tradução Ricardo Rodrigues Gama.Campinas: São Paulo, 2002, v. 2, p.111).
24
pecuniárias37, que se dividiam em multa e confisco, além das infamantes38. Na Antigüidade, a
prisão não possuía o caráter de pena, pois seu fim precípuo era a custódia dos réus até o
momento do julgamento ou da execução. A prisão também servia à colheita de provas
mediante tortura39. A detenção era uma “verdadeira antecâmara de suplícios”, onde se
depositava o acusado à espera do julgamento.40 Assim, na Idade Média, ainda predominou a
prisão como custódia e a execução das penas corporais e capitais, realizadas num público
espetáculo que era oferecido às multidões.
Foi um longo e sombrio período da história do Direito Penal, no qual a defesa do
príncipe e a defesa da religião se confundiam, introduzindo o arbítrio judiciário sem limites na
definição dos crimes e também na determinação da pena, o que criou em volta da justiça
punitiva uma atmosfera de incerteza, insegurança e justificado terror, assevera Aníbal
35 Carrara denominou as penas corporais de “aflitivas diretas ou positivas”, que poderiam ser indeléveis ou deléveis. São indeléveis aquelas que deixam sobre o corpo um sinal permanente, como o ferrete e a mutilação, e são indeléveis as que não produzem tal resultado, como a fustigação, as correntes, etc. (Ibidem, p 121-122). 36 Carrara assevera:“Do primeiro pensamento decorreu que o ferrete se impusesse através da impressão indelével de uma letra do alfabeto no corpo do réu, lembrando justamente, pela inicial, o delito cometido, ou a pena sofrida; pelo que Pancirolo (Thesaurus variarum lectionum, cap. 241. Lião, 1617) recorda que os marcados dessa maneira eram chamados homines litterati: e foram também chamados homines stigmatici, daí surgindo a expressão homines integrae frontis, usada por Papiniano para designar o homem isento de qualquer condenação. Henkart, Diss., de stigmate faciei humanaes non inurendo, Leipzig, 1776. Do segundo pensamento derivou que o membro eliminado fosse justamente o que melhor podia servir para o delito. E nesse sentido se usou cortar o nariz às adúlteras, a fim de que a deformidade afastasse delas os galantes (Crell, Dissetationes, fasc.2, dissert.6, cap. 2, p.91. De jure manuun in foro criminali)”. (CARRARA, op.cit., p 125). 37 Carrara define como pena pecuniária toda a diminuição de riqueza dos homens, sancionada pela lei como punição de um delito. Quando a lei exige do delinqüente, como sanção do delito, todo o seu patrimônio, toma a pena o nome de confisco, mas se for apenas uma parte desse patrimônio, esta recebe o nome de ammenda ou multa.Diz não ser possível definir cientificamente os critérios entre a ammenda e a multa, porque a diferença entre esses critérios nasce do direito positivo de vários povos. (CARRARA, op.cit., p 139). 38 Penas infamantes, no dizer de Carrara, são “aquelas que ferem o delinqüente no patrimônio da honra”. O penalista italiano contesta a existência dessas penas, uma vez que “a natureza mesma do delito ou da punição pode operar o efeito de manchar a fama do réu, como conseqüência espontânea de si própria”. Adverte que se chama pena infamante somente aquela em que a infâmia é irrogada por uma “formal declaração da lei”. A infâmia nascida da lei era expressamente decretada pelo juiz, que o declarava infame. Poderia, ainda, o decreto judicial ser acompanhado de uma manifestação material, como, por exemplo, o pelourinho, a mudança de vestimentas e a equitação sobre asno. (CARRARA, op.cit., p. 136-137). 39 Carrara define como principais penas aflitivas negativas a detenção e o exílio, que se divide em exílio propriamente dito, e relegação ou confinação. Detenção, para o mestre italiano é “toda a espécie de punição com que se prive o delinqüente da sua liberdade, encerrando-o, por tempo determinado, em recolhimento a isso destinado”. Com o nome de detenção, Carrara exprime todas as formas congêneres de punição consistentes em encerrar-se um réu num lugar de pena, as quais se dá nome especial, tirado do nome do próprio estabelecimento e que, segundo a sua natureza, é denominado prisão, cárcere, casa de força, casa de disciplina, casa de correção, ergástulo, galés e outros. O exílio, em sentido próprio, para Carrara, “é o afastamento do delinqüente de um determinado lugar, único que lhe é interdito, com plena liberdade de estar em outra parte, onde quer que lhe agrade”. A relegação, para o mestre italiano, “consiste em interpor-se ao réu a residência em um determinado território, com a interdição de se dirigir a qualquer outra parte do globo”. Quando o exílio consiste na expulsão de todo o território do Estado, denomina-se “desterro”. Quando a relegação se dá em lugar ultramarino, diz-se “deportação”. (CARRARA, op.cit., p 129-133). 40 DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. São Paulo: RT, 1998, p. 32.
25
Bruno.41
Com a chegada da Idade Moderna, época das grandes navegações e descobrimentos,
paulatinamente, o feudalismo foi chegando ao fim, consolidando-se, pouco a pouco, os
Estados Nacionais. Foi desaparecendo o poder dos reis, dos senhores e dos cavaleiros,
substituído por uma máquina potente de governo, baseada num poder central soberano
absoluto. Surge o liberalismo econômico e, com ele, a Igreja é afastada da atividade
econômica. A Justiça, por sua vez, transforma-se no monopólio do rei e o Direito Penal foi
centralizado, através de leis unitárias que abrangiam todo o território nacional.42
Mas as penas continuaram “desumanas, executadas publicamente e sempre
acompanhadas de imposição de sofrimento feroz e desnecessário, faziam parte de um
espetáculo dantesco, especialmente planejado com a função de intimidar o povo e
desencorajar a desobediência do poder absoluto do soberano”.43
O número de crimes aumentava gradativamente e a sociedade começava a insurgir-se
contra uma Justiça Criminal que era processada de forma rude e aflitiva.44
Nesse período, surgem alguns pensadores de expressão. Dentre eles, destaca-se
Thomas Hobbes (1588-1679) que encontra o fundamento do poder absoluto do soberano
numa necessidade humana imperiosa. Assevera que, na busca de paz para viver, os homens se
agrupam sob a égide de um pacto social, pois abdicam de grande parte da liberdade a favor do
Leviatã (o Estado), para que este mantenha a ordem social, e imponha a lei obrigatória.45
Nas palavras de Thomas Hobbes:
A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns contra os outros, garantindo-lhes, assim, uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade [...]. 46
Carrara atesta que na França, até o Código de 1791, a detenção não era considerada
pena, mas tão somente um meio de manter “seguros os culpados”.47
Embora a prisão não fosse pena, os presídios franceses da época viviam superlotados, 41 BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte Geral. Revista e atualizada por Raphael Cirigliano Filho. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v.1, p.44. 42 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. História do Direito Penal (crime natural e crime de plástico). São Paulo: Malheiros, 2005, p.45-47. 43 Ibidem, p.47. 44 Ibidem, p.48. 45 Ibidem, p.49. 46 HOBBES apud CASTRO, Flávia Lages de. História do Direito: Geral e Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.203. 47 GUZMAN apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão - Causas e Alternativas. São Paulo: RT, 1993, p.24.
26
pois as autoridades civis e militares (tenentes) podiam mandar prender autores de quaisquer
infrações, fossem elas graves ou não. Em tese, deveriam ser julgados nos dias posteriores,
entretanto não era o que ocorria, ficavam essas pessoas presas, por longo período, sem
julgamento. Ademais, as condições dos presos eram abomináveis, pois sobreviviam de coletas
de donativos que eram feitas em seu benefício.48
No que tange à prisão como pena, René Ariel Dotti, ao reportar-se aos ensinamentos
de Cuello Calón, afirma ter havido o seu aparecimento efêmero, em meados dos anos
setecentos a oitocentos, a saber:
[...] um édito de Luitprando, Rei dos longobardos (712-744) dispunha que cada juiz tivesse em sua cidade um cárcere para prender os ladrões pelo tempo de um ou dois anos. Também um capitular de Carlos Magno (813) ordenava que as pessoas boni generi que tivessem delinqüido poderiam ser recolhidas à prisão por determinação do Rei até que se corrigissem. Mas como adverte o mesmo escritor, os exemplos indicam o caráter raro da imposição do encarceramento como sanção autônoma segundo a revelação das fontes oriundas dos séculos XI e XII.49
Carrara explana que o sistema penitenciário teve seu real início com os católicos
eruditos e remonta ao sexto século da era cristã, fixando sua instituição em um Mosteiro do
Sinai.50 Mas lembra que Clemente XI fundara, em Roma, no ano de 1703, no Hospital São
Miguel, um cárcere para jovens delinqüentes, que fora organizado no sistema celular, com
isolamento e instrução, e que análogo instituto já existira em Florença, desde o ano 1701, em
São Felipe.51 Constata-se, aí, a influência da Igreja na evolução do Direito, pois a palavra
penitência é eminentemente cristã, e está presente até hoje nas instituições prisionais,
denominadas penitenciárias.
Na Idade Moderna, em vista das mudanças que ocorreram no panorama econômico
europeu, durante os séculos XVI e XVII, quando a miséria crescera desmesuradamente e, com
ela a delinqüência, por razões de política criminal, preferiu-se diminuir, aos poucos, a
utilização da pena de morte, ao verificar-se que não era a solução adequada a ser aplicada para
tantas pessoas. Assim, “na segunda metade do século XVI, iniciou-se um movimento de
grande transcendência no desenvolvimento das penas privativas de liberdade, na criação e
construção de prisões organizadas para a correção dos apenados”.52
Delineava-se um cenário em que “seria mais lucrativo que a imposição da pena capital 48 CASTRO, Flávia Lages de. História do Direito: Geral e Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.204. 49 CALÓN apud DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. São Paulo: RT, 1998, p. 33. 50 Revue Catholique de Louvain, 1852-1853, p. 708 ss., apud CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral. Tradução Ricardo Rodrigues Gama.Campinas: São Paulo, 2002, v. 2, p. 127. 51 CARRARA, op. cit., p.128. 52 GUZMAN apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão - Causas e Alternativas. São Paulo: RT, 1993, p.24.
27
a exploração do braço penitenciário para a execução de muitos trabalhos”.53 Proliferam as
casas de correção, na Inglaterra, que foram de grande valor histórico e penitenciário, as quais
se destinavam a reformar os delinqüentes por meio do trabalho e da disciplina, a exemplo da
utilização do castelo de Bridwel, em Londres, cedido pelo Rei, a pedido do clero, “para que
nele se recolhessem os vagabundos, os ociosos, os ladrões e os autores de delitos menores”.54
Também, em Amsterdam, foram criadas, no ano de 1596, casas de correção para
homens e, no ano de 1957, outra prisão para mulheres, que tinham por escopo o tratamento da
pequena delinqüência; e não se pode negar que essas casas de correção, tanto as inglesas
como as holandesas, já assinalam o surgimento da pena privativa de liberdade moderna, pois
seus fundadores acreditavam que pudessem reformar o delinqüente, assevera Cezar
Bitencourt, ratificando o magistério de Sellin. No entendimento esboçado por Radbruch,
entretanto, os condenados, ao serem liberados das casas de trabalho, não tinham sido
corrigidos, mas sim, “domados”.55 Registre-se, outrossim, que as prisões de Amsterdam, que
se destinavam à recuperação dos apenados, foram copiadas por muitos países europeus, por
constituírem modelo ímpar de ressocialização.56
Porém, ao lado das prisões que procuravam edificar a moral dos delinqüentes, e que
eram aplicadas a delitos menos graves, ainda vigia uma das mais duras modalidades de pena
de prisão, no século XVI, que foi a pena de galés. Sobre ela, Cezar Bitencourt se refere:
As galés foram uma espécie de prisão flutuante. Grande número de condenados a penas graves e prisioneiros de guerra eram destinados como escravos ao serviço das galés militares, onde eram acorrentados a um banco e ficavam, sob ameaça de um chicote, obrigados a remar. Refere Cuello Calón que alguns países mantiveram essa pena até o século XVIII. “Inglaterra, França, Espanha, Veneza, Gênova, Nápoles utilizaram as galés. Certos países da Europa Central vendiam seus delinqüentes aos países marítimos para este serviço, como Nuremberg e Ansbach em 1570; a Áustria vendeu seus condenados a Veneza e Nápoles até 1762.57
Por volta do século XVII, surge na Europa o famoso Hospício de San Felipe Neri,
fundado na cidade de Florença, no ano de 1667, pelo sacerdote Filippo Franci, que pôs em
prática uma idéia de Hipólito Francini. A instituição teve a destinação inicial de acolher e
reformar crianças errantes e, mais tarde, passou a admitir jovens rebeldes e indisciplinados,
aplicando-se, ali, o regime celular estrito. Tal obra é um importante antecedente do regime
53 DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. São Paulo: RT, 1998, p. 35. 54 CALON e GUZMAN apud BITENCOURT, op. cit., p. 24. 55 CALON apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão - Causas e Alternativas. São Paulo: RT, 1993, p. 25. 56 GUZMAN apud BITENCOURT, op. cit., p. 26. 57 CALON apud BITENCOURT, op. cit., p. 26.
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celular e nela se reflete seu profundo sentido religioso.58
Digno de nota é que essa instituição causou uma boa impressão em Jean Mabillon, um
monge beneditino francês, o qual escreveu um livro cujo título é “Reflexões sobre as Prisões
Monásticas”. Essa obra leva em conta a experiência punitiva do tipo carcerário que havia sido
aplicada no direito canônico, formulando considerações que vêm antecipar afirmações típicas
do Iluminismo sobre o problema penal, tais como a proporcionalidade da pena de acordo com
o delito cometido e a reintegração do apenado à comunidade.59
Na segunda metade do século XVIII, verificou-se que a pena de morte não tinha
contido o aumento dos delitos, nem o agravamento das tensões sociais, nem, tampouco havia
garantido a segurança das classes superiores. O desterro das cidades e as penas corporais,
assevera Cezar Bitencourt, contribuíram “para o desenvolvimento de um banditismo
sumamente perigoso, que se estendia com impetuosa rapidez quando as guerras e as
revoluções haviam desacreditado e paralisado os velhos poderes”.60 Desta maneira, a crise das
penas, até então aplicadas, faz surgir uma nova forma de punição: a pena privativa de
liberdade, que vinham se delineando no cenário europeu, e se mostrava aparentemente eficaz
para o exercício do controle social.
Não se pode ter a ingenuidade de acreditar que a prisão surgiu em face de um
movimento humanitário, pois as razões de seu surgimento foram muitas. Dentre elas,
merecem destaque os transtornos socioeconômicos por que passava o mundo ocidental: queda
de salários, desemprego, escassez de moeda, etc. Nos períodos de desemprego, “era preciso
reabsorver os ociosos e dar proteção social contra a agitação e os motins”, diz Cezar
Bitencourt.61
Nesse aspecto, Michel Foucault é incisivo:
A época clássica utiliza o confinamento de forma equivocada, para fazê-lo desempenhar um duplo papel: reabsorver o desemprego, ou, pelo menos, apagar os seus efeitos sociais mais visíveis e controlar as tarifas quando houver risco de subirem muito; atuar alternativamente sobre o mercado de mão de obra e os preços de produção.62
Mas também não se pode olvidar que alguns pensadores, já em meados do século
XVIII, reagem diante do quadro desumano e utilitarista da legislação criminal européia
vigente, merecendo destaque, dentre os grandes reformadores da pena de prisão, César
58 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão - Causas e Alternativas. São Paulo: RT, 1993, p. 27. 59 Ibidem, p. 27. 60 Ibidem, p. 34-35. 61 Ibidem, p. 35-36. 62 FOUCAULT apud BITENCOURT, op. cit., p. 34.
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Beccaria (1738-1794), John Howard (1724-1790) e Jeremias Benthan (1748-1832).
Delineava-se o movimento iluminista, no qual orbitou um grande número de penalistas
com posições diversas e, por vezes, até conflitantes.63
É legada ao Marquês de Beccaria, nascido na Itália, a fortuna de lançar as bases do
Direito Penal contemporâneo, pois foi justamente em face de sua crítica mordaz ao sistema
penal vigente, consubstanciada na obra Dos Delitos e da Penas64, que a legislação penal
européia começa, pouco a pouco, a estabelecer mudanças.
Beccaria foi seguidor de Rousseau quanto às idéias contratualistas (contrato social) e
seu pensamento está mais afeito às idéias revolucionárias do que ao despotismo ilustrado que
meava os regimes políticos de sua época. Entendia que as penas deveriam ser proporcionais
ao dano social causado, rejeitava a tortura, que era usualmente utilizada como meio de prova,
e sustentava a abolição da pena de morte, com a exceção de poder ser aplicada nos crimes que
colocavam em perigo a vida da nação. Construiu a idéia de um possível sistema criminal
menos confuso, mais preciso e menos abusivo do que o sistema vigente naquele período
histórico e influenciou as reformas penais dos déspotas ilustrados de seu tempo, tendo sido, na
França, a obra de Beccaria, consagrada por Voltaire, filósofo do Iluminismo.65
Sobre a prisão, manifesta-se:
Ainda que a prisão seja diferente de outras penalidades, pois que deve, necessariamente, preceder a declaração jurídica do delito, nem por isso deixa de ter, como todos os demais castigos, o caráter essencial de que apenas à lei cabe indicar o caso em que se há de empregá-la. Assim sendo, a lei deve estatuir, de maneira fixa, por que indícios de delito um acusado pode ser preso e submetido a interrogatório.[...] À proporção em que as penas forem mais suaves, quando as prisões deixarem de ser a horrível mansão do desespero e da fome, quando a piedade e a humanidade adentrarem as celas, quando, finalmente, os executores implacáveis dos rigores da justiça abrirem os corações à compaixão, as leis poderão satisfazer-se com provas mais fracas para pedir a prisão.66
O autor italiano67 textualiza que a crueldade das penas leva a duas conseqüências
básicas que contrariam o seu próprio fim que é a prevenção do delito. A primeira é que essa
crueldade provoca uma dificuldade de proporção entre os crimes e as penas. A segunda, as
63 MANZINI apud FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. História do Direito Penal (crime natural e crime de plástico). São Paulo: Malheiros, 2005, p.53. 64 A obra Dos Delitos e das Penas, escrita por Beccaria, é mais de um discurso político do que de um estudo científico. Porém, este livro de pequenas dimensões foi sumamente oportuno e seus resultados foram altamente benéficos, em vista da aplicação de suas idéias em legislações de diversos países. (ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 258-259). 65 Ibidem, loc.cit. 66 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Rideel, 2003, p. 27-28. 67 Ibidem, p. 60-61.
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penas cruéis, ao servirem de espetáculo público, possuem um resultado passageiro que leva a
um rápido esquecimento, fato este que não ocorreria se houvesse um sistema de penas.
O marquês acrescenta ser melhor prevenir a prática de crimes do que puni-los
atestando ser este o real escopo de uma boa legislação, “que é a arte de propiciar aos homens
a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que lhes possam causar,
conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência”.
Adverte, ainda, que as leis devem ser claras, simples e defendidas por todos os
membros da nação, favorecendo menos as classes dos homens que os próprios homens. E que
o número de juízes deve ser grande, com o fito de minimizar a corrupção, já que a venalidade
é mais difícil entre membros que se observam uns aos outros. Por fim, ressalta que os avanços
da ciência devem servir para dar ao povo “educação”, pois somente esta levará o homem a
fazer as escolhas certas e a modificar os próprios sentimentos em prol da sociedade.
Esclarece:
Se derdes muitas luzes ao povo, a ignorância e a calúnia sumirão diante delas, a autoridade injusta tremerá, somente as leis ficarão inamovíveis, todo-poderosas; e o homem esclarecido amará uma constituição cujas vantagens são notórias, quando conhecidos os seus dispositivos, e que dá fundamentos sólidos à segurança pública.68
As lições de Beccaria são profundas e especialmente revolucionárias para a época em
que foram editadas. Verifica-se que, pelo grau de humanidade de que se revestem, foram
especialmente difíceis de serem adotadas em muitos países até os dias atuais. Mas, sem
dúvida, contribuíram na evolução do Direito Penal de muitas nações, constituindo-se na pedra
de toque de humanização das penas e das prisões.
Dentre os reformadores da pena de prisão também se destaca John Howard, nascido na
Inglaterra, que foi um dos grandes idealizadores da reforma carcerária, tendo inspirado uma
corrente penitenciarista preocupada na construção de estabelecimentos apropriados para o
cumprimento da pena privativa de liberdade.
Foi sheriff de Bedford e, através desse cargo, apaixonou-se pelo tema penitenciário.
Posteriormente, foi nomeado para o cargo de alcaide do condado de Bedford, sendo colocado
em contato direto com a situação de extrema gravidade em que se encontravam as prisões, na
Inglaterra. Com recursos próprios publicou, em 1777, a famosa obra The State of prisions in
England and Wales with na account of some goregen, que foi o resultado de 42.000 milhas de
viagem, quando percorreu toda a Europa investigando e analisando os distintos sistemas
penitenciários, destacando-se pelo seu sentido prático, humanitário e de grande entusiasmo no
68 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Rideel, 2003, p. 132.
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que tange à reforma penal.69
O relato das viagens realizadas por Howard, na obra mencionada, fornece uma visão
panorâmica de como a situação prisional estava evoluindo na segunda metade do século
XVIII. Observa que havia uma grande decadência70 da pena de prisão na Inglaterra71, que era
resultado da Revolução Industrial, ao passo que nas regiões onde as casas de correção haviam
encontrado certo clima adequado para seu crescimento, que eram os países de língua alemã, a
situação ainda era diferente.72
Howard menciona, em sua obra, que, durante os séculos XVII e XVIII, as casas de
trabalho e correção foram se diluindo por vários países, dentre eles, a Alemanha, o que
coincide com “o despertar econômico, político e cultural” da idade do Iluminismo,
verificando-se o declínio do uso das velhas formas punitivas, que se consubstanciavam na
pena capital ou em punições corporais. Tal fato, para ele, era uma constatação positiva, pois
relacionava a força de trabalho nas prisões com as melhores condições de vida que eram
proporcionadas aos presos. 73
Outrossim, por volta de 1801, após ter empreendido novas viagens àqueles locais antes
visitados, ressalta ter havido uma grande transformação no panorama dessas casas de trabalho
e correção, as quais já tinham sido atingidas pelos resultados da Revolução Industrial inglesa.
Com a importação das máquinas industriais da Inglaterra por esses países, ampliou-se, nesses
países, o exército de desocupados, ocorrendo, por conseqüência, o retorno dos métodos
69 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão - Causas e Alternativas. São Paulo: RT, 1993, p. 44-45. 70 A decadência da instituição carcerária, no dizer de Rusche e Kircheimer, invocados por Melossi e Pavarini, quer dizer “não uma diminuição do uso da pena de detenção, nem a difusão das instituições concebidas com esse objetivo – as casas de correção, contrapostas às velhas prisões de custódia”, mas sim “uma deterioração do regime interno do cárcere, no qual são abandonadas as finalidades econômicas e, por isso, indiretamente ressocializantes, sendo perseguidos, ao contrário, objetivos punitivos e terroristas”. (MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução: Sérgio Lamarão.Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006, p.80). 71 Considera-se que Howard encontrou as prisões inglesas em péssimas condições porque o desenvolvimento econômico que já havia alcançado a Inglaterra fazia desnecessário que a prisão cumprisse uma finalidade econômica e, portanto, indiretamente, socializante, devendo circunscrever-se a uma função punitiva e terrorífica. (BITENCOURT, op. cit., p. 45). 72 MELOSSI; PAVARINI, op.cit., p.80. 73 Constata-se na narrativa de Howard uma correspondência não casual entre trabalho no cárcere e as condições de vida dos detidos. Melossi e Pavari asseveram: “é falso estabelecer uma correspondência direta entre trabalho e comportamento socializante, de um lado, e não-trabalho e comportamento terrorista, de outro, visto que desde o surgimento da instituição os dois comportamentos sempre coexistiram, o que fica bem evidenciada na concepção do caráter punitivo do trabalho no cárcere”. Mas é importante ressaltar que as condições materiais de vida no interior do cárcere (higiene, possibilidade de comunicação e de solidariedade entre os detidos, alimentação, possibilidade de dispor de uma pequena soma de dinheiro pessoal etc.), são diferentes se essas condições são organizadas em torno da hipótese de um trabalho produtivo ou não. Daí entender-se que num regime econômico de desemprego elevado, “a situação institucional interna do cárcere se torna mais áspera e se retorna ao método duro, o que tende a contecer em toda a Europa na primeira metade do século XIX”, afirmam esses autores. (MELOSSI; PAVARINI, op.cit., p. 84).
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terroristas de gestão carcerária que caracterizaram boa parte do século XIX.74
Em verdade, Howard preocupou-se sobremaneira com a situação carcerária européia,
postulando que a pena dependia, para atingir seus fins ressocializantes, de quatro fatores
básicos: higiene, disciplina, economia e assistência religiosa. Sustenta que as prisões
deveriam ser limpas, bem ventiladas, com boa alimentação, devendo ser exigido asseio
corporal e sanitário dos presos, sendo-lhes também oportunizado o trabalho, com o escopo de
não onerar excessivamente os cofres do Estado com a sua manutenção. Quanto aos
funcionários das prisões, deveriam ser treinados e controlados pelo Poder Judiciário.75
Assinalou, talvez, pela primeira vez, a conveniência da fiscalização por magistrados da
vida carcerária e dizia que não se devia abandonar a prisão aos cuidados de um carcereiro.
Asseverava que em cada condado, em cada cidade, era preciso haver um inspetor eleito ou
nomeado pelo Parlamento para que cuidasse da ordem das prisões. Constatam-se, aí, os
fundamentos da existência da figura do “Juiz da Execução da Pena”, reconhecendo a enorme
importância que tinha o controle jurisdicional sobre os poderes outorgados ao carcereiro e da
facilidade no cometimento de abusos e práticas perversas e desumanas no meio carcerário.76
Conforme Luís Garrido Guzman: “A obra de Howard apresenta todo um programa de
idéias que hoje constitui, em grande parte, o núcleo dos sistemas penitenciários vigentes. Com
ele nasce a corrente penitenciária que revolucionaria o mundo das prisões, tornando-as mais
humanas e dotando a execução penal de um fim reformador”.77
A importância do pensamento de Howard se resume, pois, em seus estudos sobre a
humanização e racionalização das penas, numa época em que imperava o caráter vingativo e
retributivo sobre a sanção criminal. Infelizmente, “os esforços de Howard para reformar as
prisões deram poucos resultados concretos, porque as condições estruturais não permitiam
mudar a função meramente punitiva e de controle da prisão.78
Jeremias Bentham, pensador inglês, também teve destaque merecido no âmbito da
reforma carcerária. Adotou uma posição pragmática e metódica que exerceu grande
contribuição no campo da penalogia e decisiva influência tanto na reforma penal de seu país
(Inglaterra), como nos redatores do Código de Napoleão. “Foi quem melhores argumentos
proporcionou para o controle social institucionalizado das massas miseráveis”, atestam 74 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução: Sérgio Lamarão.Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006, p.80-82. 75 CRUZ, Rogério Schietti Machado. Processo Penal: pensado e aplicado. Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 44-45. 76 CALON apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão - Causas e Alternativas. São Paulo: RT, 1993, p. 48. 77 GUZMAN apud BITENCOURT, op. cit., p. 4. 78 BITENCOURT, op.cit., p.45.
33
Zaffaroni e Pierangeli.79
Entendia que a prevenção dos crimes devia ser um fim a ser perseguido pelo
legislador, além do Estado dever envidar políticas públicas no sentido de propiciar educação
da mocidade, com o escopo de evitar-se o cometimento de delitos. Para Bentham, na paz e na
felicidade das famílias, encontravam as sementes para a felicidade em geral.80
O autor supramencionado não aceitava que houvesse qualquer direito subjetivo natural
anterior ao Estado. Assim, rejeitou a Declaração francesa, de 1789. De forte veia positivista,
atesta que o único critério que se deve estabelecer para tornar crime uma ação é a utilidade
para declará-lo como tal e de sancioná-lo com uma pena. Esta pena deve resultar da aferição
do grau de dor que a ação repercute nos demais membros da sociedade.
Sobre a doutrina de Benthan, atestam Zaffaroni e Pierangeli:
[...] o critério de utilidade é o grau de felicidade. A legislação e a moral devem tender a produzir a maior quantidade possível de felicidade, de modo que ambas não podem ser distinguidas pelo objeto, mas por extensão, isto é, tudo que é imoral não pode ser declarado ilícito ou delitivo unicamente por considerações de tipo prático, que impõem ser o âmbito do direito mais limitado que o da moral. Não há outro limite à atividade do Estado que não seja o prático: quando a ingerência do Estado não produz maior felicidade, já não pode intervir.81
Nesse aspecto, fica evidenciado, segundo Bentham, que a pena é um mal, porque não
produz felicidade a quem é aplicada, mas, do ponto de vista de utilidade, que a suprema das
utilidades individuais, é um bem, porque “poupa dor mediante a prevenção particular e
geral”.82
Assim, define as penas legais, segundo o princípio da utilidade, aduzindo serem “os
males, que devem recair acompanhados de formalidades jurídicas sobre indivíduos
convencidos de terem feito algum ato prejudicial, proibido pela lei, e com o fim de se
prevenirem semelhantes ações para o futuro”. Nesse passo, entram nessa definição: o direito
de punir, o fim da pena, e a máxima restrição do castigo que for possível, além da
impossibilidade de extensão da pena para terceiros. 83
A sua grande contribuição, sob o ponto de vista penalógico, foi o sistema carcerário
conhecido como “panótico”, que era a construção de um estabelecimento radial, com
pavilhões a partir de um centro, comum, de onde se conseguia o máximo de controle sobre
79 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 265-266. 80 BENTHAN, Jeremy. Teoria das Penas Legais e Tratado dos Sofismas Políticos. São Paulo: CLEDIJUR, 2002, p. 13. 81 ZAFFARONI; PIERANGELI, op. cit., p. 266. 82 Ibidem, loc.cit. 83 BENTHAN, op.cit., p.20.
34
toda a atividade diária do encarcerado. Situado no centro, um único guarda podia “observar
todos os pavilhões com apenas um giro da cabeça”.84
Justificando o panótico, Bentham se expressa:
Tenho visto na França homens que alardeavam de uma extrema sensibilidade, argumentar contra este plano por aquele mesmo princípio, que faz o seu principal merecimento, quero dizer, pela sua Inspeção continuada. Seria um constrangimento insuportável, dizem eles, igual a todas as tiranias juntas, verdadeira imagem do inferno. Estes homens, tão mimosos pela sensibilidade, não se lembram certamente do estado em que se acham as cadeias, em que os presos estão em pinha, uns amontoados com os outros, sem poderem descansar nem de dia nem de noite. A inspeção contínua é o meio de fazer com que estejam menos incomodados, e a mais larga; acaba com os ferros e as enxovias; facilita o poderem desafogar uns com os outros; previne desavenças e motins (causa de infinitos males); protege os miseráveis contra os acintes de um carcereiro e brutalidade de seus companheiros;e ultimamente já se podem queixar quando lhes falta alguma coisa por descuido, o que é ordinariamente tão freqüente e tão cruel; já se podem entender diretamente com a pessoa que tem a primeira autoridade sobre eles.Quantas vantagens reais! Mas a sensibilidade quimérica não discorre assim.85
Michel Foucault afirma que Bentham inspirou-se no zoológico que Le Vaux construíra
em Versalhes, para a idealização do panóptico, embora, na época em que Bentham realizara a
sua obra, o zoológico já tivesse desaparecido. Atesta que se encontra nesse sistema carcerário
a preocupação da observação individualizante, da caracterização, da classificação e da
organização analítica da espécie, asseverando que o animal, naquele local, foi substituído pelo
homem, que a distribuição individual pelo grupamento específico e o rei pela maquinaria de
um poder furtivo.86
Pontua:
O Panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências, modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos Experimentar re médios e verificar seus efeitos. Tentar diversas punições sobre os prisioneiros, segundo seus crimes e temperamento e procurar as mais eficazes. [...]O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório do poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça.87
Cezar Bitencourt, invocando as assertivas do próprio Bentham, afirma não se poder
dizer que “no desenho do panótico só houvesse a preocupação com a segurança ou uma
tecnologia de dominação”. Afirma que ele, também, se preocupava, em “estimular a emenda
do réu e que a sua finalidade reabilitadora é que efetivamente fundamenta, entre outras razões, 84ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 267. 85 BENTHAN, Jeremy. Teoria das Penas Legais e Tratado dos Sofismas Políticos. São Paulo: CLEDIJUR, 2002, p. 130-131. 86 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 30.ed. Petrópolis: 2005, p. 168. 87 Ibidem, p. 168-169.
35
sua recusa ao isolamento celular permanente, idéia que se mantém em plena vigência” ainda
nos dias de hoje. Acrescenta que o sistema panótico sugere a integração de pequenos grupos,
e a classificação prévia segundo sua perversidade, com o fim de que essas pequenas
associações permitam uma reforma mútua.88
Embora a formulação do panótico, com as características imaginadas por Bentham,
não tenha se difundido plenamente, reconhece-se, entretanto, a importância de suas idéias,
pois continuam atuais, tanto do ponto de vista arquitetônico, já que seu projeto é um
antecedente imediato do desenho radial que muitas prisões apresentam, como também do
ponto de vista da doutrina penitenciária que atende à prevenção geral, com o propósito da
intimidação de novas práticas delituosas, pela sociedade e, sobretudo, da prevenção especial
que se preocupa, sobremaneira, com a reabilitação dos condenados.89
Feitas tais considerações no sentido da história da pena na civilização ocidental,
constata-se que desde os primórdios à contemporaneidade, houve uma sensível evolução no
sentido da cominação das sanções criminais, podendo-se verificar, inclusive, que os
problemas da pena de prisão começam a deixar de ser completamente ignorados, delineando-
se, paulatinamente, no cenário jurídico internacional, o relevante interesse em estabelecer
novos regramentos que se destinam a amenizar os rigores dessa sanção, embora não se possa
afirmar a chegada a um patamar ideal.
Arraigado à evolução humanística da forma de punir, encontra-se o questionamento
sobre os fins da pena, sendo digno de nota o estudo de suas principais teorias, como se fará a
seguir, como anteparo e fundamento às novas regras punitivas que vêm se delineando na
sociedade contemporânea.
2.2 OS FINS DA PENA: TEORIAS DESLEGITIMADORAS
O homem persegue, desde os primórdios da pena pública, uma justificação para o
direito do Estado de impor uma sanção criminal.
No dizer de Jorge de Figueiredo Dias, o problema dos fins da pena é tão velho quanto
a própria história do Direito Penal. Ressalta que a razão desse interesse e da sua persistência,
ao longo dos anos, está em que à sombra dos problemas dos fins da pena, se discutem
questões fulcrais da legitimação, fundamentação, justificação e função da intervenção penal
88 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão - Causas e Alternativas. São Paulo: RT, 1993, p. 55. 89 Ibidem, p. 58.
36
estatal. 90
Nesse passo, surgem teorias que creditaram à pena pública determinados fins ou
finalidades, visando a alcançar seu verdadeiro propósito dentro da sistemática do Direito
Penal.
No Direito contemporâneo, duas grandes vertentes político-criminais são abertas no
que tange à análise dos fins da pena ou do Direito Penal: as teorias legitimadoras e as teorias
deslegitimadoras.
As teorias legitimadoras reconhecem sob os mais diversos fundamentos (absolutos,
relativos ou mistos) a legitimação do Estado para intervir na liberdade dos cidadãos, através
do Direito Penal. As teorias deslegitimadoras consideram a intervenção do Direito Penal
desnecessária, o que ocorre de forma imediata, numa perspectiva abolicionista, ou mediata,
numa perspectiva minimalista radical.91
São teorias desligitimadoras aquelas representadas, basicamente, pelo abolicionismo
penal (Hulsman e outros) e pelo minimalismo radical (Baratta, Zaffaroni e outros), diz Paulo
Queiroz. Elas possuem em comum o fato de se insurgirem contra a existência do próprio
Direito Penal. Recusam legitimação ao Estado para exercitar o poder punitivo, sustentando
que o direito penal não resolve problemas e, ao contrário cria-os, selecionando tipos de forma
arbitrária, que causam sofrimentos inúteis ao cidadão.92
Para eles, há um descompasso entre o discurso oficial e a prática do Direito Penal, a
qual consideram nefasta, além de sustentarem que o sistema altamente repressivo do Estado
constitui um fator de aumento da criminalidade, apresentando-se verdadeiramente seletivo na
escolha de sua clientela.
Sobre a definição da criminalidade, Baratta assevera colocar-se sobre três planos
diferentes, que não devem ser confundidos, nem reduzidos a um só, com o escopo de poder-se
apreciar “a alternativa crítica do labeling approach93 em relação à ideologia da defesa
90 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais de Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT, 1999, p.89. 91 QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.69. 92 Ibidem, p.84. 93 Sobre as teorias do etiquetamento ou labelling approach, assinala Antônio Garcia-Pablos de Molina que ganhou, por volta dos anos 70, “grande vigor uma explicação interacionista do fato delitivo que parte dos conceitos de ‘conduta desviada’ e ‘reação social’. Genuinamente norte-americana, surge com a modesta pretensão de oferecer uma explicação científica aos processos de criminalização, às carreiras criminais e à chamada desviação secundária, adquirindo, sem embargo, com o tempo, a natureza de mais um modelo teórico explicativo do comportamento criminal”. Trata-se de uma perspectiva interacionista do crime, onde ele não pode mais ser entendido apartado da própria reação social, do processo social de definição ou seleção de certas pessoas e condutas etiquetadas como delitivas. “Delito e reação social são expressões interdependentes, recíprocas e inseparáveis. A desviação não é uma qualidade intrínseca da conduta, senão uma qualidade que lhe é atribuída por meio de complexos processos de interação social, processos estes altamente seletivos e discriminatórios. (GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antônio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução
37
social”.94
Caracteriza-se por ser, em primeiro lugar, um “problema metalingüístico”,
concernente à validade das definições que a ciência jurídica ou as ciências sociais
proporcionam de “crime” e de “criminoso”, e também quanto à validade da definição de
criminalidade, no que tange a “determinados comportamentos, dentro do senso comum e por
parte das instâncias oficiais do sistema penal”. Em segundo lugar, representa “um problema
teórico” que consiste “na interpretação sociopolítica do fenômeno pelo qual, em uma dada
sociedade, certos indivíduos, pertencentes a certos grupos sociais”, são dotados do poder de
estabelecer quais são as condutas tidas como crimes e também as pessoas que devem ser
perseguidas por essas práticas. Por fim, trata-se de um problema fenomenológico relativo aos
efeitos que a aplicação de uma “definição de criminoso” a certos indivíduos exerce sobre o
comportamento sucessivo do indivíduo, no sentido de uma eventual consolidação do papel
efetivo de uma carreira criminosa.95
Assim, para Juarez Cirino dos Santos96, a criminalidade não seria, no entender de
Baratta, “um dado ontológico preconstituído, mas realidade social construída pelo sistema de
justiça criminal através de definições e da reação social” E também “o criminoso não seria um
indivíduo ontologicamente diferente, mas um status social atribuído a certos sujeitos
selecionados pelo sistema penal”.
Prossegue o mesmo autor, aduzindo que o deslocamento do objeto da pesquisa dos
fatores da criminalidade para a reação social (labeling approach), que é definida como
mudança de paradigma da ciência , “projetaria luz sobre a criminalidade de colarinho branco,
como conivência entre empresários e políticos, expressão do prestígio social do autor e da
ausência de estereótipo para orientar a repressão, e sobre a cifra negra da criminalidade, como
distribuição social desigual da criminalidade pela seletividade dos órgãos oficiais e da opinião
pública”.
Baratta objetiva a completa abolição do cárcere, pontuando que a prisão não tem
qualquer função reeducativa e, ao contrário, causa a chamada marginalização das camadas
inferiores da sociedade. Mas, para alcançar esse desiderato, utiliza-se de um processo
evolutivo das punições, favorecendo-se das medidas alternativas, dos regimes de liberdade e
aos seus fundamentos teóricos. Introdução às bases criminológicas da Lei 9099/95 Lei dos Juizados Especiais Criminais. Tradução da primeira parte: Luiz Flávio Gomes e Davi Tangerino. 5.ed. São Paulo: RT, 2006, p.282-283). 94 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 109. 95 Ibidem, p. 109-110. 96 Em prefácio da obra de Alessandro Baratta (BARATTA, op. cit., p.11-12).
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semiliberdade e da abertura do cárcere para a sociedade civil, com o específico escopo de
reduzir os efeitos sobre a divisão da classe trabalhadora, procedendo, assim, a reinserção do
condenado na sociedade, desenvolvendo-se, também, a sua consciência política dentro do
movimento de classe, em substituição à concepção ético-religiosa da expiação e do
arrependimento. Sustenta, em acréscimo que, no interior de uma política criminal
radicalmente alternativa deve-se levar em conta a função da opinião pública, no âmbito da
questão criminal, promovendo-se discussões de massa no seio da sociedade.97
Busca, pois, Baratta, uma justificativa de superação do direito penal e da própria pena,
mencionando a necessidade de existência de formas alternativas de controle social do próprio
“desvio”, sobretudo, nas sociedades capitalistas que, conforme seu entendimento, primam
pela desigualdade e subordinação. Assim, menciona: “a sociedade se reapropria do próprio
desvio e administra diretamente seu controle”. Ademais, reforça que, para tanto, será
necessário buscar uma sociedade melhor. Por fim, contextualiza que, numa sociedade livre e
igualitária, o controle social não-autoritário do desvio deve abrir espaço para a diversidade,
que é garantida pela igualdade, onde cada homem deve ser respeitado como portador de
necessidades e capacidades positivas.98
Louk Hulsman, um dos principais representantes da teoria política abolicionista,
propõe a supressão do sistema penal e sua substituição por outros meios de resolução de
conflitos. Nesse passo, assevera: “o conceito de crime não é operacional: é a lei que diz o que
é crime”.99 Pugna por um “absoluto e radical câmbio nas estruturas de controle social,
abandonando gradualmente todos os sistemas formais, não somente o cárcere, para otimizar
modelos informais e societários (comunitários) de resolução dos conflitos”.100 Entende “ser
ontológico o problema do sistema criminal”, ou seja, faz parte da própria natureza do
fenômeno.101
O Direito Penal é, para esse autor, incontrolável, distribuidor de sofrimento
desnecessário, substancialmente desigual e expropriador dos direitos dos cidadãos
diretamente envolvidos no conflito, principalmente das vítimas. Trata-se de sistema
“especificamente concebido para fazer o mal”. Nesse diapasão, Hulsman “descreve as funções
97 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p.183-205. 98 Ibidem, p. 205-208. 99 HULSMAN apud QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 86. 100 HULSMAN apud CARVALHO, Salo de. Considerações sobre as Incongruências da Justiça Penal Consensual: retórica garantista, prática abolicionista. In: LOPES JR, Aury; PRADO, Geraldo; CHIES, Luiz Antônio Bogo; WUNDERLICH, Alexandre (Orgs.). Diálogos sobre a Justiça Dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.140. 101 CARVALHO, op. cit., p. 140.
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de seletividade, etiquetamento e estigmatização operadas pela incidência arbitrária, e não-
paritária como quer a tradicional doutrina liberal, do modelo nos diferentes estratos
sociais”.102 E sustenta: “a criminalidade efetiva é um evento raro e excepcional”.103
Assevera, ainda, Hulsman, que não existem crimes ou delitos, mas tão somente
“situações problemáticas”.104 E que essas situações problemáticas, as quais a justiça penal
denomina “crimes”, merecem inúmeras possibilidades de acertamento e de reações possíveis
além da punição, como, por exemplo, a mediação, a conciliação, a arbitragem, a terapia, a
educação, entre outras. Assim, “a primeira orientação proposta pelo autor é a radical
modificação da linguagem penal (abolicionismo acadêmico)”. 105
Com essa mudança de linguagem ocorreria, no dizer de Hulsman, como conseqüência
positiva, “a não segregação maniqueísta da sociedade entre vítimas e criminosos, rompendo
com a estrutura ideológica dos modelos de defesa social, estruturados sob o princípio do bem
e do mal”. Vê os sistemas cíveis e administrativos como modelos de justiça que
flexibilizariam o diálogo entre a vítima e o réu, facilitando a resolução do problema existente
entre ambos.106
Salo de Carvalho afirma que a metodologia utilizada por Hulsman, na proposta do
abolicionismo supramencionado, traduz-se num enfoque eminentemente fenomenológico.
Trata-se de uma “fenomenologia ecológica, de raiz cristã, expressa pela orientação de
aproximar-nos do problema mesmo”.107
Nils Christie, por sua vez, apresenta uma versão abolicionista que considera ter
chegado o momento de assumir uma posição moral frente à dor e ao sofrimento que é
originário do castigo da pena corporal, injustamente provocado pelo homem, como intuito de
proceder a um efetivo controle social.
A vertente abolicionista de Nils Christie traduz-se no sentido de que o sistema penal e,
principalmente, a pena, “são estruturas de controle social encarregadas de produzir sofrimento
e impor dor”. Nesse passo, expressa-se que os sistemas sociais deveriam ser construídos de
forma a ser reduzida ao mínimo a necessidade de impor dor para efetivar o controle social.
Busca, assim, “opções aos castigos e não castigos opcionais como são as sanções penais
102 HULSMAN apud CARVALHO, Salo de. Considerações sobre as Incongruências da Justiça Penal Consensual: retórica garantista, prática abolicionista. In: LOPES JR, Aury; PRADO, Geraldo; CHIES, Luiz Antônio Bogo; WUNDERLICH, Alexandre (Orgs.). Diálogos sobre a Justiça Dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.140. 103 HULSMAN apud CARVALHO, op. cit., p.140. 104 HULSMAN apud CARVALHO, op. cit., p.140. 105 CARVALHO, op. cit., p.141. 106 HULSMAN apud CARVALHO, op. cit., p.142. 107 CARVALHO, op.cit., p.143.
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alternativas e/ou substitutivas”.108
As críticas de Christie atingem as teorias penalógicas positivistas, que se
consubstanciam na ideologia do tratamento, quanto aos modelos neoclássicos, que possuem
uma ideologia utilitarista. E fundamenta a desconstrução do modelo etiológico, em três
premissas básicas, a saber: “a) os ‘centros de tratamento’do delinqüente são similares quando
não idênticos, aos cárceres comuns; b) os ‘métodos científicos’ são inexitosos, pois nunca
impediram a reincidência; c) os conceitos – como o de periculosidade – são absolutamente
isentos de predicação”.109
Sustenta que a ideologia do tratamento leva à imposição do castigo escondido, à
imposição secreta da dor, fazendo crer que se oferece uma cura ou tratamento.110 Diz, ainda,
que as ideologias da prevenção geral e especial são gêmeas, pois o que se visa com a pena, na
realidade, é a modificação do delinqüente através da imposição de uma “dor”, de um castigo,
o mesmo ocorrendo com a idéia de prevenção geral que, utilizando-se de uma ideologia
intimidatória, almeja castigar o delinqüente.111
Reconhece, entretanto, que algumas classes de castigo evitam certas ações, em
determinadas circunstâncias, pois se ninguém impõe qualquer castigo, pode surgir o caos.
Nesse passo, Nils Christie atesta que a teoria da prevenção geral, em sua forma mais
elementar, é completamente válida. Mas também afirma que o problema ocorre quando, na
prática, os políticos se utilizam dessa ideologia para aumentar as penas de certos delitos ou
quando os juízes decidem ser particularmente severos, ao fundamentarem suas sentenças,
utilizando-se de penas demasiado altas por razões de prevenção geral. Argüi, em acréscimo,
não haver cifras científicas de que essa intimidação tenha o poder de diminuir a criminalidade
e que a imposição de uma pena nada mais é do que uma declaração moral.112
Para o autor, a solução para o problema do sistema penal estaria na composição de
estruturas de justiça participativa e comunitária, mais próximas dos sistemas privatistas do
que do modelo processual e sancionatório criminal. Através desses sistemas, deixar-se-ia de
utilizar a privação ou a restrição de liberdade para assumir-se a “reparação ou indenização”
com o escopo de compor o conflito, uma vez que a vítima não poderia ser impedida, pelo
108 CARVALHO, Salo de. Considerações sobre as Incongruências da Justiça Penal Consensual: retórica garantista, prática abolicionista. In: LOPES JR, Aury; PRADO, Geraldo; CHIES, Luiz Antônio Bogo; WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Diálogos sobre a Justiça Dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.137. 109 Ibidem, p.137. 110 CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Traducción de Mariluz Caso. México: Fondo de Cultura Econômica, 1984, p. 63. 111 Ibidem, p. 35. 112 Ibidem, p. 36-42.
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Estado, de participar dessa composição, devendo ser colocada em posição de igualdade
processual com o réu, com o fito de auferir-lhe capacidade de negociação na busca de uma
compensação em vista da prática do ilícito. 113
Nesse diapasão, Nils Christie atesta:
em los últimos anõs hemos observado um mayor interes porla aplicación de medidas no penales, como uma alternativa al castigo, la mayoría de las cuales se basa em discusiones directas entre las partes, que com frecuencia terminam em acuerdos de reparación del daño causado. Este cambio va desde el uso monopólico de la pena por parte del estado hacia los intentos por permitir que las partes tengan oportunidad de encontrar-se y buscar por si mismos formas de reparar el daño. Estas ideas em conjunto se llaman “ideas abolicionista”, aunque algunas veces se la encuentra bajo denominaciones como “descarcelación o descriminalización”.114
É importante salientar que, para os partidários dessas concepções, a norma penal não
se presta a dissuadir comportamentos, ou seja, ninguém deixa de cometer crimes em face de
poder sofrer a resposta do Estado repressivo: o processo de motivação tem outras causas
(morais, religiosas, culturais, etc.).115 Zaffaroni pontua que o sistema penal se mostrou
totalmente incapaz de conter os abortos e que se comportou com indiferença a respeito dos
homicídios de trânsito, e, nesse panorama, o discurso jurídico-penal se revela como
inegavelmente “falso”, porém sendo sustentado, em boa parte, “pela incapacidade de ser
substituído por outro discurso em razão da necessidade de se defenderem os direitos de
algumas pessoas”.116
Tais teorias levam também em conta que os números da criminalidade oculta (não
oficial) passa bem longe do conhecimento e atuação do sistema penal, “quer porque
desconhecida, quer porque não identificados os seus autores, quer porque alcançados pela
prescrição, quer porque objeto de composição extrajudicial, quer porque não provados etc.”,
concluindo que “a criminalidade registrada, investigada, processada e objeto de condenação e
execução penais é irrisória, desprezível”. Assim, no dizer de Hulsman, um sistema que só
intervém na vida social “de maneira tão marginal e estatisticamente desprezível”, deve ser
abolido.117
Assinalam, como fez Baratta, que o sistema penal seleciona sua clientela
arbitrariamente entre os grupos mais vulneráveis da sociedade, entre as camadas mais pobres, 113 CARVALHO, Salo de. Considerações sobre as Incongruências da Justiça Penal Consensual: retórica garantista, prática abolicionista. In: LOPES JR, Aury; PRADO, Geraldo; CHIES, Luiz Antônio Bogo; WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Diálogos sobre a Justiça Dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.139. 114 CHRISTIE apud CARVALHO, op.cit., p.139. 115 QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.86. 116 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 13-14. 117 HULSMAN apud QUEIROZ, op.cit., p.87.
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reproduzindo, assim, desigualdades sociais materiais, e que a igualdade formal dos sujeitos de
direito serve, em verdade, de veículo e instrumento de legitimação de profundas
desigualdades materiais. O sistema penal é, contrariamente a toda a aparência, um sistema
desigual por excelência. 118
Em acréscimo, esses autores sustentam que o direito penal age em resposta aos
sintomas ou conseqüências do crime, e não às suas próprias causas. Isso dá resultado a um
aumento do número de leis, de profissionais ligados à contenção da criminalidade e de presos,
porém, não diminui os crimes. Há uma intervenção tardia no conflito social: “não quando este
se produz, mas quando e onde se manifesta”, não traduzindo uma “resposta etiológica,
adequada às causas do problema, mas meramente sintomatológica”.119
Sugerem, ainda, esses estudiosos, o caráter criminógeno do sistema penal, eis que, em
vez de coibir práticas delitivas, cria um espaço propício para a proliferação dessas práticas.
Paulo Queiroz exemplifica a assertiva com a contravenção do jogo do bicho e o tráfico ilícito
de entorpecentes, aduzindo que, “se, de um lado, o direito penal não inibe tais
comportamentos, por outro, ao condená-los à clandestinidade, torna-os extremamente
atraentes do ponto de vista econômico-financeiro, estabelecendo-se, em conseqüência, entre
seus exploradores, uma concorrência violenta e sanguinária, exatamente porque
criminalizados”.120
Certificam também que o direito penal intervém sobre pessoas, e não sobre situações,
a saber, sobre a idéia de culpabilidade individual (pessoal), desprezando completamente o
ambiente ou o sistema social em que essas pessoas estão inseridas e, por fim, atestam que a
equivocada intervenção do sistema penal trata tanto a vítima, como o delinqüente, da mesma
maneira, supondo que todas as vítimas têm as mesmas reações e necessidades. Assim, sobre
esse aspecto, manifesta-se Nils Christie: “La victima en un caso penal es una espécie de
perdedor por partida doble en nuestra sociedad: en primer lugar frente al infractor, y despues
frente al Estado. Está excluído de cualquer participación en su propio conflicto. El Estado lê
roba su conflicto, un todo que es llevado a cabo por profesionales”.121
A crítica que se coloca a essas teorias é que, embora se tenha plena consciência e que
se saiba da própria violência institucionalizada que representa o direito penal e de todos os
defeitos intrínsecos do sistema em que se desenvolve, não se pode rechaçá-lo pura e
118 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. 2.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p.166. 119 PABLOS apud QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.89. 120 QUEIROZ, op.cit., p.90. 121 CHISTIE, Nils. Los limites del dolor. México: Fondo de Cultura Econômica, 1984, p.126.
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simplesmente, como desejam os abolicionistas.
O Direito Penal é, sem dúvida, ainda, necessário, nesse momento histórico, para
assegurar a integridade dos bens jurídicos que são indispensáveis para que o homem possa
viver em sociedade, como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade, etc., e,
também, de grande utilidade para promover a paz social, a fim de evitar o ressurgimento da
vindita privada.
Acrescente-se que também o Direito Penal possui a incumbência de prevenir o
aparecimento de um Direito sancionador que se destinaria à proteção desses bens jurídicos
muitos deles inalienáveis. Este seria, também, seletivo e discriminador e o pior: estariam
ausentes as garantias incorporadas desde o Iluminismo que vêm se aperfeiçoando conforme as
ordens constitucionais democráticas.
Há perigo, no dizer de Salo de Carvalho, em converter o sistema formal de controle
processual penal em modelos desregulamentados de composição dos conflitos, “que tendem a
reeditar esquemas pré-contratuais (sociedade primitiva) e/ou formar modelos disciplinares
(panoptismo social), ou ainda a criação de instâncias formais civil-administrativas isentas das
garantias típicas do processo penal”. Nesse diapasão, adverte:
O primeiro modelo revela um estado isento de legalidade e limites às liberdades, configurando um modelo de resposta irracional à violação dos direitos, ou instaura modelos pedagógicos de higienização sociopolítica de sociedades de tecnologia maximizada e total. O segundo modelo, administrativizado, acaba por ser um dos modelos vigentes na estrutura processual contemporânea (modelos anteriores e supervenientes ao processo penal de cognição) e representa sistema de extrema violência aos direitos fundamentais.122
Nesse passo, a solução que se impõe é uma ampla reflexão sobre a necessidade de um
Direito Penal mínimo que seja efetivamente necessário ao controle racional da criminalidade,
tanto na esfera da seleção das condutas típicas, como também da própria essência das sanções
punitivas, que devem ser proporcionais aos crimes praticados, respeitando, sobretudo, a
dignidade da pessoa humana, como vêm se delineando, no panorama jurídico internacional, as
penas restritivas de direitos.
Também as políticas sociais de inclusão de pessoas que se encontram marginalizadas
da sociedade são um importante meio de pacificação de conflitos e de diminuição da prática
de crimes e não podem deixar de fazer parte de uma política criminal eficaz.
Em prisma diverso do abordado pelos abolicionistas e minimalistas radicais,
122 CARVALHO, Salo de. Considerações sobre as Incongruências da Justiça Penal Consensual: retórica garantista, prática abolicionista. In: LOPES JR, Aury; PRADO, Geraldo; CHIES, Luiz Antônio Bogo; WUNDERLICH, Alexandre (Orgs.). Diálogos sobre a Justiça Dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 144-145.
44
legitimando a intervenção estatal no âmbito do Direito Penal, destacam-se as teorias da
retribuição e da prevenção (geral ou especial).
2.3 TEORIAS LEGITIMADORAS
2.3.1 Teorias Absolutas ou Retributivas
As teorias absolutas ou retributivas fundamentam a existência da pena unicamente na
prática de um delito, ou melhor, nelas a pena possui um fim em si mesmo, e sua legitimação
decorre do simples fato de ter sido cometido um delito.Trata-se de uma exigência de justiça:
pela compensação da culpabilidade ou punição pela transgressão do direito (teoria da
retribuição), ou como expiação do agente (teoria da expiação).123
Conforme Santiago Mir Puig:
La concepción más tradicional de la pena vê en ella la retribución exigida por la Justicia por la comisión de un delito. Es la teoria retributiva. Responde a la arraigada convicción de que el mal no debe quedar sin castigo, y el culpable debe encontrar en él su merecido. La función de la pena se centra, según este punto de vista, en la realización de la Justicia impidiendo que la injusticia ‘triunfe’. La pena no aparece entonces como un instrumento dirigido a la consecución de fines utilitários de bienestar social, como seria el de protección de la sociedad, sino como exigencia ética derivada del valor Justicia. 124
As formulações de cunho absoluto possuem origem no idealismo alemão, merecendo
relevo a teoria da retribuição ética ou moral de Kant, pois a pena deriva de um imperativo
categórico, a saber, de um imperativo moral incondicional. “As penas são, em um mundo
regido por princípios morais (por Deus), categoricamente necessárias”.125
Kant enuncia na obra Metafísica dos Costumes (1797)126: “ainda que uma sociedade se
dissolvesse por consenso de todos os seus membros (assim, p. ex., se o povo que habitasse
uma ilha decidisse separar-se e dispersar-se pelo mundo), o último assassino deveria ser
executado”. Acrescenta: “o mal imerecido que tu fazes a outrem, tu fazes a ti mesmo, se tu o
ultrajas, ultrajas a ti mesmo, se tu o roubas, roubas a ti mesmo, se tu o matas, matas a ti
mesmo”. Daí considerar o princípio talional (dente por dente, olho por olho) como o
paradigma da verdadeira justiça.127
Em Hegel, a pena atende não a um mandamento absoluto de justiça, como em Kant,
123 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, v. 2, p. 553. 124 MIR PUIG, Santiago. Estado, Pena y Delito. Buenos Aires: B de F Ltda, 2006, p. 38. 125 KANT apud QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.70. 126 KANT apud CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p.121. 127 KANT apud QUEIROZ, Paulo, op. cit., p.70.
45
mas sim, a uma exigência da razão, o qual se justifica através de um processo dialético
inerente ao próprio conceito de direito. Assim: “o delito é uma violência contra o direito; a
pena, uma violência que anula aquela primeira violência (o delito); a pena é, portanto, a
negação da negação do direito, ou seja, é a sua afirmação (segundo a regra, a negação da
negação é a sua afirmação)”. Nesse passo, a pena é uma necessidade lógica ou a manifestação
da vontade racional. “A pena é a reafirmação da vontade racional sobre a vontade irracional,
servindo a pena para restaurar uma idéia, precisamente para restaurar a razão do direito,
anulando a razão do delito”. Segundo essa concepção, a pena constitui um direito do agente, o
que o “dignifica como ser racional”. 128
O autor trata das relações entre crime, violência e penalidade na obra Princípios da
Filosofia do Direito (1820). Para Hegel, a pena é justificada por uma violência que destrói
outra violência: “a supressão do crime é a remissão, quer segundo o conceito, pois ela
constitui uma violência contra violência, quer segundo a existência, quando o crime possui
uma certa grandeza qualitativa e quantitativa que se pode também encontrar na sua negação
como existência”.129
Nesse passo, o crime, para o filósofo, é considerado como uma violação da ordem,
justificando a imposição retributiva da pena. “O delito deveria ser eliminado/neutralizado não
como produção de uma mal, mas de uma lesão ao direito enquanto tal”.130
As teorias de Kant e de Hegel possuem em comum, conforme leciona Luiz Regis
Prado, a idéia essencial de retribuição e o reconhecimento de que entre o delito praticado e a
sua punição deve haver uma relação de igualdade. “A diferença entre elas repousa no fato de
que a teoria hegeliana se aprofunda mais na construção de uma teoria positiva acerca da
retribuição penal e na renúncia à necessidade de uma equivalência empírica no contexto do
princípio da igualdade”.131
Consoante os partidários das teorias supramencionadas, quaisquer tentativas de
justificá-las por seus fins utilitários (fins preventivos) implica em afronta à dignidade humana
do delinqüente, eis que este seria utilizado como instrumento para a consecução de fins
128 GARCIA apud QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.71. 129 HEGEL apud CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 122-123. 130 CARVALHO, op. cit., p.123. 131 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 554. Com a teoria da retribuição lógico-jurídica de Hegel, a pena é negação do delito e, conseqüentemente, uma afirmação do Direito que havia sido negado pelo delito. Tal construção é jurídica e, por isso se trata de uma teoria positiva da retribuição. Nas palavras de Hegel: “Como evento que é, a violação do direito enquanto direito possui, sem dúvida,uma existência positiva exterior, mas contém a negação. A manifestação dessa negatividade é a negação desta violação que entra por sua vez na existência real; a realidade do direito reside na sua necessidade ao reconciliar-se ela consigo mesma mediante a supressão da violação do Direito”. (HEGEL apud PRADO, op. cit., p. 554).
46
sociais.132
Kant e Hegel não foram os únicos defensores das teorias absolutas da pena. Dentro na
doutrina internacional, constata-se a existência de outras opiniões semelhantes, tais como as
de Carrara, Binding, Mezger e Welzel, destaca Cezar Bitencourt.133
Cláudio Alberto Gabriel Guimarães sustenta que foi com o advento da Escola Clássica
que houve o mais significativo desenvolvimento da doutrina retribucionista, e que os
pensamentos de Beccaria, Kant, Hegel e Carrara são “pontos de referência até hoje utilizados
pelos teóricos”. Francesco Carrara, considerado por muitos o “pai da dogmática penal”, expõe
seus fundamentos nos pilares das teorias absolutas.134
Segundo o próprio Carrara:
Assim, a pena, que em nada remedeia o mal material do delito, é terapêutica eficacíssima e única para o mal de ordem moral. Sem ela, os cidadãos, que pela repetição das malfeitorias sentiriam cada dia mais esvair-se a própria segurança, seriam constrangidos ou a entregar-se às violentas reações privadas, perpetuando a desordem e substituindo o governo da força ao da razão, ou a abandonar uma sociedade incapaz de protegê-los.
§ 623. Dessa maneira, o fim último da pena é o bem social, representado pela ordem que se diligencia graças à tutela da lei jurídica: e o efeito do fato penal se conjuga à causa que o legitima.135
Registra, em acréscimo, Cezar Bitencourt, que a antiga ética cristã defendeu uma
teoria retributiva da pena, constatável em duas direções distintas: “de um lado, a teoria de dois
reinos, e, de outro, a teoria da analogia entis. A primeira refere-se à idéia de uma ordem
universal criada por Deus. A segunda da identidade entre o ser divino e o humano”.
Conforme Jescheck, o conteúdo dessas teorias se resume no seguinte:
Esta teoria – a dos dois reinos – foi mantida por um setor da teologia protestante e pela antiga teoria católica. O sentido da pena está enraizado para Althaus nela mesma como manutenção da ordem eterna ante e sobre o delinqüente. E, para Trilhaas, encerrado na idéia de expiação, o sentido da pena, sem considerar os seus fins, orienta-se unicamente em relação ao bem propriamente e a pena, sem efeitos secundários, afeta somente ao delinqüente. Mais recentemente, o Papa Pio XII, citando a teoria da analogia entis, em sua mensagem ao VI Congresso Internacional de Direito Penal, afirmou: “O Juiz Supremo, em seu julgamento final, aplica unicamente o princípio da retribuição. Este há de possuir, então, um valor que não deve ser desconhecido”. 136
Sem dúvida que a crítica roxiniana a essa teoria tem completa pertinência: tal teoria, 132 CEREZO MIR apud PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, v. 1, p. 555. 133 BITENCOURT, Cezar. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v.1, p.74. 134 GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da Pena Privativa de Liberdade no sistema pena capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 103. 135 CARRARA, Francesco. Programa de Direito Criminal: Parte Geral. Tradução Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2002, v.2, p. 82. 136 BITENCOURT, op.cit., p. 74-75.
47
na forma concebida em sua origem, não apresenta um objetivo a ser alcançado com a pena.
Faltam lógica, racionalidade e humanidade pensar-se que o Estado possa infligir um mal a um
cidadão sem qualquer finalidade a ser alcaçada. Diz o mestre alemão:
É claro que tal procedimento corresponde ao arraigado impulso de vingança humana, do qual surgiu historicamente a pena; mas considerar que a assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto da vingança humana, e que a retribuição tome a seu cargo a culpa de sangue do povo, expie o delinqüente, etc., tudo isto é concebível apenas por um ato de fé que, segundo a nossa Constituição, não pode ser imposto a ninguém, e não é válido para uma fundamentação, vinculante para todos, da pena estatal.137
Hoje, contudo, a idéia de retribuição jurídica guarda uma relação de proporcionalidade
com o injusto culpável, conforme o princípio de justiça distributiva. Desta maneira, a
concepção contemporânea não corresponde a um sentimento de vingança social, mas
equivale, em contrapartida, a um princípio limitativo, segundo o qual “o delito perpetrado
deve operar como fundamento e limite da pena”.138
Os retributivistas da atualidade têm se esforçado para manter viva a teoria,
caminhando-se na direção de uma teoria funcional da retribuição, em que “fundamento e fim
da pena se unem e adquirem uma só dimensão ‘dialético-hegeliana’, superando a oposição
entre a fundamentação absoluta e a fundamentação relativa”.139 Nesses termos, manifesta-se
Morselli:
Em outros termos, não é de ‘prevenção geral integradora’ que se deve propriamente falar, mas sim, de retribuição integradora, ou melhor, de restituição do significado positivo e construtivo que sempre foi próprio da clássica idéia retributiva. A prevenção geral não é outra coisa que prevenção de futuros delitos; mas esta prevenção não é senão um ‘efeito induzido’ da retribuição: efeito negativo de aflição e efeito positivo sobre o sentimento coletivo de justiça.140
2.3.2 Teorias Relativas ou Utilitárias
As teorias relativas ou teorias da prevenção enxergam a pena como um meio a serviço
de determinados fins, dando-lhe uma destinação utilitária ou finalista, no combate à
ocorrência e reincidência criminais, devendo funcionar como instrumento destinado a impedir
a prática delituosa. Elas se dividem em teorias da prevenção geral e teorias da prevenção
especial. 137 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3. ed. Lisboa: Vega Universidade, 2004, p. 19. 138 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, v. 1, p. 555. 139 GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da Pena Privativa de Liberdade no Sistema Penal Capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 112. 140 MORSELLI apud GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da Pena Privativa de Liberdade no sistema pena capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 112 (nota de rodapé).
48
A prevenção geral se destaca pela intimidação de todos os indivíduos, através da
cominação dos delitos e das penas, avisando aos membros da sociedade quais as reações
injustas contra as quais o Estado reagirá com a aplicação de uma pena.
Já a teoria da prevenção especial estabelece que “o fim a que aspira a pena é
desencorajar ou dissuadir o indivíduo que, tendo infringido uma norma penal, volte a cometer
delitos”, ou seja, busca obstar a reincidência.141
Da mesma forma que a teoria da retribuição, as teorias preventivas consideram a pena
um “mal necessário”, entretanto tal necessidade não reside na idéia de fazer justiça que é
creditada à primeira, mas na função de inibir, dentro dos limites do possível, a prática de
novos crimes.142
As afirmações iniciais que fundam as teorias relativas atribuem-se a Sêneca que, ao
utilizar-se de Protágoras de Platão, asseverou: Nemo prudens punit quia peccatum est sed ne
peccetur, que assim se traduz: “Nenhuma pessoa responsável castiga pelo pecado cometido,
mas sim para que não volte a pecar”.143
No dizer de Aníbal Bruno:
Para as teorias relativas ou finalistas, a razão de ser da pena está na necessidade de segurança social, a que ela serve, como instrumento de prevenção do crime. Nela está presente a justiça como critério regulador, a limitar as exigências da segurança em relação ao criminoso. Mas o que a justifica e lhe dá a sua orientação é o fim da defesa da sociedade.144
E acrescenta: “Nas teorias relativas, o crime é apenas um pressuposto; a razão de ser
da pena está no fim que se lhe atribua – prevenção geral, pela intimidação; prevenção
especial, pela emenda ou segregação do condenado. Punitur ne peccetur”.145
Mas é importante salientar que existem formas de prevenção da prática de crimes que
não se restringem à cominação, aplicação e execução de sanções criminais. São as chamadas
formas: primária, secundária e terciária que, desde Caplan, merecem especial atenção dos
estudiosos de criminologia. 146
Registre-se que tal distinção baseia-se em diversos critérios: “na maior ou menor
relevância etiológica dos respectivos programas, nos destinatários aos quais se dirigem, nos 141 HIRECHE, Gamil Föppel El. A função da pena na visão de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 22. 142 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão - Causas e Alternativas. São Paulo: RT, 1993, p, 115. 143 Ibidem, p, 115. 144 BRUNO, Aníbal. Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, v.3, p. 34. 145 Ibidem, p. 34-35. 146 GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antônio. Criminologia: introdução aos seus fundamentos teóricos. Introdução às bases criminológicas da Lei 9099/95 – Lei dos Juizados Especiais Criminais. 5.ed. Tradução da primeira parte: Luiz Flávio Gomes e Davi Tangerino. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 313.
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instrumentos e mecanismos que utilizam, nos seus âmbitos e fins perseguidos”.147
A primeira diz respeito à preocupação inicial em evitar a prática de delitos, buscando
as causas da delinqüência até a necessidade de evitar a reincidência. São programas de
prevenção que atuam na origem do problema da criminalidade. Passam por uma reforma de
base na sociedade, com investimentos em educação, moradia, saneamento básico, ou seja,
tudo que proporcione às pessoas uma vida digna. Criam os pressupostos necessários para
resolver as “situações carenciais criminógenas”. Trata-se de “estratégias de política cultural,
econômica e social, cujo objetivo último é dotar os cidadãos, consoante as palavras de
Lüderssen148, de capacidade social para superar de forma produtiva eventuais conflitos”.149
A prevenção secundária se caracteriza por conectar-se com a política legislativa penal,
da mesma forma que com a ação policial, “fortemente polarizada pelos interesses de
prevenção geral”. Definem-se como “programas de prevenção policial, de controle dos meios
de comunicação, de ordenação urbana e utilização do desenho arquitetônico como
instrumento de auto-proteção, desenvolvidos em bairros de classes menos favorecidas”.150
Assim, tal prevenção não atua sobre a coletividade, mas somente sobre aquelas pessoas que
poderiam ser alvo da atenção do Poder Público porque são supostamente propensas ao
cometimento de crimes.151
A prevenção terciária tem como destinatário o recluso, ou seja, a população carcerária,
e tem por escopo “evitar a reincidência”.Possui os defeitos de ser uma intervenção tardia, pois
se processa após o cometimento do delito; parcial, porque só atinge ao condenado; e
insuficiente, já que não neutraliza as causas do problema criminal. Porém, no dizer de
Antônio Garcia-Pablos de Molina, possui um objetivo útil, que é procurar evitar a
reincidência.152
Sem dúvida que dentre essas formas preventivas a mais eficaz é a prevenção primária.
Mas é a mais trabalhosa e dispendiosa para o Estado, além de atuar a médio e longo prazo,
exigindo “prestações sociais e intervenção comunitária”.153
Mas nem sempre a sociedade e o Poder Público estão dispostos a investir em soluções
147 GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antônio. Criminologia: introdução aos seus fundamentos teóricos. Introdução às bases criminológicas da Lei 9099/95 – Lei dos Juizados Especiais Criminais. 5.ed. Tradução da primeira parte: Luiz Flávio Gomes e Davi Tangerino. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 313. 148 LUDERSSEN apud GARCIA-PABLOS DE MOLINA, op.cit, p.313. 149 GARCIA-PABLOS DE MOLINA, op.cit, p. 313. 150 Ibidem, loc.cit. 151 HIRECHE, Gamil Föppel El. A função da pena na visão de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 22. 152 GARCIA-PABLOS DE MOLINA, op.cit., p. 313. 153 Ibidem, loc.cit.
50
que podem demorar muito para repercutir em bons frutos. Preferem a edição de leis
simbólicas, repressivas e julgam que essa intimidação será suficiente para conter a
criminalidade. Termina-se legando ao Direito Penal a solução de contenção dos delitos, que o
desvirtua de sua função de ultima ratio, tendendo a não se desincumbir do múnus.
Uma gestão governamental fundamentada em políticas públicas que envidassem
esforços para a diminuição da pobreza, com o favorecimento das prestações sociais
indispensáveis à sobrevivência saudável serviria, com sucesso, a uma grande prevenção da
criminalidade, sobretudo, nos delitos praticados contra o patrimônio.
Outrossim, a Criminologia clássica preferiu um conceito de prevenção stricto sensu,
ligado, apenas, à dissuação penal, tanto da coletividade, como do próprio delinqüente, através
da imposição de sistemas legais de cominação, aplicação e e execução de penas. Examinemos
as principais teorias:
2.3.2.1 Teoria da Prevenção Geral Negativa
Deve-se a Paul Anselm Ritter von Feuerbach a principal e mais rica formulação da
teoria da prevenção geral em sua versão negativa: “teoria da coação psicológica”. Segundo tal
concepção, a pena aplicada ao autor da infração penal tende a repercutir, junto à sociedade,
evitando-se que as demais pessoas que se encontram com os olhos voltados na condenação de
um de seus membros possam refletir antes da prática de qualquer delito. Trata-se do exercício
de um fim utilitário da pena que exerce forte influência psicológica no indivíduo, com o
escopo de refrear possíveis impulsos criminais. Dentre seus defensores também estão
Bentham, Beccaria, Filangieri e Schopenhauer154.
Expressa-se Feuerbach:
Se de todas as formas é necessário que se impeça as lesões jurídicas, então deverá existir outra coerção junto à física, que se antecipe à consumação da lesão jurídica e que, proveniente do Estado, seja eficaz em cada caso particular, sem que requeira o prévio conhecimento da lesão. Uma coação dessa natureza só pode ser de índole psicológica.155
Conforme Santiago Mir Puig, os retribucionistas acreditam que a pena serve à
realização da Justiça e que se legitima suficientemente como a exigência de se pagar um mal
com outro mal. Os prevencionistas crêem, entretanto, que o castigo da pena se impõe para
evitar a delinqüência e que este castigo só se justifica quando ele é necessário para combater o 154 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2003, p.76. 155 FEUERBACH apud GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da Pena Privativa de Liberdade no sistema pena capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 46.
51
delito.156
As doutrinas intimidatórias da pena existem desde a Antigüidade Clássica, como
revela Aristóteles.157 E continuam presentes, anos depois, podendo ser constatadas até mesmo
na literatura. Senão, examine-se o trecho da obra O Príncipe, de Maquiavel: “E os homens
têm menos respeito aos que se fazem amar do que aos que se fazem temidos, porque o amor é
conservado por um vínculo de obrigação, o qual se rompe por serem os homens maldosos,
em todo o momento que se quiserem, ao passo que o temor é alimentado pelo medo do
castigo, que nunca te abandona”.158
Osvaldo Henrique Marques assevera ter predominado a intimidação, com base na
teoria da prevenção geral negativa, durante os séculos XVI e XVII, quando fora alçada a
forma absolutista de Estado, sendo de praxe, na época, o uso da pena capital, como meio de
exemplar a sociedade.159 Em suas próprias palavras:
O poder não admitia partilhas. Nas mãos dos monarcas absolutos, o suplício infligido aos criminosos não tinha por finalidade o restabelecimento da Justiça, mas a afirmação do poder do soberano. A pena, sem qualquer proporção com o crime cometido, não possuía nenhum conteúdo jurídico, nem qualquer objetivo de emenda do condenado. Sua aplicação tinha a função utilitária de intimidação da população por meio do castigo e do sofrimento infligido ao culpado.160
Registre-se que a teoria da prevenção geral negativa passou a ser elaborada,
efetivamente, de forma sistemática, só no século XIX, embasada na idéia da defesa social,
quando a pena passou a despir-se de seus fundamentos morais e éticos, transformando-se,
paulatinamente, em um conjunto de medidas sociais, preventivas e repressivas. Tal
posicionamento é tributado à perda de legitimidade do Direito Penal, fundado no pensamento
da Escola Clássica, que se encontrava eminentemente vinculado a razões de ordem metafísica.
Digno de nota é o trânsito de um momento histórico favorável à germinação dessas idéias,
pois a ciência, naquele período, já iniciava a busca por explicações dos fenômenos com base
nas coisas do homem e do mundo.161
A teoria da prevenção geral negativa vem sofrendo muitas críticas com relação à
ausência de limites na definição dos crimes e de suas respectivas sanções, o que não é
admissível num Estado democrático de Direito. Existe hoje uma tendência doutrinária mais
156 MIR PUIG, Santiago. Estado, Pena y Delito. Buenos Aires: B de F Ltda, 2006, p. 41. 157 ARISTÓTELES apud GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da Pena Privativa de Liberdade no sistema pena capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 38. 158 MAQUIAVEL. O Príncipe. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 101. 159 MARQUES apud GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da Pena Privativa de Liberdade no sistema pena capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 38. 160 MARQUES apud GUIMARÃES, op.cit., p. 39 (em nota de rodapé). 161 GUIMARÃES, op.cit., p. 39-40.
52
voltada para as teorias constitucionais que vêm se pautando na necessidade social para a
aplicação do Direito Penal.
Mais uma vez se manifesta Roxin, questionando: “como se pode justificar-se que se
castigue um indivíduo não em consideração a ele próprio, mas em consideração a outros”.
Refere-se que “mesmo quando seja eficaz a intimidação, é difícil compreender que possa ser
justo que se imponha um mal a alguém para que outros omitam cometer um mal”.162
Dentre os defensores da teoria em foco, na atualidade, destaca-se Luigi Ferrajoli, que
sustenta, entretanto, a existência de uma dupla intimidação: “uma que incide sobre as pessoas,
para que não cometam delitos, e outra que, dirigida à coletividade, buscaria inibir a existência
de reações sociais contra o delinqüente, em sua garantia”.163 Nesse passo, o autor parte de
concepções utilitaristas da pena, em que visa o bem-estar e a utilidade dos governados, e não
o dos governantes. Entende ser de extrema importância a prevenção dos delitos através da
intimidação, entretanto, faz-se necessário prevenir-se também reações injustas contra os
delinqüentes. Trata-se de uma feição nova da teoria.
Observe-se trecho de sua obra, pertinente sobre o tema:
Isto não significa, naturalmente, que o objetivo da prevenção geral dos delitos seja uma finalidade menos essencial do direito penal. Tal objetivo é, ao contrário, a razão de ser primeira, senão diretamente das penas, das proibições penais, as quais são dirigidas para a tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos contra as agressões de outros associados. Significa, antes, que o direito penal tem como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como a outras negativas, quais sejam a prevenção geral dos delitos e prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas.A primeira função indica o limite mínimo, a segunda o limite máximo das penas. Aquela reflete o interesse da maioria não desviante. Esta, o interesse do réu ou de quem é suspeito ou acusado de sê-lo. Os dois objetivos e os dois interesses são conflitantes entre si, e são trazidos pelas duas partes do contraditório no processo penal, ou seja, a acusação, interessada na defesa social e, portanto, em exponenciar a prevenção e a punição dos delitos, e a defesa, interessada na defesa individual e, via de conseqüência, a exponenciar a prevenção das penas arbitrárias.164
2.3.2.2 Teoria da Prevenção Geral Positiva
Conforme o magistério de Mir Puig, a teoria da prevenção geral positiva apresenta
duas subdivisões: a prevenção geral positiva fundamentadora e a prevenção geral positiva
limitadora. A primeira é representada por Welzel e Jacobs; e a segunda vem sendo
162 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. Lisboa: Veja, 2004, p. 24. 163 GRECO et al apud HIRECHE, Gamil Föppel El. A função da Pena na Visão de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.33. 164 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Tradutores Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.269.
53
desenvolvida por Hassemer, Zipf e Roxin.165
Para Welzel, “o Direito Penal cumpre uma função ético-social para a qual, mais
importante que a proteção de bens jurídicos, é a garantia de vigência real dos valores de ação
da atitude jurídica”.166 Assim, a proteção dos bens jurídicos constitui apenas uma função de
prevenção negativa. A missão mais importante do Direito Penal é de natureza ético-social, em
que se situa a proscrição da violação de valores fundamentais.
Segundo essa teoria, o Direito Penal não deverá limitar-se a evitar determinadas
condutas danosas ou perigosas, mas deverá, antes de tudo, influir na consciência ético-social
do cidadão, em sua atitude interna frente ao Direito. Ela abarca uma missão que amplia o
âmbito de incidência que se considera legítimo para o Direito Penal.167
Registre-se que Welzel não considera esta função ético-social do Direito Penal como
integrante da prevenção geral, outrossim, entende que está vinculada à “retribuição justa”.
Faz-se, desta forma, evidente, o caráter preventivo com que Welzel defende a mencionada
função ético-social, considerada como a melhor forma de prevenir os bens jurídicos, de lesão,
a longo prazo. 168
Jakobs, por sua vez, idealiza uma variante distinta da prevenção geral positiva.
Coincide com Welzel no escopo de buscar manter a fidelidade ao Direito pela coletividade,
porém rechaça o entendimento de que essa atitude de fidelidade possa proteger os bens
jurídicos. Conforme Jakobs, a única meta do Direito Penal é garantir a função orientadora das
normas jurídicas. Parte, assim, o tratadista alemão, da concepção de Direito de Luhman, como
instrumento de estabilização social mediante a orientação das ações através da
institucionalização das expectativas sociais.169
Sobre as ideias de Jacobs, explicita Mir Puig: “La vida social requiere una cierta
seguridad y estabilidad de las expectativas de cada sujeto frente al comportamiento de los
demás. Las normas jurídicas estabilizan e institucionalizan expectativas sociais y sirven, así,
de orientación de la conducta de los ciudadanos em su contacto social”.170
Quando se infringe uma norma, esta continua a manter sua vigência. A pena serve,
outrossim, para mostrar, de forma séria e sacrificante, para o infrator, que sua conduta não
obsta a vigência da norma. Ademais, o delito reveste-se de negatividade na medida em que
165 MIR PUIG, Santiago. Estado, Pena y Delito. Buenos Aires: B de F Ltda, 2006, p.56-60. 166 WELZEL apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 85. 167 MIR PUIG, op.cit, p.55. 168 Ibidem, loc.cit. 169 BARATTA apud MIR PUIG, op. cit., p.58. 170 MIR PUIG, op. cit., p.58.
54
supõe a infração da norma, e a pena é sempre positiva enquanto afirma a vigência da norma,
negando sua infração. Trata-se, portanto, de uma construção que recorda intensamente Hegel,
conforme o próprio Jakobs reconhece, assinala Mir Puig.171
Na realidade, a proteção da norma torna presumível a intimidação dos possíveis
delinqüentes e sua conseqüente inibição frente ao delito. Mas a pena não objetiva
impressionar o apenado, nem terceiros para que se abstenham de cometer delitos. Trata
somente de exercitar a confiança da coletividade na norma, para que todos saibam quais são
suas expectativas, num exercício de fidelidade ao direito e de aceitar as conseqüências, no
caso de infração às mesmas. Atende à prevenção geral, porque visa proteger as condições de
interação social, as expectativas e orientações estáveis que a vida social não pode
prescindir.172
Nas palavras do próprio Jacobs:
Este –y eso es lo que se ha intentado mostrar aqui - se esgota en que la pena significa la permanencia de la realidad de la sociedad sin modificaciones, es decir, la permanência de la realidad normativa sin modificaciones. La prevención general positiva – si es que quiere hacerse uso de ese término - no debe denominarse preveción general porque tuviera efectos en gran número de cabezas, sino porque garantiza lo genérico, mejor dicho, lo general, esto es, la configuración de la comunicación; por otro lado, no se trata de prevención porque se quiera alcanzar algo através de la pena, sino porque ésta, como marginalización del significado Del hecho en si misma tiene como efecto la vigência de la norma.173
Existe outro grupo doutrinário que defende a prevenção geral positiva em um sentido
limitador da intervenção penal. Situado nesse grupo, Hassemer manifesta-se pelas
dificuldades de comprovação empírica da eficácia da intimidação penal como forma clássica
de prevenção geral.
Hassemer não considera lícita a agravação da pena no caso concreto, com base na
hipotética necessidade de prevenção geral positiva. Para Hassemer, o Direito Penal surge
como um meio de controle social que se caracteriza por sua formalização, que tem lugar
mediante sua vinculação às normas e tem por objeto limitar a intervenção penal em atenção
aos direitos do indivíduo que é objeto de controle. A forma específica de afirmar a vigência
das normas, pelo Direito Penal, é sua aplicação prudente e restritiva, respeitando os limites
que seu caráter formal impõe. Assim, o Direito Penal poderá afirmar-se, a longo prazo, e
estabelecer o fortalecimento da confiança da população na administração da Justiça.174
171 Lo reconoce expressamente Jakobs, Strafrect, cit., p.11, apud MIR PUIG, op. cit., p.59. 172 MIR PUIG, op.cit., p.59. 173 JACOBS, Gunter. Sobre la teoria da pena. Cuadernos de Conferencias y Artículos. Traducción de Manuel Cancio Meliá. Colombia:Universidad Externado de Colômbia, 1998, p.33. 174 HASSEMER apud MIR PUIG, Santiago. Estado, Pena y Delito. Buenos Aires: B de F Ltda., 2006, p.60.
55
Para Hassemer, a função da pena é a prevenção geral positiva, que não opera mediante
à intimação, mas que persegue a proteção efetiva da consciência social da norma. Proteção
efetiva significa duas coisas: primeiro, a pena há de estar limitada pela proporcionalidade na
retribuição pelo fato praticado pelo sujeito; de outro ângulo, a pena estabelecerá um intento de
ressocialização do delinqüente, entendida como uma ajuda que há de se prestar ao condenado,
na medida do possível, e a limitação desta ajuda imposta por critérios de proporcionalidade e
consideração à vítima. Em sua obra Introduction a las bases Del Derecho penal, Hassemer
admite com clareza que o Direito Penal deverá orientar-se para uma “reformulação da idéia
retributiva”.175 Expressa-se sobre a aplicação da pena:
La defensa del ordenamiento jurídico como meta de la prevención general, en su dimensión general, podría generarse por mayor tiempo sobre la reserva en el ambito penal, en lugar de una intervención apresurada y severa. La renuncia a los juicios penales, que superam asombrosamente el actual âmbito de medicion, y a una clara indicación del legislador al juez penal sobre la modalidade de uma ‘defensa del ordenamiento jurídico’, podrían ser condiciones para un fortalecimento de la confianza de la población en el ejercicio del derecho penal.176
Também Zipf e Roxin dão um sentido limitador à prevenção geral positiva. Ambos
partem da idéia de que a intimidação causada pela prevenção geral causa o perigo de uma
elevação excessiva da pena.177
Roxin entende que a pena adequada à culpabilidade, ponto de partida do sistema de
medição da pena do Código Alemão, é a que corresponde à prevenção geral positiva, sendo
inferior à permitida pela prevenção geral negativa. Roxin chama a prevenção geral positiva de
“prevenção geral compensadora” ou “integradora socialmente” e com respeito à negativa,
denomina “prevenção geral intimidatória”. A última pressupõe uma tendência de elevação da
pena para conseguir seu objetivo. O professor de Munique se manifesta contrário à esta
prevenção intimimidatória, admitindo, entretanto, a prevenção integradora, que respeita o
limite da culpabilidade. Por outro lado, Roxin admite que, no caso concreto, pode se impor
uma pena inferior à adequada à culpabilidade se esta pena puder resultar dessocializadora e
contra indicada preventivo-especialmente. Porém, para Roxin, a pena tem um limite: “ela não
pode resultar insuficiente para a defesa da ordem jurídica”. A defesa mínima da ordem
jurídica importa, para professor alemão, seu limite último de contensão.178
175 HASSEMER apud MIR PUIG, Santiago. Estado, Pena y Delito. Buenos Aires: B de F Ltda., 2006, p.61. 176 HASSEMER, Winfried. Prevención General y Aplicación de la Pena. In: NAUCKE, Wolfgang; LÜDERSSEN, Klaus (Org.). Principales Problemas de la Prevención General. Traducción por el Dr. Gustavo Eduardo Aboso y la Prof. Tea Löw. Buenos Aires: Euros Editores S.R.L., 2006, p.82. 177 MIR PUIG, op.cit., p.61. 178 ROXIN apud MIR PUIG, op.cit., p. 62.
56
2.3.2.3 Teoria da Prevenção Especial
Por essa teoria, a prevenção de futuros crimes já não se dirige à generalidade das
pessoas, mas ao infrator da norma, com a finalidade de obstá-lo de praticar novos delitos.
Assim, o fim da pena é neutralizar os impulsos delituosos do agente e evitar a reincidência.
Conforme Paulo Queiroz, diversas correntes de pensamento defenderam e ainda
defendem essa forma de justificação do direito de punir: “o correcionalismo espanhol (Dorado
Montero, Concepción Arenal); o positivismo italiano (Lombroso, Ferri, Garofalo); a chamada
moderna escola alemã, de Von Liszt, e, mais recentemente, o movimento de defesa social, de
Filippo Gramática, Marc Ancel e outros”.179
Mas considera-se Franz von Liszt o maior expoente dessa teoria. Para ele, a função da
pena é a proteção dos bens jurídicos por meio de sua própria incidência sobre a personalidade
do delinqüente, com o escopo de evitar-se futuros crimes.180Tal idéia foi divulgada através do
Programa de Marburgo, em 1882, quando o professor de Berlim lançou as bases do conteúdo
teleológico e preventivo da pena, com enfoque na prevenção especial, que consistia na sua
ação terapêutica sobre o condenado.181
Nesse aspecto, textualiza:
a) a pena pode ter por fim converter o delinqüente em um membro útil à sociedade (adaptação artificial).Podemos designar como intimidação ou como emenda o efeito que a pena visa, conforme se tratar, em primeiro lugar, de avigorar as representações enfraquecidas que refreiam os maus instintos ou de modificar o caráter do delinqüente; b) a pena pode ter por fim tirar perpétua ou temporariamente ao delinqüente que se tornou inútil à sociedade a possibilidade material de perpetrar novos crimes, segregá-lo da sociedade (seleção artificial). Costuma-se dizer que neste caso o delinqüente é reduzido ao estado de inocuidade (Unschädlichmachung).182
Para Liszt, “a pena necessária é a única pena justa”, que “é meio para um fim”. Mas
essa idéia de fim requer a adaptação do meio ao fim e um máximo de economia no seu
emprego. Explita que tal exigência se faz, sobretudo, a respeito da pena, pois se trata de arma
de duplo fio que é a “proteção dos bens jurídicos por meio da lesão de bens jurídicos”. Por
isso, atesta não se conceber pior atentado contra a idéia do fim do que a profusa aplicação da
pena, ou seja, a aniquilação da existência física ou ética socioeconômica de um concidadão,
em que tal destruição não seja inexoravelmente requerida pela necessidade da ordem
179 QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 77. 180 HIRECHE, Gamil Föppel El. A função da pena na visão de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.27. 181 Em prefácio da obra de Franz von Liszt. (LISZT, Franz von. A Idéia do Fim no Direito Penal. São Paulo: Rideel, 2005, p. 6). 182 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal. Campinas: Russel, 2003, v. 1, p. 144.
57
jurídica.183
Daí conceber Listz que a idéia de fim constitui “a proteção mais segura da liberdade
individual contra aquelas cruéis modalidades de pena dos tempos passados”, que não foram
eliminadas das legislações. 184
Foi justamente durante o período da Revolução Industrial (1780 a 1840) que se
utilizou a pena privativa de liberdade de forma mais acentuadamente “neutralizadora”, nos
termos dessa teoria, como forma de atender aos interesses do capitalismo.185
Trata-se de momento histórico crucial para esse tipo de punição, em face da
diminuição do poder punitivo monárquico que, via de regra, se dirigia para o corpo do
condenado (penas corporais ou de morte). Passa-se para penas menos degradantes que
permeiam o início do Estado liberal, quando a pena de prisão vem a ocupar grande espaço,
“como fundamento do discurso humanitário da burguesia ascendente”; até que Lombroso, no
fim do século XIX, e a elaboração do positivismo criminológico deram à privação da
liberdade verdadeiro “status científico”.186
Doutrinas e legislações penais do tipo “correicional” se desenvolvem na segunda
metade do século XIX, paralelamente à difusão de concepções organicistas do corpo social,
são ou doente, sobre o qual são chamadas a exercitar o olho clínico e os experimentos
terapêuticos do poder, afirma Ferrajoli. O projeto iluminista e puramente humanitário se
converte, assim, no “disciplinar e tecnológico punir melhor”.187
Acrescenta Ferrajoli:
O projeto disciplinar encontra-se quase sempre articulado, na literatura correicionalista, segundo ambas as finalidades da prevenção especial, vale dizer, aquela positiva da reeducação do réu e aquela negativa da sua eliminação ou neutralização, as quais, frize-se, não se excluem entre si, mas concorrem, cumulativamente, para a definição do objetivo da pena enquanto fim diversificado e dependente da personalidade, corrigível e incorrigível, dos condenados. Esta duplicidade do fim, positivo e negativo, é comum a todas as três orientações nas quais é possível distinguir, com base na suas motivações filosóficas e políticas, as diversas teorias da prevenção especial, ou seja, desde as doutrinas moralistas de emenda àquelas naturalistas da defesa social, bem como aquelas teleológicas da diferenciação da pena. Por mais diversas e até antitéticos que possam ser as matrizes ideológicas, todas essas orientações dizem respeito não tanto ao crime, mas ao réu, não aos fatos, mas aos autores, diferenciados segundo as suas características pessoais antes mesmo que pelas suas ações delitivas. Ademais, cultivam um programa comum que, de maneira iníqua concorda com as suas premissas éticas, deterministas, ou pragmáticas, vale dizer, o uso do direito penal não apenas para
183 Idem, A Idéia do Fim no Direito Penal. São Paulo: Rideel, 2005, p. 52. 184 Ibidem, p. 53. 185 GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da Pena Privativa de Liberdade no Sistema Penal Capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 149-150. 186 Ibidem, p. 151. 187 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradutores Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.213.
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prevenir delitos, mas também para transformar as personalidades desviantes por meio de projetos autoritários de homologação ou, alternativamente, de neutralização das mesmas mediante técnicas de amputação e de melhoria social. 188
Por essa teoria, desloca-se o fundamento do discurso punitivo da razão (Escola
Clássica) para a realidade dos fatos (Escola Positiva), da filosofia para a orientação empírico-
positiva ou científica, atesta Cláudio Guimarães.189 Trata-se de tendência em que o
delinqüente é considerado um ser antropologicamente inferior, “mais ou menos pervertido ou
degenerado”, pois “o problema da pena equivale àquele das defesas socialmente mais
adequadas ao perigo que o mesmo representa”. As penas assumem “o caráter de medidas
apropriadas às diversas exigências terapêuticas-repressivas, cirúrgico-eliminatórias,
dependendo do tipo de delinqüente – ocasionais, passionais, habituais, loucos ou natos - e dos
fatores sociais psicológicos e antropológicos do crime”.190
Destaca-se um novo objeto de conhecimento, que é o “homem criminoso” 191, o qual
deverá ser estudado para que sejam detectados aspectos e características que o distinguem dos
demais membros da sociedade, a saber, os homens de bem, que geralmente pertencem às
elites. Desta maneira, legitima-se o Estado a intervir sobre o delinqüente com o escopo de
obter sua regeneração moral ou evitar sua perigosidade social, colocando-se em prática os
métodos derivados dos fins preventivos especiais: “ressocializar ou neutralizar o
criminoso”.192
Em suma, a teoria da prevenção especial pretende uma substituição da justiça penal
por uma “medicina social”, cujo desiderato é o saneamento social, seja pela aplicação de
medidas terapêuticas, que visam ao tratamento do delinqüente, seja pela sua segregação,
provisória ou definitiva, seja, ainda, pela submissão de um tratamento ressocializador que
188 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradutores Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 215. 189 GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da Pena Privativa de Liberdade no Sistema Penal Capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.152. 190FERRAJOLI, op. cit., p.215. 191 Ferri, o mais ardoroso defensor de Lombroso escreveu o seguinte: “O estudo dos fatores antropológicos proporciona aos guardiões e administradores da lei novos e mais seguros métodos para se detectar o culpado. As tatuagens, a antropometria, a fisionomia, as condições físicas e mentais, os registros de sensibilidade, os reflexos, as reações vasomotoras, o alcance da visão, os dados de estatística criminal...com freqüência serão suficientes para oferecer aos agentes de polícia e aos magistrados um guia científico para seus inquéritos, que agora dependem exclusivamente de sua perspicácia individual e de sua sagacidade mental.E, quando pensamos na enorme quantidade de crimes e delitos impunes, por falta ou insuficiência de provas, bem como na freqüência dos processos baseados apenas em indícios circunstanciais, não é difícil perceber a utilidade prática de se estabelecer uma relação prioritária entre a sociologia criminal e o procedimento penal”. (FERRI apud GOULD, Stephen Jay. A Falsa Medida do Homem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 138). 192 GUIMARÃES, op. cit, p.153.
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anule as suas tendências criminosas.193
É importante registrar, no magistério de Cláudio Guimarães, que, embora a teoria da
prevenção especial atenda de maneira satisfatória aos anseios populares, posto que
empiricamente comprovado o seu poder neutralizador, trata-se de função que encontra
grandes dificuldades na legitimação de um Estado Democrático e Constitucional.194 Dentre
sua crítica mais contundente, fica a de que em nome de uma pretensa defesa da sociedade
como um todo, pessoas poderiam ficar indefinidamente segregadas em cárceres, que são
locais consabidamente impróprios para a existência humana.195 Isto sem falar no fato de que a
sociedade teria direito de eliminar aqueles cidadãos que se mostram hostis às normas do
sistema e que não apresentem possibilidade de ressocialização, ou seja, de obediência a tais
normas.196
2.3.3 Teorias Ecléticas ou Mistas
As teorias unitárias, mistas ou ecléticas desejam superar as diversas antinomias
existentes entre as demais teorias supradelineadas, pretendendo combiná-las ou unificá-las
ordenadamente. Busca-se, assim, explicar e justificar o fenômeno punitivo em toda a sua
complexidade. Nesse passo, as teorias mistas objetivam agrupar em um conceito único os fins
da pena, tentando recolher os aspectos mais destacados das teorias absolutas e relativas.
Assim, a pena representaria:
(a) retribuição do injusto realizado, mediante a compensação ou expiação da culpabilidade, (b) a prevenção especial positiva mediante correção do autor pela ação pedagógica da execução penal, além da prevenção especial negativa como segurança social pela neutralização do autor e, finalmente, (c) prevenção geral negativa através da intimidação de criminosos potenciais pela ameaça penal e prevenção geral positiva como manutenção/reforço na ordem jurídica etc.197
Hoje, as teorias mistas ou unificadas predominam na legislação, na jurisprudência e na
literatura ocidental, a exemplo do Código Alemão e do Código Penal Brasileiro.O último
consagra as teorias unificadas ao determinar a aplicação da pena “conforme necessário e
193 QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 78. 194 GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel. Funções da Pena Privativa de Liberdade no Sistema Penal Capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.161. 195 LYRA apud GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel, op. cit., p. 157. 196 GUIMARÃES, op. cit., p.155. 197 HASSEMER e EBERT apud SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: Fundamentos Políticos e Aplicação Judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.12.
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suficiente para reprovação e prevenção do crime (art.59, CP)”. A reprovação198 exprime a
idéia de retribuição da culpabilidade, ao passo que a prevenção do delito abrange as
modalidades de prevenção especial (neutralização e correção do autor) e de prevenção geral
(intimidação e manutenção/ reforço da confiança na ordem jurídica) atribuídas à pena
criminal.199
Nas teorias ecléticas, o fundamento da pena não radica tão-somente nos fins da
prevenção geral ou de prevenção especial. A preponderância absoluta das exigências da
prevenção geral implicariam na ampliação das margens das penas nos delitos mais graves ou
mais freqüentemente praticados, repercutindo no surgimento de penas injustas e
desproporcionais.
De outro modo, para esta teoria, justificar a pena somente na prevenção especial
comprometeria a missão primordial do Direito Penal, de proteção dos bens jurídicos
fundamentais. Assim, na hipótese de delinqüentes ocasionais, que não necessitam de
tratamento corretivo, prescindir-se-ia de sanção penal, mas, na hipótese de agentes perigosos,
mesmo que tivessem praticado delitos de menor gravidade, seria necessária a imposição de
penas desproporcionais à infração cometida.200
Registre-se que, para as teorias unitárias, a pena se funda primordialmente no delito
praticado e no propósito de evitar que novos delitos sejam cometidos. O crime praticado deve
operar como fundamento e limite da sanção, por isso “proporcional à magnitude do injusto e
da culpabilidade”.201
Tal fundamento, ainda que de cunho neo-retributivo, entrelaça-se com as exigências
de prevenção geral e especial, que se encontram vinculadas àquele conceito, enquanto
reafirmação do direito positivo. As idéias de prevenção geral e especial, além de colaborarem
para a fixação da pena justa, podem facultar a sua aplicação em favor de uma pena inferior ou
de outra alternativa que possibilite o seu “não cumprimento”, desde que ocorra um ajuste
melhor aos fins da prevenção geral e especial.202
Conforme Luiz Regis Prado, quando os fins de prevenção geral ou especial não
198 Conforme Luiz Regis Prado, o termo próprio apropriado, mais consentâneo para exprimir a retribuição vem a ser a neo-retribuição ou neo-retribucionismo, e não propriamente retribuição, “já que tem fundamento próprio, diverso da noção clássica, e relativizado”. (PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, v. 1, p.563). 199 SANTOS, Juarez Cirino dos, Teoria da Pena: Fundamentos Políticos e Aplicação Judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.13. 200 PRADO, Luiz Regis, op. cit., p.564. 201 Ibidem, p.564. 202 “Essa limitação do princípio de reafirmação do ordenamento jurídico evidencia que a pena pode ser inferior à gravidade do delito, desde que sua aplicação justa não seja necessária para a conservação da ordem social”.(PRADO, op.cit., p.565).
61
exigirem a aplicação da totalidade da pena merecida, “o juiz ou o tribunal poderá aplicar uma
pena inferior – obedecendo à margem de arbítrio judicial, consagrada pelo Código Penal – até
deixar de aplicá-la (suspensão condicional)”. Mas é a pena, como efetiva resposta do
ordenamento jurídico, que é “objeto de suspensão (ou de substituição)”.203
De acordo com Mir Puig, essas teorias atribuem ao Direito Penal uma função de
proteção à sociedade, mas é justamente a partir dessa base que as correntes doutrinárias se
diversificam:
de um lado, a posição conservadora, representada pelo Projeto Oficial do Código Penal Alemão de 1962, caracterizada pelos que acreditam que a proteção da sociedade deve ter como base a retribuição justa, e, na determinação da pena, os fins preventivos desempenham um papel exclusivamente complementar, sempre dentro da linha retributiva; de outro lado, surge a corrente progressista, materializada no chamado Projeto Alternativo Alemão, de 1966, que inverte os termos da relação: o fundamento da pena é a defesa da sociedade, ou seja, a proteção de bens jurídicos, e a retribuição corresponde a função apenas de estabelecer o limite máximo de exigências de prevenção, impedindo que tais exigências elevem a pena para além do merecido pelo fato praticado.204
Contudo, as teorias unificadoras, de uma forma geral, aceitam a retribuição e o
princípio da culpabilidade como critérios limitadores da intervenção da pena como sanção
jurídico-penal, não podendo, em qualquer hipótese, ir a punição além da responsabilidade
decorrente do fato praticado. Nesse aspecto, as teorias unitárias da pena se mostram mais
consonantes com as exigências de um Estado democrático e social de Direito. O texto
constitucional brasileiro abriga, nesse prisma, “a noção do ser humano, como pessoa livre e
capaz, dotada de responsabilidade no âmbito social, opondo-se firmemente a qualquer
possibilidade de sua eventual utilização como meio a serviço de finalidades político-
criminais”. (Preâmbulo e arts. 1º, III, e 5º, caput, CF).205
Digno de nota colocar ainda em evidência que, quando de sua origem, as teorias
unificadoras limitavam-se a justapor os fins preventivos, especiais e gerais, da pena.
Posteriormente, em uma segunda etapa, a doutrina passou a buscar outras construções que
permitiram unificar os fins preventivos gerais e especiais, a partir dos diversos estágios da
norma (cominação, aplicação e execução), como a da Teoria Dialética Unificadora, encetada
por Claus Roxin, como será visto adiante.
Roxin entende que a intenção de sanar os defeitos das teorias preventivas gerais e
especiais e da retribuição justapondo simplesmente as três concepções distintas tem de
203PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, v. 1, p.565. 204 PUIG apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 83. 205 MANTOVANI apud PRADO, op.cit., p.566.
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fracassar, pois a simples adição não destrói a lógica imanente da concepção, além de
aumentar o âmbito de aplicação da pena, que se converte em meio apto a qualquer emprego.
Assevera que os efeitos da cada teoria não se suprimem entre si, mas, ao contrário, se
multiplicam.206
Sem dúvida, que a crítica encetada pelo jurista alemão tem completa pertinência. A
justaposição dessas teorias não é aceitável, nem mesmo teoricamente. E a solução por ele
apresentada, através da Teoria Dialética Unificadora, se perfaz, como dito acima, através dos
diversos estágios da norma (cominação, aplicação e execução), de forma dialética, como será
visto no item seguinte.
2.3.3.1 A Teoria Dialética Unificadora
Claus Roxin, na obra Problemas Fundamentais de Direito Penal, ao rechaçar as
teorias absolutas ou retributivas, as preventivas, geral e especial e, posteriormente, a
unificadora ou mista, afirma que o atual direito penal enfrenta o indivíduo de três maneiras:
ameaçando, impondo e executando penas, e que essas três esferas de atividade estatal
necessitam de justificação, cada uma em separado. Nesse passo, sustenta que “os distintos
estádios de realização do direito penal se estruturam uns sobre os outros e que, portanto, cada
etapa seguinte deve acolher em si os princípios da precedente”. 207
Assim, explicita:
A necessidade desta consideração gradual torna-se patente na breve visão geral que realizávamos. Cada uma das teorias da pena dirige a sua visão unilateralmente para determinados aspectos do direito penal – a teoria da prevenção especial para a execução, a idéia da retribuição para a sentença e a concepção da prevenção geral para o fim das cominações penais e descura as restantes formas de aparecimento do poder penal, embora cada uma delas implique intervenções específicas na liberdade do indivíduo.208
Roxin afirma permanecer fora do horizonte das várias teorias da pena a compreensão
de todos os artigos de lei que de momento apenas estão no papel, mas que requerem uma
legitimação prévia, para além da vontade subjetiva do legislador, tornando-se, assim, evidente
que “tanto a sentença como o melhor e o mais progressivo sistema penitenciário carecem de
sentido, se, devido à legislação penal existente, lhes são submetidos homens sobre os quais
pesa injustamente a mácula de delinqüentes”.209
Logo após questiona o que pode o legislador proibir aos seus cidadãos, mediante a 206 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3. ed. Lisboa: Vega Universidade, 2004, p. 26. 207 Ibidem, loc.cit. 208 Ibidem, p.27. 209 Ibidem, loc.cit.
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pena, e responde que, hoje, no “Estado Moderno”, como todo o poder estatal advém do povo,
já não se pode enxergar sua função na realização de fins divinos ou transcendentais de
qualquer tipo. E isto leva à conclusão de que se os indivíduos participam no poder estatal com
igualdade de direitos, essa função não pode igualmente consistir em “corrigir moralmente
pessoas adultas que sejam consideradas como não esclarecidas intelectualmente e moralmente
imaturas”.210
Em seguida, o mestre alemão faz uma incursão pelos fins últimos do aparelho estatal
e do direito penal como instrumento regulador de condutas punitivas, concluindo que, no
campo de atuação que é atribuído ao “direito moderno”, sua função limita-se “a criar e
garantir a um grupo reunido, interior e exteriormente, no Estado, as condições de uma
existência que satisfaça as suas necessidades vitais”. 211
Assim, existe uma completa redução do poder estatal, “numa ótica terrena e racional
de garantia total da liberdade do indivíduo para conformar a sua vida”, pois os homens, diz
Roxin, “não possuindo eles próprios legitimação para conferir poderes a coisa diversa aos
concidadãos que elegeram para legislar e governar”. 212 Elucida:
Para o direito penal tal significa que o seu fim somente pode derivar do Estado e, como tal, apenas pode consistir em garantir a todos os cidadãos uma vida em comum livre de perigos. A justificação dessa tarefa – não, porém, de todos os meios aplicáveis para a sua consecução – resulta directamente do dever que incumbe ao Estado de garantir a segurança dos seus membros.213
Na esteira desse entendimento, atesta que o aparelho estatal deverá assegurar os bens
jurídicos valiosos como, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade de atuação ou a
propriedade, a saber, os chamados bens jurídicos, punindo sua violação, em determinadas
condições, surgindo, desta maneira, a necessidade de também fazer cumprir as prestações de
caráter público de que depende o indivíduo no quadro da assistência social. Assim, afirma
que:
Com essa dupla função, o direito penal realiza uma das mais importantes das numerosas tarefas do Estado, na medida em que apenas a proteção dos bens jurídicos constitutivos da sociedade e a garantia das prestações públicas necessárias para a existência possibilitam ao cidadão o livre desenvolvimento de sua personalidade, que a nossa Constituição considera como pressuposto de uma condição digna214.
Assevera resultar, daí, duas conseqüências importantes no que tange ao poder
210ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3. ed. Lisboa: Vega Universidade, 2004, p.27. 211 Ibidem, loc.cit. 212 Ibidem, loc.cit. 213 Ibidem, loc.cit. 214 Ibidem, p.28.
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punitivo: a primeira é que o direito penal é de natureza subsidiária. Somente serão passíveis
de punição criminal as lesões de bens jurídicos se tal for indispensável para uma vida em
comum ordenada. Desta maneira, se bastarem os meios do direito civil ou do direito público,
o direito penal deve retirar-se; a segunda conseqüência é que a legislação não possui
competência para, em absoluto, castigar “pela sua imoralidade” condutas que não sejam
lesivas de bens jurídicos. Assinala Roxin: “O Estado tem de salvaguardar a ordem externa,
mas não possui qualquer legitimidade para tutelar moralmente o particular”.215
Sustenta, em acréscimo, que “o fim das disposições penais é o da prevenção geral”.
E define, desta maneira, o conceito da prevenção geral, afirmando que o Estado estabelece no
Código Penal uma ordem protetora obrigatória para todos os cidadãos, garantindo-lhes os
bens jurídicos necessários para a sua existência e indicando-lhes quais as atividades que eles
devem omitir sob a ameaça da pena. E que o princípio da prevenção geral deve ser
introduzido na própria atividade judicial na fase de aplicação e graduação da pena, afirmando
“que a força da prevenção geral dos artigos ficaria reduzida a nada se não existisse realidade
alguma por detrás dela”.216 Recusa a retribuição como fim de aplicação da pena, deduzindo,
entretanto, que os infratores do ordenamento jurídico legalmente constituído devem ser
castigados conforme o Direito, pois, na realidade, todos continuam vivendo juntos. Assevera,
desta maneira, que:
Se não o fizéssemos, o Estado estaria desprezando a garantia de vida de seu ordenamento jurídico e cada futuro assassino poderia invocar que, não tendo esses outros sido castigados, do mesmo modo e em justiça ele não deveria ser punido. Uma proteção que apenas se confere segundo as circunstâncias, não constitui uma garantia jurídica mas o exercício da arbitrariedade por parte do Estado.217
Para Roxin, a razão de prevenção geral, ou seja, ao seu sentido de mera intimidação,
deve-se acrescentar a significação mais ampla de salvaguarda da ordem jurídica na
consciência da comunidade. Assim, se “a comunidade jurídica ignorasse um roubo ou um
assalto a um banco, qualquer futuro ladrão ou assaltante poderia alegar a seu favor que
também ele poderia cometer, pelo menos uma vez, um fato desse tipo sem castigo; desse
modo, a ordem jurídica perderia, a prazo, a sua eficácia”. 218
Mas o jurista multicitado vai além dos fundamentos da prevenção geral, quando diz
não se poder desconhecer que, na maioria dos casos de aplicação de uma pena, há de estar
incluso, também, um elemento de prevenção especial, que intimidará o delinqüente em face
215 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3. ed. Lisboa: Vega Universidade, 2004, p.30. 216 Ibidem, p. 32. 217 Ibidem, p. 33. 218 Ibidem, loc.cit.
65
de uma possível reincidência e manterá a sociedade segura desta, pelo menos durante o
cumprimento da pena.219
Ao pretender que os esforços de ressocialização em favor do sujeito somente podem
começar com a execução da sanção, a primeira coisa que a condenação em si mesma torna
efetiva é uma dura restrição de liberdade do delinqüente, restrição esta que não se faz no seu
interesse, mas no da comunidade e que, portanto, serve aos outros e não a ele. Então
questiona: justifica-se aplicar uma pena a um indivíduo para conseguir esse objetivo? E
poderá considerar-se o sacrifício de um particular, apenas no interesse da coletividade,
conforme o direito? 220
Ao questionamento responde o jurista mencionado que um “ordenamento jurídico
para o qual o particular não é objeto, mas sim, o titular do poder estatal, não o pode desvirtuar
convertendo-o em meio de intimidação. As qualidades de sujeito e pessoa do homem a tal se
opõem”. Então, conclui que “a aplicação da pena estará justificada se se conseguir harmonizar
a sua necessidade para a comunidade jurídica com a autonomia da personalidade do
delinqüente, que o direito tem de garantir”. E que “a pena não pode ultrapassar a medida da
culpa”. Desta maneira, a culpa que seria considerada inadequada para fundamentar o poder
penal do Estado serve, nesses ditames, para limitá-lo. Há, pois, no dizer de Roxin, uma
diferença fundamental entre utilizar a idéia de culpa para colocar o particular à mercê do
Estado e empregá-la para preservar os cidadãos dos abusos que advém desse poder. É nessa
segunda assertiva que o autor se posiciona. Nesse ponto, assinala que a dignidade do homem,
que é proclamada pela Lei Fundamental, é um direito de proteção contra o Estado e não
poderá, jamais, ser transformada numa faculdade de ingerência.221
Partindo dessas conclusões, o jurista alemão afirma que a pena se justifica da
seguinte forma:
Daqui se retira para a justificação da pena que, embora se possa imputar a sua existência à pessoa do delinqüente, este estará obrigado em atenção à comunidade, a suportar a pena. Tal é justo e legítimo, não porque aquele tenha que suportar que outros lhe inflijam um mal devido a um imperativo categórico mas porque, como membro da comunidade, tem de responder pelos seus atos na medida da sua culpa, para a salvaguarda da ordem dessa comunidade. Desse modo, não é utilizado como meio para os fins dos outros mas, ao co-assumir a responsabilidade pelo destino, confirma-se a sua posição de cidadão com igualdade de direitos e obrigações. Quem não quiser tal aceitar como justificação da pena, terá de negar a existência de valores públicos e, com eles, o sentido e missão do Estado.222
219 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3. ed. Lisboa: Vega Universidade, 2004, p. 34. 220 Ibidem, loc.cit. 221 Ibidem, p. 34-37. 222 Ibidem, p. 34.
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Desta maneira, argüi que se deve impor a idéia de que estão absolutamente proibidas
as penas inadequadas à culpa do agente, concluindo que “o fim da prevenção geral da punição
apenas se pode conseguir na culpa individual. Se se vai mais além, portanto, e se pretende que
o autor expie as tendências criminosas dos outros, atenta-se realmente contra a dignidade
humana”.223
Prossegue Roxim, ao explicitar sua teoria, aduzindo que tudo que foi dito com
relação à culpa também se aplica à prevenção especial. Apresenta, como exemplo, o fato de
poder ser bastante proveitoso que se queira transformar, mediante vários anos de trabalho
reeducativo, um mendigo notório num diligente guarda-livros; porém, “o escasso conteúdo de
culpa de sua conduta proíbe ao direito penal levar a cabo tal tarefa”. Mas que em
contrapartida, diz ser perfeitamente admissível aplicar uma pena inferior à culpa, o que para a
teoria retributiva não seria concebível, em face da renúncia ao sofrimento penal
compensatório. Atesta que, em sua opinião, isto será permitido e inclusivamente necessário,
em face do princípio da solidariedade que foi desenvolvido na justificação das cominações
penais, “se no concreto se restaurar a paz jurídica com sanções menos graves”.224
Cita, na hipótese, o instituto da suspensão da execução da pena, sustentando que tal
instituto deveria prever-se mesmo para as penas de prisão superiores a nove meses e também
a “substituição das penas privativas de liberdade de curta duração por multas, assim como
admoestações e prestações de trabalho”. E atesta: “também nesta sede existem pontos a
aperfeiçoar no nosso Código Penal e nos planos de reforma apresentados até agora”. 225
Observe-se que Claus Roxin, quando da exposição, admite a substituição das penas
restritivas de liberdade por penas restritivas de direito, quando se refere “às admoestações e
prestações de trabalho” como fins da prevenção geral e especial, respaldado nos limites dos
preceitos constitucionais da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana. No âmbito
de aplicação da Teoria Dialética Unificadora, levando ao raciocínio de que as penas restritivas
de direitos estão na ordem do limite e sentido das penas, estabelecido pelo professor alemão.
Acerca da exposição da segunda fase da eficácia do direito penal, sistematiza Roxin:
Resumindo, pode dizer-se acerca da segunda fase da eficácia do direito penal, que a aplicação da pena serve para a proteção subsidiária e preventiva, tanto geral como individual, de bens jurídicos e de prestações estatais, através de um processo que salvaguarde da autonomia da personalidade e que, ao impor a pena, esteja limitado pela medida da culpa. Pode ver-se que assim, se conserva o princípio da prevenção geral, reduzido às exigências do Estado de Direito e completado com as
223Cf. WARDA apud ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3. ed. Lisboa: Vega Universidade, 2004, p. 37. 224 ROXIN, op. cit., p. 39. 225 Ibidem, p. 39-40.
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componentes de prevenção especial da sentença, mas que, simultaneamente, através da função limitadora dos conceitos de liberdade e culpa, e em consonância com a nossa lei fundamental, se desvanecem as observações que se opõem a que aquele princípio seja levado na graduação da pena.226
Na seqüência, explana sobre a fase executória que sustenta constituir o terceiro e
último “estádio” da realização do Direito Penal. Ao dizer que a sanção criminal serve somente
a fins racionais e que possui a finalidade de possibilitar a vida humana em comum e livre de
perigos, a execução da pena somente se justifica se prosseguir essa meta na medida do
possível, a saber, “tendo como conteúdo a reintegração do delinqüente na comunidade”.
Nesse passo, a execução só pode ser “ressocilizadora”. Mas testifica que os esforços da
ressocialização somente serão legítimos e bem sucedidos, sob todos os aspectos, dentro dos
limites traçados supra.
Isto significa não ser lícito ressocializar, com o auxílio de penas, pessoas que não são
culpadas da prática de crimes, “por mais degeneradas e inadaptadas que sejam essas pessoas”.
Ademais, as conseqüências da garantia constitucional da autonomia da pessoa devem ser
respeitadas na execução da pena.227 Nesse aspecto, diz Roxin:
É proibido um tratamento coactivo que interfira com a estrutura da personalidade, mesmo que possua eficácia ressocializante – o que é válido tanto quanto à castração de delinqüentes sexuais, como quanto à operação cerebral que transforma contra a sua vontade o brutal desordeiro num manso e obediente sonhador.228
Importante, ainda, a assertiva de que não cabe eliminar completamente da fase de
execução o ponto de partida da prevenção geral. Isto porque a especial situação coercitiva em
que entra o indivíduo ao cumprir a pena privativa da liberdade, diz Roxin, traz consigo graves
restrições à liberdade de conformar a sua vida e, levando-se em conta a eficácia das
cominações penais, “não se pode prescindir nos crimes graves, nem mesmo quando, por
exemplo, a renúncia a uma pena privativa de liberdade fosse mais útil para a
ressocialização”.229
Entretanto, os fins legítimos da execução são os ressocializadores. No caso limite
daquele que se converteu em assassino por uma motivação irrepetível, a pena deverá ser
executada de forma a fornecer ao condenado a oportunidade de exercitar a sua vida de modo
produtivo e conforme suas próprias aptidões. Assim, o produto de seu trabalho pode chegar,
inclusive, ao ressarcimento dos herdeiros da vítima e também de pessoas necessitadas.
Sugere, em acréscimo, o jurista alemão que nas curtas penas privativas de liberdade, se deve
226 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3. ed. Lisboa: Vega Universidade, 2004, p. 40. 227 Ibidem, p. 41. 228 Ibidem, loc.cit. 229 Ibidem, p. 40.
68
conferir, em geral, maior realce à idéia de reparação de danos.230
Sobre a ressocialização, resume Roxin:
Quando, como naturalmente sucede com a maioria dos presos, a primeira coisa que se deve fazer é conduzir a personalidade do sujeito ao caminho recto, o modo de o fazer não é moralizar em tom magistral, mas sim formar espiritual e intelectualmente, despertar a consciência da responsabilidade e activar e desenvolver todas as forças do delinqüente, e muito em particular as suas especiais aptidões pessoais. A personalidade do delinqüente não deve, pois, ser humilhada, nem ofendida, mas desenvolvida. [...] Para o ajudar, e assim nos ajudarmos, é necessária a cooperação de juristas, médicos, psicólogos e pedagogos. Não é possível agora precisar os pormenores de tal programa de ressocialização, mas toda a gente sabe que a realidade do nosso sistema penitenciário não corresponde, em múltiplos aspectos, nem sequer às mais modestas exigências deste tipo. Todos os peritos estão de acordo que a execução da pena constitui o ponto mais débil da nossa práxis do direito penal e que necessita de uma reforma muito mais urgente que o direito material.231
Pondera, por fim, Roxin, que não devemos acreditar demasiadamente que esse
programa ressocializador pode repercutir em resultados cem por cento favoráveis. Ressalta
que “qualquer esforço ressocializador apenas pode constituir uma oferta ao delinqüente para
que se ajude a si próprio com o trabalho, mas fracassa inevitavelmente quando ele não está
disposto a esse esforço”.Ademais, assevera que “sempre existirão alguns que voltarão a
tropeçar por fraqueza. Nunca será possível acabar completamente e para sempre com a
criminalidade”. Outrossim, tal constatação não desvincula a sociedade da obrigação que
possui com relação ao delinqüente. Se ele é co-responsável pelo bem-estar da comunidade, ela
também tem responsabilidade pela sua sorte.232
Desta maneira, encerra Roxin afirmando que se quiséssemos consagrar numa só frase
o sentido e limites do direito penal, “poderíamos caracterizar a sua missão como proteção
subdidiária de bens jurídicos e prestação de serviços estatais, mediante prevenção geral e
especial, que salvaguarda a personalidade do quadro traçado pela medida de culpa
individual”. Trata-se do que ele chama de “uma teoria dialéctica unificadora”, que se
distingue das demais (monistas e mista por adição), tanto do ponto de vista metodológico
como pelo seu conteúdo.233
Dessa breve exposição sobre as funções das penas, evidencia-se a grande importância
da justificação do direito de punir. Faz-se imprescindível que os operadores do Direito Penal
estejam legitimados para admitir a aplicação da pena com fundamento em uma teoria, pois
não se concebe, nos presente momento histórico, a imposição de uma pena com base, pura e
230 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. 3. ed. Lisboa: Vega Universidade, 2004, p. 42. 231 Ibidem, loc.cit. 232 Ibidem, p. 42. 233 Ibidem, p. 43.
69
simples, na formalização do texto legal. Trata-se de postura eminentemente equivocada e
descomprometida de valores sociais e princípios que vêm orientando a política criminal nos
Estados Democráticos contemporâneos.
Nesse passo, cumpre determinar, dentre as teorias mencionadas, a que melhor atende à
imposição de uma sanção criminal e, em específico, a uma pena restritiva de direitos.
Depois de se proceder ao estudo de todas as teorias da pena, concluiu-se ser a Teoria
Dialética Unificadora, formulada por Claus Roxin, aquela que melhor se coaduna com a
filosofia inspiradora de uma pena não privativa de liberdade, aplicável aos agentes que
praticaram crimes de pequeno e médio potencial ofensivo.
Trata-se de teoria que define um princípio de subsidiariedade que vai além da seleção
das condutas típicas, concentrando-se, também, na seleção das penas, admitindo a substituição
da pena privativa de liberdade por outras mais amenas, como a multa e a prestação de
trabalho, etc. A culpabilidade do agente, para essa teoria, opera num sentido limitador da
atividade estatal, onde também se fazem presentes os princípios constitucionais da
proporcionalidade, da individualização da pena, da igualdade, da dignidade da pessoa humana
e da solidariedade234.
Roxin formula, ainda, uma proposta de ressocialização do sentenciado que se
caracteriza pelo respeito à sua personalidade, à sua autonomia, sem a utilização de métodos
coativos, havendo um perfeita sintonia entre a sistemática de cominação, aplicação e
execução das penas restritivas de direito no ordenamento jurídico brasileiro e a Teoria
Dialética Unificadora, como será visto adiante.
Antes, contudo, com o propósito de justificar a legitimidade e adequação das penas
restritivas de direitos, há de se evidenciar que a pena privativa de liberdade, examinada ao
longo da história da humanidade, não vem atendendo aos fins preventivos gerais e especiais
assentados na mencionada teoria. Restringe-se aos fins retributivos que ultrapassam, quase
sempre, a medida de culpabilidade do agente, de onde vem a se concluir por sua real
ineficácia, sobretudo para os crimes de pequeno e médio potencial ofensivo, fazendo-se
indispensável a imposição de uma severa mudança de paradigma punitivo.
234 Esses princípios mencionados serão tratados nos capítulos IV e VI.
70
3 O SURGIMENTO DE UMA FORMA ALTERNATIVA DE PUNIÇÃO 3.1 DO DECLÍNIO DA PENA DE PRISÃO PARA OS CRIMES MENORES
É digno de nota que a pena privativa de liberdade vem se mostrando, ao longo dos
últimos séculos, essencialmente ineficaz no combate à criminalidade, embora se tenha
acreditado que tal sanção foi considerada, em meados do século XIX, como o principal
instrumento punitivo, e que poderia atingir aos fins precípuos de ressocialização do
condenado.
As críticas quanto a esse sistema foram iniciadas através do Programa de Marburgo,
em 1882, por Franz von Liszt, que passou a reprovar as penas detentivas de curta duração,
afirmando que da forma como costumam ser aplicadas, “elas não corrigem, não intimidam,
nem põem o delinqüente fora do estado de prejudicar e, ao contrário, muitas vezes
encaminham para o crime o delinqüente novel”. Assevera von Liszt resultar, daí, a exigência
de que o legislador substitua as pequenas penas de prisão por outras medidas adequadas e cita,
como exemplos, o trabalho forçado sem encarceramento, as penas principais relativas à honra,
a proibição de freqüentar as tavernas, a prisão doméstica e até os castigos corporais.235
Carrara, no Programa do Curso de Direito Criminal, ao pronunciar-se sobre as
condições que a pena dever ter, já afirmava rejeitar qualquer modo de punição que avilte ou
corrompa o condenado ou “lhe torne mais difícil a volta ao bom caminho”. Nesse diapasão,
anatematiza o encarceramento promíscuo “como fonte indiscutível de desmoralização”,
textualizando que o desejaria banido de todo o Estado político, não só por considerá-lo
danoso, mas também como “radicalmente injusto” 236. Frisa que “entre os direitos do
delinqüente existe também o de não ser constrangido pela autoridade social a uma situação
que o leve à necessidade de se corromper mais do que já está corrompido: é esta a situação em
que a autoridade coloca o delinqüente, quando o atira à sentina do cárcere promíscuo”.237
235 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tradução: José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russel, 2003, v. 1, p.153. 236 Carrara (Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral. Tradução Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2002, v. 2, p.135) mantinha posição favorável à detenção celular dos condenados (cada um em sua própria cela), sustentando que a promiscuidade dos detentos fomentava a corrupção. O sistema carcerário brasileiro, além de promíscuo, sofre as conseqüências da superlotação. A superlotação é talvez o mais básico e crônico problema que atinge o sistema penal brasileiro. Segundo o diretor do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) do Ministério da Justiça, Clayton Alfredo Nunes, dois mil presos chegam, por mês, às penitenciárias brasileiras. “Seria necessário construir quatro ou cinco unidades prisionais a cada trinta dias para atender à demanda”, destaca em entrevista concedida à Agência MJ de Notícias, em Recife quando participou do XV Fórum Nacional de Secretários de Justiça. ( Disponível em: <http://www3.mj.gov.br/noticias/2003/dezembro/RLS021203-penas.htm>). 237 CARRARA, op. cit., p.94.
71
Michel Foucault, na obra clássica Vigiar e Punir, afirma haver um desafio político
global em torno da prisão, que não é saber “se ela será não corretiva; se os juízes, os
psiquiatras ou os sociólogos exercerão nela mais poderes que os administradores e guardas”;
mas acredita estar, sim, no que ele denomina “alternativa prisão ou algo diferente de
prisão”.238
Começam, então, na história da humanidade, as primeiras constatações das falhas do
sistema prisional, a justificar, por si só, medidas punitivas menos opressivas ao cidadão.
Mas é importante frisar que a pena de prisão começou, efetivamente, entrar em
declínio, pouco tempo depois do início do século XX, quando se inicia, então, a busca por
alternativas ao regime fechado. No II Congresso Internacional de Direito Comparado,
realizado em 1937, em Haia, já se reclamava a substituição da prisão por outras medidas.239
No entendimento de que a pena privativa de liberdade padece séria crise quanto aos
fins a que se destina, leciona Cezar Bitencourt:
Sua incapacidade para exercer influxo educativo sobre o condenado, sua carência de eficácia intimidativa diante do delinqüente entorpecido, o fato de retirar o réu de seu meio de vida, obrigando-a abandonar seus familiares, e os estigmas que a passagem pela prisão deixam no recluso são alguns dos argumentos que apóiam os ataques que se iniciam no seio da União Internacional de Direito Penal (Congresso de Bruxelas de 1889)240.
Eugênio Raúl Zaffaroni, na obra Em busca das penas perdidas, refere-se às cadeias
como “máquinas de deteriorar”. Assevera, invocando o magistério de Mariano F. Castex e
Ana M. Cabanillas, que “a prisão gera uma patologia cuja principal característica é a
regressão”, pois o preso é levado a condições de vida que nada têm a ver com as de um
adulto, por ser “privado de tudo que o adulto faz ou deve fazer usualmente em condições e
com limitações que o adulto não conhece (fumar, beber, ver televisão, comunicar-se por
telefone, receber ou enviar correspondência, manter relações sexuais, etc.)”. 241
Atesta, ainda, Zaffaroni, que o preso é ferido em sua auto-estima pela perda da
privacidade e de seu próprio espaço, além da submissão a visitas degradantes e de outras
formas imagináveis, ao que se colacionam as condições deficientes de todas as prisões: 238 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 30.ed. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 253. 239 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORREA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p. 163. 240 BITENCOURT, Cézar. Novas Penas Alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei n. 9.714/98. São Paulo: Saraiva, 1999, p.2. 241 CASTEX, Mariano F; CABANILLAS, Ana M. Apentes para una psico-sociologia carcelaria. Reprod. Buenos Aires, 1986; Cohen, Staley. Taylor, Laurie. Psychological Survival. The experience of Long-Term Imprisonment, Middlesex, 1972. NASS apud ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 135.
72
“superpopulação, alimentação paupérrima, falta de higiene e assistência sanitária, etc., sem
contar as discriminações em relação à capacidade de pagar por alojamentos e privacidades”.
Reforça que o efeito da prisão é “deteriorante”, por submergir, o encarcerado, na chamada
“cultura da cadeia”, completamente distinta daquela em que vive um adulto em liberdade. E
que essa “imersão cultural” não pode, em hipótese alguma, ser interpretada como uma
“tentativa de reeducação ou algo parecido”, ao se afastar da “ideologia do tratamento”, pois se
processa de forma avessa a esse discurso.242
Sobre a prisão, Luigi Ferrajoli assim se manifesta:
A prisão é, portanto, uma instituição ao mesmo tempo antiliberal, desigual, atípica, extralegal e extrajudicial, ao menos em parte, lesiva para a dignidade das pessoas, penosa e inutilmente aflitiva. Por isso, resulta tão justificada a superação ou, ao menos, uma drástica redução da duração, tanto mínima quanto máxima, da pena privativa de liberdade, instituição cada vez mais carente de sentido, que produz um custo de sofrimentos não compensados por apreciáveis vantagens para quem quer que seja. E, talvez, supérfluo lembrar, depois do que se disse nos parágrafos 18.1 e 25, que o projeto de abolição da prisão não se confunde com o projeto de abolição da pena: este, de fato, quaisquer que sejam as ilusões dos seus defensores, corresponde ao um programa de direito penal máximo, selvagem e/ou disciplinar; aquele, ao contrário, corresponde a um programa de direito penal mínimo, orientado à mitigação e à humanização da sanção punitiva.243
Conforme Cezar Bitencourt, a fundamentação conceitual sobre a qual se baseiam os
argumentos que indicam a ineficácia da pena privativa de liberdade se divide em duas
premissas:
a) considera-se que o ambiente carcerário, em razão de sua antítese com a comunidade livre, converte-se em meio artificial, antinatural, que não permite realizar nenhum trabalho reabilitador sobre o recluso244. Não se pode ignorar a dificuldade de fazer sociais aos que, de forma simplista, chamamos de anti-sociais, se se os dissocia da comunidade livre e ao mesmo tempo se os associa a outros anti-sociais. Nesse sentido, manifesta-se Antônio Garcia-Pablos de Molina , afirmando que ‘a pena não ressocializa, mas estigmatiza, que não limpa, mas macula, como tantas vezes se tem lembrado aos expiacionistas; que é mais difícil ressocializar a uma pessoa que sofreu uma pena do que outra que não teve essa amarga experiência; que a sociedade não pergunta porque uma pessoa esteve em um estabelecimento penitenciário, mas tão somente se lá esteve ou não’245 [...] b) sob outro ponto de vista, menos radical, porém, igualmente importante, insiste-se que na maior parte das prisões do mundo, as condições materiais e humanas tornam inalcançáveis o objetivo reabilitador. Não se trata de uma objeção que se origina na natureza ou na essência da prisão, mas se fundamenta no exame das condições reais em que se desenvolve a execução da pena privativa de liberdade.246
Ora, para alguns partidários da primeira premissa, qualquer inventiva no sentido de
242 ZAFFARONI, op. cit., p. 135-136. 243 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradutores Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 331. 244 GARCIA- PABLOS E MOLINA apud BITENCOURT, Cezar. Falência da Pena de Prisão - Causas e Alternativas. São Paulo: RT, 1993, p. 143. 245 GARCIA-PABLOS E MOLINA apud BITENCOURT, op. cit., p. 143. 246 BITENCOURT, op. cit., p. 143-144.
73
reformar a pena de prisão não teria sentido, pois a julgam completamente ineficaz em sua
própria essência. Assim, Stanley Cohen247, dentre outros autores, chega ao completo
radicalismo de postular pela sua total extinção.
Os que se posicionam conforme a segunda premissa centram-se no fato de que a
pena de prisão pode ser necessária em determinados casos, e faz-se indispensável à melhoria
de suas condições de execução, no sentido de buscar-se a ressocialização do encarcerado.
Alguns, como Baratta, sustentam, porém, “a drástica redução da prisão àqueles casos em que
não há outra resposta possível”. Munhoz Conde também endossa semelhante posição.248
Postados nesse prisma, os juristas que adotam a segunda posição vêm se ocupando
dos estudos sobre a existência da crueldade e da desumanização no ambiente carcerário, como
elemento ensejador da deslegitimação da pena privativa de liberdade, onde violações à
dignidade da pessoa humana são rotineiras e freqüentes, e que ocorrem em vários países, não
se restringindo ao terceiro mundo.249 Citam como deficiências do sistema os maus tratos
verbais (insultos, grosserias, etc), ou de fato (castigos sádicos, crueldades injustificadas e
métodos sutis de fazer o recluso sofrer, sem incorrer em evidente violação do ordenamento,
por exemplo.). Também está, nesse rol: a superpopulação carcerária, a qual reduz a
privacidade do recluso e facilita abusos sexuais; a falta de higiene, que estimula a proliferação
de doenças; as condições deficientes de trabalho; a deficiência de serviços médicos; o regime
alimentar deficitário; o consumo de drogas facilitado por funcionários penitenciários
corruptos; a violência e utilização de meios brutais para a imposição do poder, além de outras
formas de coação. Tais constatações viriam a exigir dos governantes uma série de reformas,
que viessem a permitir que a pena privativa de liberdade pudesse efetivar sua finalidade
reabilitadora.250
Mas é inegável que a prisão contém em si própria sérias deficiências, as quais podem
ser destacadas em diversos aspectos, tais como, o desencadeamento de perturbações
psicológicas e físicas, que interferem na saúde da pessoa do condenado e a conseqüente
dificuldade de readaptação social do recluso, além de vir sendo reconhecida como fator
criminógeno ou estimulador da prática de novos crimes por parte do sentenciado. Ademais,
vem se constatando que a disciplina, embora necessária, é muitas vezes mal empregada,
podendo “criar uma delinqüência capaz de aprofundar no recluso suas tendências criminosas”,
247 COHEN apud BITENCOURT, op.cit., p.144. 248 CAFFARENA; CONDE apud BITENCOURT, Cezar. Falência da Pena de Prisão - Causas e Alternativas. São Paulo: RT, 1993, p.144 (em nota de rodapé). 249 GOMEZ apud BITENCOURT, op. cit., p.144. 250BITENCOURT, op. cit., p. 145-145.
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repercutindo em maior aprendizagem do crime e na conseqüente formação de associações
delitivas, assevera Cezar Bitencourt. 251 Daí questionar-se sua eficácia ressocializadora.
Por outro lado, a ausência de alojamentos dignos, a alimentação deficitária, os
precários serviços médicos, odontológicos e psicológicos prestados, aliados às más condições
de higiene, que são agentes facilitadores do surgimento e proliferação de doenças, constituem
sérias distorções do sistema carcerário. Note-se que somente no princípio desse século se
passou a cogitar sobre o preso como “sujeito de direitos”, quando se delineia um momento
histórico em que se dá início a um “planejamento de execução” que tem por escopo a
regeneração do recluso.
Porém, alguns penalistas são céticos no que tange à terapêutica carcerária, aduzindo
que a prisão em si mesma, não regenera ninguém. Sobre o tema, Heleno Fragoso, assim, se
manifesta:
É perfeitamente óbvio que o sistema de encarceramento é incompatível com qualquer forma de tratamento, seja qual for o sentido que a ele se atribua. O simples fato de forçar uma pessoa a viver em isolamento, numa situação em que todas as decisões são tomadas para ela, não pode ser forma de treinamento para viver numa sociedade livre.252
Augusto Thompson253afirmou, invocando Thomas M. Osborne254, que “em nenhuma
época e em nenhum lugar a experiência penitenciária, de mais de cento e cinqüenta anos,
conseguiu fazer prisão punitiva ser reformativa”. Diz que: “treinar homens para a vida livre,
submetendo-os a condições de cativeiro, afigura-se tão absurdo como alguém se preparar para
uma corrida, ficando na cama por semanas”.255
Mas não se pode negar que as primeiras regras, em nível internacional, estabelecidas
no início do século passado, tiveram como objetivo a ressocialização do preso, sendo
importante salientar que, embora se reconheçam todos os defeitos da pena de prisão, e pode-
se dizer que há em verdadeira “crise”, e que não se encontrou, ainda, em nível legislativo, um
substitutivo que pudesse ser adotado em caso do cometimento de crimes de alta gravidade ou
por delinqüentes perigosos e/ou habituais. Assim, o objetivo, em nível mundial, passou a ser
a melhora das condições de sobrevivência dos presos no próprio ambiente carcerário,
251BITENCOURT, Cezar. Falência da Pena de Prisão - Causas e Alternativas. São Paulo: RT, 1993, p.147. 252 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Direitos dos Presos: os problemas de um mundo sem Lei. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.13. 253 Augusto Thompson foi diretor do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. (Desipe). 254 Thomas M. Osborne, apud Sutherland e Cressey, Príncipes de Criminologie, versão francesa do Inst. de Direito Comparado, da Un. De Paris, Ed. Cujas, 1966, p. 511. “...c’ est une gageure que de pretendre preparer un homme à une vie sociale dans les normes en ammençant par lê mettre hors de normes, dans lê cadre anormal qu’est une prision” (André Armazet, Lês prisons, Ed. Fillipacchi, Paris, 1973, p. 24). 255 THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 12-13.
75
apostando-se nas possibilidades de ressocialização dos mesmos, momento em que começam a
ser empreendidas reformas legislativas substanciais.
A Comissão Internacional Penal e Penitenciária foi a primeira a cogitar sobre normas
para o tratamento dos reclusos, no ano de 1933. Já em 1934, a Liga das Nações adotou e
aperfeiçoou aquelas regras, que foram recomendadas pela ONU, em 1955, por ocasião do I
Congresso para a Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente, realizado em Genebra.
Em 1966, foi adotado, pela Assembléia Geral, um Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos, cujo art.10 estabeleceu que “toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com
humanidade e com respeito à dignidade inerente à pessoa humana”.256
Ressurgiu o debate na ONU sobre as Regras Mínimas, em 1970, no 4º Congresso
sobre a Prevenção do Crime, em Kioto, no Japão, ocasião em que foi dada ênfase especial aos
direitos humanos dos presos. E a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em
Resolução da 3ª Sessão Ordinária da Assembléia Geral, em 1948, em Paris, já proclamara, em
seu inciso V, que “ninguém será submetido a tratamento cruel, desumano ou degradante”.257
Conforme Rui Medeiros:
As Regras Mínimas consubstanciam princípios e práticas recomendadas no trato com os internos do sistema prisional e para uma boa administração penitenciária. Trata desde a alimentação, vestuário, disciplina, assistência religiosa, cuidados médicos, até as diretrizes para a classificação e individualização dos apenados, bem como o trabalho dos presos e cuidados ressocializantes.258
No Brasil, os avanços já puderam ser sentidos em 1957, com as Normas Gerais do
Sistema Penitenciário, criadas pela Lei nº 3.274, as quais consubstanciaram regras acerca do
tratamento dos presos e do funcionamento do Sistema Penal.
A Moção de Friburgo, de 1971, oriunda do I Encontro Nacional de Secretários de
Justiça e Presidentes de Conselhos Penitenciários, advertia que “não se deveria ficar adstrito,
como no Código de 1940 e no de 1969, às penas privativas de liberdade”.259
Em setembro de 1973, foi lançada a Moção de Goiânia I, quando se recomendou “a
introdução de medidas humanísticas conducentes à reintegração social do condenado como:
ampliação do perdão judicial, do sursis e do livramento condicional, além de outras medidas
substitutivas da pena de prisão”. As Leis nºs 6.016/73 e 6.416/77 consagraram como novidade
256 MEDEIROS, Rui. Prisões Abertas. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 8. Afirma Rui Medeiros, em nota de rodapé, que o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos foi ratificado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16.12.66 e adotado pela Resolução 2.200 A (XXI), entrando em vigor em 23.3.76. 257 Ibidem, p.8. 258 Ibidem, p.9. 259 DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. São Paulo: RT, 1998, p. 375.
76
“a pena de prisão-albergue”.260 Esta última restringiu o encarceramento (prisões fechadas) aos
criminosos de maior periculosidade e implantou o regime de semiliberdade e de prisão aberta.
O anteprojeto de lei modificativa da Parte Geral do Código Penal, de 1981,
contemplava como penas “as privativas de liberdade, as restritivas de direitos e as
patrimoniais (art. 32), constituindo-se as segundas em sanção independentes das demais,
muito embora todas, entre si, relacionadas em alternância (art. 56)”. Miguel Reale Júnior
afirma que “tal natureza alterou-se, no projeto de 1983, no anteprojeto revisto, e na lei de
1985, que transmudaram as penas restritivas em sanções substitutivas da pena de prisão (art.
32 e 44)”.261
A Lei de Execução Penal vigente (Lei 7.210/1984), elaborada pela comissão
composta pelos Professores Francisco de Assis Toledo, René Ariel Dotti, Miguel Reale
Júnior, Ricardo Antunes Andreucci, Rogério Lauria Tucci, Sérgio Marcos de Moraes Filho e
Negi Calixto e posteriormente revisada por Francisco de Assis Toledo, René Ariel Dotti,
Jason Soares Albergaria e Ricardo Antunes Andreucci, que foi aprovada pelo Congresso
Nacional, sem grandes alterações, consagrou vários direitos aos presos, os quais se encontram
estabelecidos em seu art 41.262 Já a Constituição Federal assegura, no seu art. 5º, inciso XLIX,
o respeito à integridade física e moral dos presos.
Não obstante toda essa atividade, a pena privativa de liberdade continuou e continua
atingindo a consciência ética e democrática da sociedade, sobretudo diante de certos crimes.
Assim, na baliza da busca de humanização para a execução da pena privativa de
liberdade, delinearam-se, também, outras formas alternativas de punição, que foram
consagradas, inicialmente, na Reforma da Parte Geral do Código Penal (Lei 7.209/84), para os
delitos de menor potencialidade lesiva.
Dessa forma, destaca-se que os direitos do preso começaram a se fazer sentir, também,
na forma do “punir”, estabelecendo outras penas além da privativa de liberdade e da de multa
(que também sofre reforma). Surgem, no ordenamento jurídico pátrio, as penas restritivas de
direito: a prestação de serviços à comunidade, a interdição temporária de direitos e a limitação
de fim de semana, que são o resultado de uma nova conjuntura estatal ao tratar da
criminalidade.
Registre-se que a Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais), por sua vez,
260 DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. São Paulo: RT, 1998 p. 375-376. 261 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 2, p. 49. 262 MEQUITA JÚNIOR, Sídio Rosa de. Execução Penal: teoria e prática: doutrina, jurisprudência, modelos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p.22.
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estabeleceu, onze anos após a Reforma, outros institutos despenalizadores, tais como a
transação, a composição de danos e a suspensão condicional do processo, além de expandir a
necessidade de representação nos crimes de lesão corporal simples ou culposa.
Por fim, a Lei nº 9.714/98 acrescentou ao ordenamento jurídico pátrio outras penas
restritivas de direitos: a prestação pecuniária e a perda de bens e valores, alargando, também,
sua incidência nos crimes dolosos cuja pena não ultrapasse quatro anos, praticados sem
violência ou grave ameaça à pessoa. Também a Lei dos Crimes Ambientais (Lei n.
9.605/1998), o Código de Trânsito (Lei nº 9.503/1996), o Código de Defesa do Consumidor
(Lei nº 8.078/1990) e a nova Lei de Tóxicos (Lei nº 11.343/2006) estabeleceram penas
restritivas de direito específicas.
Saliente-se que o tempo transcorrido desde os primórdios de aplicação da pena
privativa de liberdade, no panorama nacional e internacional, somente confirmou seus graves
defeitos, não havendo, ainda, outro mecanismo de punição para os delitos de alta gravidade,
do que se conclui ser necessário e urgente o processo de humanização do sistema carcerário
para a expiação dos crimes graves. Porém, para os crimes menores, bastam as penas
alternativas.
No dizer de Maria Thereza Rocha de Assis Moura, “o cárcere não ‘reabilita’, nem
‘reintegra’ o condenado à sociedade, é preciso evitar, pelo menos, para o pequeno e médio
infrator, a prisão, impondo-lhe penas alternativas, também previstas na Constituição da
República”.263
Nesse passo, há de se constatar que as deficiências múltiplas detectadas na pena
privativa de liberdade, ao longo da história, levaram as legislações de muitos países à sua
substituição por sanção alternativa, que deverá ser procedida, dentro dos limites
recomendáveis, aos autores de crimes de médio e pequeno potencial ofensivo.
3.2 ORIGEM DAS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS NO PANORAMA
LEGISLATIVO INTERNACIONAL
Claus Roxin264, na obra Estudos de Direito Penal, ao questionar se o Direito Penal do
futuro será mais suave ou mais severo, responde que, apesar do previsto aumento da
criminalidade, as penas hão de tornar-se mais suaves.
263 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis Moura. Execução Penal e Falência do Sistema Carcerário. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, n. 29, jan./mar.2000, p.357-358. 264 ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 17-19.
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Aduz que, à primeira vista, “isso parece paradoxal, pois corresponde ao raciocínio do
leigo reagir a uma criminalidade crescente com penas mais duras”. Afirma, porém, que se
supreenderá com essa afirmação aquele que tem observado, nos últimos anos, que a moda
político-criminal vem se voltando a um enrijecimento do Direito Penal, em vários países, fato
este originado pela criminalidade organizada como também em face do medo gerado pela
prática de crimes entre os cidadãos, constantemente aumentada pelas reportagens da mídia.
Entretanto, pensa o professor alemão tratar-se de “uma oscilação cíclica a que a
criminalidade volta a submeter-se após certo período de tempo”. Mas, a longo prazo, supõe
que esse desenvolvimento leve a uma necessidade de uma “nova suavização de penas”.
Argumenta que a pena privativa de liberdade, a qual “dominou o cenário nas penas
dos países europeus desde a abolição dos castigos corporais, tem seu ápice bem atrás de si, e
vai retroceder cada vez mais”.
Sustenta que o declínio da pena privativa de liberdade tem duas razões: as instituições
carcerárias e os recursos financeiros necessários à manutenção do sistema prisional que são
deficientes para abrigar o grande número de infratores; além disto, a imposição de penas
privativas de liberdade em massa, inclusive para os delitos pequenos e médios, não é político-
criminalmente desejável.
Desta maneira, haverão de surgir, em seu lugar, os substitutos ou alternativas à pena
de prisão, pois, de acordo com os conhecimentos da criminologia, a força preventiva do
direito penal não depende da dureza da sanção, outrossim “de o Estado reagir ou não de modo
reprovador”.265
É justamente com base nessa linha evolutiva do Direito Penal que se pode afirmar que
os legisladores contemporâneos de vários países encontraram a legitimidade necessária para
cominarem as chamadas sanções alternativas penais, sanções estas de natureza criminal
diversas da prisão, como a multa, a prestação de serviços à comunidade e as interdições
temporárias de direitos.
Segundo as Regras de Tóquio, “alternativas penais constituem sanções e medidas que
não envolvem a perda da liberdade”. Em seu texto, a expressão “medida não privativa de
liberdade” se refere a qualquer providência determinada por decisão, proferida por autoridade
competente, em qualquer fase da administração da Justiça Penal, através da qual “uma pessoa
suspeita ou acusada de um delito, ou condenada por um crime, submete-se a certas condições
265 ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 19.
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ou obrigações que não incluem a prisão”.266
São os chamados substitutivos penais ou meios de que se vale o legislador, com o
escopo de obstar que se venha aplicar, ao autor de uma infração penal, uma pena privativa de
liberdade. Podem ser citados, como exemplo, a fiança, o sursis, a suspensão condicional do
processo, o perdão judicial, as penas alternativas, etc.
O ordenamento jurídico pátrio utilizou-se da nomenclatura “penas restritivas de
direitos” para designar as sanções que efetivamente restringem direitos, como as interdições
provisórias de direitos, e também aquelas que restringem a liberdade, a exemplo da limitação
de fim de semana, além de outras de ordem pecuniária, como a perda de bens e valores e a
chamada “prestação pecuniária”. 267
Registra a história das sanções criminais que, na Antigüidade, a pena de morte era a
principal forma de reprovação penal. Poucos países utilizavam a prestação de trabalhos como
pena. No Egito, contudo, constata-se, além da pena de morte, a existência de outras penas
como a mutilação, o desterro, o confisco e a escravidão, e também a aplicação do trabalho
forçado em minas, conforme atestam Zaffaroni e Pierangeli.268
Também, em Roma, aliados às penas de morte, aplicadas no caso de delitos
públicos269, e às reparações pecuniárias, que eram utilizadas nos delitos privados270, surgem,
posteriormente, os trabalhos forçados, introduzidos por Tibério, no ano de 23 d.C. Possuía
três espécies: trabalho nas minas, trabalhos forçados perpétuos e trabalhos forçados por tempo
determinado. A primeira modalidade era a mais grave e aplicava-se por toda a vida, pois os
condenados eram submetidos à marca de ferro quente, além de executarem suas tarefas sob
vigilância militar e com a aplicação de castigos corporais. Nos trabalhos perpétuos, os
condenados, após dez anos de cumprimento da pena, se não fossem mais úteis à realização
266 JESUS, Damásio de. Penas Alternativas: anotações à lei n.9.714, de 25 de novembro de 1998. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.28. 267 A referência às penas restritivas de direito, estabelecidas no ordenamento jurídico brasileiro, utilizamos a linguagem do legislador, sejam elas restritivas de direito de fato, ou de liberdade e até as pecuniárias, sendo digno de nota que a pesquisa não vai examinar a eficácia da pena de multa, que foge à delimitação temática inicial. 268 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2002, p.177. 269 Delitos públicos, no Direito Romano, são os que atingem a cidade e o Estado, acarretando, como conseqüência, um processo penal diante de tribunas especiais, as quaestiones perpetuae, onde qualquer cidadão poderá dar início ao processo. Acarretam penas corporais (morte, exílio) ou pecuniárias, revertendo estas ao Estado e não à vítima. (CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973, p. 264). 270 Os delitos privados, no Direito Romano, são os que atingem a pessoa ou os bens de um particular, dando como conseqüência um processo diante das jurisdições civis ordinárias. Na época clássica, os delitos privados eram considerados fontes de obrigações pecuniárias, dando origem a obrigações sancionadas por ações penais, que asseguravam a punição do culpado através de uma importância paga à vítima. (CRETELLA JÚNIOR, J., op. cit., p. 264).
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daquele trabalho, poderiam ser entregues à família. Havia, ainda, a modalidade de trabalhos
públicos, que eram aqueles normalmente confiados aos servos, tais como a pavimentação das
vias públicas, a limpeza de cloacas, os trabalhos em valetas para escoamento d´água, etc. No
que tange às mulheres, o trabalho era realizado em teares imperiais, conforme assevera
Teodoro Mommsen271.
Durante as Ordenações do Reino de Portugal, que vigoraram no período colonial
brasileiro e só foram revogadas, entre nós, em 1830, foram amplamente empregadas as penas
de galés272, forma específica de trabalhos forçados, também utilizada em vários países
europeus, a exemplo da França. O livro V das Ordenações do Reino previa essa pena para
vários delitos, tendo sido mantida no Código Criminal do Império do Brasil, sancionado pelo
Imperador Dom Pedro I, em 16 de dezembro de 1830. Somente em 1890, os trabalhos
forçados foram abolidos no Brasil, com o advento do Código Penal de 1890, na mesma época
de seu abandono, em Portugal, através da Lei de 01.07.1867, que entrou em vigor em 1884.273
Mas é importante discernir a pena de trabalhos forçados da pena de prestação de
serviços à comunidade. A primeira constitui modalidade de privação da liberdade, pois os
trabalhos eram muitas vezes perpétuos e penosos; a segunda se subsume, apenas, a uma
restrição da liberdade, cumprida em tempo bastante limitado e conforme as aptidões do
condenado.
Somente, no final do século XIX, surgem, efetivamente, formas alternativas de pena,
que hoje poderiam ser identificadas como prestações de serviços à comunidade. Tais sanções
são encontradas na legislação penal de 1875, no Cantão de Vaud, e em alguns Lander alemães
(Saxônia, Prússia e Baden), os quais conheciam um trabalho de utilidade pública como
sucedâneo da pena detentiva na forma de conversão274. Em meados do início do século XX, o
Egito, por meio da Lei de 12.06.1912, também introduz o trabalho penal como substitutivo de
penas de curta duração. Ali foi usado para substituir penas inferiores a três meses de prisão,
como subsidiária em caso de não-pagamento da multa.275
No Código Italiano de 1889, que vigorou até 1930, havia a previsão de trabalhos
271 MOMMSEN apud SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p. 160. 272 A pena de galés significa, no Código Penal de 1830, o emprego nos trabalhos públicos da província, onde tivesse sido cometido o delito, ficando, o condenado, à disposição do governo. Segundo Carrara, em sentido próprio designa o serviço de remar em naus e, em sentido amplo, a destinação do condenado também a outros trabalhos cansativos, em terra firme (CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal: Parte Geral. Tradução Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2002, v.2, p.131). 273 SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, op. cit., p. 162. 274 DOLCINI e PALIERO apud SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR,op.cit., p.162. 275 CALÓN apud SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, op.cit., p. 162-163.
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comunitários de duas maneiras: no lugar da pena de prisão, em caso de insolvência do
condenado; e como sanção isolada, no caso do cometimento de pequenos delitos como
mendicância e embriaguez grave.276
Conforme o relato de Shecaira e Corrêa Júnior, uma das primeiras alternativas à
pena privativa de liberdade foi a prestação de serviços à comunidade, estabelecida no Código
Penal soviético de 1926, em seus artigos 20 e 30.277 O estatuto penal russo de 1960 criou a
pena de trabalhos correcionais, sem privação da liberdade, cujos trabalhos deveriam ser
cumpridos no distrito do domicílio do condenado, sob a vigilância do órgão encarregado da
execução da pena.278
A moderna forma de prestação de serviços à comunidade prevê a voluntária
submissão ao trabalho, com o escopo do próprio condenado evitar a custódia prisional. Isto
porque os trabalhos forçados do passado são incompatíveis com a Convenção sobre Trabalhos
Forçados (Convenção de Genebra de 1930); com a Convenção para Proteção de Direitos
Humanos e Liberdades Fundamentais (Tratado de Roma de 1950); com a Convenção sobre
Abolição de Trabalhos Forçados (Convenção de Genebra de 1957); e com o Acordo
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Convenção de Nova York, 1966).279
No II Congresso de Direito Comparado, realizado em 1937, em Haia, já se reclamava
a substituição da prisão por outras medidas. O Congresso das Nações Unidas, por sua vez,
reunido em Genebra, em 1953, aprovou diversas medidas em matéria de regime prisional
aberto, as quais deveriam propiciar ao condenado uma recondução sem traumas para o
convívio social, e os congressos internacionais que se sucederam demonstravam a busca
incessante de alternativas para a pena de prisão, em face de seus graves inconvenientes, que
eram destacados em todo mundo sobre a privação da liberdade do condenado.
Desta feita, em março de 1976, reúne-se o Comitê de Ministros do Conselho da
Europa, sendo aprovada a Resolução (n. 76):
O Comitê de Ministros, considerando o interesse dos Estados-membros do Conselho da Europa em estabelecer princípios comuns de política criminal; considerando a tendência constatada em todos os Estados-membros no sentido de evitar, dentro da medida do possível, a aplicação de penas privativas da liberdade, em razão de seus múltiplos inconvenientes e por respeito às liberdades individuais, e convencidos de que esta política poderá ser perseguida, sem colocar em perigo a segurança pública; considerando, desde já, que é necessário desenvolver-se as medidas de substituição existentes há mais tempo (tais como sursis e probation), mas também de promover
276 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p.163. 277 Ibidem, p. 160. 278 BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei n. 9.714/98. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 74. 279 SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, op. cit., p. 163.
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novas medidas, a fim de permitir aos Tribunais a escolha entre as diversas formas de sanções aquela que convém ao caso particular; considerando que as medidas de substituição às penas privativas de liberdade podem servir ao propósito de readaptação de delinqüentes, ao mesmo tempo sendo menos onerosas que o encarceramento; Recomenda aos governos dos Estados-membros; 3. c) examinar as vantagens do trabalho em benefício da comunidade, reconhecidas como verdadeiramente proporcionando: - ao delinqüente a oportunidade de purgar sua sanção prestando serviço à comunidade comunidade; - à comunidade a oportunidade de contribuir ativamente à recuperação social do delinqüente, através da aceitação de sua participação em trabalho beneficente.280
Verifica-se, em face das reuniões ao redor do tema e, em específico, da Resolução
mencionada, que as recomendações em nível internacional já começavam a se firmar por
substitutos alternativos à pena de prisão, ao exaltar as vantagens do trabalho em benefício da
comunidade sobre a segregação penitenciária, como forma eficiente de ressocialização dos
condenados.
Registre-se que a pena de prestação de serviços à comunidade que já havia sido
implantada na União Soviética, em 1926, passou a inspirar a legislação de outros países
socialistas, além de ressaltar-se o êxito da experiência inglesa que, através do Criminal Justice
Act introduziu a Commynity Service Order na Inglaterra e País de Gales.281
A Inglaterra foi o primeiro país da Europa ocidental a utilizar a prestação de serviços
como pena autônoma, o que se deu através do Criminal Justice Act, de 1972. Atesta Paul
Decant que “sua origem legislativa encontra-se em um relatório de 13 de maio de 1970 ao
Conselho de consultas sobre o sistema penal, conhecido sob o nome de Relatório Wootton,
designação esta proveniente do nome da Presidente desse conselho, Lady Wooton of
Abinger”.282
No artigo Community service order como alternativa a la pena privativa de la
liberdad en Inglaterra, encartado na obra Cuestiones Del Derecho Penal europeu, Bárbara
Huber assevera que a política criminal inglesa pós-guerra se caracterizou por uma grande luta
contra o regime prisional, em vista do excessivo número de reclusos, o que repercutiu em
verdadeira crise na execução penal. Mas que tal luta também encontra fundamentos em razões
humanitárias e no ceticismo reinante sobre a eficácia da pena privativa de liberdade, fosse
como medida ressocializadora, fosse como fator intimidante da prática de crimes. Aliado a
isto, importam os prejuízos financeiros legados ao governo, resultantes da superpopulação
carcerária, constituída, principalmente, de autores de crimes de reduzida gravidade e 280 DECANT apud SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p. 164. 281 SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, op.cit., p. 64-165. 282 DECANT apud SHECAIRA; CORRÊA JÙNIOR, op. cit., p. 170.
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primários. Assim, a jurista ressalta que tal situação poderia ser enfrentada de duas maneiras:
com o aumento dos presídios, ou com a redução do envio desses condenados aos
estabelecimentos prisionais, verificando que a segunda solução foi reconhecida como a mais
viável, em face dos óbices causados pela situação financeira deficiente daquele período.283
Nesse passo, surgem, na Inglaterra, com o apoio da Criminal Justice Bill, novas
alternativas à pena privativa de liberdade, tendentes a ampliar o sistema penal e a oferecer aos
tribunais medidas adequadas para evitar o encarceramento de autores de crimes menores e que
não fossem perigosos. Trata-se da obrigação de realizar um trabalho de utilidade pública, sem
remuneração, sob a orientação de um funcionário especializado ou de pessoa encarregada da
vigilância, durante um período de quarenta a duzentas horas, sob a supervisão de um
assistente social. É pena vinculada com numerosas organizações sociais inglesas e requer,
para a sua eficácia, um forte compromisso do grupo social, contribuindo para a real
ressocialização do condenado, que além de realizar um serviço necessário à comunidade, não
perde os vínculos com o seu próprio meio social. Delineia-se, assim, a Commynity Service no
sistema penal, iniciada na década de 1960, época em que a atividade voluntária com fins de
bem comum exerce, na Europa, um forte atrativo, especialmente entre os jovens.284
A Inglaterra também introduziu a “prisão de fim de semana” através da Criminal
Justice Act, no ano de 1948285. A Bélgica, por sua vez, instituiu o “arresto de fim de semana,
em casos de detenção inferior a um mês, no ano de 1963 e a Alemanha também insere, em seu
ordenamento jurídico a mesma pena, em 1953, somente para os infratores menores. A
Bélgica, em 1963, adotou o arresto de fim de semana, especificamente para penas detentivas
inferiores a um mês. O Principado de Mônaco, por sua vez, instituiu, em 1967, uma forma de
execução fracionada da pena privativa de liberdade, que se aproximava do arresto de fim de
semana.286
Na França, a Lei 70.643, de 17.07.1970, e o Dec. 72.852/73 estabeleceram a semi-
liberdade para condenados, por uma ou mais vezes, à pena não superior a um ano, sendo que
outra lei de 11.07.1975 alterou o Código Penal francês, ao introduzir diferentes medidas
alternativas e substitutivas da prisão, tais como a dispensa da pena, o adiamento da pena e a
283 HUBER, Bárbara. Community service order como alternativa a la pena privativa de la liberdad en Inglaterra, Cuestiones del Derecho Penal europeu. Tradução Enrique Bacigalupo. Instituto Max Planck de Derecho Internacional – Id. VLex: VLEX – VM513 . Madrid: Dykinson, 2005, p.10. 284 Ibidem, p.11 285 BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei n. 9.714/98. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 74. 286 Ibidem, loc.cit.
84
retirada de licença para dirigir.287
Em 1971, realizou-se, no Brasil, o I Encontro Nacional de Secretários de Justiça e
Presidentes de Conselhos Penitenciários, tendo sido aprovada a Moção de Friburgo, na qual se
afirmou a necessidade de ampliação das penas do Código pátrio. E, após vários movimentos
de estudiosos da área penal, no sentido de criar medidas que estimulassem a reintegração
social dos sentenciados, já na década de 80, o Ministro da Justiça constituiu uma Comissão,
com o escopo de apresentar modificações à Parte Geral do Código Penal, resultando na
aprovação da Lei 7.209/84, que institui, no Brasil, as primeiras penas restritivas de direito.
Conforme Dotti, a mais recente contribuição em nível internacional que difundiu, em
larga escala, a pena de prestação de serviços à comunidade foi o VI Congresso da ONU,
realizado em Caracas (25.08 a 05.09.1980), cujo documento elaborado pela Secretaria Geral
textualiza: “considera-se que a prestação de trabalho em favor da comunidade caracteriza uma
alternativa construtiva e econômica à pena de prisão e constitui um novo meio de se colocar o
delinqüente em contato mais próximo aos cidadãos que precisam de ajuda e apoio”.288
É indiscutível que a origem das penas e medidas alternativas, no plano internacional,
está na constante preocupação da ONU, seja com a redução do uso da pena de prisão, seja
com o tratamento e recuperação do delinqüente, para evitar a reincidência. Sobre o tema,
assim se manifesta Luiz Flávio Gomes, na obra Penas e Medidas Alternativas à Prisão, ao
dizer que o texto firmado pela Declaração Universal de Direitos Humanos, no sentido de que
ninguém será submetido à tortura nem a tratamentos ou punições cruéis, aparece em vários
outros documentos internacionais de grande alcance289 e, no plano interno, inúmeros
dispositivos da Constituição se encontram em perfeita sintonia com os citados documentos
(art. 5º, incisos III, XLVII, dentre outros)290.
Afirma, também, Luiz Flávio Gomes291que, no 6º Congresso das Nações Unidas,
expediu-se a Resolução 8 e, no 7º, a Resolução 16, enfatizando a necessidade não somente da
redução do número de reclusos, senão, sobretudo, a oportunidade de soluções alternativas à
prisão, bem como o escopo de reinserção social dos delinqüentes. Atesta que coube, em
287 DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. São Paulo: RT, 1998, p.371. 288 Ibidem, p. 488-489. 289 V. PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS, art. 7º, onde se lê: “Ninguém será submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. V. Ainda CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS, art, 5º, n. 2: “Ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda a pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”, apud GOMES, Luiz Flávio. Penas e Medidas Alternativas à Prisão. São Paulo: RT, 1999, p.89 e 90. 290 GOMES, Luiz Flávio, op. cit., p.89 e 90. 291 Ibidem, p.21.
85
seguida, ao Instituto da Ásia e do Extremo Oriente para a Prevenção do Delito e Tratamento
do Delinqüente formular os primeiros estudos relacionados com o assunto. E que, logo
redigidas as Regras Mínimas sobre o tema, o 8º Congresso da ONU recomendou a sua
adoção, que ocorreu em 14 de dezembro de 1990, pela Resolução 45/110, da Assembléia
Geral. Aprovou-se, naquela ocasião, a recomendação de denominá-las de Regras de Tóquio,
de cuja tradução, para o nosso idioma, encarregou-se o penalista Damásio de Jesus.
Há de se ressaltar, então, que, nesse momento histórico, surgem nos ordenamentos
jurídicos penais as sanções restritivas de direitos como a imediata e efetiva solução de
punibilidade para os agentes infratores de delitos menores. O Brasil seguiu o panorama
mundial. Senão, vejam-se trechos da mensagem n. 1.445/96, do Senhor Ministro de Estado da
Justiça, constante da Exposição de Motivos da Lei nº 9.714/98:
Omissis 4. [...]Para os crimes de menor gravidade, a melhor solução consiste em impor restrições aos direitos do condenado, mas sem retirá-lo do convívio social. Sua conduta criminosa não ficará impune, cumprindo, assim, os desígnios da prevenção especial e da prevenção geral. Mas a execução da pena não o estigmatizará de forma tão brutal como a prisão, antes, permitirá, de forma bem mais rápida e efetiva, sua integração social. Nessa linha de pensamento é que se propõe, no projeto, a ampliação das penas alternativas à pena de prisão [...]292.
No dizer de René Ariel Dotti, as penas restritivas de direitos “nasceram porque
sobrepairando tudo se achava a convicção de que o encarceramento, salvo para os
denominados presos residuais, consiste em injustiça constante”. Registra o mencionado autor
que a reformulação do sistema de penas impunha-se como obrigatória, pois a pena é castigo,
“mas a punição não é só a prisão”. Nesse passo, “cogitou-se de sanções alternativas a ela e
que se convertessem, até, em substitutivas para a prisão e não, simplesmente, ao contrário”.293
Daí concluir-se que as penas restritivas de direitos tiveram origem, no panorama
legislativo internacional, como o resultado de uma evolução humanitária do sistema punitivo,
em nível mundial, para responder ao ambiente de crise da pena privativa de liberdade, já que
o Estado mostrava-se de todo impotente na adoção de uma política penitenciária que pudesse
solucionar a contento os problemas resultantes da criminalidade de pequeno e médio potencial
ofensivo.
292 BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei n. 9.714/98. São Paulo: Saraiva, 1999, p.223-224. 293 DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. São Paulo: RT, 1998, p. 369.
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3.3 UMA ANÁLISE DO SISTEMA ALTERNATIVO À PENA DE PRISÃO NA
LEGISLAÇÃO DE OUTROS ESTADOS
O estudo comparativo do Direito, além de aprofundar o conhecimento de regras e
institutos jurídicos vigentes em outras nações, serve à melhor compreensão do sistema
nacional, alargando, sobremaneira, a visão no tocante às buscas de solução para determinados
problemas sociais que afligem o país.
Ademais, a busca do estudo do Direito vigente nas diversas nações também é
importante para a percepção de que algumas distorções existentes na sociedade brasileira não
se restringem a problemas específicos provenientes da falência estrutural e da pobreza do
país, mas são problemas de quase todos os povos.294
Sem dúvida que a pena privativa de liberdade vem se mostrando deficiente à resposta
da criminalidade de nossos dias para os crimes menores, principalmente no que tange à
ressocialização do condenado. Assim, vários países vêm estabelecendo, em seus
ordenamentos jurídicos, sanções diferentes, com o objetivo de obter mais eficácia punitiva
para os delitos de menor gravidade.
Na Europa, a Romênia, a Dinamarca, a França, a Hungria, a Irlanda, a Holanda, a
Polônia, a Escócia e a Suécia passaram a utilizar como penas principais, medidas
anteriormente previstas como penas acessórias, tais como a inabilitação para o exercício do
cargo, profissão ou ofício, confisco de objetos, suspensão ou cancelamento da licença para
conduzir veículos automotores, privação de direitos, fechamento de empresas e outras.
Também a admoestação pode ser mencionada como medida alternativa bastante utilizada no
continente europeu.295
Em Portugal, após a reforma do Código Penal de 1982, em 1995, evidenciam-se as
seguintes alternativas penais: a prisão por dias livres (restrição da liberdade em fim de
semana), a semidetenção (espécie de regime semi-aberto), a multa, a suspensão da execução
da pena; a suspensão da pena com regime de prova, a admoestação (advertência), a prestação
de trabalho a favor da comunidade e a liberdade condicional.296 Existem, na legislação
portuguesa, também, as penas acessórias que são a demissão, a suspensão temporária do cargo
e a interdição de exercício de outras profissões ou atividades.297
294 SICA, Leonardo. Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão. São Paulo: RT, 2002, p. 143. 295 OLIVEIRA. Edmundo. Política criminal e alternativas à prisão. Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 36. 296 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.167-168. 297 MONTEIRO, Marcelo Valdir. Penas Restritivas de Direito. Campinas: Impactus, 2006, p.80-81.
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Monteiro298 faz uma análise criteriosa das penas alternativas cominadas em Portugal,
aduzindo que, nesse país, quando a pena de prisão aplicada não superar seis meses, poderá ser
substituída pela pena de multa ou por outra pena não privativa de liberdade. No caso de não
pagamento da pena de multa, o condenado deverá cumprir a pena privativa de liberdade
aplicada.
Salienta que a pena de multa, em Portugal, é fixada em dias-multa (certo valor pago
por determinado número de dias) e, assim como no Brasil, observado o mínimo de dez e o
máximo de trezentos e sessenta dias-multa, atentando-se para a situação econômica e finaceira
do apenado. Esta poderá ser parcelada pelo prazo máximo de dois anos, após o trânsito em
julgado da condenação, observando-se que o inadimplemento acarreta o vencimento
antecipado de todas as parcelas. O condenado pode requerer, entretanto, que a pena de multa
fixada pelo juiz seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho, a ser realizado em
estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado, empresas de direito público ou entidades
beneficentes.
Evidencia que o não pagamento da multa, em Portugal, acarreta a conversão em prisão
subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a 2/3, ainda que o crime não seja punido com
a pena de prisão, sendo que tratamento idêntico ocorre com o não cumprimento dos dias de
trabalho.
Em Portugal, o trabalho a favor da comunidade, como sanção autônoma não
institucional, apareceu pela primeira vez na Proposta de Lei n. 117/I, de 28 de julho de 1977,
apresentada pelo I Governo Constitucional, mas somente veio a ser consagrada no art. 60.º do
texto definitivo da reforma penal, aprovado pelo Decreto-Lei n. 400/82.299
A prestação de trabalho em favor da comunidade poderá ser aplicada, conforme o art.
58, do Código Penal português, quando houver aceitação por parte do condenado e a pena de
prisão não ultrapassar um ano. Consiste, no dizer de Monteiro, “na prestação de serviços
gratuitos ao Estado, a outras pessoas de direito público ou a entidades privadas cujos fins o
Tribunal considere de interesse para a comunidade”. Trata-se de prestação de trabalho, fixada
entre trinta e seis e trezentos e oitenta horas, podendo ser cumprida em dias úteis, fins de
semana ou feriados, desde que não cause óbice à jornada de trabalho do condenado.300
Registre-se que o órgão judicial responsável pela sua execução é o tribunal que
proferiu a condenação, e que na sentença devem constar: a indicação da entidade para a qual 298 MONTEIRO, Marcelo Valdir. Penas Restritivas de Direito. Campinas: Impactus, 2006, p.80. 299 JARDIM, Maria Amélia Vera. Trabalho a Favor da Comunidade: a punição em mudança. Coimbra: Almedina, 1988, p. 19-20. 300 MONTEIRO, op.cit., p. 82.
88
serão prestados os serviços, a duração global do trabalho e o horário dos respectivos
períodos.301
O controle da prestação de trabalho, nos moldes fixados, cabe ao Instituto de
Reinserção Social, o qual deverá comunicar ao tribunal todas as anomalias verificadas durante
a execução da medida, além de elaborar um relatório final que permita àquele órgão judicial
declarar ou não extinta a pena.302
Nesse passo, observa-se que Portugal está avançando na aplicação de penas
alternativas para os delitos menores, o que demonstra estar agindo em consonância com a
orientação dos órgãos internacionais.
Na Espanha, é importante registrar que seu Código Penal foi amplamente reformado
em 1995. Tal reforma propôs um novo sistema de penas, de forma a permitir alcançar, na
medida do possível, os objetivos de ressocialização que a Constituição espanhola prevê.
Entretanto, verifica-se que o quadro aflitivo e repressivo das penas foi pouco alterado, pois a
mencionada reforma foi condicionada a três questões principais: “escolhas de política
criminal em matéria de terrorismo”; “recordação de acontecimentos delitivos tristemente
famosos que comoveram a opinião pública”; e “compromissos eleitorais assumidos”.303
Assim, as modificações tendentes ao alargamento da cominação e aplicação de penas
alternativas à prisão sofreram, de certa forma, influências negativas por parte desses
movimentos.
Leonardo Sica assevera que todo o debate do sistema de penas, na Espanha, vem
girando em torno do “conteúdo finalístico do art. 25.2 da Constituição”, o qual estabelece que
as penas privativas de liberdade e as medidas de segurança devem ser orientadas para a
reeducação e a reinserção social. Desta maneira, as discussões em nível doutrinário e
jurisprudencial vêm se consolidando num sentido mais ou menos neutro dessa finalidade
constitucional da pena, reconhecendo a existência da “crise do ideal socializador”, mas
procurando, também, reconhecer outros fins da sanção criminal, a exemplo da prevenção
geral.304
Mas é importante salientar que, embora lutando contra a ideologia repressiva
evidenciada nos movimentos de recrudescimento das sanções criminais, o novo Código Penal
espanhol cominou penas de multa e privativas de direitos, afora outras medidas como a
301 JARDIM, Maria Amélia Vera. Trabalho a Favor da Comunidade: a punição em mudança. Coimbra: Almedina, 1988, p. 21. 302 Ibidem, loc.cit. 303 SICA, Leonardo. Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão. São Paulo: RT, 2002, p. 151-152. 304 Ibidem, p. 151.
89
suspensão da execução da pena privativa de liberdade e a liberdade condicional.305 Dentre as
penas restritivas de direitos, merecem destaque: a interdição absoluta (arts. 40 e 41); a
interdição especial para o exercício de emprego ou cargo público (art. 42), profissão, ofício,
indústria ou comércio (art. 45), ou dos direitos do pátrio poder, tutela, guarda ou curatela (art.
46), do direito de sufrágio passivo (art. 44), ou de qualquer outro direito; a suspensão do
exercício de emprego ou cargo público (art. 43); a privação do direito de conduzir veículo
automotor ou ciclomotor (art. 47), a privação do direito de possuir e portar armas (art. 47, 2ª
parte); a privação do direito de residir em determinados lugares ou a eles se dirigir (art. 48); e
os trabalhos em benefício da comunidade (art. 49).306
Nieves Sanz Mulas assevera que o novo Código Penal Espanhol suprimiu as penas de
prisão inferiores a seis meses (art.36), substituindo-as por multa, pelo arresto de fim de
semana e pelos trabalhos em benefício da comunidade (art. 88.1 e 2). Houve também a
manutenção da suspensão condicional (art.80 e seguintes). 307
Saliente-se que as penas alternativas enumeradas atendem à orientação preventivo-
especial estabelecida na Constituição Espanhola.
A França, através do Código Penal que entrou em vigor no ano de 1993, também fixou
algumas medidas penais alternativas que substituem penas privativas de liberdade de curta ou
média duração, a saber: dia-multa, trabalho de interesse geral, suspensão ou proibição
temporária da habilitação para dirigir veículo, perda da habilitação para dirigir veículos e
confisco de veículos. O Código francês também permite a suspensão da execução da pena
privativa de liberdade, através do sursis.308
Trata-se de um dos países que regula com mais amplitude as alternativas à prisão,
oferecendo ao juiz maior discricionariedade e flexibilidade em aplicá-las. Segundo a análise
de Reynald Ottenhof, o novo diploma penal é pragmático, inspirado pela atividade dos
operadores do Direito.309
Nesse diapasão, verifica-se que o sistema de penas do Código Penal francês se vale
primordialmente do princípio da individualização da pena, confirmando a tendência de
reforçar os poderes do juiz. Traz como inovações a supressão das penas mínimas (salvo
exceções) e do sistema rígido de circunstâncias atenuantes, além da exigência de que a 305SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p.168. 306 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, v. 1, p.613. 307 MULAS, Nieves Sanz. Alternativas a la Pena Privativa de Libertad: análisis crítico y perspectivas de futuro em lãs realidades española y centroamericana. Madrid: 2000, p. 232-233. 308 SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, op. cit., p.168. 309 OTTHENOF apud SICA, Leonardo. Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão. São Paulo: RT, 2002, p. 156.
90
imposição de pena de prisão seja expressamente motivada.310
Luiz Regis Prado atesta que o Código Penal francês, além de prever penas alternativas,
comina “penas complementares”. As primeiras são impostas como principais e não como
substitutas. As complementares, que são previstas para algumas infrações penais, se
constituem na interdição, perda, incapacidade ou restrição de um direito, imobilização ou
confisco de objeto, fechamento de estabelecimento e fixação ou difusão de decisão judicial,
seja pela imprensa escrita, seja por outros meios de comunicação audiovisual.311
Assim, o sistema francês de fixação de penas alternativas permite que estas sejam
aplicadas diretamente, excetuando-se os casos punidos com a pena de reclusão. Disto se infere
que sua finalidade transcende o sentido estrito de substituir a pena de prisão, que possui, desta
maneira, finalidade própria, e é justificada e valorada, à margem de qualquer referência com a
pena privativa de liberdade, afirma Leonardo Sica.312
Observa-se, entretanto, que o sistema flexível de penas francês, que se encaminha para
a diminuição da reação punitiva, esbarra em disciplinas pesadas como a da reincidência, que
pode dobrar os limites da pena de prisão e de multa, além de “elevar as penas de vinte (20)
anos até a perpetuidade”, o que fornece uma dimensão, segundo Ottenhof, de que os avanços
da Parte Geral do estatuto penal francês talvez estejam postados somente no plano formal.
Nesse passo, deduz o doutrinador deduz que há um grande risco de que essas tendências
contraditórias possam resultar na “perenidade das soluções consagradas”, o que pode
repercutir no endurecimento das penas nas soluções dos casos concretos.313
Edmundo Oliveira faz um relato interessante sobre tais penas demonstrando que, na
África, merecem registro os estudos que foram realizados pelo Instituto das Nações Unidas
Africanas para a Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente – Unafri. Assevera que
esse Instituto recomendou aos países africanos a adoção das seguintes medidas alternativas à
prisão:
a)descriminalização e despenalização; b)suspensão do processo no caso de infração leve; c) censura pública (advertência); d)restituição da coisa; e)privação de direitos; f) multa; g)confisco de bens, h) compensação à vítima; i)suspensão total ou parcial da execução da pena; j) probation (liberdade vigiada); l) trabalho supervisionado em favor da comunidade; m)arresto de fim de semana; n)licenças temporárias; o)cumprimento de programas comunitários; p)tratamento especial de saúde; q)perdão; r)anistia. 314
310 SICA, Leonardo. Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão. São Paulo: RT, 2002, p. 156. 311 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: RT, 2004, v. 1, p.612-613. 312 SICA, op. cit., p. 157. 313 OTTHENOF apud SICA, Leonardo, op. cit., p. 161. 314 OLIVEIRA. Edmundo. Política criminal e alternativas à prisão. Rio de Janeiro, Forense, 1997, p.86-88.
91
Registra, entretanto, o mencionado autor que poucos países africanos introduziram em
suas legislações penais as alternativas propostas pelo Unafri, a exemplo de “Quênia,
Tanzânia, Malavi, Sudão, Camarões e Burandi”, permanecendo a utilização, em grande
escala, das penas privativas de liberdade.
A pena de prisão também encontra “substitutos alternativos” nos países árabes,
podendo ser elencados os seguintes: “a)trabalho forçado; b)suspensão da execução da pena
privativa de liberdade; c)multa; e d)expulsão”. O Sudão e a Argélia aplicam a pena de
“vergonha ou recriminação pública”, a qual consiste na divulgação do veredicto ao público
em geral.315
Não restam dúvidas de que os trabalhos forçados que são utilizados em alguns países
árabes ferem a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em Resolução da 3ª
Sessão Ordinária da Assembléia Geral, em 1948, em Paris. Esta proclamara, em seu inciso V,
que “ninguém será submetido a tratamento cruel, desumano ou degradante”. Por isso, não
podem ser considerados como sanções alternativas legítimas para a pena de prisão.
Conforme o magistério de Shecaira e Correa Júnior316, a Arábia Saudita utiliza penas
severas, as quais estão previstas no “conjunto de leis denominado Sharia, que é inspirado no
livro sagrado islâmico, o Alcorão”. Registra, entretanto, que, em alguns casos, admite-se “a
extinção da punibilidade com o perdão da vítima, ou se esta aceitar uma indenização que
repare o dano sofrido”.
Assim, embora os países árabes possam ser destacados pelo uso de penas severas, há
de se constatar a existência de um movimento tendente a aceitar a possibilidade de
cumprimento de sanções criminais, nos crimes menores, através da reparação da vítima.
Os Estados Unidos da América também utilizam diversas medidas alternativas à
prisão, também chamadas de “penas intermediárias”. São elas: “a) probation; parole (espécie
de liberdade condicional vigiada; c)correição comunitária (internação em centros de educação
de condados – municípios); d)serviço comunitário; e)multa; f) confisco de propriedade; e g)
compensação à vítima”.317
O probation, na lição de Shecaira e Corrêa Júnior, é “a liberdade vigiada e
supervisionada por oficiais especialmente treinados, os quais contam também com o auxílio
de voluntários da comunidade”. Esclarecem que algumas “penas intermediárias” ou medidas
alternativas podem ser associadas ao monitoramento, realizado através de braceletes 315 OLIVEIRA. Edmundo. Política criminal e alternativas à prisão. Rio de Janeiro, Forense, 1997, p.91. 316 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p.169. 317 Ibidem, loc.cit.
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eletrônicos que emitem sinais para uma imediata localização e eventual contato com o
infrator.318 É, pois, uma liberdade com supervisão, em que os condenados devem prestar
serviços em benefício da sociedade, sendo supervisionados por oficiais da probation que têm
formação na área social, bem como por representantes da comunidade.319
O Federal Probation System tem cerca de setenta (70) anos.320 Nos Estados, as
probation agencies não são administradas de maneira uniforme. Assim, seu funcionamento é
diferente nos vários Estados. Em alguns, elas são controladas por agências executivas ou
judiciárias, enquanto outros Estados aboliram suas probation agencies, preferindo contratar
empresas privadas, com o escopo de desempenhar suas atribuições.321
Nos Estados Unidos, não existe um numerus clausus de penas alternativas e, “tem-se
lançado mão de um mixed sentences que cominam mais de uma modalidade de penas
alternativas, como probation e prisão domiciliar ou tratamento psicológico e prestação de
serviços à comunidade”. Desta maneira, a probation é complementada por outras penas, como
a reparação e a prestação de serviços comunitários, pois tanto esta como aquela têm sido
consideradas essenciais no processo de reabilitação do detido.322
São, portanto, três as categorias que se encaixam às penas alternativas, nos Estados
Unidos: reparação, reabilitação e incapacitação. A primeira implica em alguma modalidade de
restituição pecuniária. A reabilitação costuma envolver um mandado de tratamento
obrigatório. A incapacitação compreende a adoção de medidas que restringem a liberdade do
detido, como a prisão domiciliar e a prestação de serviços comunitários.323
Observa-se que, nesse país, a prestação de serviços à comunidade ficou reservada a
quem pratica crimes de colarinho branco ou ainda para os apenados de classe média.324
Também vêm sendo adotados, nos Estados Unidos, split sentences, os quais combinam
a pena de prisão com um período de probation. Intermediates sanctions são penas que
constituem um meio termo entre a pena privativa de liberdade e a probation, pois envolvem
supervisão intensiva, prisão domiciliar, monitoramento eletrônico e shock incarceration.Com
a shock incarceration, o réu é condenado a passar noventa (90) a 180 (cento e oitenta) dias
318 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p.169. 319 OLIVEIRA, Edmundo. Política Criminal e Alternativas à Prisão. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.74. 320 SCHMALLEGER apud ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. As penas alternativas na Inglaterra e nos Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, n. 49, jul./ago.2004, p.185. 321 KLEIN apud ALBUQUERQUE, op.cit., p.185-186. 322 Ibidem, p.188-189. 323 KLEIN apud ALBUQUERQUE, op.cit., p. 192-193. 324 Ibidem, p. 189.
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num boot camp325, para depois ser colocado em probation.326
Embora os Estados Unidos contem com várias espécies de penas alternativas, possuem
uma das maiores populações carcerárias do mundo. Credita-se a fatores sociais e econômicos
o aumento da criminalidade, além da televisão, filmes e videogames que exploram a violência
terem forte influência sobre os jovens americanos, assevera Chacon de Albuquerque.327 Pode-
se também debitar o fato à rigidez do sistema penal naquele país.
A probation, além de ser utilizada nos Estados Unidos, tem forte tradição na Inglaterra
e está na origem das penas alternativas, afirma o autor citado328, invocando Andrew Klein.
Esta pode ser considerada uma pena alternativa, já que a pena privativa de liberdade é
suspensa, e o detido fica solto na comunidade, sob a supervisão de um probation officer329.
Afirma, ainda, que a concessão da probation não constitui um ato vinculado, mas
discricionário e que se o detido não respeitar os termos fixados pelo juiz, ela é revogada e este
vai para a prisão.330
Chacon de Albuquerque explana sobre as finalidades da probation:
O objetivo principal da probation, tradicionalmente, foi a reabilitação do detido. Aos olhos da população inglesa e americana, este objetivo teria perdido o significado, sendo associado ao assistencialismo. Em lugar da reabilitação, passa-se a exigir a reparação da vítima pelos prejuízos sofridos ou a incapacitação do detido para a prática de outros crimes. As reparation orders materializam, justamente, o princípio da reparação. Elas procuram equilibrar os interesses da vítima e da sociedade com a necessidade de reintegrar o detido na comunidade 331, o qual passaria a compreender as conseqüências de suas ações ao providenciar a reparação dos prejuízos sofridos pela vítima. A forma mais comum de alcançar-se a reparação é a mediação vítima-réu, que não precisam, necessariamente, encontrar-se face a face.Um intermediário pode auxiliá-los a chegar a um acordo. Algumas formas de reparação envolvem os familiares tanto da vítima como do réu. A título de incapacitação do detido para a prática de outros crimes seu tratamento tem sido relegado a um segundo plano, em benefício, nos Estados Unidos, da castração química.332
Na Inglaterra, editou-se, em 1991, o Criminal Act Justice que criou as combinaton
orders, mesclando medidas da probation e da prestação de serviços, a ser efetuado em um
mínimo de quarenta horas, e num máximo de cem horas. Criaram-se, também, os toques de 325 No dizer de Roberto Chacon de Albuquerque “boot camps têm um feitio militar, o que inclui disciplina extremamente rígida, treinamento físico e trabalho duro”. (ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. As penas alternativas na Inglaterra e nos Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, n. 49, jul./ago.2004, p.190). 326 SCHMALLEGER apud ALBUQUERQUE, op. cit., p. 190. 327 ESTADOS UNIDOS. U. S. Department of Justice, Bureau of Justice Statistics, apud ALBUQUERQUE, op. cit., p. 197. 328 KLEIN apud ALBUQUERQUE, op. cit., p. 165. 329 Probation officers são funcionários que supervisionam tradicionalmente o cumprimento de penas alternativas na Inglaterra e nos Estados Unidos.(ALBUQUERQUE, op. cit., p. 165, em nota de rodapé). 330 BAINE v BECKSTEAD, 10 Utah 2d 4, 347 P. 2d 554, 558, apud ALBUQUERQUE, op. cit., p. 165. 331 WORRALL: “Far from demonstrating that it is resourceful, tolerant and healing, the community is then rejectinh, excluding and intolerantly punitive”, apud ALBUQUERQUE, op.cit., p. 165. 332 ALBUQUERQUE, op. cit., p. 165-166.
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recolher, curfer order, o qual exige que os condenados permaneçam num mesmo endereço,
sendo monitorados por aparelhos eletrônicos que devem levar no tornozelo.333
Consoante o Criminal Justice Act 199, a pena de prisão só deve ser imposta quando o
crime for so serious (tão grave) que somente esta punição possa ser justificada, embora a lei
não defina o que seja a “gravidade” do delito.
Embora a pena de prestação de serviços à comunidade seja aplicada durante a jornada
normal de trabalho do condenado, esta teve grande receptividade na Inglaterra, asseveram
Shecaira e Corrêa Júnior, tanto que “em 1974 foram aplicadas 1019 penas desse tipo. Em
1979, 15.700 medidas e, em 1983, este número subiu para 34.500 decisões”. Deste montante,
41% foram aplicadas para os crimes de furtos, e 25% para os delitos de roubo. É a chamada
Community Service Order (CSC).334
Também a reparação de danos causados à vítima, a multa e o confisco de propriedade
pessoal podem ser enumeradas como sanções aplicadas de forma autônoma, na Inglaterra,
evitando-se, dessa forma, a privação de liberdade em delitos de menor gravidade.335
No Japão, o Código Penal de 1908 estabeleceu “a multa e a suspensão da execução da
sentença (probation) como medidas alternativas à prisão”.336 A suspensão da prisão aplica-se
a condenados a pena não superior a três anos, cabendo ao tribunal a escolha. “A pena
alternativa mais empregada é a pena de multa: aplicada isoladamente, imposta junto com a
pena de prisão e com a pena de suspensão da pena (probation)”.337
Nesse país, para a concessão da probation, não importa o tipo de crime cometido, pois
esta deve ficar a critério do Tribunal, que depende da repercussão e gravidade da ofensa.
Entretanto, não há óbice em crimes de natureza grave como o homicídio e o roubo, desde que
o Tribunal reconheça que as circunstâncias justificam o procedimento.338
Os oficiais da probation pertencem ao Ministério da Justiça e trabalham em tempo
integral, e devem estar inseridos em uma das áreas seguintes: Direito, Psicologia, Educação,
Serviço Social e Medicina, e contam com vários cursos de treinamento, realizados no
departamento próprio.339
Importante salientar que Centros Privados de Reabilitação oferecem aos condenados
333 OLIVEIRA, Edmundo. Política Criminal e Alternativas à Prisão. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 34-35. 334 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p. 170. 335 OLIVEIRA, op.cit., p. 37. 336 SHECAIRA;CORRÊA JÚNIOR, op.cit., p.169. 337 SZNICK, Valdir. Penas Alternativas: perda de bens, prestação de serviços, fim de semana, interdição de direitos. São Paulo: Leud, 2000, p.74. 338 Ibidem, loc.cit. 339 Ibidem, loc.cit.
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em probation, casa e comida, além de possuírem oficinas de trabalho.340
A Austrália, por sua vez, cominou em sua legislação, “a multa, a admoestação, a
prisão domiciliar, a reparação do dano, o probation, a prestação de serviços à comunidade e a
liberdade condicional”.341
A Alemanha, apesar de ser “o maior centro de filosofia jurídica da atualidade”, ainda
não conseguiu conter a onda de uma crescente criminalização, afirma Cornelius Prittwitz342,
um dos autores da obra coletiva A insustentável situação do Direito Penal.343
Um dos exemplos disso é que, na aplicação da pena, o Tribunal Constitucional vem
procurando “robustecer a confiança na força estabilizadora e prevalente do ordenamento
jurídico”, para reforçar a adoção da teoria da prevenção geral positiva, ressalta Leonardo
Sica.344
Examinando-se o seu sistema penal, verifica-se que a Alemanha prevê somente como
pena acessória a proibição de conduzir veículo (art 44) e, como conseqüências acessórias, a
perda da condição de funcionário e a dos direitos políticos (art. 45).345 Ademais, o Código
Penal Alemão, de 1975, possibilita, ainda, ao magistrado, a aplicação da pena de prestações
de trabalho de utilidade pública apenas como condição imposta no caso de suspensão da pena
(§ 56, b.2.3).346
Em seu art. 40, o Código Penal alemão fixa a pena de multa em cotas diárias,
atendendo à situação pessoal e econômica do autor, variando entre dois e mil marcos
alemães.347 No art. 47, a pena não superior a seis meses pode ser substituída por multa,
correspondendo a uma cota diária, por um dia de privativa de liberdade e trinta cotas por mês.
Ela pode também ser substituída por admoestação, desde que se espere do condenado que não
cometa novos delitos.348
Embora se reconheça que o sistema alemão possui cunho descarcerizante, por recorrer
às penas de multa, nos crimes menos graves, possui o defeito de tornar-se desintegrador e 340 SZNICK, Valdir. Penas Alternativas: perda de bens, prestação de serviços, fim de semana, interdição de direitos. São Paulo: Leud, 2000, p.74. 341SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT, 2002, p.169. 342 El derecho penal alemán: Fragmentário? Subsidiário? Ultima ratio? La insostenible sitiacón del Derecho Penal. PRITTWITZ, apud SICA, Leonardo. Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão. São Paulo: RT, 2002, p. 161. 343 SICA, op.cit., p. 161. 344 Ibidem, p. 162. 345 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo:RT, 2004, v. 1, p. 612. 346 SHECAIRA; CORRÊA JÚNIOR, op.cit., p.172. 347 ESPÍNOLA apud MONTEIRO, Marcelo Valdir. Penas Restritivas de Direito. Campinas: Impactus, 2006, p.70. 348 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v.2 , p. 42.
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excludente, pois valoriza em demasia os critérios econômicos no julgamento dos cidadãos.349
Reforce-se que a única pena restritiva de direitos, que é admissível (admoestação) na
Alemanha, prevista em substituição à multa é, conforme Jescheck, “raramente utilizada na
prática”, pois ainda “não foi adotada na vida judiciária”.350
No Canadá, as penas e substitutos penais alternativos são: ordem de serviço
comunitário, multa, probation e parole351 (semelhante ao livramento condicional brasileiro).
Constituem, também, tal acervo, os programas de reabilitação e reintegração, em que o
condenado é submetido a terapias médicas, psicológicas e sociológicas, com o escopo de
obstar a prática de novos delitos.352
Nesse país, a Justiça Criminal também utiliza o programa de restituição à vítima, a
qual visa a restituição da coisa subtraída, que é muito comum nos crimes patrimoniais. Com
essa restituição, o autor passará a merecer a concessão de outros benefícios.Também possui
relevo a chamada “reconciliação”, que se serve de representantes da comunidade, os quais
colaboram para resolver pequenos problemas (antes ou depois do julgamento). Trata-se de
uma modalidade de arrependimento, e merece as desculpas da vítima (perdão).353
O programa de reabilitação, no Canadá, consiste em tratamento, com sessões
psicológicas, sociológicas e médicas, com treinamento e orientação, sendo utilizado em casos
de infrações de trânsito, e vem obtendo sucesso na prevenção da reincidência.354
Na Itália, o Direito Penal vem assumindo um amplo papel não subsidiário, de controle
político e administrativo, tendo em vista da necessidade de reprimir o crime organizado
(máfia), o que repercutirá, sobremaneira, na cominação e aplicação das penas alternativas à
prisão.355
O Código Rocco, que influenciou a redação do atual Código Penal brasileiro, oferece
poucas opções de sanções alternativas. Nesse passo, as penas principais são as detentivas ou
restritivas de liberdade e as pecuniárias. E a única medida alternativa estabelecida é a
suspensão condicional da pena, prevista no art. 163 que, a exemplo do sursis brasileiro, é
aplicável às penas até dois anos, se observadas as circusntâncias judiciais pertinentes, as quais
349 SICA, Leonardo, Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão. São Paulo: RT, 2002, p. 162-163. 350 JESCHESCK apud REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: Parte Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v.2 , p. 42. 351 A parole, que foi instituída em 1825 nos Estados Unidos, é uma modalidade da liberdade condicional, com supervisão, sendo utilizada após uma fase inicial onde o condenado esteve preso. (SZNICK, Valdir. Penas Alternativas: perda de bens, prestação de serviços, fim de semana, interdição de direitos. São Paulo: Leud, 2000, p. 81). 352 OLIVEIRA. Edmundo. Política criminal e alternativas à prisão. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 138. 353 SZNICK, op.cit., p. 84. 354 Ibidem, p. 84-85. 355 SICA, op.cit., p. 143.
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se encontram reguladas no art.133.356
Entretanto, com o objetivo de compatibilizar o sistema punitivo italiano com o Estado
Democrático de Direito foram surgindo leis penitenciárias, nos anos de 1975, 1977 e 1986,
quando introduziram medidas alternativas à detenção, mas com a Lei 689 de 1981 foram
editadas as penas substitutivas às condenações por detenção breve, como a semidetenção, a
liberdade controlada e as penas pecuniárias.357
Posteriormente, surgiu a Lei n. 689/81, a qual introduziu penas substitutivas à privação
de liberdade. Ressalte-se que esta lei é tida, até os dias atuais, como paradigma de
despenalização, tendo sido aperfeiçoada pela Lei 205, de 25 de junho de 1999, e pelo Decreto
Legislativo 507, de 30 de dezembro do mesmo ano.358
Dentre as penas substitutivas à prisão, as quais devem ser pleiteadas pelo réu,
encontram-se: a “semidetenção” (art. 53 da Lei nº 689/81), que é aplicada às condenações de
até um ano, devendo o condenado permanecer pelo menos dez horas por dia nos institutos
penitenciários destinados ao seu cumprimento; “a liberdade controlada” (art. 53 e 102 da Lei
nº 689/81), que é aplicada às condenações de até seis meses, ou a prestação pecuniária não
executada em virtude da insolvência do condenado; o “trabalho substitutivo” (art. 105, da Lei
nº 689/81), destinado aos insolventes condenados à pena pecuniária igual ou inferior a um
milhão de liras; e a “pena pecuniária” (art. 53, da Lei nº 689/81), que é utilizada para os
condenados à pena detentiva de até três meses.359
O art. 19 do Código Italiano determina, ainda, como penas acessórias: a proibição do
exercício de cargos públicos; a proibição do exercício de uma profissão ou arte; a proibição
legal, que afeta o pátrio poder ou a disponibilidade para administrar bens; a interdição
temporária do exercício de cargos de direção de pessoas jurídicas e de empresas; a
incapacidade de contratar com a Administração Pública; a privação do pátrio poder e a
suspensão de seu exercício; a suspensão do exercício de uma profissão ou arte e a suspensão
do exercício de cargos de direção de pessoas jurídicas ou de empresas.360
Na Itália, também é possível a aplicação das penas de colocação do condenado sob
“guarda do serviço social” (affidamento in prova al servizio sociale), conforme o art. 47 da
Lei nº 354/75; a “semi-liberdade” (art. 48 da Lei nº 354/75); a “prisão domiciliar” (art. 47 da
Lei nº 354/75) e a “liberdade vigiada” (arts. 176 e 230, do CP). O Decreto Legislativo nº
356 SICA, Leonardo, Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão. São Paulo: RT, 2002, p. 143. 357 BAÍGUN; ZAFFARONI; GARCIA-PABLOS; PIERANGELI (Orgs.). apud SICA, op.cit., p. 145. 358 SICA, op. cit., p. 147. 359 MONTEIRO, Marcelo Valdir. Penas Restritivas de Direito. Campinas: Impactus, 2006, p.76. 360 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: RT, 2004, v. 1, p. 612.
98
274/00 institui o procedimento presidido pelo juiz de paz, que o autoriza a aplicar penas
pecuniárias, permanência domiciliar e trabalho de utilidade pública.361
Pode-se dizer que as disposições sobre as penas alternativas impostas pelas leis
mencionadas demonstram certa consciência do legislador italiano de que o Direito Penal não
pode ser tomado como a panacéia para todos os problemas que advêm da criminalidade, mas
que deve servir de ponto de partida, na direção de um Direito Penal mínimo, na busca de
soluções que não se situam na periferia do completo recrudescimento das penas e da
exagerada criminalização de condutas. 362
Também no México está previsto um sistema de substituição da pena privativa de
liberdade por pena alternativa. Assim, o Código Penal Federal, de 17 de setembro de 1931,
com alterações posteriores, prevê, em seu art. 70, que a pena de prisão poderá ser substituída
por trabalho em favor da comunidade ou semiliberdade, quando a pena imposta não exceder
quatro anos; ou ainda por tratamento em liberdade, se a prisão não exceder a três anos; ou por
multa, em caso da prisão não exceder a dois anos. Porém, não é autorizada a substituição por
penas alternativas para os reincidentes em crimes dolosos.363
Nesse país, dentre as penas pecuniárias, estão compreendidas a multa e a reparação do
dano (art. 29), sendo adotado o sistema de dias-multa, vinculado ao salário mínimo diário, não
podendo, o montante, ultrapassar o teto de quinhentos dias-multa, salvo nos casos expressos
em lei. Caso o apenado não possa pagar a multa, ela poderá ser convertida em trabalho em
favor da comunidade.364
As penas alternativas à prisão são previstas também na legislação do Paraguai. São: a
multa, as penas complementares (patrimonial e proibição de conduzir) e adicionais
(composição e publicação da sentença).365
A pena de multa, adotada pelo art. 52, do Código Penal desse país, estabelece o
sistema de dias-multa, sendo o mínimo de cinco e o máximo de trezentos e sessenta dias-
multa. Cada dia é fixado de acordo com as condições econômicas do réu e corresponde entre
vinte por cento da jornada diária de trabalho, a qual pertence o condenado, e quinhentos dias
da jornada da categoria. E caso a pena de multa não seja paga, ela poderá ser substituída por
trabalhos comunitários ou pela pena privativa de liberdade, na ordem de um dia-multa por um
361 MONTEIRO, Marcelo Valdir. Penas Restritivas de Direito. Campinas: Impactus, 2006, p.76-77. 362 SICA, Leonardo. Direito Penal de Emergência e Alternativas à Prisão. São Paulo: RT, 2002, p. 148. 363 MONTEIRO, op.cit., p.77. 364 Ibidem, loc. cit. 365 Ibidem, p. 78.
99
dia de pena privativa de liberdade (arts. 55 e 56). 366
As penas complementares, dentre elas, a pena patrimonial, consiste no pagamento de
uma soma em dinheiro, cujo montante é fixado pelo juiz, levando-se em conta o patrimônio
do autor. Em caso de descumprimento da pena de multa, ela será substituída por privativa de
liberdade, entre três meses e três anos. A legislação paraguaia agrega, também, como penas
adicionais, a possibilidade de composição para determinados crimes, quando servir para o
restabelecimento da paz social e a publicação da sentença, nos casos previstos em lei (art.
60).367
No Uruguai, estão cominadas, no art. 66 do Código Penal desse país, como penas
principais, as privativas de liberdade, desterro, inabilitação absoluta para cargos, ofícios
públicos e direitos políticos, inabilitação especial para algum cargo ou ofício público,
inabilitação especial para determinada profissão acadêmica, comercial ou industrial,
suspensão de cargo, ofício público ou profissão acadêmica, comercial ou industrial e
multa.368
O art. 67 do Código Penal Uruguaio prevê também as penas acessórias. São elas: a
inabilitação absoluta para cargos, ofícios públicos, direitos políticos, profissões acadêmicas,
comerciais ou industriais, suspensão de cargos, ofícios públicos ou profissões acadêmicas,
comerciais ou industriais, perda do pátrio poder e da capacidade para administrar bens. A
legislação permite que o juiz aplique, como penas acessórias, ainda outras além das previstas
expressamente no Código Penal.369
A pena de multa varia entre dez e novecentas unidades reajustáveis, consoante
estabelecido pelo art. 68 do estatuto penal daquele país, sendo que o art. 84 permite a
substituição da pena de multa por prisão, caso o condenado não tenha como satisfazê-la, o que
será procedido na ordem de um dia de prisão para cada dez unidades reajustáveis.370
Na Venezuela, O Código Penal, publicado em 20 de outubro de 2000, prevê a
aplicação de penas corporais371 e não corporais (arts. 8 a 10), bem como de penas principais e
acessórias (art. 11 e 12). Dentre as penas não corporais e principais estão previstas a sujeição
à vigilância da autoridade pública, a interdição civil, a inabilitação política, a inabilitação para
exercer alguma profissão, comércio ou cargo, a destituição do emprego, a suspensão do
366 MONTEIRO, Marcelo Valdir. Penas Restritivas de Direito. Campinas: Impactus, 2006, p.79. 367 Ibidem, p.79-80. 368 Ibidem, p. 84. 369 Ibidem, loc. cit. 370 Ibidem, loc. cit. 371 As penas corporais, na Venezuela, são o presídio, prisión, arresto, relegación a una Colônia Penal, confinamento e desterro (expulsion Del espacio geográfico de la República). MONTEIRO, op.cit., p. 84-85.
100
emprego, a multa, a caução de não ofender ou danificar, a admoestação, a perda dos objetos
do crime e de seus proveitos e o pagamento de custas processuais.372
A pena de multa, na Venezuela, consiste na obrigação de pagar ao fisco do respectivo
Estado a quantidade determinada em lei fixada na sentença, consoante regula o art. 30 de seu
Código Penal. E se o condenado não tiver como pagá-la, a mesma será substituída por prisão
na razão de um dia de prisão por trinta bolívares, conforme o art. 50 do mesmo estatuto de
lei.373
Verifica-se, assim, que as penas alternativas fazem parte da legislação de vários países
sulamericanos, o que milita a favor de sua admissão como sanção adequada no Direito Penal.
No magistério de Marcelo Monteiro, o Direito Penal da antiga URSS, em especial da
Rússia, previa penas principais e acessórias. Dentre as principais penas alternativas, podem
ser citadas, os trabalhos correcionais, que podiam ser aplicados de um mês a um ano, a
repreensão pública e o encaminhamento a batalhão disciplinar. Como pena acessória registra-
se o confinamento, o desterro, a privação do direito de ocupar cargos ou de exercer atividades
pelo prazo de um a cinco anos, a multa, a perda do emprego e a obrigação de reparar o dano
provocado.374
Sobre as penas alternativas, nesse país, Miguel Reale Júnior assevera:
A lei penal russa, de 1960, estatui a pena de trabalhos correcionais, sem privação de liberdade, a serem cumpridos no distrito do domicílio do condenado, por determinação do órgão encarregado da execução da pena. Os trabalhos correcionais são infligidos pelo prazo de um mês a um ano, havendo de cumprir-se no próprio emprego ou em funções determinadas. É essencial a esta modalidade de pena a circunstância de existir desconto de cinco a vinte e cinco por cento do salário do executado, em favor do Estado, com a grave conseqüência de não integrar o cômputo do tempo de trabalho, não se levando, portanto, em consideração para promoção e férias.375
As penas de confisco podiam ser totais ou parciais, de multa e de obrigação de reparar
os danos causados, ensina Marcelo Monteiro, invocando Amador Cysneiros, “estando
dispensados do confisco os objetos indispensáveis ao uso individual, do lar e da família, bem
como os instrumentos de trabalho aplicados a pequenas indústrias domésticas, ou na produção
agrícola, ou industrial”. 376
Registre-se que a falta de pagamento da multa pode ocasionar, por imposição do
Tribunal, a aplicação da medida de defesa social de trabalho obrigatório, embora sem
372 MONTEIRO, Marcelo Valdir. Penas Restritivas de Direito. Campinas: Impactus, 2006, p. 85. 373 Ibidem, loc.cit. 374 Ibidem, p. 82. 375 REALE JÚNIOR apud MONTEIRO, op. cit., p. 83. 376 CYSNEIROS apud MONTEIRO, op.cit., p. 83.
101
privação da liberdade. Digno de nota é que a pena de multa não pode ser transformada em
prisão e vice-versa.377
Do presente esboço, há de se concluir que as legislações de muitos países vêm
cominando várias penas alternativas à prisão, o que denota forte aceitação, em nível
internacional, de uma forma diferente de punir, principalmente nos casos da prática de crimes
de pequeno e médio potencial ofensivo. É bem verdade que os diversos tipos de pena e a
formas de aplicação estabelecidas são inspiradas pela cultura, pela história, pelos regimes de
governo, pelos níveis de desenvolvimento socioeconômico e outros diferenciais, que
estabelecem a política-criminal a ser adotada pelas leis de cada Estado. Porém, evidenciado
está o reconhecimento de que a prisão somente deve ser utilizada para os crimes graves e
agentes perigosos.
377 CYSNEIROS, apud MONTEIRO, Marcelo Valdir. Penas Restritivas de Direito. Campinas: Impactus, 2006, p. 83.
102
4 A RESPOSTA PENAL ADEQUADA AOS CRIMES DE PEQUENO E MÉDIO
POTENCIAL OFENSIVO
4.1 AS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS ESTABELECIDAS NA LEGISLAÇÃO
PÁTRIA: COMINAÇÃO, APLICAÇÃO E EXECUÇÃO. UMA ANÁLISE DE SUA
ADEQUAÇÃO E EFICÁCIA
As penas restritivas de direitos no Brasil surgem como resultado de uma nova
perspectiva do Estado ao tratar da criminalidade de pequeno e médio potencial ofensivo:
humanização das sanções criminais, preocupação com a ressocialização dos condenados, e
também com a contaminação de apenados primários, autores de crimes de menor gravidade
com outros de alta periculosidade. Trata-se, sobretudo, de uma mudança de paradigma378
punitivo, podendo-se dizer estar-se diante de uma verdadeira revolução científica, como bem
pontificou Thomas S. Kuhn, na obra A Estrutura das Revoluções Científicas, quando pontuou
considerar revoluções científicas “os episódios de desenvolvimento não cumulativo, no qual
um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com
o anterior”. 379
Verifica-se que tal modificação de paradigma, no sistema legislativo pátrio, marca
seus fundamentos no processo histórico de evolução política, econômica e social por que
passou o país nas últimas décadas. Há de se ressaltar que desde 1984 diversos estudos e
comissões objetivaram a reestruturação da Parte Especial do Código Penal, quando
atualizaram as normas penais incriminadoras, tornando-as mais adequadas e em sintonia com
os novos rumos da política criminal internacional.380
Um novo paradigma pressupõe, para o Direito Penal, uma nova forma de punir. A
pena passa a ser vista e conduzida com um propósito que vai além da imediata proteção da
sociedade com a retirada do infrator daquele meio. A punição torna-se um método de
ressocialização do próprio condenado, com o sentido corretivo e de respeito à dignidade da
pessoa humana.
Nesse sentido, o próprio Código Penal, nos termos da Exposição de Motivos da Parte
378 Segundo Thomas S. Kuhn, “um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham [...]. (KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 9.ed. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.221). 379 Thomas S. Kuhn considera que “revoluções científicas são aqueles episódios de desenvolvimento não- cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior”. (Ibidem, p.125). 380 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.184.
103
Geral, em seu item 29, buscou, com a previsão das penas restritivas de direitos, um duplo
propósito: “o aperfeiçoamento da pena de prisão, quando necessária; e a substituição por
outras formas de sanção criminal, que sejam dotadas de eficiente poder corretivo, quando
aconselhável”.
O legislador brasileiro agiu de forma cautelosa, inserindo no Código Penal, primeiro
através da Reforma de 1984, três penas restritivas de direitos (prestação de serviços à
comunidade, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana) em substituição
às penas privativas de liberdade inferiores a um ano, nos crimes dolosos, ou sem limite
quantitativo de pena, nos crimes culposos. E somente com a Lei nº 9.714/98, que conferiu
nova redação aos arts. 43 a 47, e 55, criaram-se outras penas restritivas de direitos: “a
prestação pecuniária e a perda de bens e valores” (art. 43, I e II). Mudaram-se também as
regras no sentido de possibilitar que a pena privativa de liberdade, não superior a quatro anos,
fosse substituída por penas restritivas de direitos, nos crimes dolosos, cometidos sem
violência ou grave ameaça à pessoa, ou em qualquer quantidade de pena, nos crimes culposos.
O forte movimento de crescimento e amplitude das penas restritivas de direitos é
facilmente percebido quando Cezar Bitencourt ressalta ter sido estabelecida, pela Lei nº
9.714/98, uma abrangência dessas penas em mais de noventa por cento das infrações
tipificadas no Código Penal Brasileiro. 381
Registre-se que estão excluídos apenas os crimes contra a vida, os crimes contra o
patrimônio, se forem praticados com violência (como roubo e extorsão), o estupro e o
atentado violento ao pudor, por força da quantidade de pena, já que o mínimo legal
abstratamente cominado ultrapassa os quatro anos previstos no inciso I, do art. 44, do Código
Penal. Excetuando-se esses delitos, somente aqueles que forem perpetrados com violência ou
grave ameaça à pessoa, não serão suscetíveis de substituição por penas restritivas de
direitos.382
É digno de nota que, desde a Lei 9.714/98, a reincidência passou a excluir a
possibilidade de aplicação de pena restritiva de direitos somente em casos de reincidência
específica, considerando-se, entretanto, os aspectos subjetivos do condenado, que estão
estabelecidos no art. 44, inciso III, do Código Penal.
É importante salientar que, embora o art. 44, do Estatuto Penal pátrio, em seu inciso
II, restrinja a aplicação das penas restritivas de direitos no caso da reincidência em crime
381 BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas penas Alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei n. 9714/98. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 104. 382 Ibidem, loc.cit.
104
doloso, o §3º do mesmo artigo obsta tão somente a sua aplicação em caso de reincidência
específica, estabelecendo que, em caso de condenação anterior, poderá ser aplicada a
substituição desde que a medida seja socialmente recomendável.383
Desta maneira, houve significativo aumento do campo de atuação das penas
restritivas de direitos em relação a vários delitos, desde a Reforma de 1984, observando-se
que a lei faz referência à pena aplicada (concreta), e não à pena cominada, evitando-se, com
essa regulação, o encarceramento de muitos condenados que se enquadram nas regras
vigentes.
Daí a relevância da aplicação criteriosa dessas penas, devendo o magistrado observar,
com prudência, os requisitos subjetivos necessários à sua aplicação, tais como a culpabilidade,
os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, além de examinar se os motivos
e as circunstâncias do crime indicam que essa substituição é suficiente, sob pena de deixar de
atender aos fins preventivos, gerais e especiais, da pena.
Observe-se que, apenas uma semana após a edição da Lei nº 9.714, de 25.11.1998, foi
instituída, pelo Decreto Federal nº 2856, de 03.12.1998, a “Comissão de Acompanhamento e
Avaliação do Regime de Penas Restritivas de Direitos”, para, no prazo de dois (02) anos,
ofertar manifestação conclusiva sobre a conveniência da eventual alteração da Lei 9.714/98
(art. 3º)384. Isto demonstrou claramente que o Presidente da República não estava
completamente convicto sobre a conveniência da edição desta lei, pois estabeleceu um
período de experiência com o objetivo de acompanhar e avaliar se a aplicação das penas
restritivas de direitos na proporção ensejada pela nova lei teria sido conveniente. 384
Assim, o Poder Executivo, após o interregno de dois anos da edição da Lei 9.714/98,
verificando a importância e a necessidade da aplicação das penas restritivas de direitos,
decidiu implantar um programa de fomento à essas penas, e criou, no ano 2000, um órgão
próprio para a execução do Programa Nacional de Apoio às Penas Alternativas, a CENAPA –
Central de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas, que é subordinada à
Secretaria Nacional de Justiça.385
Após a criação da CENAPA, iniciou-se a celebração de convênios com os Estados,
383 Conforme Grecianny Carvalho Cordeiro, se o condenado for apenas reincidente genérico, a substituição poderá ser feita, desde que a medida seja socialmente recomendável. Nesse caso, em vista da utilização de critérios valorativos, o juiz apreciará acerca da possibilidade ou não de aplicação das alternativas penais à prisão. (CORDEIRO, Grecianny Carvalho. Penas Alternativas: uma abordagem prática. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003, p. 49). 384PITOMBO, Cleunice Valentim Bastos. Lei Penal em Experiência. Boletim do IBCCRIM, n. 76, março 1999, p.9. 385 BAHIA. Central de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas da Bahia. Relatório Geral de Atividades e Resultado - CEAPA. Ano 2006.
105
junto às Secretarias competentes e/ou Tribunais de Justiça, com o escopo de viabilizar o
estabelecimento das Centrais de Apoio, as quais tornariam possível o funcionamento do
programa em cada ente federado. Com tal desiderato, o Ministério da Justiça forneceu
recursos de implementação, que permitiram a constituição de uma estrutura mínima para que
fossem iniciados o acompanhamento e a fiscalização do cumprimento das penas e medidas
alternativas.386
As penas restritivas de direitos, estabelecidas no Código Penal brasileiro, são
autônomas387 e não podem ser acumuladas com as penas privativas de liberdade, como eram
as antigas penas acessórias. Têm caráter geral, posto poderem substituir a pena privativa de
liberdade abstratamente cominada para o delito em questão, desde que presentes os requisitos
autorizadores que serão explicitados adiante, o que significa atender a uma parcela
significativa das condutas tipificadas na legislação brasileira. A sua aplicação exige a fixação
pelo juiz do quantum correspondente à privação de liberdade, para proceder, então, à
substituição, na última etapa da dosimetria da pena.
Consoante Luiz Regis Prado, a pena substitutiva não se confunde com a pena
alternativa, que é originária e pode ser aplicada desde o início de forma direta. “Na pena
substitutiva, deve o julgador aplicar necessariamente a pena originária correspondente, no
caso, à privativa de liberdade, para, em seguida, substituí-la”.388 Todavia, na visão de
Guilherme Nucci, as sanções restritivas de direitos são também consideradas penas
alternativas às privativas de liberdade e visam a evitar o encarceramento de autores de
infrações de pequeno e médio potencial ofensivo, promovendo-lhes a recuperação, através da
restrição de certos direitos.389 Em legislações especiais, como a Nova Lei de Tóxicos, já vêm
cominadas no próprio tipo. São penas alternativas à prisão e também restritivas de direitos.390
386 Segundo dados constantes do Relatório da Central de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas, que é a Central do Estado da Bahia, existem trinta e nove (39) Centrais de Apoio distribuídas em quase todos os Estados brasileiros, inclusive no Distrito Federal. (BAHIA.Central de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas da Bahia. Relatório Geral de Atividades e Resultado - CEAPA. Ano 2006), conforme será tratado em item específico. 387 Salomão Shecaira argumenta que a qualificação de autônoma quer dizer “não acessória”, não se aplicando como conseqüência da pena privativa de liberdade e com esta não se acumulando.(Penas Alternativas, in Penas restritivas de direitos apud REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 2, p. 49). 388 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. v. 1. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 609. 389 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.319. 390 Cezar Bitencourt observa que na Reforma Penal de 1984 as denominadas “penas restritivas de direitos” foram utilizadas com caráter substitutivo, enquanto que, que na Lei 9099/95, as penas restritivas de direito são previstas com caráter alternativo à pena de prisão. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei n. 9714/98. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 106). O Código de Trânsito Brasileiro já alça as penas restritivas de direito à condição de pena principal, utilizando-as até mesmo
106
Importante registrar que o Código Penal dispensou um capítulo específico, relativo à
cominação das penas, determinando no seu art. 54, que “as penas restritivas de direitos são
aplicáveis, independente de cominação na parte especial, em substituição à pena privativa de
liberdade [...]”.391 Todavia, importa acentuar que com a edição da Lei nº 9.714/98, ao
modificar o critério objetivo de substituição das penas privativas de liberdade por restritivas
de direitos, o legislador deixou de inserir um capítulo sobre a “Cominação das Penas”,
surgindo, assim, grave antinomia.
Enquanto o art. 44, I, do Código Penal, estabelece que as penas restritivas substituem
as privativas de liberdade não superiores a quatro anos, o art. 54 permanece estatuindo que as
penas restritivas substituem as privativas inferiores a um ano. Contudo, ressalta-se que a
imperfeição legislativa não macula o princípio constitucional da legalidade, não havendo
dúvidas de que prevalece a lei mais favorável, embora essas disposições conflitantes causem
perplexidade aos operadores do Direito que, ao consultar o estatuto penal vigente, deparam-se
com regras distintas.392
A aceitação das penas restritivas não se restringe ao Código Penal, tendo se expandido
por outros subsistemas, o que milita em torno de sua aceitação como sanção com capacidade
para atender os devidos fins da pena.
Na legislação infraconstitucional, as penas restritivas de direitos estão dispostas no
Código Penal, em seu Título V, Capítulo I, Seção II, artigos 43 a 48, e não se confundem com
as antigas penas acessórias, consagradas na legislação anterior.393
Nas legislações especiais, elas se encontram prescritas: nos arts. 8 e 22 da Lei dos
Crimes Ambientais (Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998); no Código de Defesa do
cumulativamente com a pena privativa de liberdade. O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, estabelece penas restritivas de direito que são acessórias à pena principal. 391 Miguel Reale Júnior assim se manifesta: “Para assegurar o princípio da legalidade uma vez que não constam da sanção prevista na norma sancionadora, que via de regra refere-se tão-só à pena de reclusão ou detenção, criou-se o capítulo específico relativo à Cominação das penas, arts. 53 a 58, especificando-se, no art. 54, que as penas restritivas de direito são aplicáveis independentemente de cominação na parte especial, em substituição à pena privativa de liberdade”. (REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 2, p. 49-50). 392 O autor supramencionado assevera que “a extensão da substituição decorreu de equivocada posição do então Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que visava com a medida levar a um esvaziamento dos presídios, a ponto de o Ministro da Justiça ter declarado, à época da sanção que abrir-se-iam vinte mil vagas no país. Era evidentemente um engano, pois os condenados a penas não superiores a quatro anos, que fariam jus à pena restritiva, estavam condenados ao regime aberto, ou seja, à prisão domiciliar”. (REALE JÚNIOR, op.cit., p.50).
393 O Código Penal de 1940 estabelecia como penas acessórias a perda da função pública, eletiva ou de nomeação, as interdições de direito e a publicação de sentença, admitindo a aplicação cumulativa com a pena privativa de liberdade, tomada como pena principal imposta.
107
Consumidor, em seu art.78, incisos I, II e III (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990); no
Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997), em seus arts. 302,
303, 306, 307 e 308; e na Lei de Tóxicos (Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006), no art. 28,
incisos I, II e III.
O art. 78 do Código de Defesa do Consumidor estabelece, em seus incisos I, II e III, a
interdição temporária de direitos; a publicação em órgãos de comunicação de grande
circulação ou audiência, às expensas do condenado, de notícia sobre os fatos e a condenação;
e a prestação de serviços à comunidade. Por esse dispositivo ocorre a alternatividade, ou seja,
a substituição da pena privativa de liberdade por uma das modalidades de interdição de
direitos, publicação de sentença ou prestação de serviços à comunidade, observando-se o
disposto nos arts. 44 a 47, do Código Penal, ou ainda, a cumulação da pena de prisão com
uma dessas hipóteses, remanescendo, na segunda hipótese, o sistema de penas acessórias
anterior à Reforma Penal de 1984.394
As penas restritivas de direitos que vêm discriminadas no art. 8º da Lei dos Crimes
Ambientais (Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998) são: a prestação de serviço à
comunidade, a interdição temporária de direitos, a suspensão parcial ou total de atividade, a
prestação pecuniária, e o recolhimento domiciliar, que compõem seus incisos I a V.
O art. 7º da Lei dos Crimes Ambientais também estabelece as hipóteses em que a pena
privativa de liberdade poderá ser substituída pela restritiva de direitos. Ocorrerá quando se
tratar de crime culposo ou for aplicada a pena privativa de liberdade inferior a quatro (04)
anos (requisitos objetivos); e também quando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta
social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias do crime
indicarem que a substituição seja suficiente para efeitos de reprovação e prevenção do crime
(requisitos subjetivos). Em seu parágrafo único, determina, também, que as penas restritivas
de direitos enumeradas no art. 8º terão a mesma duração da pena privativa de liberdade
substituída.
No que pertine ao prazo de duração das penas restritivas de direitos estabelecidas
nessa lei verifica-se, outrossim, como exceção à regra supramencionada, a disposição inserta
no art. 10 da Lei de Crimes Ambientais, que se refere à proibição de o condenado contratar
com o Poder Público, de receber incentivos fiscais ou quaisquer outros benefícios, bem como
participar de licitações. Roberto Delmanto entende, entretanto, ser a disposição do art. 10 394 GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos; FINK, Daniel Roberto; FILOMENO, José Geraldo Brito; WATANABE, Kazu; NERY JÚNIOR, Nelson; DENARI, Zelmo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p.772.
108
inconstitucional, pois, além de manifestar contradição lógica com os demais artigos da própria
Lei nº 9.605/98, está, ainda, em desacerto com o sistema previsto no Código Penal. Sustenta,
em acréscimo, que a pena substitutiva (restritiva de direitos) não pode ter prazo superior à
pena substituída (privativa de liberdade). Isto em face da vigência, no plano constitucional, do
devido processo legal (art. 5º, LIV, da CR) e da individualização das penas (art.5º, XLVI). 395
A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Nova Lei de Tóxicos), no art. 28, comina
em seus incisos I, II e III as seguintes penas alternativas: I - advertência sobre os efeitos das
drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a
programa ou curso educativo. Essas penas podem ser aplicadas de forma isolada ou
cumulativa, bem como substituídas a qualquer tempo, ouvidos o Ministério Público e o
defensor.396 Registre-se que as penas previstas nos incisos II e III serão aplicadas pelo prazo
máximo de 5 (cinco) meses, e no prazo máximo de 10 (dez) meses, em caso de reincidência.
(§§ 3º e 4º , do art. 28, da referida Lei).
É importante salientar que as penas cominadas na nova Lei de Tóxicos (“advertência
sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de
comparecimento a programa ou curso educativo”) só poderão ser aplicadas de forma
cumulada entre elas próprias, pois o art. 28 não prescreve pena privativa de liberdade.
A prestação de serviços à comunidade e a freqüência a cursos que foram estabelecidas
nessa Lei serão impostas pelo prazo máximo de cinco (05) meses, e até dez (10) no caso de
reincidência (art.28, § 4º). Embora não haja previsão de reincidência no caso de a primeira
pena ter sido a advertência, o juiz poderá “deixar de aplicar nova advertência para impor a
prestação de serviços à comunidade que poderá alcançar até dez meses”.397
O art. 292, do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503, de 23 de setembro de
1997), regula a aplicação da suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação
para dirigir veículo automotor, estabelecendo que esta pode ser imposta “como penalidade
principal, isolada ou cumulativamente com outras penalidades”398. É possível a sua aplicação
isolada como medida restritiva de direitos (art. 43, II, do CP), proposta pelo Ministério
Público naquelas hipóteses previstas no art.76 da Lei 9099/95. Como pena principal,
admissível a incidência nos casos em que for fixada juntamente com uma pena de multa. Por 395 DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto; DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Leis Penais Especiais Comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 396-397. 396 GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João Daniel. Lei de Drogas Anotada: Lei n. 11.343/2006. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 52. 397 Ibidem, p. 53. 398 Como será visto no item das interdições temporárias de direitos, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por outra sanção restritiva de direitos que não seja a suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
109
fim, como pena aplicada cumulativamente com as demais penas estabelecidas nos tipos dos
arts. 302, 303, 306, e 308.399
Assim, como se vê, o Código de Trânsito Brasileiro cominou, em alguns de seus tipos,
a aplicação da suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir
veículo automotor, como pena principal, a ser aplicada concomitantemente à pena privativa
de liberdade, a qual poderá, a depender das condições subjetivas do agente, ser substituída por
outra pena restritiva de direitos elencada no Código Penal, como, por exemplo, a prestação de
serviços à comunidade ou a limitação de fim semana.
O legislador estabeleceu um sistema de aplicação das penas restritivas de direitos que
permite ao magistrado individualizar perfeitamente a pena imposta. Nesse passo, ele fixa o
quantum cabível relativo à pena privativa de liberdade, que é deduzido em face da inteligência
dos arts. 59 (circunstâncias judiciais) e 68 (critério trifásico), do Código Penal. Caberá a
substituição da privação de liberdade por restrição de direitos se o crime for doloso, desde que
praticado sem utilização de violência ou grave ameaça, além de não poder ultrapassar o teto
de quatro (04) anos. O mesmo procedimento será adotado no caso da prática de crime
culposo, divergindo, apenas, no que tange à desnecessidade de observância do limite de
quatro (04) anos da pena em concreto, pois as sanções restritivas de direitos são aplicáveis,
neste caso, em qualquer quantidade de pena aplicada. (Art. 44, inciso I, do Código Penal -
critérios objetivos).
Além dos critérios objetivos, serão considerados outros de natureza subjetiva, que
dizem respeito ao próprio agente. Merece destaque o óbice que lei estabelece para a hipótese
de reincidência em crime doloso, pois se a substituição por pena restritiva de direitos for uma
medida socialmente recomendável, ela poderá ser realizada, havendo obstáculo somente no
que tange à reincidência específica. Por fim, serão examinados os seguintes elementos:
1)culpabilidade; 2)conduta social; 3)personalidade do acusado; 4) os motivos e circunstâncias
indicarem que a substituição seja suficiente. (Art. 44, incisos II, III e § 3º, do Código Penal).
Tudo para o efetivo cabimento da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de
direitos.
Assim, o sistema adotado no ordenamento jurídico pátrio no que pertine à cominação,
aplicação e execução das penas restritivas de direito está em plena consonância com o
princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput, da CF), intimamente relacionado com a
individualização da pena. Os seres humanos são naturalmente desiguais, nascem, crescem,
399 RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 756.
110
desenvolvem-se e morrem. Contudo, o direito trata-os, todos, de maneira igualitária, embora
esse tratamento igualitário não prejudique as peculiaridades de cada condenado. Tal fato
significa prever, nas normas que possuem os mesmos destinatários, os “critérios que possam
assegurar a cada um o que é seu, bem como, quando necessário, tratar desigualmente os
desiguais”.400
A individualização da pena permite ao legislador e ao juiz tratar os cidadãos que são
essencialmente desiguais, também de forma desigual, o que realiza, em última análise,
também a “regra de justiça” 401. No campo penal, o legislador estabelece tipos e penas que
valem para todos, mas garante certas diferenças, tais como seus limites máximos e mínimos,
as agravantes, as atenuantes, as causas de aumento e diminuição, elementos esses que vão
constituir, no caso concreto, uma fórmula de aplicação da mesma lei adequada ao “agente-
indivíduo” que cometeu o delito, pelo juiz criminal.
Assiste razão a Miguel Reale Júnior quando afirma haver vantagem na adoção das
penas restritivas de direitos como substitutivas. Primeiro, pela facilidade de sua aplicação e
conversão em privativa de liberdade, em caso de descumprimento, pelo tempo fixado na
sentença; segundo, por tornar legítima a conversão, pois, na realidade, houve uma real
condenação à pena privativa de liberdade.402
O critério substitutivo realiza, assim, de forma eficaz, os ditames do princípio da
isonomia, pois possibilita ao juiz decidir, no caso concreto, se o réu merece ou não a
substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. E mais: escolherá, dentre
as cominadas pelo legislador, aquela que melhor aprouver ao agente e ao delito praticado.
Estabelecerá, dessa forma, um tratamento desigual para os desiguais, nos ditames da Lei
Mater.
Saliente-se que o princípio constitucional da proporcionalidade também está presente
no campo da regulação das penas restritivas de direitos. Não teria sentido, levando-se em
conta a proteção subsidiária de que o Direito Penal deve assegurar aos conflitos sociais,
prever penas exageradas para determinados delitos considerados de menor gravidade, bem
como estipular sanções ínfimas para aqueles que objetivam proteger bens jurídicos de vital
400 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.37. 401 A “regra de justiça”, conforme Chaïm Perelman, requer a aplicação de um tratamento idêntico a seres ou a situações que são integrados numa mesma categoria. (PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: a nova retórica. Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.248). 402 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: parte geral. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 2, p. 49.
111
importância. Assim, está ele presente na esfera cominatória das leis penais como também se
insere na fase da aplicação judicial da pena, ao levar em conta os critérios objetivos e
subjetivos que permearam a ação delituosa.
Ao autor do fato criminoso deverá ser imposta uma pena na medida de sua
culpabilidade, realizando-se, assim, a justiça da sanção conforme os limites estabelecidos
também pela dignidade da pessoa humana. Trata-se da incidência, no sistema de
individualização da pena, do princípio da “proporcionalidade” e também do princípio da
“culpabilidade”, em que se insere a responsabilidade pessoal do agente pelo ato praticado.
Acrescente-se que se a pena relaciona-se diretamente com o autor do fato típico, é
indispensável que ele atue com dolo ou culpa, evitando-se a chamada “responsabilidade
objetiva”. Nesse ponto, manifesta-se Guilherme Nucci, no sentido de que seria arbitrária “a
atuação estatal buscando punir pessoas que causam danos ou criam situações de perigo
fortuitamente, obra do acaso, sem desejar, nem atuar com falta do dever de cuidado objetivo”.
Assim, ao considerar-se o Direito Penal como um instrumento de última ratio (princípio da
intervenção mínima e da subsidiariedade), também se preserva a dignidade do ser humano,
não se podendo admitir, como regra, que esse direito possa estabelecer-se com a dispensa da
culpa do agente.403
Sobre o princípio da culpabilidade, registra o mesmo autor em suas palavras: “Aliás, o
princípio da culpabilidade inspira a caracterização do crime, fundamenta e limita a aplicação
da pena, em atuação sincronizada com os fins aos quais se vincula, isto é, o de que a pena é
personalíssima, não podendo ultrapassar a pessoa do delinqüente e a medida de reprovação
social por ele merecida”.404
Com base nesses princípios da culpabilidade e da proporcionalidade respaldam-se,
sobremaneira, as penas restritivas de direitos. Primeiro, em face da cominação legislativa, ao
estabelecer os critérios objetivos de substituição (art. 44, inciso I, do Código Penal); segundo,
no momento da aplicação judicial da pena ao infrator, quando o juiz examina o contexto
social e psicológico em que o agente cometeu a conduta: se ele é ou não, efetivamente,
merecedor da pena alternativa à prisão, e qual deve ser a pena adequada ao ilícito e ao
indivíduo (art. 44, inciso III, do Código Penal).
Mas não é só. As penas restritivas de direitos também estão na linha do princípio
constitucional da humanidade das sanções criminais, significando que o Estado, através da
utilização das regras de Direito Penal, “deve pautar-se pela benevolência na aplicação da
403 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 42. 404 Ibidem, p. 43.
112
sanção penal, buscando-se o bem-estar de todos na comunidade, inclusive dos condenados,
que não merecem ser excluídos porque delinqüiram, até porque uma das finalidades da pena é
a sua ressocialização”.405
O texto constitucional determina, nesse diapasão, que não haverá pena de morte, salvo
em caso de guerra declarada em alguns crimes militares, conforme dispõe a Constituição
Federal, em seu art. 5º, inciso XLVII, letra “a” e art. 80, inciso XIX. Em todos os outros casos
ela é proibida, constituindo-se, tal proibição, em cláusula pétrea estabelecida no art. 60, § 4º,
inciso IV, da Lei Mater. Também não haverá penas: de caráter perpétuo, nem de trabalhos
forçados, nem de banimento, nem penas cruéis, em face das disposições do 5º, inciso XLVII,
letras “b” a “e”. A Constituição Federal também assegura o respeito à integridade física e
moral dos presos, consoante estabelecido no art. 5º, inciso XLIX.
O princípio da humanidade está, então, em completa sintonia com a adoção das penas
restritivas de direitos. Isto porque tais penas afastam os condenados do sistema carcerário,
cujas condições são relegadas ao completo abandono pelo poder público. Não se pode
esquecer que a estrutura do sistema carcerário brasileiro é extremamente precária: os
estabelecimentos são infectos e lotados, sem qualquer salubridade, o que constitui uma
verdadeira “crueldade”406 manter o ser humano em locais que são indignos de sobrevivência.
Nesse passo, postula-se que os agentes primários, que praticaram crimes de pequeno e
médio potencial ofensivo, sejam afastados dos presídios, que devem ser reservados para os
delinqüentes perigosos, que praticaram crimes graves, pois ainda não se encontrou, no
contexto contemporâneo da história da pena, outra forma de punir esses infratores. Porém, em
se tratando de réus inexperientes nas práticas delitivas, que perpetraram crimes menores, a
melhor solução é a fixação de uma pena alternativa à prisão, a qual contribuirá, sem sombra
de dúvida, para diminuir o aprisionamento, cujos males já foram enumerados, além de não
causar estigmas, respeitando a dignidade da pessoa humana e facilitando a ressocialização do
condenado.407
Na esteira desse entendimento, Guilherme Nucci leciona: “Ninguém, em sã
consciência, pode ser contra a fixação de penas restritivas de direitos para delinqüentes
iniciantes, autores de crimes de menor potencial ofensivo, não violentos, enfim, que não 405 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 42. 406 O termo “crueldade” para o sistema carcerário é utilizado por Guilherme de Souza Nucci, evidenciando que as condições carcerárias no Brasil são precárias, “cabendo ao juiz da execução penal zelar para que o cumprimento da pena se faça de modo humanizado, podando os excessos causados pelas indevidas medidas tomadas por ocupantes de cargos no Poder Executivo, encarregado de construir e administrar presídios”. (Ibidem, p.44). 407 SZNICK, Valdir. Penas Alternativas: perda de bens, prestação de serviços, fim de semana, interdição de direitos. São Paulo: LEUD, 2000, p.52.
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chocam, nem agridem, de forma intensa, o bom senso, a ética e os bons costumes da
sociedade”.408
Sebastian Borges de Albuquerque Mello409entende, inclusive, que as penas restritivas
de direitos poderiam ser aplicadas com maior frequência, pelos juízes, principalmente no que
tange aos crimes contra o patrimônio, aduzindo que isto não ocorre, muitas vezes, “porque é
muito mais fácil, muito mais simples, você condenar a uma pena privativa de liberdade nos
crimes patrimoniais no dia a dia das Varas Criminais, nos crimes de furto, de estelionato, nos
crimes de apropriação indébita, sobretudo, e nos crimes econômicos [...]”. Assevera, em
acréscimo, que “o juiz, antes de pensar na pena privativa de liberdade, ele deveria esgotar
todas as possibilidades de aplicação das penas alternativas, de acordo com os pré- requisitos
previstos em lei”.
Vera Lúcia de Azeredo Coutinho410 atesta que os aplicadores da lei, na área criminal,
deveriam agir com um comprometimento maior, objetivando a aplicação das penas restritivas
de direitos, em crimes de médio potencial ofensivo, pois atenderia a uma melhor
ressocialização do infrator, além de diminuir a população carcerária, “e que os advogados e os
representantes do Ministério Público deveriam dar mais atenção a esse fato”.
Outro dado da maior importância é o que se refere aos custos, pelo Estado, das
chamadas penas alternativas à prisão, que são bem menos onerosas do que as privativas de
liberdade. Trata-se de um dado utilitarista, mas que repercute na real situação de
desumanidade advinda da superlotação dos presídios.
Consoante números do Ministério da Justiça, para manter um só preso na cadeia, o
Estado Brasileiro gasta, em média, entre R$ 700,00 (setecentos reais) a R$ 1.000,00 (hum mil
reais) por mês. Todavia, estima-se que o monitoramento de um sentenciado a pena alternativa
custa em torno de R$ 70,00 (setenta reais), mensais, do que se conclui que o preço de uma
punição tradicional pode ser até quinze (15) vezes maior do que o valor gasto na execução de
uma pena alternativa. 411
408 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 45-46. 409 Sebastian Borges de Albuquerque Mello, advogado criminalista e professor de Direito Penal, concedeu entrevista à pesquisa, na qual teve a oportunidade de proceder tais afirmações. A transcrição da entrevista se encontra no apêndice F. 410 Vera Lúcia de Azeredo Coutinho é Procuradora de Justiça Criminal do Estado da Bahia. Concedeu entrevista, por escrito, à pesquisa, a qual se encontra, na íntegra, no apêndice H. 411 Os dados estatísticos foram obtidos através de entrevista realizada com o Juiz Flávio Augusto Fontes de Lima, da Vara de Execuções de Penas Alternativas do Tribunal de Justiça de Pernambuco, também integrante do Conselho Nacional de Acompanhamento de Penas e Medidas Alternativas. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. Penas Alternativas são mais baratas e eficazes. Entrevista realizada com o Juiz Flávio Augusto Fontes de Lima. VEPA. Detalhe da notícia 26 ago. 2005. Disponível em: <http://www.tjpe.gov.br/vepa/ver_noticia.asp?id=43>. Acesso em: 02 jun. 2007).
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Acrescente-se que cada vaga em um presídio custa R$ 15.000,00 (quinze mil reais).
Tais custos se potencializam quando se tem em mente o crescimento da população carcerária
do país. Na metade da década de 1990, existiam 150.000 (cento e cinqüenta mil presos).Em
2002, já superavam os 200.000 (duzentos mil). Em 2005, o universo prisional era de 330.000
(trezentos e trinta mil) presos. Assim, grande é a economia estatal com a utilização das penas
restritivas de direitos.412
Conforme as estimativas do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), cada
presidiário custa em média, de R$ 1000,00 (hum mil reais) a R$ 2.000,00 (dois mil reais) por
mês, o equivalente a mais de quatro salários mínimos, fixados em R$ 350,00 (trezentos e
cinqüenta reais).O DEPEN estima que existiam, em 2006, “361,4 mil presos em delegacias e
penitenciárias de todo o Brasil”. Assim, manter a população prisional do país gera-se um
custo mensal de “R$ 542,1 milhões por mês e R$ 6,5 bilhões por ano”.413 Já com a aplicação
de penas restritivas de direitos, o custo de um preso poderia ser reduzido em até 10 (dez)
vezes e o índice de reincidência despencaria de “42,5% para 17,5%”.414
Antônio Flávio Testa, professor da Universidade de Brasília, sociólogo e cientista
político, em entrevista concedida a Aline Sá Teles (De Contas Abertas) afirma atribuir boa
parte dos problemas de segurança pública à ineficiência dos recursos públicos e à
incompetência gerencial do Estado. Certifica: “O preço que se paga para manter um
criminoso na cadeia é altíssimo. Isto só reflete o mau uso do dinheiro público”. Ademais, para
o sociólogo, o Brasil não faz uso, como deveria, da legislação que prevê penas alternativas e
412 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. Penas Alternativas são mais baratas e eficazes. Entrevista realizada com o Juiz Flávio Augusto Fontes de Lima. VEPA. Detalhe da notícia 26 ago. 2005. Disponível em: <http://www.tjpe.gov.br/vepa/ver_noticia.asp?id=43>. Acesso em: 02 jun. 2007. 413 O Sistema de Informações Penitenciárias – Infopen, do Ministério da Justiça, criado em 2002, ainda não disponibiliza dados mais detalhados de todas as unidades prisionais e presos do país. De acordo com a assessoria de comunicação do DEPEN, ainda há dificuldades para fazer estas contas. A base de dados do Infopen estabelece uma série de indicadores que devem ser preenchidos pelas unidades prisionais de todos os Estados. Segundo o DEPEN, o maior problema para que haja uma base única tem sido o baixo índice de preenchimento desses indicadores pelos Estados. Ademais, os valores gastos com presidiários são aproximados. A estimativa leva em consideração diferentes custos como roupas, alimentação, remédios, assistência médica, energia elétrica, dentre outros. A proposta do Infopen é fornecer dados de todos os presos ou internos, como o controle de visitas, ficha jurídica, tipos de regime prisional e crimes cometidos, perfil social e etnia. (Aline Sá Teles. Contas Abertas.Disponível em: http://contasabertas.uol.com.br/noticias/detalhes_noticias.asp?auto=1400. Acesso em: 2 jun.2007).O InfoPen é um programa de computador (software) de coleta de Dados do Sistema Penitenciário no Brasil, para a integração dos órgãos de administração penitenciária de todo Brasil, possibilitando a criação dos bancos de dados federal e estaduais sobre os estabelecimentos penais e populações penitenciárias. É um mecanismo de comunicação entre os órgãos de administração penitenciária, criando “pontes estratégicas” para os órgãos da execução penal, possibilitando a execução de ações articuladas dos agentes na proposição de políticas públicas.(Disponível em: <http://www.mj.gov.br/depen/sistema_informacao.htm#Dados%20Estatísticos> Acesso em: 2 jun. 2007). 414 TELES, Aline Sá. Contas Abertas. Presidiários no Brasil custam duas vezes mais que estudantes universitários. Disponível em: <http://contasabertas.uol.com.br/noticias/detalhes_noticias.asp?auto=1400>. Acesso em: 2 jun. 2007.
115
dos programas de reeducação dos detentos. Critica também o modelo repressor usado nos
presídios e sugere uma “segmentação dos criminosos com tratamentos mais rigorosos ou mais
educativos, dependendo do tipo de crime cometido”.415
Porém, as idéias do sociólogo não são pacíficas na sociedade brasileira. Alguns
entendem que o Estado deve adotar uma política criminal preocupada tão somente com o
recrudescimento das penas e do sistema carcerário, deixando de lado os próprios fins
humanísticos da sanção. Nessa esteira, alinham-se as correntes neo-retribucionistas, que
defendem as penas de prisão severas e duradouras. E mais: há quem pregue até mesmo a
prisão perpétua e a pena de morte. Para eles, não haveria vez para as penas alternativas à
prisão. Tais correntes vão de encontro aos ideais de humanidade em que se inserem as penas
restritivas de direitos.
Segundo Shecaira e Corrêa Júnior, essa corrente tem como resposta ao fenômeno da
criminalidade a imposição de medidas restritivas decorrentes de leis penais. Trata-se da
ideologia da repressão, respaldada no “velho regime punitivo-retributivo, que recebe o nome
de Movimento de Lei e da Ordem”.Assim, ressalta que: “Nas últimas décadas crimes atrozes
são apresentados pelo mass media e por alguns políticos como um fenômeno terrível, gerador
de insegurança e conseqüência do tratamento benigno dispensado pela lei aos criminosos,
que, por isso, não lhe têm respeito”.416
Nesse diapasão, são editadas no Brasil muitas leis que possuem por objeto exclusivo
atender a esses reclames da mídia, satisfazendo, também, aos fins eleitoreiros (ou não417) de
certos políticos, passando-se, então, a conviver em meio a essa desordem punitiva, pois ao
mesmo tempo em que o Estado assegura garantias ao réu, furta-lhe, em certas situações, essas
garantias. Alguns sistemas legais chocam-se com outros, gerando perplexidade na sociedade
415 TELES, Aline Sá. Contas Abertas. Presidiários no Brasil custam duas vezes mais que estudantes universitários. Disponível em: <http://contasabertas.uol.com.br/noticias/detalhes_noticias.asp?auto=1400>. Acesso em: 2 jun. 2007. 416 SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 141. 417 É importante dimensionar que, muitas vezes, os próprios membros do Poder Legislativo são verdadeiras vítimas de interpretações simbólicas, como bem reconhecem Hegenbarth e Kinderman, mencionados por Marcelo Neves. Acreditam que “a resolução dos problemas da sociedade dependeria então da interferência de variáveis normativo-jurídicas”. Trata-se da chamada “legislação-álibi” que se destina a criar a imagem de um Estado que responde normativamente aos problemas reais da sociedade. Nesse passo, “a legislação-álibi constitui uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas, desempenhando uma função ideológica”. Assim, há de se considerar simplista, no diapasão de Marcelo Neves, a concepção que considera, no caso da legislação-álibi, o legislador como quem sempre ilude e o cidadão como o iludido, pois se trata, muitas vezes, de uma perda de realidade da legislação, onde ocorre uma confusão entre o real com a encenação: “desaparecem também os contornos entre desejo e realidade, ‘ilusão e auto-ilusão tornam-se indiferenciáveis’, de tal maneira que líderes políticos não são apenas produtores, mas também vítimas de interpretações simbólicas”.(HEGENBARTH e KINDERMANN apud NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p.39-40).
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e, ao mesmo tempo, insegurança jurídica, pois os juízes e tribunais passam a emitir inúmeros
julgados conflitantes. A esse respeito, pode-se mencionar o exemplo do conflito
interpretativo, instalado com a Lei nº 8072/90 (Lei dos Crimes de Hediondos) e a Lei nº
9.714/98, que ampliou o sistema de aplicação das penas restritivas de direitos.
A jurisprudência pátria muito discutiu sobre a possibilidade de aplicação de penas
restritivas de direitos em crimes hediondos ou a eles equiparados, em face do óbice colocado
pela Lei nº 8072/90 no sentido da proibição à progressão de regime, estabelecida no
parágrafo 1º do seu art. 2º, que gera a incompatibilidade entre os dois sistemas. Examinem-se
as seguintes decisões, procedentes do Supremo Tribunal Federal:
HC 83627 / SP - Relator: Min.JOAQUIM BARBOSA. Julgamento: 25/11/2003 Órgão Julgador: Primeira Turma DJ 27-02-2004 PP-00027 COATOR : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EMENTA: HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES (LEI 6.368/76, ART. 12). IMPOSSIBILIDADE DE SUBSTIUÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. NÃO-REVOGAÇÃO PELA LEI 9.714/98. ORDEM DENEGADA. 1. Os crimes descritos no art. 12 da Lei 6.368/76 são equiparados a hediondos por força da Lei 8.072/90. 2. Assim, tendo em vista o regime de cumprimento da pena privativa de liberdade, não há como aplicar a substituição da reprimenda imposta por sanção restritiva de direito (CP, art. 44). 3. A Lei 9.714/98, mesmo sendo posterior à Lei 8.072/90, não a derrogou, em virtude do critério da especialidade.418
HC 84928 / MG - Relator: Min. CEZAR PELUSO Julgamento: 7/09/2005 Órgão Julgador: Primeira Turma DJ 11-11-2005, PP-00029 COATOR: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EMENTA: SENTENÇA PENAL. Condenação. Tráfico de entorpecente. Crime hediondo. Pena privativa de liberdade. Substituição por restritiva de direitos. Admissibilidade. Previsão legal de cumprimento em regime integralmente fechado. Irrelevância. Distinção entre aplicação e cumprimento de pena. HC deferido para restabelecimento da sentença de primeiro grau. Interpretação dos arts. 12 e 44 do CP, e das Leis nos 6.368/76, 8.072/90 e 9.714/98. Precedentes. A previsão legal de regime integralmente fechado, em caso de crime hediondo, para cumprimento de pena privativa de liberdade, não impede seja esta substituída por restritiva de direitos.419
No primeiro acórdão, da relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, o Supremo Tribunal
Federal entendeu, por unanimidade de votos, que havia incompatibilidade entre as normas que
regiam os crimes hediondos e as que regiam a aplicação das penas restritivas de direitos, por
estabelecer, a primeira, o cumprimento da pena em regime integralmente fechado, excluindo,
assim, a incidência da Lei nº 9.714/98, modificativa da parte geral do Código Penal, em face
418 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 83.627-5, T1, Rel. Joaquim Barbosa, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 25 de novembro de 2003. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=&processo=83627&recurso=0&tip_julgamento=M>. Acesso em: 02 jun. 2007. 419 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 84.928-8, T1, Rel. Cezar Peluso, da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 27 de setembro de 2005. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=&processo=84928&recurso=0&tip_julgamento=M>. Acesso em: 02 jun. 2007.
117
do princípio da especialidade, estabelecido no art.12, do mesmo estatuto de lei.
Já no segundo acórdão, a Corte Constitucional, também por unanimidade de votos,
entendeu que a previsão do regime integralmente fechado, estabelecida na Lei nº 8072/90, não
seria óbice para a aplicação de uma pena restritiva de direitos, aduzindo que o regime da pena
privativa de liberdade seria irrelevante para a aplicação de pena restritiva de direitos, em vista
da distinção entre a aplicação e o cumprimento de pena. Justificou, ainda, que tal previsão,
inserta na Lei dos Crimes Hediondos, estava sob julgamento, naquele Tribunal, com argüição
de inconstitucionalidade a ser apreciada, no Habeas Corpus nº 82.959, além de nada estatuir
acerca da suspensão condicional ou da substituição da pena. Por fim, atestou o Relator,
Ministro Cezar Peluso, que a Lei 9.714/98 é posterior à Lei 8072/90, não hospedando
princípio ou norma que obste sua aplicação aos crimes hediondos.
Por fim, a solução para a contenda terminou sendo fornecida pelo julgamento do
Habeas Corpus nº 82.959420, que considerou efetivamente inconstitucional o dispositivo
inserto na Lei dos Crimes Hediondos, que veda a progressão de regime. Os Tribunais
Superiores pacificaram, posteriormente, o entendimento de que, por ser inconstitucional esse
artigo de lei, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por restritiva de direitos,
mesmo em crimes hediondos, atendidas as condições objetivas e subjetivas impostas pela Lei
9.714/98. Observe-se os acórdãos:
RESP 630764 / PE ; RECURSO ESPECIAL 2003/0230759-1 Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA (1128) T5 - QUINTA TURMA12/09/2006 DJ 09.10.2006 p. 344 PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. LANÇA-PERFUME. DIVERGÊNCIA NÃO DEMONSTRADA. CRIME HEDIONDO. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE TODO O § 1º DO ART. 2º DA LEI Nº 8.072/90 PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA. ART. 33, § 2º, ALÍNEA "C", DO CÓDIGO PENAL. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. POSSIBILIDADE RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO. 1. Para a admissão do recurso especial pela alínea "c", é necessária a realização do cotejo analítico entre o acórdão recorrido e o paradigma, demonstrando-se que, nos casos em confronto, os órgãos julgadores partiram de quadro fático idêntico ou semelhante para aplicar de forma discrepante o direito federal. 2. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, na sessão de 23/2/2006 (HC 82.959/SP), ao declarar a inconstitucionalidade incidental do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90, remeteu para o art. 33 do Código Penal as balizas para a fixação do regime prisional também nos casos de crimes hediondos, possibilitando, também, a substituição da reprimenda corporal por penas restritivas de direitos, quando atendidos os requisitos do art. 44 do Código Penal. 3. Na hipótese em exame, não havendo notícia de reincidência e tendo a pena-base sido fixada pelo Tribunal a quo no mínimo legal, ou seja, em 3 (três) anos de reclusão,
420 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Hábeas Copus n. 82.959, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, de 23 de fevereiro de 2006. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=&processo=82954&recurso=0&tip_julgamento=M>. Acesso em: 02 jun. 2007.
118
justamente por força do reconhecimento das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal como totalmente favoráveis ao paciente, impõe-se a fixação do regime aberto para o início do cumprimento da reprimenda aplicada por tráfico ilegal de drogas, em observância ao disposto no art. 33, § 2º, letra "c", do referido diploma legal, bem como o reconhecimento do seu direito à substituição da pena carcerária por penas restritiva de direitos. 4. Recurso especial não conhecido. Habeas corpus concedido de ofício para fixar o regime aberto para o cumprimento da condenação imposta ao paciente e determinar o retorno dos autos ao Tribunal a quo para que aplique a pena restritiva de direitos, bem como as condições de seu cumprimento, como entender de direito. Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, não conhecer do recurso, concedendo "Habeas Corpus" de ofício, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Felix Fischer, Gilson Dipp e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.421
AgRg no REsp 681.641/MG, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 26.04.2007, DJ 14.05.2007 p. 406. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. CRIME EQUIPARADO À HEDIONDO. INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 2º, PARÁGRAFO 1º, DA LEI Nº 8.072/90 DECLARADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL E SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. CABIMENTO. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO, COM RESSALVA DE ENTENDIMENTO DO RELATOR.1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou, por maioria de votos, a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei nº 8.072/90, afastando, assim, o óbice da progressão de regime aos condenados por crimes hediondos ou equiparados.2. De tanto, resultou o reexame da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pacificada, agora, na afirmação da progressividade de regime no cumprimento das penas privativas de liberdade dos crimes de que cuida a Lei nº 8.072/90.3. Declarada a inconstitucionalidade do artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei nº 8.072/90, de modo a submeter o cumprimento das penas dos crimes de que cuida a Lei nº 8.072/90 ao regime progressivo, resta afastado o fundamento da interpretação sistemática que arredava dos crimes hediondos e a eles equiparados as penas restritivas de direitos e o sursis.4. Declaração de voto do Relator com entendimento contrário. 5. Agravo regimental provido.422
Embora os Tribunais Superiores tenham pacificado a posição supra esboçada, registra-
se que muitos operadores do Direito, em Salvador, continuam discordando desse
entendimento, a exemplo de Cássio Miranda423, Juiz de Direito da 1. Vara do Júri; Jefferson
Assis424, Juiz da Vara de Penas e Medidas Alternativas; Jaqueline de Andrade Campos
Reges425, Juíza do Primeiro Juizado Especial Criminal. Já Arx Tadeu Cruz426, Promotor de
421 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 630.764, T5, Rel. Arnaldo Esteves Lima, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Brasília, DF, 12 de setembro de 2006. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200302307591&pv=101000000000&tp=5> Acesso em: 02 jun. 2007. 422 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 681.641/MG, T6, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, Brasília, DF, 26 de abril de 2007. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=200401163626&pv=101000000000&tp=5>Acesso em: 07 jun. 2007. 423 Entrevista gravada em fita cassete, que acompanha a pesquisa, cuja transcrição se encontra no apêndice “G”. 424 Entrevista concedida por escrito, constituindo o apêndice “A”. 425 Entrevista concedida por escrito, constituindo o apêndice “C”. 426 Entrevista concedida por escrito, constituindo o apêndice “J”.
119
Justiça da 7. Vara Crime, Vera Lúcia de Azeredo Coutinho427, Procuradora de Justiça
Criminal e Sebastian Borges de Albuquerque Mello428, Advogado Criminalista,
pronunciaram-se favoravelmente à aplicação de penas restritivas de direitos em crimes
hediondos ou equiparados, desde que preenchidas as condições objetivas e subjetivas do
apenado.
O preenchimento das condições objetivas estabelecidas na lei, aliado às condições
subjetivas do apenado fazem crer seja possível, mesmo em crimes hediondos ou equiparados,
a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos. Isto porque a
eleição dos crimes hediondos vem se procedendo de forma pouco criteriosa, atendendo,
muitas vezes, a reclames da mídia, como é o caso do art. 273, do Código Penal, que ocorreu
após uma onda de falsificação de remédios, no País. É possível, a depender das peculiaridades
do caso, numa tentativa, que fosse possível a substituição da privação de liberdade por penas
restritivas de direitos.
Importante registrar que após a decisão do Supremo Tribunal Federal que julgou
inconstitucional o § 1º do art. 2º, da Lei nº 8.072/90, foi editada a Lei nº 11.464, de 28 de
março de 2007, que modificou esse parágrafo, estabelecendo a seguinte redação: “A pena por
crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado”. Ademais,
também o § 2º do mesmo artigo de lei sofreu modificação: “A progressão de regime, no caso
dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois
quintos) da pena, se o apenado for primário e 3/5 (três quintos), se reincidente”.
Desta maneira, verifica-se que o legislador acolheu o entendimento do Supremo
Tribunal Federal, cristalizando-o em nova redação para o parágrafo segundo, e adaptou-a ao
sistema imposto pela Lei dos Crimes Hediondos, ao prever a progressão de regime, para esses
crimes, após o cumprimento de dois quintos (2/5) da pena, se o apenado for primário, e de três
quintos (3/5), se reincidente, mantendo, em suma, sua linha punitiva.
Ferrajoli afirma que, nos modernos Estados de Direito, caracterizados pela
diferenciação em vários níveis de normas, convivem duas tendências antagônicas, que se
consubstanciam em um “direito penal mínimo” e um “direito penal máximo”. O primeiro é
formado dos níveis normativos superiores, e o segundo, pelos níveis normativos inferiores.
Isto dá lugar “a uma ineficiência tendencial dos primeiros e a uma ilegitimidade tendencial
dos segundos”. Nesse passo, retrata que a Constituição Federal da Itália abriga princípios
garantistas, enquanto que algumas leis ordinárias, práticas judiciais e policiais admitem
427 Entrevista concedida por escrito, constituindo o apêndice “H”. 428 Entrevista gravada em fita cassete, cuja transcrição se encontra no apêndice “F”.
120
figuras de responsabilidade penal distantes de uma ou várias dessas garantias estabelecidas
constitucionalmente.429
Assevera, em acréscimo, que o direito penal mínimo, condicionado e limitado ao
máximo, “corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos
frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza”, existindo,
nesse passo, um nexo profundo entre o garantismo e o racionalismo. O direito penal máximo,
ao contrário, pregado como um direito penal de eficácia, configura-se, entretanto, “como um
sistema de poder não controlável racionalmente em face da ausência de parâmetros certos e
racionais”.430
Mas é importante salientar que esse Direito Penal máximo, além de irracional, como
bem se expressa Ferrajoli, na realidade prática, não vem demonstrando resultados positivos.
Como se vê, a própria Lei dos Crimes Hediondos não se configurou num sistema capacitado
para a diminuição da criminalidade brasileira.431 Segundo estudo do Depen, houve grande
elevação dos índices de privação de liberdade ao longo dos últimos anos. “Em 1992, o país
tinha 114 mil presos, ou 0,07% da população nas cadeias. Em dezembro de 2004, o
percentual subiu para 0,17% da população na cadeia, ou 308 mil presos”.432
Mas, além do endurecimento das penas não resolver os problemas da criminalidade
brasileira, por atender a uma idéia equivocada da opinião coletiva de que os crimes são
cometidos porque as penas são leves e o poder público é condescendente com os delinqüentes,
é preciso refletir que o Movimento de Lei e Ordem é completamente inadequado aos
postulados constitucionais de garantias do cidadão. Nesse passo, a lei infraconstitucional que
se filiar a esse movimento não possuirá legitimidade frente ao Estado de Direito firmado no
arcabouço garantístico dos direitos fundamentais.
Ana Cláudia Bastos de Pinho assevera, com acerto, que “o jurista comprometido com
a sedimentação do Estado Democrático de Direito e com a validez da Constituição Federal
não pode ser flexível com os direitos fundamentais”, e que, ao contrário, é nos próprios
direitos fundamentais que se deve respaldar “toda a questão relativa ao exercício do ius
puniendi, funcionando como limite do poder estatal”. Sem a observância desses parâmetros,
acrescenta que, “o poder do Estado resta ilimitado e, por conseguinte, irracional e incerto”. E 429 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Tradutores: Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 83. 430 Ibidem, p. 84. 431 FAVARETTO, Daiane de Liz. Pena de Morte. Fundamentos de Política Criminal e Retratos da Opinião Pública em Lages – SC. Disponível em: <http://www.uniplac.net/emaj/Artigos/007.pdf> Acesso em: 03 jun. 2007. 432 MARQUES, Hugo. Um país condenado à insegurança. Jornal do Brasil. Disponível em: <http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=144482>.Acesso em 3 jun 2007.
121
termina por sustentar que a eficácia do Direito Penal não pode ser conseguida às custas dos
direitos fundamentais, residindo, sobremaneira, no âmago das garantias constitucionais,
sendo, pois, “ilusório pensar que o recrudescimento das penas, a busca dos culpados, a
delimitação das medidas alternativas à prisão, a criação de novos e simbólicos tipos penais,
signifique a construção de um Direito Penal forte e eficaz”.433
Desta maneira, é inevitável concluir que a Lei nº 9.714/98, modificativa da Parte
Geral do Código Penal, a qual aumentou o âmbito de incidência das penas restritivas de
direitos, está em perfeita consonância com a idéia de um direito penal mínimo, racional e
garantidor da tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio estatal, concretizando os
princípios constitucionais da humanidade, da proporcionalidade, da culpabilidade, da
legalidade e da individualização da pena já referenciados, enquanto que outras leis que
restringem certos direitos fundamentais, como a Lei dos Crimes Hediondos, pertencem à
gama de éditos legislativos, que podem ser classificadas como de Direito Penal máximo,
padecendo de irracionalidade e ilegitimidade, como assegura Ferrajoli.
Entretanto, além das penas restritivas serem perfeitamente legítimas, ao estarem
inseridas nesse novo paradigma punitivo de respeito aos direitos fundamentais do cidadão, é
preciso, para que adquiram real eficácia, que atinjam aos verdadeiros fins das sanções
criminais, como se comprovará adiante.
Insta acentuar, inicialmente, que o sistema de substituição inserto no Código Penal
favorece a realização dos três fins da pena: preventivos (geral e especial) e o da retribuição, na
medida da culpabilidade do agente434.
Verifica-se que, ao ser cominada, no próprio tipo, a pena privativa de liberdade (que
poderá ser substituída) realiza o fim da prevenção geral, que também se faz presente no caso
de descumprimento da pena restritiva de direitos, a qual poderá ser convertida em privativa de
liberdade. Esse é, sem dúvida, um fator de intimidação da prática de delitos, por parte da
comunidade. Nesse passo, a pena cominada no tipo é a privativa de liberdade, e não a
restritiva de direitos, cuja substituição somente ocorrerá em caso do atendimento aos
requisitos objetivos e subjetivos impostos pelo mesmo estatuto de lei.
A prevenção especial é perfeitamente atingida quando o juiz, ao substituir a pena
privativa de liberdade por restritiva de direitos, afasta o condenado do cárcere, deixando de
submetê-lo a um sistema que poderá estimular sua corrupção e perversão, oferecendo-lhe uma 433 PINHO, Ana Cláudia Bastos de. O Mito da Eficácia. Jus Navegandi. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4087.Acesso em: 3 jun. 2007. 434 No capítulo VI, será procedida a análise dos fins das penas restritivas de direito em confronto com a Teoria Dialética Unificadora de Claus Roxin.
122
oportunidade de permanecer no grupo social, outorgando-lhe tão-somente uma pena que lhe
restringirá certos direitos, mas não lhe subtrairá a liberdade.
A pena de prestação de serviços à comunidade, por exemplo, vem se mostrando
extremamente ressocializadora, visto que alguns condenados, após terem entrado em contato
com pessoas carentes de ajuda, quando do cumprimento da prestação de serviços, conseguem
desenvolver uma relação de empatia com essas pessoas, além de reconhecer a importância do
trabalho realizado, optando por continuar a prestação do serviço, voluntariamente, mesmo
após o cumprimento da pena. Observe-se que o serviço voluntário é raro em nossa sociedade,
mesmo na hipótese de ser realizado por pessoas que, em tese, nunca praticaram crimes.
Quando um condenado continua prestando serviços ainda depois de cessada a sua obrigação
faz concluir, sem a menor dúvida, que tal pena possui, efetivamente, um caráter
reabilitador435.
Dados relativos à reincidência também são animadores no que tange aos condenados
que cumpriram penas alternativas. Na Vara de Execuções de Pernambuco, por exemplo, a
qual atende a treze (13) comarcas da Região Metropolitana do Recife, e monitora dois mil e
quatrocentos (2400) beneficiários (“quase 17% da população carcerária do Estado, que é de
14.500 presos”), a taxa de reincidência é quase nula, abaixo de 1%, afirma o Juiz Flávio
Fontes. No Brasil, o percentual médio de reincidência no sistema carcerário tradicional chega
a “65%”. De cada 100 presos, apenas trinta e cinco (35) não voltam para a prisão. Quando a
pena aplicada é alternativa, o percentual de reincidência despenca para “5%”. Mesmo ao se
levar em conta o grau de periculosidade, o perfil dos criminosos, tipo e modo do crime
cometido, e outros pressupostos subjetivos que determinam a aplicação da pena tradicional ou
da alternativa, as diferenças entre uma e outra são expressivas.436
Márcia Alencar, coordenadora geral do Programa de Fomento às Penas e Medidas
Alternativas do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (DEPEN)
assim se manifesta: “enquanto a taxa de reincidência do sistema penitenciário varia de 70% a
85”, este mesmo índice, com relação ao instituto penal alternativo, cai para uma variação
entre 2% a 12%”. Acrescenta que o objetivo da pena alternativa é conscientizar o cidadão em
conflito com a lei que seu ato foi nocivo à sociedade e que esse dano deve ser reparado.
Ressalta que a adoção dessas penas vem acompanhada de um programa de inclusão social,
435 A pena de prestação de serviços à comunidade será devidamente examinada no item 4.2.3. 436 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. Penas Alternativas são mais baratas e eficazes. Entrevista realizada com o Juiz Flávio Augusto Fontes de Lima. VEPA. Detalhe da notícia 26 ago. 2005. Disponível em: <http://www.tjpe.gov.br/vepa/ver_noticia.asp?id=43>. Acesso em: 02 jun. 2007.
123
por meio de políticas de escolarização, profissionalização e geração de emprego e renda.
Sustenta que a união desses fatores contribui para a reintegração do sentenciado à
sociedade.437
A retribuição é também alcançada através da aplicação das penas restritivas de
direitos, pois ao sentenciado são efetivamente impostas “restrições” (patrimoniais, obrigações
de realizar tarefas, suspensão de atividades profissionais, etc.) que lhe ocasionam a expiação
pelo crime praticado. Tais sanções menos graves que a privação de liberdade são, assim,
proporcionais à culpabilidade do agente438, que é apurada, pelo magistrado, ex vi do exame de
suas condições subjetivas, critério estabelecido no art. 44, incisos II e III, do Código Penal.
As penas restritivas de direitos podem ser classificadas, no que tange à aplicação, em
genéricas e específicas. As primeiras são aquelas que admitem a aplicação substitutiva em
qualquer infração penal, sem exigência específica. Nesse rol, se instalam: a prestação
pecuniária, a perda de bens e valores, a prestação de serviços à comunidade ou a entidades
públicas e a limitação de fim de semana.439 Nas específicas, sua aplicação limita-se a
determinados crimes, praticados no exercício de certas atividades, mediante violação do dever
a elas inerentes.440
Como se disse, existe um elenco de penas alternativas, o que permite que elas sejam
ajustadas a cada indivíduo, em cada caso.
4.2 AS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS EM ESPÉCIE
4.2.1 A prestação pecuniária
A prestação pecuniária, insculpida no art. 43, inciso I, do Código Penal, consiste no
pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou à entidade pública ou privada, com
437 BRASIL. Ministério da Justiça. Brasil discute ampliação das penas alternativas. Agência MJ de Notícias. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/noticias/especiais/2006/novembro/mtesp031106-penas.htm>. Acesso em: 05 jun. 2007. 438 A Teoria Dialética Unificadora, de Claus Roxin, impõe limites ao Estado-Repressivo em face da culpabilidade do agente. Pune-se na medida da culpabilidade do agente, realizando-se os ditames constitucionais dos princípios da proporcionalidade e de humanidade, não com o objetivo da expiação, mas porque esta é uma conseqüência da própria aplicação da pena, que sofre restrições do Estado de Direito. É importante registrar que a Teoria Dialética Unificadora abriga apenas as idéias de prevenção geral e especial, sendo, estes, para ela, os reais fins da pena. A retribuição, para Roxin, somente pode ser admitida em seu caráter de limitação do poder punitivo do Estado-Juiz. 439 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. v. 1. 5. ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 609. 440 DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto; DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 84.
124
destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a um salário mínimo, nem
superior a trezentos e sessenta salários mínimos. Estabelece o § 2º do art. 45 que, havendo a
aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra
natureza, ou seja, a entrega de gêneros alimentícios (cestas básicas), peças de vestuário,
títulos, metais preciosos, etc., e que o pagamento pode se dar tanto à vista quando
parceladamente.
No dizer de Franciele Silva Cardoso, tal pena não é novidade em nosso sistema penal,
visto que já vinha sendo aplicada, com sucesso, nos Juizados Especiais Criminais, tanto na
modalidade de pagamento em dinheiro, quanto na da prestação de outra natureza, como mão
de obra e doação de cestas básicas.441
É, efetivamente, uma das penas mais utilizadas pelos juízes monocráticos e tribunais,
por ser de fácil aplicação e cumprimento. A titulo ilustrativo, examinem-se os julgados
abaixo, procedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, cuja pena
de prestação pecuniária foi aplicada no juízo originário.
STJ - AgRg no Ag 716894 / PR ; AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO STJ - 2005/0175237-9 Ministra LAURITA VAZ (1120) T5 - QUINTA TURMA - 12/09/2006 DJ 30.10.2006, p. 380 - AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL PENAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA. VIOLAÇÃO AO ART. 59 E 68 DO CÓDIGO PENAL. DOSIMETRIA DA PENA. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N.º 7 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. SUBSTITUIÇÃO DE PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE PELAS PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE E PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. PENA DE MULTA. CUMULAÇÃO. LEGALIDADE. PRECEDENTES. DECISÃO MANTIDA PELOS SEUS FUNDAMENTOS.442
STF - HC 82187 / MG - MINAS GERAIS Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO Julgamento: 29/10/2002 Órgão Julgador: Primeira Turma TURMA RECURSAL DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DA COMARCA DE PASSOS EMENTA: HABEAS CORPUS. PACIENTE CONDENADO POR TURMA RECURSAL À PENA DE DETENÇÃO, SUBSTITUÍDA POR PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. ALEGADA AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO RELATIVAMENTE AO VALOR FIXADO. Possibilidade de conhecimento do writ, tendo em vista tratar-se de pena que, diferentemente do que ocorre com a multa, é suscetível de ser convertida em pena prisão. Necessidade de motivação da dosimetria aplicada, considerado não apenas o dano causado à vítima, mas também, por razões óbvias, a situação econômica do réu. Caso em que a formalidade não foi cumprida. Habeas corpus parcialmente deferido para, mantidas a condenação e a sua
441 CARDOSO, Franciele Silva. Penas e medidas alternativas: análise da efetividade de sua aplicação. São Paulo: Método, 2004, p. 95 442 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Ag 716894 n. 175237-9, Rel. Min. Laurita Vaz, T5, do Agravo de Instrumento, da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, 12 de setembro de 2006. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/pesquisar.jsp?newsession=yes&tipo_visualizacao=RESUMO&b=ACOR&livre=falsidade%20ideológica%20e%20prestação%20de%20serviços%20à%20comunidade>. Acesso em: 20 maio. 2007.
125
conversão em pena restritiva de direitos, determinar que a Turma Recursal fundamente a fixação da prestação pecuniária aplicada. 443
No primeiro julgado (Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 716.894), o
agravante pleiteou que fosse reconhecida ilegalidade na individualização da pena, a qual foi
fixada acima do mínimo legal, no juízo de origem, além de sustentar a impossibilidade de
coexistência das penas de multa e da prestação pecuniária. Argüiu, assim, a negativa de
vigência dos arts. 59, 68, e 44, § 2º, do Código Penal. O Superior Tribunal de Justiça, através
de sua Quinta Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, mantendo a
decisão guerreada, que estabeleceu o cumprimento das penas restritivas de direitos de
prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária, e da multa estabelecida no próprio
tipo da falsidade ideológica.
No Habeas Corpus nº 82.187-1, cuja ementa encontra-se transcrita acima, o Supremo
Tribunal Federal concedeu o writ perquirido, em face da ausência de fundamentação, no juízo
de origem (Turma Recursal do Estado de Minas Gerais), tanto da dosimetria da pena privativa
de liberdade, bem como do valor de dez (10) salários mínimos, estabelecidos na prestação
pecuniária. Os autos retornaram a origem com os fins de serem apreciadas as condições
subjetivas do sentenciado, bem como a sua situação econômica que motivaram a definição do
quantum da prestação pecuniária.
A ordem de preferência para definir os beneficiários da prestação pecuniária é a
seguinte: primeiro a vítima, depois os dependentes da vítima (descendentes, ascendentes,
cônjuge e irmãos), posteriormente a entidade pública com destinação social e, por fim, a
entidade privada também com destinação social. Desta maneira, somente em duas hipóteses, a
prestação pecuniária poderá ter outro destinatário que não seja a vítima ou dependentes: se
não houver dano a reparar ou se não houver vítima imediata ou seus dependentes. “Nestes
casos e somente nestes casos, o montante da condenação destinar-se-á a entidade pública ou
privada com destinação social”, assevera Cezar Bitencourt.444
Essa previsão atende a uma política criminal preocupada com a vítima que até esse
momento não merecia a devida consideração do legislador brasileiro. Sobre o tema, Scarance
Fernandes já se manifestou, bem antes da Presidência da República encaminhar o anteprojeto
de Lei ao Congresso Nacional:
443 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 82187, Rel. Min. Ilmar Galvão, T1, da Turma Recursal do Juizado Especial Criminal da Comarca de Passos/MG, DF, julgado em 29 de outubro de 2002. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp>. Acesso em: 05 jun. 2007. 444 BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei n. 9.714/98. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 114.
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Com todo movimento tendente a valorizar o papel da vítima no processo penal, cada vez mais vai se acentuando o entendimento de que a reparação do dano não deve ser vista como preocupação só da pessoa lesada, mas de todo o meio social, principalmente em relação a determinadas vítimas ou a certos delitos. Por isso, além de todos os aspectos já salientados, vão surgindo e se fixando novos mecanismos tendentes a estimular a reparação do dano no processo criminal: a possibilidade de acordos civis que favoreçam o réu com penas mais leves ou reduzidas, com a não instauração ou o não prosseguimento do processo; a previsão da reparação como pena, única ou cumulativa, ou como sanção substitutiva; o condicionamento da suspensão da pena privativa ou do livramento condicional à reparação; o condicionamento da graça ou do indulto à reparação do dano; a destinação de parte do trabalho do preso para a reparação dos danos; a preferência do pagamento do valor da reparação ao da multa estipulada; possibilidade de que o infrator trabalhe para a vítima ou para a comunidade como forma de pagar o valor da reparação.445
Claus Roxin, ao observar os avanços e retrocessos da história do Direito Penal, afirma
acreditar que ele continuará existindo como fator de controle social secularizado, mas que
haverá uma gradativa substituição da pena privativa de liberdade por outras penas ou
conseqüências jurídicas ao ilícito.Assevera que podem surgir novas formas de controle
eletrônico e de medidas terapêuticas sociais, além da maior utilização do trabalho comunitário
e da reparação civil do dano. Justifica esta previsão pela inexistência de vagas e recursos
financeiros para executar a pena de prisão de forma humanitária e pela impossibilidade de
punir a maioria dos delitos com ela.446
Nesse sentido, atesta o jurista alemão:
Profetizo um grande futuro para a reparação do dano no direito penal, como a segunda sanção orientada pela voluntariedade do sancionado. [...] A nova idéia, para a qual prevejo grandes perspectivas no direito penal vindouro, é a de que uma reparação voluntária prestada antes da abertura do procedimento principal (Hauptverfahren) leve a uma obrigatória diminuição na pena; em caso de uma prognose favorável, sirva mesmo a uma suspensão condicional e, excepcionando os delitos graves, até uma dispensa da pena (apesar de manter-se a condenação). Essa concepção tem a vantagem de fornecer ao autor um grande estímulo à reparação do dano, e de oferecer à vítima uma reparação rápida e não burocrática, que o Estado não conseguiria em muitos casos realizar diante de um devedor recalcitrante. Com esta solução, a vitimologia, a doutrina da vítima, que nas últimas décadas vem alcançando uma crescente importância, conseguiria uma vitória decisiva no sentido de uma orientação da justiça penal à vítima.447
Entretanto, a utilização da reparação civil com fins penais não é ponto pacífico na
doutrina. Luiz Regis Prado afirma que a “pena-reparatória” necessita de todo efeito punitivo
no sentido da prevenção geral intimidatória, “contribuindo para uma disfunção axiológica
entre o penal e o civil”. Nesse passo, entende o doutrinador que a prestação pecuniária não
possui a natureza jurídica de pena, tratando-se de “mera hipótese de reparação/indenização 445 SCARANCE FERNANDES, Antônio. O papel da vítima no processo criminal. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 185-186. 446 ROXIN apud AZEVEDO, Mônica Louise de. Penas Alternativas à Prisão: os substitutivos penais no sistema penal brasileiro. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 166-167. 447 ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução: Luís Greco. Rio de Janeiro: 2006, p. 24-25.
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civil”, impropriamente prevista como pena.448 No mesmo sentido, manifesta-se Miguel Reale
Júnior: “essa pena é uma reparação civil disfarçada”. Reconhece que há o dado positivo de
satisfação da vítima, contanto que não se sancione com cesta básica.449
Faz-se importante registrar, ainda, que no caso da prestação pecuniária ser paga à
vítima ou a seus dependentes, o montante pago será descontado de eventual condenação em
ação de reparação de danos por eles proposta na área cível. Isso reforça a idéia de ser uma
reparação civil disfarçada, diz Miguel Reale Júnior.450
Contudo, Claus Roxin reconhece os efeitos preventivos-gerais e especiais da reparação
voluntária, asseverando que, se ela fosse introduzida no sistema de sanções jurídico-penais,
“teria efeitos preventivos gerais – isto é, em relação à generalidade das pessoas – bastante
positivos, pois a perturbação social que é provocada pelo delito só é realmente eliminada se o
dano for reparado e o status quo ante reestabelecido”. Quanto à prevenção especial, afirma
que se o autor, no seu próprio interesse, se esforça no sentido de reparar o dano à vítima,
precisa entrar em contato com ela, repensar consigo mesmo o seu comportamento e o dano a
ela causado, produzindo, por conseqüência, uma prestação construtiva, socialmente útil e
justa, e isto poderá contribuir bastante para a sua ressocialização, tendo, assim, a reparação
voluntária, “grande utilidade do ponto de vista preventivo-especial”.451
A reparação voluntária de que fala Roxin, na obra Estudos de Direito Penal452, tem
diferenças da prestação pecuniária no sentido de que é o próprio autor do fato quem, por
vontade própria, se propõe a ressarcir o dano à vítima. Já a prestação pecuniária se trata de
uma pena imposta pelo juiz. Porém, o caráter de ressarcimento de danos é idêntico em uma e
outra. Desta maneira, é importante salientar o reconhecimento dos fins preventivos gerais e
especiais do próprio ressarcimento do dano, pelo jurista alemão.
Pablo Galain Palermo, por sua vez, no artigo La reparación del daño como tercera via
punitiva? Especial consideración a la posición de Claus Roxin, ao examinar a posição,
esboçada por Roxin, de que a reparação do dano seria uma “terceira via punitiva”, afirma que
“la situación jurídica anterior a la comisión del delito” deve ser entendida no sentido de uma
reparação penal, a qual deveria ser aplicada sempre que o autor pudesse compensar a vítima
ou a sociedade (reparação simbólica), com o escopo de fazer desaparecer os efeitos do delito.
448 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. v. 1. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 612. 449 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: parte geral. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 49 450 Ibidem, loc.cit. 451 ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução: Luís Greco. Rio de Janeiro: 2006, p. 26. 452 Ibidem, p.24-27.
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Assevera ainda que a reparação não deve limitar-se aos delitos de dano e que seria
perfeitamente aplicável num crime contra a honra, pelo fato de ser penalmente relevante o
retorno al status quo anterior al delito, pois permite cumprir os fins da pena, ao devolver a
paz jurídica, demonstrar o interesse do autor em reintegrar-se na sociedade e brindar a vítima
direta com a satisfação de seus interesses legítimos, não podendo ser confundida com a
indenização civil, porque é muito mais do que esta. Em suas palavras:
La reparación penal puede consistir en una indemnización civil a la víctima o a terceros (por ejemplo, compañía seguradora), pero también, en un pedido de disculpas a la victima, una conciliación entre autor y víctima, la realización de trabajos de reparación en benefício de la víctima o de la comunidad, pagos en dinero a instituciones de utilidad pública, regalos a la víctima, etc. Por lo que viene de decirse debe ser bienvenida la reparación como medida substitutiva de la pena de privación de libertad ya que toda medida que cumpla con los fines de la pena y signifique un sacrifício menor (principio de necesariedad) debe ser mejor considerada que la pena privativa de libertad.453
Em verdade, no caso da prestação pecuniária, quando o agente se vê compelido a
contribuir em dinheiro ou mesmo a entregar algum produto à vítima454, ou a seus
dependentes, ou a uma entidade com fins sociais, está lhe sendo oportunizado adquirir
consciência do seu erro, permitindo-lhe uma reflexão sobre a prática de possíveis condutas
futuras, principalmente se o crime foi perpetrado contra o patrimônio, atingindo, tal sanção, os
fins da prevenção especial.
Ademais, essa pena poderá também alcançar os interesses da vítima ou seus
dependentes, ou ainda da própria sociedade, em caso de contribuir para entidades que
possuem fins sociais, pois demonstra, também, nos termos formulados por Roxin, aos demais
membros da sociedade, que a perturbação social que foi provocada pelo delito foi
efetivamente eliminada, o que desestimulará a prática de novos crimes. Nesse aspecto,
realizar-se-á os fins da prevenção geral.
Vale ressaltar que, nas últimas décadas, tem-se admitido o caráter publicístico da
indenização à vitima, como indica Gunter Kaiser. Nesse sentido, orientou-se uma das
resoluções do XI Congresso Internacional de Direito Penal, em Budapeste, em 1974, através
453 PALERMO, Pablo Galain. La reparación del daño como tercera via punitiva? Especial consideración a la posición de Claus Roxin. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 55, Revista dos Tribunais, 2005, p. 200-201. 454 Será facultado, ainda, ao agente, havendo a concordância do beneficiário, prestar serviços, trocando eventual quantia em dinheiro por atividade desempenhada. No dizer de Rogério Greco, “pode o condenado, pedreiro profissional, acertar que o seu pagamento será feito com trabalho, combinando, prévia e expressamente, o serviço a ser realizado”. (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 587).
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da seção que tratou do tema da indenização às vítimas da infração penal.455
Assim, a reparação do dano pela via do processo penal, segundo Dotti, servindo-se dos
ensinamentos de Costa Andrade, é definida como:
“[...]um dos mecanismos da moderna Política Criminal e implica em um renascimento do instituto posto situar-se ‘na confluência de duas linhas de força, uma de sentido penal, outra de raiz vitimológica. Responde simultaneamente a um novo entendimento da punição do delinqüente e às reivindicações que a vítima logrou fazer ouvir nas instâncias penais’ ”.456
Mas é também importante sustentar que, para a eficácia e prestígio desta pena
restritiva de direitos e também de outras, é necessário que o magistrado proceda a uma
escolha plausível daquela que melhor se ajusta ao caso concreto, viabilizando o aspecto
pedagógico da resposta penal, sem esquecer dos fins preventivos gerais e especiais que
justificam a imposição da pena, além da retribuição pautada na medida da culpabilidade do
agente.
Embora a prestação pecuniária seja uma pena genérica, não deverá ser fixada para
qualquer delito e qualquer agente.Se o autor do fato não tem as mínimas condições financeiras
para fornecer a prestação pecuniária, ela deverá ser substituída por um trabalho que seja
possível ao agente realizar (desde que haja aceitação do beneficiário), ou que seja pautada a
escolha judicial em outra pena restritiva de direitos viável de cumprimento. Em caso
contrário, quando descumprida, poderá haver a conversão para a pena privativa de liberdade,
e o agente será levado ao cárcere por um crime que não precisaria ser punido com prisão.
Da mesma forma, a prestação pecuniária estabelecida em crimes realizados com
violência real ou ficta, que se processam nos Juizados Especiais, a depender do caso concreto,
não atingirá aos fins da pena. Há hipóteses de ferimentos à bala ou outras lesões corporais que
não são consideradas graves, casos em que o Ministério Público também não detecta a
ocorrência da tentativa de homicídio, mas que causam grandes transtornos à vítima.457 Nesses
casos, é injusta uma prestação pecuniária que muitas vezes é irrisória, a depender das
condições econômicas do agente. Melhor será a escolha de outra pena que efetivamente atinja
aos seus fins de prevenção especial e geral, a exemplo da prestação de serviços à comunidade
em instituições que se destinam ao tratamento de pessoas que sofreram acidentes. Ali o
455 KAISER apud DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. 2.ed.Rio de Janeiro: Forense: 2004, p.489. 456 ANDRADE apud DOTTI, op.cit., p.489. 457 Os crimes de lesões corporais leves (CP, art. 129, caput), constrangimento ilegal (art. 146), ameaça (art. 147) e contravenção de vias de fato (LCP, art. 21), embora cometidos com violência ou ameaça, admitem a substituição por pena alternativa, pois se trata de infrações de menor potencial ofensivo, as quais comportam transação penal e imposição consensual de pena não privativa de liberdade. (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 1, p. 369).
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condenado terá melhores condições de avaliar a proporção do ato praticado e de formar um
juízo real de arrependimento, ao mesmo tempo em que será útil à comunidade.
Por fim, urge examinar o caso da doação das cestas básicas e de sua eficácia como
pena alternativa à prisão.
Alguns autores, a exemplo de Cezar Bitencourt, entendem que a pena de doação de
cestas básicas é inconstitucional, por ofender ao princípio da reserva legal.458 Isto porque não
está elencada, dentre as penas restritivas de direito, em nenhum texto legal. 459
Registre-se que a pena de doação de cestas básicas foi utilizada antes de entrar em
vigor a Lei 9.714/98, que criou a prestação pecuniária, na qual se encontra inserida como
prestação de outra natureza, no § 2º do art. 45, do Código Penal. Durante esse período, Cezar
Bitencort já combatia a pena de cesta básica em si e hoje rechaça a prestação de outra
natureza, taxando-a de inconstitucional por ofensa ao princípio da legalidade. No mesmo
diapasão, leciona Luiz Regis Prado, sustentando que “a indeterminação dessa pena contrasta
com as exigências mais elementares de certeza e segurança jurídica, sendo sua
inconstitucionalidade, no mínimo, questionável”.460
Segundo o magistério de Valdir Sznick, a cesta básica é uma pena de “criação
brasileira”, que surgiu mais especificamente no Estado do Mato Grosso do Sul, como
cumprimento da Lei dos Juizados Especiais de Pequenas Causas (lei local). Esse autor afirma
que “a imposição de cesta básica não fere a Constituição nem a lei ordinária (a dos Juizados
Especiais) de onde ela se originou, como criação da rica inventiva brasileira”, porque, ao se
revestir de natureza econômica (pecuniária), insere-se na individualização da pena, que é
prevista no Código Penal e na Constituição Federal. Ademais, para a sua imposição são
consideradas as possibilidades e a capacidade econômica do agente, além da Carta Magna
abrigar a doação de cestas básicas como uma “prestação social alternativa”, inserta na letra
“d”, do inciso XLVI, do seu art.5º.461
Juarez Cirino dos Santos entende, outrossim, que as prestações de outra natureza não
ferem o princípio da legalidade “por duas razões principais: primeiro, porque substituem a
458 O princípio da legalidade ou da reserva legal está inscrito no artigo 1º do Código Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem previa cominação legal”. O princípio originário do latim nullum crimem, nulla poena sine lege estabelece que nenhum homem livre pode ser punido sem uma prévia cominação típica, além de uma pena respectiva.
459 BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei nº 9.714/98. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 125-130. 460 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 5. ed. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, v. 1., p.614. 461 SZNICK, Valdir. Penas Alternativas. São Paulo: Leud, 2000, p.58-59.
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pena privativa de liberdade aplicada – regida pelo nulla poena sine lege; segundo, porque
beneficiam o condenado – logo não podem ser excluídas pelo princípio da legalidade
instituído para a proteção do acusado”.462
A doutrina majoritária, no diapasão de Valdir Sznick e de Juarez Cirino, vem se
posicionando pela constitucionalidade da prestação de outra natureza, na qual se encontra hoje
inserida a cesta básica, a exemplo de Dotti463, Costa Júnior464, Delmanto465 e outros juristas.
Adota-se aqui a posição que considera constitucional a prestação de outra natureza.
Primeiro, porque a própria Constituição admite a extensão do rol elencado nas letras “a” e “e”
do art. 5º, inciso XLV, afirmando: “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre
outras, as seguintes [...]”. Ora, a própria disposição “entre outras” dá margem ao legislador
infraconstitucional a criar outras penas, desde que da mesma natureza das já positivadas em
lei, e devidamente respeitadas as proibições estabelecidas no inciso XLVII, da Carta Magna.
Ademais, a posição de Juarez Cirino é pertinente, pois se tratam efetivamente de penas
substitutivas que beneficiam ao réu. Não se pode esquecer que a pena principal fixada, a
privação da liberdade, se encontra devidamente delimitada na Constituição Federal.
Desse modo, consideram-se legítimas as prestações de trabalho, alimentos (cestas
básicas), remédios ou de qualquer outro bem, desde que haja aceitação por parte do
beneficiário. Importante será a escolha, pelo magistrado, da pena ou das penas466 restritivas de
direitos adequadas ao tipo de crime praticado e ao infrator, sem perder a perspectiva dos fins
preventivos gerais e especiais, nos limites da culpabilidade do agente. Sua aplicação seria
adequada em crimes de “dano”, “apropriação indébita simples”, “apropriação de coisa havida
por erro, caso fortuito ou força da natureza”, “receptação culposa”, “divulgação de segredo”,
“furto simples”, e outros delitos de pouca gravidade, considerando-se, sempre, as condições
subjetivas do infrator.
Fato inovador pode ser constatado no Estado do Rio de Janeiro, na Comarca de Nova
Iguaçu, onde a Juíza de Direito Titular do I e II Juizado Especial Criminal, Rosana Navega
Chagas467, vinha admitindo como pena alternativa (prestação inominada) a doação voluntária
462 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 535 463 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.459. 464 COSTA JÚNIOR, Paulo José. Curso de Direito Penal. 8. ed. São Paulo: DPJ, 2005, p.163. 465 DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto; DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 92. 466 Conforme disposição inserta no §2º, do art. 44, do Código Penal, na condenação superior a 1 (um) ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos ou multa, ou por duas restritivas de direitos. 467 CHAGAS, Rosana Navega. Doações Voluntárias de Sangue: Uma Alternativa para a Pena e para a Vida [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <[email protected].>, em 06 jun. 2007.
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de sangue. Tratava-se de uma prestação “voluntária”, a ser imposta nos Juizados Especiais,
em proposta de transação, ou indicada pelo Juiz, dentre outras tarefas alternativas, tais como
doação de bens aos orfanatos, trabalhos em entidades governamentais ou ONGS, etc., como
opção, entre as tarefas sociais ofertadas.
Verifica-se, entretanto, que essa pena deixou de ser aplicada, porque os Promotores
que atuam naquele Juizado entenderam que a sanção era inconstitucional e recorreram para a
Turma Recursal do Rio de Janeiro, obtendo provimento ao recurso.
Porém, assevera a magistrada, no artigo Doações Voluntárias de Sangue: Uma
Alternativa para a Pena e para a Vida 468, que o Juizado Especial Criminal do Paraná, além
de ter sido o pioneiro no Brasil na implantação das doações voluntárias de sangue, continua
aplicando tal pena, através de um convênio entre o órgão e o Centro de Hematologia do
Paraná, em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado e os Rotarys Clubes Oeste de
Curitiba e III Milênio, com a denominação Justiça Solidária. Acredita a autora do texto não
haver qualquer impedimento dentro da técnica jurídica para a utilização da doação de sangue
como pena, como condição do SURSIS, do Livramento Condicional, da Suspensão
Condicional do Processo e, até mesmo, “como forma de composição civil com a sociedade”.
Sem dúvida que o assunto é polêmico. Primeiro, porque tecnicamente a pena só
poderia ser acatada de forma “voluntária” quando aceita na proposta de transação feita pelo
Ministério Público, e homologada pelo magistrado, no processo preliminar do Juizado
Criminal. Em caso de sentença de mérito, não há condições do autor do fato fazer qualquer
opção pela pena de doação de sangue que seria fixada pelo juiz quando da individualização da
pena na sentença condenatória, inexistindo voluntariedade no cumprimento da sanção.
Ademais, a mencionada “voluntariedade” do autor do fato pode ser contestada
também na transação, pois indiscutivelmente há, nos Juizados, uma situação de desvantagem
do infrator frente ao Membro do Ministério Público que, ao responder a um processo
criminal, ainda que em fase preliminar, acata uma proposta de pena formulada por um fiscal
da lei que, em essência, vulnera sua integridade física, sem suficiente “autonomia” para o ato.
Acrescente-se que, se o autor do fato é pessoa necessitada economicamente, pode,
com mais motivos, ser levado a optar por sanção menos dispendiosa, a qual será, sem dúvida,
a doação de sangue, pois há possibilidade de ocorrer sua aceitação sem que esteja em reais
condições de avaliar sua disposição de vontade para o cumprimento dessa pena. E por tratar-
se de ato que pode interferir na saúde de um ser humano, há de se exigir perfeita “autonomia”
468 CHAGAS, Rosana Navega. Doações Voluntárias de Sangue: Uma Alternativa para a Pena e para a Vida [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <[email protected].>, em 06 jun. 2007.
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em suas decisões, o que não ocorre na situação em epígrafe.
Conforme o magistério de Maria Auxiliadora Minhahim, ao abordar os princípios
éticos básicos que deveriam orientar as pesquisas que envolvem os seres humanos, são
ressaltados os seguintes: “o do respeito pelas pessoas (autonomia), o da beneficência469 e o da
justiça”, princípios estes que foram estabelecidos no Relatório Belmont, encomendado pelo
Congresso dos Estados Unidos, após ter conhecimento dos abusos praticados nas pesquisas
com seres humanos.470
Registre-se que, embora não haja na situação em epígrafe “pesquisa” científica, há
uma violação da Justiça na esfera da saúde do indivíduo, o que autoriza a utilização dos
princípios que lhe forem pertinentes, os quais foram estabelecidos no citado Relatório. Assim,
merece relevo, in casu, o princípio da autonomia, pela professora baiana, assim, referenciado:
“O respeito pelas pessoas consiste em duas convicções: a de que elas tenham capacidade de
atuar e discernir (tenham autonomia), protegendo-se aquelas que são incapazes de tomar
decisões. Dessa forma, uma ação é autônoma quando baseada no consentimento de pessoa
apta para concedê-lo”.471
Nesse diapasão, conclui-se que a voluntariedade do autor do fato já se encontra
viciada pela raiz, inexistindo real autonomia para a aceitação da pena, eivando, desta maneira,
a pena de doação de sangue de “inconstitucionalidade”, conforme decidiu a Turma Recursal
fluminense.
A intenção da magistrada de Nova Iguaçu, embora louvável no sentido de almejar
“salvar vidas” , como se refere com a aplicação dessa pena, padece de inconstitucionalidade
por vulnerar a integridade física do cidadão, em face de vício de vontade, indo de encontro ao
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
O exame da prestação pecuniária, na legislação pátria, obriga a uma análise da Lei dos
Crimes Ambientais, na qual tal sanção está prevista no art. 12, e “consiste no pagamento em
dinheiro à vítima ou à entidade pública ou privada com fim social, de importância fixada pelo
juiz, não inferior a um salário mínimo nem superior a trezentos e sessenta salários mínimos. O
valor pago será deduzido do montante de eventual reparação civil a que for condenado o
infrator”. 469 Conforme Maria Auxiliadora Minahim, o princípio da beneficência se configura na obrigação de maximizar o número de possíveis benefícios, minimizando os prejuízos; e o princípio de justiça foi definido pela Comissão Belmont como sendo “a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios”, ou ainda tratamento igual para os iguais. (MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e Biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.32). 470 MINAHIM, op.cit., p.31. 471 O princípio da autonomia foi definido pela Comissão Belmond, no mencionado Relatório, encomendado pelos Estados Unidos. (MINAHIM, op.cit., p.31-32).
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Essa sanção é aplicável tão-somente às pessoas físicas, uma vez que não se encontra
prevista no rol das penas aplicadas às pessoas jurídicas (arts. 21 e 22, da Lei nº 9.605, de
12.2.1998). Também não pode reverter em benefício dos dependentes da vítima, tal como
ocorre no Código Penal.
Pode-se interpretar o motivo dessa restrição pelo fato de, nos crimes ambientais, o
bem primordialmente atingido ser a própria natureza, em que a coletividade é o principal
sujeito passivo, e não esta ou aquela pessoa, em especial. 472 Mais justo seria que a Lei tivesse
imposto a prestação pecuniária somente para entidades públicas ou privadas ligadas à
proteção do meio ambiente. Assim, por exemplo, no caso do infrator que desmatasse uma área
particular de preservação permanente, este não ficaria livre de contribuir economicamente
para uma instituição com fins ambientais, além de ter o dever de ressarcir civilmente o
proprietário.
Quanto aos parâmetros de fixação da prestação pecuniária, estes não foram
disciplinados nem no Código Penal, como visto, nem na Lei nº 9.605/98. Nesse passo, o juiz,
ao estabelecer o valor a ser pago pelo condenado, deverá valer-se do princípio de que cada um
deve ser punido nos limites de sua culpabilidade e das regras contidas no art. 6º, incisos I, II e
III, da Lei 9.605/98, ou seja, a gravidade do fato, as conseqüências para o meio ambiente, os
antecedentes do réu quanto ao cumprimento da legislação ambiental e à sua situação
econômica. Assim, de suma importância o exame, pelo magistrado, da extensão dos danos
causados ao meio ambiente, observando, também, o princípio da proporcionalidade.473
Para que seja eficaz, a prestação pecuniária estabelecida na Lei dos Crimes Ambientais
deve ser dirigida a entidades públicas ou privadas, de preferência aquelas ligadas à proteção
do meio ambiente. E para que atinja sua finalidade (repressiva e reparatória) em sua
plenitude, seria “interessante que o juiz a destinasse a órgãos ambientais existentes na própria
comarca em que o fato se deu”, afirmam Roberto Delmanto e outros autores474, em Leis
Penais Especiais Comentadas, pois somente desta forma o infrator estaria efetivamente
colaborando para a recomposição do dano, causado ao meio ambiente.
4.2.2 A perda de bens e valores
472 DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto; DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Leis Penais Especiais Comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 398. 473 FREITAS, Vladimir Passos; FREITAS, Gilberto Passos. Crimes contra a Natureza. 8.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 296. 474 DELMANTO R.; DELMANTO JÚNIOR; DELMANTO, F., op.cit., p. 398.
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A perda de bens e valores encontra-se prevista no art. 43, inciso II, do Código Penal, e
na Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XLVI, letra “b”. Trata-se de sanção em que o
juiz determina o perdimento, em favor do Fundo Penitenciário Nacional, ressalvada a
legislação especial, de bens e valores pertencentes aos condenados. O seu valor terá como teto
– o que for maior – o montante do prejuízo causado ou do proveito obtido pelo agente ou por
terceiro, em conseqüência da prática do crime (art. 45, § 3º, do Código Penal). O condenado
perderá bens e valores legítimos de sua propriedade lícita. É o que dispõe o dispositivo em
exame.
No dizer de Luiz Flávio Gomes, trata-se de pena destinada, sobretudo, ao denominado
criminoso de colarinho branco, e se refere a bens que podem ser tanto móveis quanto imóveis
e valores, tais como títulos de crédito, ações e outros papéis negociáveis na Bolsa de Valores,
bens (ou valores) esses que são sempre do condenado, nunca de terceira pessoa. É pena
aplicável nos casos em que o prejuízo econômico causado com a prática da infração pode ser
demonstrado.475 Tal sanção tem como escopo obstar que o sentenciado obtenha benefícios
pela prática da infração penal.476
Cezar Bitencourt assevera que “sob a disfarçada e eufemística expressão ‘perda de
bens’, a liberal Constituição cidadã, em verdadeiro retrocesso, criou a possibilidade de
aplicação do confisco como pena, contrariando as modernas tendências criminológicas”.
Afirma que essa pena restritiva de direitos é um verdadeiro “confisco”, embora os
constituintes não tivessem tido a coragem de denominá-la corretamente.477 No mesmo
diapasão, atesta Luiz Regis Prado ser essa pena, de fato, um confisco, caso o dispositivo seja
interpretado no sentido de autorizar a perda de bens e valores adquiridos licitamente pelo
agente.478.
Argumenta Juarez Cirino dos Santos que, embora a literatura dominante defina a perda
de bens e valores como simples confisco, é preciso definir duas hipóteses: quando a perda de
bens e valores é admitida até o limite do prejuízo causado com o crime, em favor do Fundo
Penitenciário Nacional, constitui realmente confisco de bens e valores do condenado, por não
possuir natureza de indenização ou ressarcimento da vítima; porém, quando se admite a perda
de bens e valores, obtidos mediante prática de crime, até o limite do proveito obtido com o
475 GOMES, Luiz Flávio. Penas e Medidas Alternativas à Prisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 135-136. 476 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, v.1, p. 615. 477 BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas: análise político-criminal das alterações da Lei n. 9.714/98. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 122. 478 PRADO, op.cit., p.614.
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