Click here to load reader
Upload
joao-carreira
View
297
Download
2
Embed Size (px)
Citation preview
A PROMESSA
1
XXXI – Uma Porra
Talvez o ditado que diz que ruim é a ovelha que não pode com a lã, seja bem
verdadeiro. Mas o que fará umas pessoas boas e outras más? Sem dúvida que será
a atitude destas perante a vida, mas todos estamos a tempo de mudar de atitude a
todo o momento. No entanto, o ser humano é conservador, rege-se por valores,
convicções e rotinas. Uns, pensam mais no individual e outros pensam mais no
colectivo para alcançarem o bem individual e o bem de todos. Mas é pelas várias
noções de bem que todos se orientam. O problema é que nem sempre o bem de uns
coincide com o bem de outros.
A geração revolucionária de 1820 sonhou com um mundo diferente onde tudo,
o que fosse arcaico e sem lógica, morresse. Quando a aceitação de novas ideias não
é popular e geral, impõe-se pela Lei. Foi assim que aconteceu. Coube a Mouzinho
da Silveira o papel ingrato de redigir as leis que muitos apoiavam, mas poucos
davam a cara publicamente, pois afrontavam a Igreja, a Nobreza e o Povo, que
pouco mudara em costumes e impostos desde a Idade Média e que assistiria à
2
extinção de ordens religiosas, municípios e à publicação de um Código Civil que
tratava os homens como iguais e que desconhecia um Deus maior. Com as Cortes
Constituintes e a Assembleia Legislativa, Portugal entre 1821 e 1823, viu acabarem
portagens, restrições ao comércio, serviços pessoais de serventia, fechar conventos
e câmaras municipais, pondo tudo num enorme reboliço pela velocidade e pelo
choque com que essas novas ideias se impuseram. Depois, D. Miguel repôs tudo.
Mas Mouzinho da Silveira ficou no poder, pois interessava-lhe mais o bem
público do que quem governava. Foi, no entanto entre Ponta Delgada e o Porto que
Mouzinho desenhou uma revolução administrativa, pois dizia que “sem terra livre
em vão se apregoa a liberdade”. Muitos aplaudiram e outros condenaram. E foram
os que mais aplaudiram que depois correram com ele, ao ponto de no final da vida
escrever, “Que lindos dias em Janeiro! Que país, se houvesse moral e justiça!”
Atacou tantos poderes instalados que liquidou de vez o Antigo Regime. Nada
depois dele ficou igual. Morreu só, injustiçado, atribuindo-lhe coisas que ele
apenas começou, como por exemplo, a secularização de conventos, que na sua
maioria foi levada a cabo pelo decreto de 1834, de Joaquim António de Aguiar.
Em 1820, mais de um terço de Portugal pertencia à Igreja, apesar de os vários
reis contrariarem tal situação desde D. Afonso II. Depois da Revolução Liberal
tudo o que pertencia aos padres foi a hasta pública, mas oitenta por cento da
população não tinha dinheiro para andar calçado, quanto mais para comprar
conventos. Assim, os bens reverteram para o Estado. Eram uma reserva
económica para gastos futuros, como aconteceu com a construção do Teatro
Nacional, depois de venderem o Convento da Cartuxa em Évora e outras três
grandes herdades alentejanas e obtido apenas quinze contos. Enquanto não ia
vendendo, nos conventos e igrejas, o Estado instalou quartéis, hospitais, escolas,
tribunais e repartições públicas. Por outro lado, se não fosse tal afronta aos padres,
não teríamos hoje os pastéis de Belém, essa localidade que hoje faz parte de
Lisboa. Assim, as propriedades saíram sobretudo dos padres para uma classe nova
de barões e viscondes, muitos filhos da burguesia, lançados na política, com
algibeiras cheias e vícios modernos. O povo pobre, pobre continuou.
Até 1832, o Estado em Lisboa enviava representantes para as localidades,
nomeados para tomarem conta dos habitantes locais, o que era um decalque a
3
mata-borrão do que se fazia na França de Napoleão Bonaparte e que era alvo de
muitas críticas pelas localidades, que viam estranhos a intrometerem-se onde não
sabiam e onde nunca tinham sido chamados. Lembravam todos, um período antigo
onde o costume de cada terra tomava conta de si e onde os vizinhos discutiam e
harmonizavam vontades. Um costume quase lendário que Alexandre Herculano
retirou do escuro quando com o aparo escreveu, “Para que o sistema
representativo seja uma realidade, para que a eleição, na base essencial não seja
uma vil comédia, queremos que a vida política seja levada a todas as extremidades
do corpo da Nação. Queremos que a vida local seja uma realidade que o Governo
central possa representar o pensamento do país.”.
Se as medidas de 1832, aparentavam uma centralidade do poder em Lisboa, as
medidas de Passos Manuel, quatro anos depois, eram pela descentralização. E há,
desde então, tanta certeza na nossa classe política que, passados quase duzentos
anos, ainda a mesma questão não está resolvida. Mas, uma coisa era certa, quer
para uns como para outros, nenhuma reforma administrativa poderia ser levada a
cabo sem a extinção de quatrocentos e sessenta e seis concelhos, que representavam
mais de metade dos que agora existem. Para os centralistas o poder era mais difícil
de exercer se fossem muitas as vontades locais e para os que queriam governos
locais, não poderia haver um vereador por cada courela ou levada. A
descentralização existiu durante seis anos, até que em 1842, Costa Cabral voltou a
centralizar tudo. Tentaram o contrário, homens como Almeida Garrett,
Braamcamp, Mártens Ferrão e Dias Ferreira, mas só em 1878 é que consegui de
novo descentralizar o poder. As Câmaras Municipais puderam lançar impostos,
mas ao sabor dos favores pessoais e partidários, tudo caiu num profundo buraco
financeiro e em 1886 surgiu um novo Código centralizador para compor a
situação. Desde essa altura, que a questão continua a ser discutida, ao sabor da
eficácia do Estado ou do oportunismo de alguns.
Por essa altura e ainda hoje, os habitantes de Seia sabem aprender como se
joga a vida e jogar bem. Com mais monumentos, melhores condições geográficas e
pessoas influentes, Seia chamou a si a importância de parte da Serra. Luís de
Mendonça Arrais muito ajudou, de forma discreta e secreta. Como amava a sua
terra, nada quis em troca e Seia dele se esqueceu ou pouco lembra. Por decreto de
25 de Julho, foi criada a figura de Governador Civil.
4
Com a vitória dos liberais, as terras mais ligadas ao comércio e à burguesia,
ascenderam. Foram, aliás, esses os casos da Figueira da Foz e de Aveiro. Na
Figueira da Foz foi fundada, em 21 de Maio, a Associação Comercial e Industrial
da Figueira da Foz e em Aveiro, nasceu toda uma nova indústria bacalhoeira
concorrendo fortemente com a Póvoa de Varzim e Vila do Conde.
Na noite de 31 de Julho de 1835, uma caravana chefiada pelo Zé da Cabeça
chegou a Buarcos. Acampou no Fortim de Palheiros, abandonado por tropas leais
a D. Miguel. Era, então, Governador das Praças de Buarcos e da Figueira da Foz,
o Tenente-Coronel das extintas milícias da Figueira da Foz e oficial do
denominado Exército Libertador, Fortunato das Neves Mascarenhas e Mello que
se dedicava a caçar miguelistas e foragidos à justiça.
Existia uma queixa antiga do pai do Dr. Fernandes Thomaz contra um rapaz
com um escaravelho egípcio, de pedra sabão, pendurado num fio ao pescoço. João
Fernandes Thomaz contara a todos que a família do seu patrão, D. Miguel da
Veiga, tinha caído em ruína por um neto bastardo que os roubara e que um dia
quase o pegou. Como comerciante importante e pai de juiz, apresentou queixa. O
pormenor do escaravelho tornou-se famoso e importante, pois na noite de Sábado,
dia 1 de Agosto de 1835 um soldado viu o falado escaravelho no pescoço do Zé da
Cabeça e passou a notícia ao seu superior. Daí, a todos terem sido presos,
passaram poucas horas. Mas, quem me contou a história, não tinha certeza. Talvez
o motivo da prisão assentasse no facto da maioria dos mercadores serem de
Loriga, terra miguelista resistente; ou, ainda, alguma confusão de identidades,
num período bastante confuso e anárquico.
Cercados por soldados, os mercadores acordaram no Domingo, sem hipóteses
de se defenderem. Amarrados um a um. Perguntavam a razão, mas não obteriam
resposta. Entregaram as armas e com essas mesmas armas, viram os seus cães da
serra serem abatidos. Depois, a mercadoria foi apreendida e divida pelos militares.
Foram levados ao Governador para que este desse ordens. Depois, puxados e
arrastados, foram para a prisão da Portagem, em Coimbra.
Preventivamente, foram amontoados em celas diversas, onde outros presos
com penas ligeiras ou graves, aguentavam as horas, os dias, os meses e os anos,
pelo fim de um tormento. Dormiam num chão, onde ratos e urinas espalhavam
5
doenças e apodreciam corpos. Por vezes, morria um ou outro e ali ficava na cela,
até que o fedor se tornasse insuportável para os carcereiros, que tarde e
parcamente eram pagos pela Câmara Municipal. O tratamento dos presos ‘pobres’
era o mesmo desde a Idade Média. Embora a prisão fosse do século XVI, não
mudou o seu tratamento durante o período em que a prisão foi confiada aos
jesuítas. Depois da expulsão destes pelo Marquês de Pombal, nada melhorou;
manteve-se ou piorou.
Na prisão da Portagem, conhecida por ‘Inferno dos vivos’, a vida correu
sempre assim até 1856, altura em que foi transferida para a Casa Vermelha, que
era uma antiga dependência do velho mosteiro de Santa Cruz. A mudança não se
deveu a valores humanitários, mas a um acumular de queixas de muita gente que
viu os seus morrerem ali. Da boca dos presos, durante séculos, apenas um falou.
Tratou-se do escritor e nobre D. Francisco de Pina e Mello que, quase nos últimos
dias da sua vida, confessou ao juiz da Inconfidência, “Esta he aquella habitação
que se deve chamar Inferno temporal. O ruido continuo dos grilhões, a companhia
dos facinorosos, os gritos, os estrondos, a confusão, e os malignos vapores das
immundicias, as repetidas calamidades, que sofrem todos os sentidos, ¿quem póde
negar que o representão como huma horrivel semelhança do abysmo? Até o dia
entra escassamente pelas frestas, não para luzir, mas para se conhecer melhor a
escuridade. [...] Aqui se aggravão precipitadamente as doenças, e todas as miserias
humanas, em que não ha soccorro, nem Médico, nem Medicina: aqui acabão os
moribundos, sem se lhes dar n’aquelle último transe sequer uma guia, que os
encaminhe para a eternidade: aqui se vêm todos cobertos dos insectos mais
asquerosos; aqui se vive, ou se morre em uma região tão desgraçada como
desconhecida. Este tremendo sepulchro dos vivos ainda se faz mais intoleravel com
a soberba inhumana dos Carcereiros, que pelos frequentes objectos das
calamidades costumão os seus olhos a todo o genero de impiedade. A consciencia se
perturba, as paixões se envenenam, os pensamentos se irritão, os pezares se
estimulão, as impaciencias se amotinam, e não ha affecto, que não conspire com o
desfalecimento, ou com a desesperação. Esta finalmente he a habitação do susto, do
tormento, da amargura, aonde nunca se acha alivio nem confôrto, nem consolação,
nem descanço, nem suavidade” (…) “Enfim, basta um dia de prisão para os presos
6
ficarem quasi podres, cheios de bolor, e de bichos, e cercados de mizeria
indiziveis”.
Depois da prisão, nada se soube da caravana de mercadores durante quase um
mês, causando enorme aflição na Aurora e nas outras mulheres de mercadores
desaparecidos. Sebastião, o ‘Major’ e outros mais, procuraram-nos por tudo o que
era sítio e acouto, até que um dia numa taberna, em Tábua, um homem relatou a
outros que tinha visto vários cães da serra a serem mortos e mercadores a serem
presos. O Manuel da Alfredina, que estava de passagem, ouviu e depressa espalhou
por gente que regressava aos Montes Hermínios.
A notícia caiu mal quando foi dada no final das missas pelos padres de Loriga
e de Alvoco da Serra. Entre uns que diziam que alguma coisa os ‘cartagenos’
haviam feitos, muitos entristeceram e agonizaram com a infeliz novidade. À noite,
à volta das braseiras, homens e mulheres foram falando do assunto e se uns diziam
que algo tinha de ser feito, mas o medo tolhia muitos. Os padres não se queriam
meter com liberais e os outros mercadores temiam sorte igual, mas Sebastião e
meia dúzia foram a Coimbra falar com um advogado. O causídico pouco ou nada
fez, empatou e empatou, enquanto levou o couro e o cabelo.
O tempo passou e na prisão, alguns foram morrendo de doença e de tristeza.
Os homens viraram-se para o divino e muitos rosários foram rezados sem terço,
nas celas. Os carcereiros ganharam-lhes asco, pois os mercadores rezavam
alternados e isso parecia que lhes dava força e energia. Dum lado, uns começavam,
“Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum; benedicta tu in mulieribus, et
benedictus frutus ventris tui, Jesus.” E depois de um segundo de silêncio, noutras
celas, outros mercadores ripostavam, “Sancta María, Mater Dei, ora pro
nobis peccatoribus nunc et in hora mortis nostrae. Amen”. Juntando-se todos,
numa só voz, aquando do “Pater noster, qui es in cælis: sanctificétur nomen tuum;
advéniat regnum tuum; fiat volúntas tua sicut in cælo, et in terra. Panem nostrum
cotidiánum da nobis hódie; et dimítte nobis debita nostra, sicut et nos dimíttimus
debitóribus nostris; et ne nos indúcas in tentatiónem; sed líbera nos a malo.
Amen.” Rezavam à Nossa Senhora da Guia e à Nossa Senhora do Socorro, que
foram sempre visitadas pelos mercadores, quando estes chegavam a Vila do
Conde.
7
As mulheres dos mercadores, nas terras, uniram-se e ajudaram-se o melhor
que souberam, pois tinham as suas bocas para alimentar e filhos para criar. Não
era raro a mulher que emprestava o peito para amamentar o filho da vizinha sem
leite. Muitas dificuldades passaram, pois o principal sustento de várias casas, eram
os maridos presos em Coimbra. Para lá disso e mesmo sabendo que eram mulheres
de homens honrados, havia a vergonha de estarem presos, sem saberem por que
tinham sido.
Um dia, Eduardo que já assinava como ‘Augusto’, disse a Sebastião que sabia
uma forma de tirar os homens da prisão. Que era arriscado para ele, mas que não
era impossível. Precisava de dois homens que guardassem bem os segredos. Assim,
chamaram mais dois homens, o Joaquim ‘Esterlicado’ de Loriga e o Jaime ‘do Pão
Miado’ das Teixeiras. Depois, foram para Lisboa, armados e sem terem certeza ao
que iriam.
Na Capital, Eduardo bateu na porta principal do Mosteiro de São Bento e
perguntou pelo bispo de Coimbra e Conde de Arganil, D. Francisco Saraiva. O
monge ao ouvir o nome, tremeu. Olhou para um lado e para o outro do mosteiro e
disse desconfiado:
- Que quereis e quem sois?
- Sou um amigo do bispo. Irmão de outras batalhas.
- E o que quereis da Excelência Reverendíssima?
- Preciso da sua ajuda.
O monge mirou Eduardo da ponta das botas ao último cabelo branco.
Levantou a sobrancelha direita enquanto descia o lábio superior e fechou a porta.
Eduardo, de seguida, bateu com mais força e a porta abriu-se. Saíram monges
armados que obrigaram os três homens a entrar. Ladearam-nos pelo longo
corredor até que um dos monges espalmou a mão numa porta e disse, “Estão aqui
os homens”. Do outro lado da porta, ouviu-se, “Deixai entrar um…”
Quando a porta abriu, Eduardo avistou um velho padre deitado numa cama e
numa divisão tão escura que dificilmente conseguia ver o rosto de quem lhe falava.
8
- Que quereis ao bispo de Coimbra?
- Preciso de lhe falar. Preciso da ajuda dele.
- Eu sou Francisco Saraiva.
Eduardo deu uns passos e chegado à frente, graças à luz da vela que pouco
alumiava, abanou a cabeça.
- Perdoai, mas não sois D. Francisco Saraiva.
- Conhecei-lo?
- Sim. Estive várias vezes com ele. É um irmão meu. Nada tendes a temer. Sou
procurado pelo Governo, mas servi com toda a lealdade o Duque de Bragança e
estive ao seu lado até partir. Nada tendes que temer. Sou fiel à minha palavra, mas
só o bispo de Coimbra me pode socorrer. Preciso de salvar a vida de inocentes.
- Todos somos inocentes… e pecadores. Que garantia posso ter da tua
verdade?
- Nenhuma…
Eduardo baixou a cabeça e preparava-se para abandonar, mas o monge
soltou…
- Esperai. Conheceis Lisboa?
- Muito pouco. Nasci no Brasil e só conheço bem até Coimbra.
- D. Francisco é presentemente o guarda-mor da Torre do Tombo. O arquivo
geral do reino está aqui, mas a Excelência Reverendíssima não está. Portanto, esta
noite os senhores dormem aqui e amanhã, antes das primeiras orações, um monge
sairá convosco e levar-vos-á ao bispo.
No dia seguinte, Eduardo e os três homens partiram em direcção a Sintra.