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A promessa-xxxii

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A PROMESSA

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XXXII – Escrever certo por linhas tortas

Faz mais quem quer do que quem pode, porque quem pode nem sempre quer e

quem quer faz por fazer o que não pode e assim consegue fazer.

Num Domingo, de Fevereiro de 1838, Eduardo, o Joaquim ‘Esterlicado’ e o

Jaime ‘do Pão Miado’ chegaram a Colares na companhia de um monge da ordem

de São Bento. Depois de jantarem, continuaram a cavalgada até a Quinta do

Vinagre, onde dormiram.

No dia seguinte, depois de alguma comida, Eduardo foi levado até a um jardim

quase quadrado, cortado com a forma de uma cruz, onde a ribeira dá uma curva.

Nele, um homem agachado arrancava, com luvas, algumas ervas daninhas que

teimavam em crescer.

Eduardo aproximou-se do homem. Tirou o chapéu e disse…

- Bom dia, Excelência Reverendíssima!

- Bom dia…

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Depois, o homem olhou para a mão esquerda e abriu a luva. Olhou de novo

para Eduardo e indagou.

- Conheces o ‘Chenopodium album’ e ‘Senecio vulgaris’? Ali, ao canto, encontras

também ‘Poa annua’, que vulgarmente chamamos de ‘Cabelo de Cão’. Tudo ervas

daninhas. Hoje em dia, vivemos rodeados de ervas daninhas. E tu, o que és?

- Não sou uma erva daninha, Excelência Reverendíssima. Sou Eduardo ‘Bandarra’

que bem conheces.

O bispo inquietou-se e afligiu-se com a aparência do visitante. Agarrou-lhe o braço

e pronunciou um baixinho.

- Vem comigo. Aqui todos os cantos têm ouvidos.

Atravessou assim a quinta, passando por corredores e um jardim com sebes

trabalhadas até que entrou numa divisão pequena onde um contador e uma cama

de ferro eram os únicos móveis.

- Senta-te aqui na cama comigo e conta. Que é feito de ti, rapaz? Estás tão velho e

tão diferente.

- Desde que o Duque de Bragança morreu, ando fugido. Querem-me matar sem

que eu tenha feito mal a ninguém.

- Pura inveja. Lembra-te que foram essas as palavras que um dia te segredei ao

ouvido, no Porto. E a tua filha?

- Não sei nada dela, desde o cerco do Porto.

- Que Deus a proteja… Podes ficar escondido aqui pelo tempo que quiseres.

- Obrigado, Excelência. Muito obrigado, mas estou aqui por outro assunto.

- Diz então o que tanto te aflige.

- Uma caravana de mercadores dos Montes Hermínios foi presa na Figueira da Foz

e eu preciso de os libertar. São gente honesta e trabalhadora que nada querem com

a política.

- Quando foi isso?

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- Há dois anos, em Agosto.

- A esta hora, já foram mortos ou apodrecem na prisão da Portagem, em Coimbra.

Outro destino não lhes adivinho.

- Mas eu preciso de saber. E de saber como os soltar, se estiverem presos.

- Filho, vivemos num mundo onde as leis ficam no papel e a força é que manda. Tu

pouca ou nenhuma força tens. És um fugitivo e se fores apanhado, terás pior sorte

do que esses mercadores. Teres chegado vivo aqui já foi um milagre. O melhor é

esquecê-los.

- Um dia, Excelência, disseste-me que Deus ajuda quem se ajuda. Vim de longe

pedir ajuda e fechas-me a porta.

- Não disse isso. Também eu corro perigo de vida. Sou um dos pais da revolução de

1820 e há por aí muito sacana a querer matar os pais. Esperas aqui dois dias com

os teus amigos; depois, eu próprio irei contigo procurar os mercadores. Há formas

estranhas e ruins de perseguir as pessoas. Eu, por exemplo, nasci canhoto. Se um

bondoso padre não me tivesse obrigado a escrever com a mão direita, hoje não

passaria de restos de cinza da Santa Inquisição. Tudo o que é diferente, é pecado

para todos.

Entretanto, já em Setembro de 1837, um jesuíta entrara na prisão da

Portagem para descobrir o paradeiro de um grupo de mercadores. Depois de

procurar bem e de comprar alguns guardas prisionais, encontrou-os. Procurava

sobretudo um mercador em especial, com um escaravelho egípcio enfiado num fio

ao peito. Os carcereiros trouxeram-lhe três mercadores da Serra da Estrela.

Estavam esqueléticos, doentes e com barbas compridas, mas houve um que

sobressaiu. Era mais moreno e baixo do que os outros. Para além do escaravelho

tinha uma queimadura no lado esquerdo do peito em forma de ‘V’.

Perguntou o padre da Companhia de Jesus, de olhos bem abertos:

- Que marca é essa?

Mas o pensamento do preso parecia longe dali e nem se apercebeu da pergunta,

pelo que o jesuíta insistiu de voz mais composta, alta e autoritária.

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- Que marca é essa?

O preso respondeu:

- É sangue Veiga… É e será sempre sangue Veiga.

O padre embrulhou-se na capa preta e desapareceu com a mesma velocidade

com que desapareceu.

Três dias depois, quatro jesuítas encabeçados por um muito mais velho,

entraram no gabinete do então Governador das Praças de Buarcos e da Figueira

da Foz, o Tenente-Coronel das extintas milícias da Figueira da Foz e oficial do

denominado Exército Libertador, Fortunato das Neves Mascarenhas e Mello.

Queriam falar sobre a pena, o crime dos mercadores e como sanar tudo de forma

rápida e despercebida.

Falaram e argumentaram, mas a conversa não deu em nada. Saíram

convencidos que tinham gasto o precioso tempo, mas o mais velho dos padres

ainda falou em comprar alguns guardas prisionais até que um outro jesuíta lhe

falou dos perigos de tal acção. Assim, o velho jesuíta, embora não tenha

abandonado a ideia, recolheu-se em Santo Tirso, para com tempo e sem

precipitação arranjar uma solução conveniente.

Nos finais de Fevereiro de 1838, Eduardo e os outros, chegados a Coimbra,

pernoitaram na antiga Quinta dos Crúzios, onde no século XX surgiu o bairro de

Santa Cruz, contíguo à avenida de Sá da Bandeira e em torno da praça da

República. Na manhã do dia de Santa Margarida de Cortona, D. Francisco

Saraiva, bispo de Coimbra e conde de Arganil, entrou na prisão da Portagem, mas

tal não intimidou o governador, pois todos os que são fracos encontram no

afrontamento dos fortes motivos para brilhar.

Quando o bispo entrou no gabinete do governador, este levantou-se

bruscamente por surpresa e por educação. Fortunato das Neves Mascarenhas e

Mello, na vida, só tinha visto o bispo duas vezes e guardava dele a imagem de

tenacidade e força de caracter. A conversa iniciou-se rapidamente.

- Vossa Excelência Reverendíssima, aqui? Qual o prazer da Vossa visita?

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- Excelentíssimo Governador, prazer em revê-lo tenho eu a vós, nunca a esta ou a

outra prisão.

- Mas contai, pois gosto igual ou maior tem a minha pessoa em rever Vossa

Excelência Reverendíssima.

- A questão que me traz junto de Vossa Excelência é simples.

- Dizei, por favor…

- Vários homens que apodrecem nestas masmorras são inocentes.

- Perdoai-me, mas nunca vi ninguém por aqui que não o fosse.

- Acredito. Mas estes, dou-Vos a minha palavra que o são.

- E quem sou eu para duvidar da Vossa palavra, mas continuai…

- Os homens de que Vos dou conta, são gente humilde e trabalhadora. Pais e filhos

de gente pobre, que por qualquer azar da vida aqui entraram.

- Miguelistas?

- Talvez, mas não se metem na política, vivem do que fazem e vendem.

- Quem são?

- Mercadores de lã dos Montes Hermínios. Gente que só vive para sobreviver e dar

melhor vida aos seus. Não se me na política.

- Já sei quem são. No ano passado foram procurados por um grupo de jesuítas.

O bispo não escondeu o espanto e foi notado

- Então Vossa Excelência Reverendíssima não sabia que os homens que procura,

são procurados por outros… Mas sobre esse assunto pouco lhe posso dizer. Os

homens estão preventivamente aqui. Nem existem no papel. Se morrerem por cá,

ninguém dará conta.

- Senhor Governador, vou ser claro, o que é preciso para os retirar da prisão?

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- Aqui, com o devido respeito por Vossa Excelência Reverendíssima, Deus tem

pouco poder.

- Mas, eu venho aqui a título individual e não em nome de Deus.

- Então, perdoai que Vos diga… então ainda pior.

- Mas eu sou mais do represento.

- Que quereis dizer com isso, Excelência Reverendíssima?

O bispo aproximou-se da secretária do Governador. Tirou um pedaço de

veludo atado com fitas que desenrolou e mostrou um anel sinete de ouro branco

com um esquadro e um compasso no centro.

O Governador ficou gelado e apenas teve tempo para ouvir D. Francisco

Saraiva dizer, “Podemos agora falar claramente?”

A conversa durou pouco e sem outra mais perguntas, o Zé da Cabeça e os

outros ‘cartagenos’ foram soltos e levados de carroça até uma casa de gente amiga

e conhecida do bispo, em Penacova. Lá ficaram os mercadores, até que as cores

apareceram e as carnes se mostraram seguras e capazes.

Muito se passou entre 1835 e 1838. A rainha casou de August de

Leuchtenberg, enviuvou e voltou a casar com Fernando II de Saxe-Coburgo-

Gotha. Houve a venda em hasta pública de bens nacionais e as reformas na

administração geral e municipal. O continente foi dividido em dezassete distritos

administrativos e as ilhas adjacentes em três. Os distritos passaram a ser

governados por um magistrado nomeado pela rainha. Depois foram divididos em

concelhos, com um administrador escolhido pelo Governo de uma lista

apresentada pela Câmara. O concelho foi dividido em paróquias e cada uma era

governada por um comissário. A reforma começou a 25 de Abril, mas só ficou

esclarecida pelo Decreto de 18 de Julho de 1835.

Em Setembro de 1835, em Portugal, uma lei obrigou à construção de

cemitérios e se o cemitério já existia em muitos locais, muita a gente que só

aceitava ser enterrada na igreja, era o caso das famílias mais ricas e dos padres.

Por exemplo, o padre Brito foi sepultado por baixo dos degraus que hoje levam ao

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altar na igreja de Santa Maria Maior de Loriga. No Brasil começou a Guerra dos

Farrapos, que duraria dez penosos anos, dando origem à República Rio-

Grandense. Em terras lusas, houve uma frustrada tentativa de criar um Conselho

Superior de Instrução Pública e o aparecimento de um ministro para a instrução

pública, mas sem ministério. Nasceu o Banco Comercial do Porto e a Sociedade

Farmacêutica Lusitana. Aliás, é desse mês a publicação do Código Farmacêutico

Lusitano que substituiu a farmacopeia que regia a mesma ciência desde 1772.

Em 1836, a rainha voltou a casar. Foram convocadas as Cortes

Extraordinárias. Em Setembro deu-se uma nova revolução e em Novembro

ocorreu a ‘Belenzada’. Em Novembro, recomeçaram as guerrilhas em força, com a

notoriedade de José Joaquim de Sousa Reis, o ‘Remexido’ que seria fuzilado em

1838. Foi também em 1836 que Sá da Bandeira começou a reorganizar o exército,

obrigou ao uso de uniforme, criou a escola do exército e reformou o Colégio

Militar, tendo divido o país em dez divisões militares. Mas o povo nunca é sereno e

em Janeiro de 1837 tentaram matar D. Fernando. Houve a conjura miguelista das

Marmotas. Seguiram-se a Revolta dos Marechais e a Revolta do Arsenal. Pelo

meio, nasceu D. Pedro V.

Um mês depois de ter passado o pesadelo da prisão, sem que os homens

tivessem contado o que sofreram por lá, quando numa ida a Tábua, os ‘cartagenos’

viram-se novamente cercados por homens. Mas não eram quaisquer homens, eram

padres jesuítas. Tudo isso é outra história.

Quanto a D. Francisco Saraiva, muito haveria que dizer, mas entre esse

muito, em 1840 tornou-se Cardeal Patriarca de Lisboa.