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1 A REPRESENTAÇÃO DO JORNALISTA NA INDÚSTRIA CULTURAL ANÁLISE DO FILME A VIDA DE DAVID GALE 1 Angela Maria Farah 2 UNIUV Comunicação Social (Jornalismo) RESUMO O presente artigo analisa a representação do jornalista e do jornalismo no filme A Vida de David Gale (The Life of David Gale). Para tal análise, este artigo entende a produção cinematográfica como parte da Indústria Cultural, conceito formulado por Adorno e Horkheimer, filósofos da primeira geração da Escola de Frankfurt. Por meio da Teoria do Espelho e da Teoria do Newsmaking, seguindo as definições e os estudos de Traquina, este artigo relaciona a atuação da personagem jornalista no filme e as semelhanças com o comportamento profissional estudado nessas teorias. Compreendendo tanto o cinema quanto o jornalismo como produtos da Indústria Cultural, esta análise mostra que para conservar a hegemonia, a Indústria Cultural faz a sua própria crítica por meio de suas produções. Ao contrário do que pensavam alguns filósofos da Escola de Frankfurt, acredita-se que a análise de algumas produções cinematográficas pode proporcionar a reflexão sobre as transformações nas dinâmicas sociais, assim como podem trazer mais informação e conhecimento para a sociedade, fazendo-a refletir sobre assuntos importantes. Palavras-chave: Jornalismo. Indústria Cultural. Teoria do Newsmaking. Representação do jornalista no cinema. A Vida de David Gale. 1 INTRODUÇÃO O presente artigo analisa a representação do jornalista e do jornalismo no filme A Vida de David Gale (The Life of David Gale), de Alan Parker, em algumas de suas cenas. Este artigo propõe o conceito de Indústria Cultural dos filósofos da Escola de Frankfurt, entendendo a produção cinematográfica como parte dessa indústria. Por meio da Teoria do Espelho e da Teoria do Newsmaking (TRAQUINA, 2005a), este trabalho relaciona a atuação da personagem jornalista no filme e as semelhanças com o comportamento profissional estudado nessas teorias. Entende-se que tanto o cinema quanto o jornalismo são produtos da Indústria Cultural, pois, como definem Adorno e Horkheimer, “(...) A civilização atual a tudo confere um ar de semelhança. Filmes, rádios e semanários constituem um sistema. Cada setor se harmoniza em si e todos entre si. (...)”. (HORKHEIMER; ADORNO, 2000, p. 169). A Vida de David Gale é um filme com objetivo comercial, produzido para vender muito, com cenas fortes, muitos recursos de edição, ritmo acelerado e boa música. Todos esses elementos proporcionam um momento de bom entretenimento. 1 Trabalho desenvolvido na disciplina Tendências Teóricas da Comunicação no Mestrado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) no 1º semestre de 2006. 2 Coordenadora e professora do curso de Jornalismo da UNIUV.

A representação do jornalista na indústria cultural enaproc 2006

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A REPRESENTAÇÃO DO JORNALISTA NA INDÚSTRIA CULTURAL

ANÁLISE DO FILME A VIDA DE DAVID GALE1

Angela Maria Farah2

UNIUV – Comunicação Social (Jornalismo)

RESUMO O presente artigo analisa a representação do jornalista e do jornalismo no filme A Vida de David Gale (The Life of David Gale). Para tal análise, este artigo entende a produção cinematográfica como parte da Indústria Cultural, conceito formulado por Adorno e Horkheimer, filósofos da primeira geração da Escola de Frankfurt. Por meio da Teoria do Espelho e da Teoria do Newsmaking, seguindo as definições e os estudos de Traquina, este artigo relaciona a atuação da personagem jornalista no filme e as semelhanças com o comportamento profissional estudado nessas teorias. Compreendendo tanto o cinema quanto o jornalismo como produtos da Indústria Cultural, esta análise mostra que para conservar a hegemonia, a Indústria Cultural faz a sua própria crítica por meio de suas produções. Ao contrário do que pensavam alguns filósofos da Escola de Frankfurt, acredita-se que a análise de algumas produções cinematográficas pode proporcionar a reflexão sobre as transformações nas dinâmicas sociais, assim como podem trazer mais informação e conhecimento para a sociedade, fazendo-a refletir sobre assuntos importantes. Palavras-chave: Jornalismo. Indústria Cultural. Teoria do Newsmaking. Representação do jornalista no cinema. A Vida de David Gale.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa a representação do jornalista e do jornalismo no

filme A Vida de David Gale (The Life of David Gale), de Alan Parker, em algumas de

suas cenas. Este artigo propõe o conceito de Indústria Cultural dos filósofos da

Escola de Frankfurt, entendendo a produção cinematográfica como parte dessa

indústria. Por meio da Teoria do Espelho e da Teoria do Newsmaking (TRAQUINA,

2005a), este trabalho relaciona a atuação da personagem jornalista no filme e as

semelhanças com o comportamento profissional estudado nessas teorias.

Entende-se que tanto o cinema quanto o jornalismo são produtos da

Indústria Cultural, pois, como definem Adorno e Horkheimer, “(...) A civilização atual

a tudo confere um ar de semelhança. Filmes, rádios e semanários constituem um

sistema. Cada setor se harmoniza em si e todos entre si. (...)”. (HORKHEIMER;

ADORNO, 2000, p. 169).

A Vida de David Gale é um filme com objetivo comercial, produzido para

vender muito, com cenas fortes, muitos recursos de edição, ritmo acelerado e boa

música. Todos esses elementos proporcionam um momento de bom entretenimento.

1 Trabalho desenvolvido na disciplina Tendências Teóricas da Comunicação no Mestrado em Comunicação e

Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) no 1º semestre de 2006. 2 Coordenadora e professora do curso de Jornalismo da UNIUV.

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Não é um filme-arte, nem tem essa pretensão, mas traz todos os ingredientes

necessários para um bom espetáculo hollywoodiano, como idealismo, amor, ódio,

sexo, fim de uma vida de sucesso, prisão, condenação, vida, morte e uma boa

montagem, abusando dos recursos de edição e da trilha sonora. É um drama com

um pouco de suspense, que „segura‟ o espectador até o fim do filme. Apesar disso, o

filme não teve uma boa bilheteria nos EUA.

2 A TEORIA CRÍTICA E A INDÚSTRIA CULTURAL

A industrialização, no século XVIII, e o desenvolvimento de uma economia

de mercado, baseada no consumo de bens, no século XIX, são responsáveis pelas

alterações no modo de produção e na forma do trabalho humano. Essas alterações

implantam na indústria e na cultura os mesmos princípios vigentes da produção

econômica: o uso crescente da máquina; a subordinação do trabalho do homem ao

ritmo da máquina; a exploração do trabalhador e a divisão social do trabalho.

É a partir desse novo cenário que os filósofos da Escola de Frankfurt, que

são influenciados pela teoria marxista, elaboram a Teoria Crítica que “denuncia a

contradição entre indivíduo e sociedade como um produto histórico da divisão de

classes e que se opõe às doutrinas que descrevem essa condição como um dado

natural”. (WOLF, 1995, p. 82). Os filósofos da Escola de Frankfurt - de Horkheimer a

Adorno, de Marcuse a Habermas - discutem os principais temas provenientes da

sociedade industrial emergente, como o autoritarismo, a indústria cultural e os

conflitos sociais nas sociedades industrializadas. (WOLF, 1995).

O cinema, hoje, é uma indústria que produz em série, com o objetivo de

lucrar, de obter grandes bilheterias por meio de grandes produções. Além disso, os

filmes vendem também outros produtos associados à obra, como a música, a moda,

a idéia e até seus atores. Benjamin (2000) considera que o cinema exige o uso de

toda personalidade do homem. Segundo o filósofo, as técnicas de reprodução das

obras de arte atingem a aura da obra, porque liquidam o elemento tradicional da

herança cultural, dando-lhe atualidade e tirando sua autenticidade.

Por outro lado, Benjamim acredita que esse processo pode ter um pólo

positivo, pois pode causar um outro relacionamento das massas com a arte,

beneficiando-as com conhecimento que pode transformar o mecanismo de

renovação das estruturas sociais. Nesse sentido, acredita-se que algumas

produções cinematográficas podem, sim, proporcionar a reflexão sobre as

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transformações nas dinâmicas sociais, assim como podem trazer mais informação e

conhecimento para a sociedade, fazendo-a refletir sobre assuntos importantes.

3 O JORNALISMO REPRESENTADO NO FILME A VIDA DE DAVID GALE

Cinema e jornalismo há muito caminham juntos. Ao longo dos 110 anos de

história do cinema, muitas histórias sobre jornalismo e jornalistas já foram contadas

pela sétima arte. Em alguns filmes, o jornalista aparece como herói, o profissional

que resolve o enigma da história. Em outros, o jornalista é o vilão, que age mal e o

que interessa é apenas a exclusividade da notícia. A divisão entre o bem e o mal é

comumente usada pela Indústria Cultural.

A produção cinematográfica analisada é de 2003 e por isso analisar como o

jornalista é representado no filme A Vida de David Gale é analisar o papel do

jornalismo e do jornalista no mundo contemporâneo.

3.1 A SINOPSE

A sinopse do filme, apresentada na contracapa do DVD, conta que “David

Gale (Kevin Spacey) é um professor que trabalha na Universidade de Austin e

também um ativista contra a pena de morte. Até que, após o assassinato de uma

colega de trabalho, Constance Harraway (Laura Linney), Gale é injustamente

acusado e condenado à pena contra a qual ele tanto combate. O caso chama a

atenção de Elizabeth “Bitsy” Bloom (Kate Winslet), uma jornalista que decide

investigar a vida de Gale e também o sistema judicial que o condenou à pena de

morte”.

O principal problema nessa sinopse é que a jornalista Bitsy não decide

investigar a vida de Gale e o sistema judicial que o condenou. A empresa

jornalística para a qual trabalha, a News Magazine Inc., pagou US$ 500 mil para

uma entrevista exclusiva com Gale. É claro que Bitsy como jornalista tinha interesse

em saber mais sobre o caso, assim como em entrevistar Gale, ainda mais com

exclusividade. Porém, essa entrevista vai até ela, pois o advogado de Gale entra em

contato com a News Magazine Inc. e negocia a entrevista com o chefe de Bitsy. O

acordo era que se a execução de Gale não fosse adiada, Bitsy poderia conversar

com Gale, duas horas por dia, na terça, na quarta e na quinta. Na sexta, Gale seria

executado. A exigência do advogado é que Gale só falaria com Bitsy.

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O fato de a sinopse do filme afirmar que a jornalista interessa-se em

investigar a vida de Gale e o sistema judicial supõe uma iniciativa da jornalista que

não acontece no filme porque ela não tem o direito de escolha. Ela foi escolhida, vai

pagar bem pela exclusividade da notícia e deve cumprir a pauta. A suposta iniciativa

da jornalista no filme também implica ação, palavra-chave em produções

cinematográficas hollywoodianas.

Dessa forma, o trecho analisado da sinopse indica que o papel da jornalista

no filme para seus produtores é apenas a de peça-chave no roteiro para resolver o

mistério. O filme não tem a ação de policiais detetives, mas tem a detetive-jornalista.

Um estereótipo muito comum nos filmes que tratam sobre jornalismo. Isso já é senso

comum e muitas pessoas acham que faz parte da profissão de jornalista solucionar

mistérios assim como os policiais.

3.1.1 A Teoria do Espelho e a Teoria do Newsmaking

Analisando ainda como o acontecimento da execução de Gale transformou-

se em pauta e, conseqüentemente, em notícia, as teorias do espelho e do

newsmaking podem contribuir para o entendimento de como as empresas

jornalísticas organizam seu trabalho.

O jornalismo de informação surgiu na metade do século XIX e separou os

fatos e as opiniões. No século XX, nos EUA, surgiu o conceito de objetividade no

jornalismo, que propõe a imparcialidade do jornalista ao fazer suas reportagens.

Essas duas mudanças trouxeram para o jornalismo a objetividade da ciência,

tentando afastar o jornalismo da atividade de relações públicas e da propaganda.

É nesse contexto que surge a Teoria do Espelho, que explica que as notícias

são como são porque retratam a realidade. Nesse conceito, o jornalista é uma

pessoa sem interesses específicos e que, portanto, nada pode desviá-lo de informar,

procurar a verdade, contar o que aconteceu, relatar o fato. A realidade determina a

notícia que o jornalista irá contar para seu público. Todas essas características

determinam a cultura jornalística, o ethos jornalístico ainda hoje.

Até hoje, a comunidade jornalística defende a teoria do espelho com base na crença de que as notícias refletem a realidade. Isso acontece porque ela dá legitimidade e credibilidade aos jornalistas, tratando-os como imparciais, limitados por procedimentos profissionais e dotados de um saber de narração baseado em método científico que garante o relato objetivo dos fatos. (...). (PENA, 2005, p. 126).

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A maioria dos estudiosos do jornalismo considera a Teoria do Espelho

bastante limitada, porém a maioria dos jornalistas ainda acredita nela. Em oposição

à Teoria do Espelho surge, na década de 1970, a Teoria do Newsmaking como um

novo paradigma sobre o conceito de notícia: ela passa a ser vista como uma

construção. Esse novo paradigma se opõe ao conceito de notícia como „distorção‟

da realidade, vista assim por alguns teóricos da ação política, e se opõe também ao

ethos jornalístico predominante, que acredita na notícia como espelho da realidade.

Os estudiosos que defendem o paradigma da notícia como construção

afirmam que a notícia continua tendo como referência a realidade, contudo também

a constrói e por isso a notícia não pode ser o espelho da realidade. Há três

argumentos principais que definem a visão construcionista da notícia, que dá base

aos estudos da Teoria do Newsmaking: 1) É impossível determinar o que é

realidade, pois as notícias ajudam a construir a realidade; 2) A linguagem neutra ou

objetiva também é impossível e por isso não pode repassar para o público o

significado „real‟ dos acontecimentos; 3) A estrutura da representação do texto

noticioso, desde a investigação até o fechamento da notícia, segue aspectos

padronizados da organização do trabalho jornalístico, as limitações financeiras, e

coordenação editorial para responder à imprevisibilidade dos fatos. (TRAQUINA,

2005a).

É importante ressaltar que entender a notícia como construção não implica

que as notícias sejam ficção, apenas “(...) alerta-nos para o fato de a notícia, como

todos os documentos públicos, ser uma realidade construída possuidora da sua

própria realidade interna‟”. (GAYE TUCHMAN, 1976/1993, p. 262, citada por

TRAQUINA, 2005a, p. 169).

É interessante observar como a jornalista Bitsy demonstra ao longo do filme

os comportamentos previstos nas teorias do espelho e do newsmaking. Ao receber a

pauta, Bitsy age como uma jornalista objetiva, imparcial, que vai realizar a entrevista

para contar ao público a verdade sobre a história de Gale. Pode-se perceber que

Bitsy age de acordo com o ethos jornalístico tradicional. A jornalista tem o papel no

filme de revelar a verdade, isto é, ela retratará a realidade.

A segunda cena do filme está relacionada à Teoria do Newsmaking, que tem

como um dos aspectos de estudo a rotina produtiva do jornalismo. Nessa cena, o

espectador é levado para as ruas de uma cidade grande, movimentada, com muitos

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carros nas ruas. Depois, a cena é de um andar inteiro de um edifício. Entra-se no

universo dos grandes conglomerados da mídia, a News Magazine Inc., que está,

como sempre, uma empresa de comunicação, em ritmo alucinante, correndo “contra

o tempo”.

A rapidez, o movimento, a agitação são marcas do trabalho jornalístico para

o senso comum e por isso são lembrados no filme. O tempo é sempre algo a ser

vencido pelo jornalista. O trabalho jornalístico é uma atividade que exige que seus

profissionais observem, selecionem e transformem os acontecimentos em notícias,

sempre orientados para a hora do fechamento (deadline) da edição do jornal, seja

em TV, impresso, rádio ou Internet. Por isso, a Teoria do Newsmaking afirma que os

jornalistas vivem sob a tirania do fator tempo.

É de conhecimento comum que os acontecimentos podem surgir em

qualquer lugar e a qualquer hora. Para tentar deter essa imprevisibilidade, as

empresas jornalísticas necessitam impor ordem ao tempo e ao espaço. Dessa

forma, os acontecimentos são mais facilmente observados, porque estão

organizados no tempo e no espaço. O primeiro parágrafo de uma notícia, o lead, que

deve responder a seis perguntas básicas: quem, o quê, quando, onde, como e por

quê, também facilita para o profissional o término de seu trabalho no tempo e no

espaço delimitados, porém, ao mesmo tempo, limita a possibilidade de a notícia ser

o espelho do real porque obriga a seleção do que é o mais importante no

acontecimento noticiado.

Segundo a socióloga Gaye Tuchman (1973/1978, citada por Traquina,

2005a), a extensão da rede noticiosa para capturar os acontecimentos é uma das

soluções das empresas jornalísticas para impor ordem ao espaço. São três as

estratégias utilizadas pelas organizações jornalísticas: a alocação de repórteres nas

regiões geográficas consideradas mais importantes para a cobertura jornalística; a

cobertura setorial, para a qual a empresa jornalística dispõe de repórteres que

cobrem determinada empresa, clube de futebol, prefeituras, governos, etc; e a

divisão dos meios de comunicação em editorias ou seções. A seleção de

informações e regiões aponta para a construção da realidade pelos meios de

comunicação, opondo-se à teoria do espelho da realidade.

Nessa mesma cena em que o filme demonstra o ritmo sempre rápido do

jornalismo, Bitsy recebe a pauta e demonstra não saber muito sobre o caso. O chefe

de Bitsy indica o estagiário Zack Stemmons (Gabriel Mann) para fazer a entrevista

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com ela. Claro que Bitsy fica indignada (“Eu trabalho sozinha”.), mas conforma-se,

porque não tem alternativa e não quer perder o “furo” jornalístico. Zack ainda não

pertence ao “mundo jornalístico” e tem sua primeira oportunidade, por isso está

animado. Zack já está na lanchonete lendo um livro de Gale, quando Bitsy chega.

Parte do diálogo entre os dois vale ser transcrito para ser analisado:

Zack: Deveríamos ir a Austin, dar uma olhada no local do crime. Talvez haja ótimas informações para nossa história. Bitsy: A história não é nossa. Não é nem história. É entrevista. É importante que se lembre que a entrevista é minha. Zack: (surpreso): OK. O que faço durante cinco horas? Bitsy: Dê uma volta por aí. Procure um restaurante decente. Zack: Sabe Bitsy, sua reputação como jornalista temperamental não lhe faz jus. Bitsy: Minha reputação nos trouxe aqui. Sigo as regras do jogo, mesmo que os colegas não gostem. Zack: Ambição? Bitsy: Objetividade.

O diálogo entre Bitsy e Zack retratam bem as características da ideologia e

da cultura profissional dos jornalistas apontadas por Traquina (2005b). Segundo

Traquina, a objetividade, a independência e o imediatismo fazem parte de um

conjunto de normas e valores que formam a ideologia profissional dos jornalistas.

Essas normas e valores definem o “ser jornalista” (TRAQUINA, 2005b, p. 106). A

cultura profissional seria formada pelo domínio de uma linguagem própria, de um

saber específico, de um modo próprio de sentir o tempo, e um conjunto de cultos,

símbolos e mitos que montam o estereótipo desse profissional. (TRAQUINA, 2005b).

A jornalista coloca o estagiário em seu lugar, ela não admite trabalhar em

equipe. Quando Bitsy diz que a história não é dos dois, mas dela, ainda faz questão

de „ensinar‟ ao recém-chegado ao „mundo jornalístico‟ que o trabalho que estão

fazendo não é uma história, e sim, uma entrevista. Essa é uma das características

facilmente encontrada em jornalistas: eles têm um saber específico, sobre o qual só

eles têm o domínio técnico e teórico.

Bitsy realiza três entrevistas com Gale, com duração de duas horas cada

uma. Na primeira entrevista, Bitsy está séria, tentando compreender seu

entrevistado e mantendo-se imparcial, como ela acredita que todo bom jornalista

deve ser. Bitsy senta, tira o caderno de anotações e a caneta da bolsa e o diálogo

entre ela e Gale inicia. Na primeira entrevista, jornalista e fonte negociam sobre o

que e como falar e quais serão os códigos que usarão para se entenderem.

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Nessa entrevista, Bitsy negocia com Gale a possibilidade do off-the-record,

prática jornalística que permite que o entrevistado dê uma informação sem que seja

identificado. Por outro lado, o jornalista pode usar a informação em off, desde que

ela seja confirmada por uma fonte em on, isto é, por alguém que possa ser

identificado na reportagem.

Gale apela para o lado humanista da jornalista, quando responde porque a

escolheu para a entrevista e usa o próprio ethos jornalístico para adquirir a confiança

da jornalista, apontando a reputação, a objetividade e o respeito às fontes de

informação de Bitsy. Ao final da primeira entrevista, a jornalista continua imparcial e

cumpre o protocolo jornalístico de buscar informações sobre sua pauta.

Na segunda entrevista, Bitsy está fazendo anotações e Gale pede “off-the-

record”. Ela larga a caneta e diz: “Tudo bem, off (segredo)”. É nesse momento da

história, que Gale começa a envolver Bitsy realmente em sua história. A jornalista

chega à conclusão de quem alguém tramou contra Gale. Ela pergunta se ele tem

idéia de quem seja. Gale responde que tem uma jornalista investigando isso e que

ele confia nela para provar sua inocência.

A relação entre Gale e Bitsy complica muito nesse instante. Ela começa a

sentir-se parte da história dele e com a obrigação de descobrir se realmente ele foi

condenado à morte injustamente. Porém, ela ainda tem dúvidas. Gale chora ao

contar como descobriu que sua amiga Constance tinha leucemia. A segunda

entrevista termina com Gale chorando muito e Bitsy está visivelmente impressionada

e pensativa. A imparcialidade está em jogo.

Zack descobre que o advogado de Gale é incompetente, perdeu vários

prazos legais e foi expulso duas vezes do tribunal. À noite, quando voltam de

Houston, onde foram buscar o dinheiro para pagar a entrevista ao advogado de

Gale, vão para o hotel. Lá, Bitsy percebe que a porta do quarto está aberta.

Pendurada em um fio no teto, tem uma fita de vídeo. Os dois assistem ao vídeo que

mostra a morte de Constance.

No terceiro dia, Bitsy e Zack discutem as revelações feitas por Gale e a fita

que apareceu pela primeira vez. Bitsy está convencida de que Gale foi vítima de

uma armação. A jornalista leva a fita para o advogado de Gale e vê o caubói

misterioso que a seguia saindo do escritório do advogado. Eles tentam segui-lo, mas

o perdem. Bitsy chega muito brava para a terceira e última entrevista com Gale, que

revela quem era o caubói, descreve sua personalidade e sua relação com

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Constance. Gale conta que o caubói, Dusty, foi a última pessoa a visitar Constance.

Bitsy já está totalmente envolvida com a história de Gale e toma partido. A

imparcialidade não é mais um valor profissional.

A jornalista está decidida a ajudar Gale. Tenta reunir todas as fotos do crime

e o vídeo, mas não encontra nada de novo. Quando acorda no dia seguinte, tem um

insight hollywoodiano e resolve reconstituir a cena do crime na casa de Constance,

em Austin. Lá, finalmente, descobre que Constance não foi assassinada, que

suicidou-se, e que Dusty sabia de tudo, mas não entregou a fita que prova isso,

porque a morte de Gale serviria à causa pela qual tanto lutava. Bitsy e Zack chegam

à conclusão de que a fita com todo o crime está com Dusty e vão pegá-la. Porém,

Bitsy não consegue chegar a tempo para salvar Gale. A cena final é dramática. Bitsy

ajoelha-se, chora, entra em desespero.

4 Conclusão

Gale é o personagem principal do filme que apresenta como tema principal a

discussão sobre a pena de morte nos Estados Unidos. Porém o roteiro do filme

valoriza mais a atuação da jornalista e seu papel do que a temática que propõe

como fundamental. O filme representa o profissional do jornalismo e a mídia como

potenciais investigadores, com poderes para resolver situações, para as quais nem

o Estado tem solução. Nesse caso, a jornalista que resolve a trama do filme é a

heroína da história. Essa jornalista é manipulada por David Gale, que acreditará em

sua história e fará de tudo para provar que ele é inocente. Uma heroína. A imagem

de „justiceira‟ é um estereótipo aplicado ao profissional do jornalismo, amplamente

divulgado pela Indústria Cultural. Mas não é só o cinema que ajuda a divulgar esse

estereótipo. Programas de TV também difundem essa idéia, a partir dos seus

próprios telejornais e documentários, que cada vez mais mostram os bastidores do

jornalismo e transformam os mediadores da notícia em heróis, pessoas muito

corajosas, que enfrentam todos os tipos de perigos para levar a verdade ao público.

O jornalista é visto na sociedade atual como um mediador dos fatos para a

sociedade, que espera, muitas vezes, que ele, mais que a polícia, resolvam fatos

difíceis. Nesse sentido, pode-se observar que o espaço público, como definiu

Habermas (2003), transferiu-se para a mídia, em uma inversão de papéis. A nova

esfera pública é a mídia, e como o filme mostra, muitos assuntos veiculados não são

de interesse público, pois são manipulados. A manipulação da mídia não é realizada

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por „mão poderosa invisível‟, mas pelo próprio sistema que a Indústria Cultural

impõe.

5 REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In:

LIMA, Luiz Costa (org.) Teoria da cultura de massa. 5.ed.São Paulo: Paz e Terra,

2000. p. 163-214.

HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública. 2.ed. Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro, 2003.

HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. A indústria cultural: o iluminismo como

mistificação de massas. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa.

5.ed.São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 163-214.

PENA, Felipe. Teoria do jornalismo. São Paulo: Contexto, 2005.

THE LIFE OF DAVID GALE (A VIDA DE DAVID GALE). Direção de Alan Parker.

EUA: Universal Pictures / Saturn Films / InterMedia Films Equities Ltd. / Dirty Hands

Productions, 2003. 1 DVD.

TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo, porque as notícias são como são.

Volume I. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2005a.

TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo. A tribo jornalística – uma comunidade

interpretativa transnacional. Volume II. Florianópolis: Insular, 2005b.

WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. 4.ed. Lisboa: Presença, 1995.