1. Prainha do CantoVerde Alexandre Oliveira Gomes Joo Paulo
Vieira Neto i n s t i t u t o Fortaleza/CE Dezembro de 2010 rede
cearense de turism o com unitrio (Beberibe/CE)
2. Historiando Prainha do Canto Verde (Beberibe/CE) Relatrio de
Pesquisa Autoria Alexandre Oliveira Gomes Joo Paulo Vieira Neto
Projeto Grfico e Editorao Eletrnica Alessandra Guerra e Fernando
Sousa Fotos da Capa Aline Baima, Arquivo Instituto Terramar e
Leonardo Melgarejo Impresso Capa: Expresso Grfica Miolo: Eurocpia
Grfica Rpida O contedo dessa publicao pode ser reproduzido, total
ou parcialmente, desde que citada a fonte. Apoio Este material foi
produzido pelo Instituto Terramar e pela Rede Cearense de Turismo
Comunitrio (Rede Tucum) e corresponde a uma ao do projeto Turismo
Comunitrio: afirmando identidades e construindo sustentabilidade,
iniciativa aprovada em 2008 no edital
doMinistriodoTurismodeApoioaIniciativasdeTurismodeBaseComunitria.
3. Apresentao 04 1. Manifestaes Culturais 06 2. Histrias e
Lendas 19 3. Lugares de Memria 28 4. Saberes e Modos de Fazer 31 5.
Sobre os Autores 40 6. Fotografias 41 Sumrio
4. ste relatrio fruto de uma parceria realizada entre o Projeto
Historiando e a Rede Cearense de Turismo Comunitrio Rede ETucum,
para a estruturao de espaos de memria e o desenvolvimento de
processos museolgicos e de educao histrica em comunidades litorneas
que participam desta proposta de
desenvolvimentosustentvelatravsdeumturismodebaselocal. O Projeto
Historiando surgiu em 2002, a partir da iniciativa de profissionais
das reas de Histria e Patrimnio comprometidos com a
educaoenquantoferramentadetransformaosocial;comoobjetivode
pesquisarecontarahistriadecomunidadesapartirdaperspectivadeseus
moradores, utilizando metodologias que estimulam a autonomia,
buscando extrapolar os contedos escolares e experimentando maneiras
diferenciadas de vivenciar o processo de ensino-aprendizagem atravs
da educaoparaopatrimniocultural,nosentidodefortaleceraorganizao
localapartirdaapropriaodamemriaenquantoinstrumentodelutaede inserir
a importncia da discusso sobre a construo social da memria na
ticadaslutasdosmovimentossociais. Como a memria se expressa em
nossas comunidades? O que o nosso patrimnio? Qual a nossa histria?
Como se escreve a histria? Quem escreve a histria? Quem escolhe o
que importante ser lembrado? Aes como esta possibilitam a
redescoberta de nossa comunidade, de nossa rua, de nosso meio
ambiente, de nossa famlia, de ns mesmos: do que devemos cuidar e
preservar no lugar em que nascemos e vivemos os dias mais felizes
de nossas vidas. Quem, melhor que a comunidade, para
escreverasuahistria? Durante o processo de pesquisa realizado na
Prainha do Canto Verde, no segundo semestre de 2009, identificamos
coletivamente o patrimnio cultural local e os seus significados
atravs da organizao de aes Apresentao [1] Sobre o Projeto
Historiando, acesse:
http://www.iteia.org.br/projeto-historiando-historia-memor
ia-e-antropologia-no-ceara1 [2] Para saber mais sobre a Rede Tucum,
acesse www.tucum.org.br 04
5. educativas que dialogam com a memria local, tanto no sentido
de buscar registros sobre a histria como tambm constru-los. A
metodologia utilizada incentivou a participao e o fazer coletivo.
Os ministrantes atuaram enquanto facilitadores da ao educativa, e
os grupos de pesquisa foram organizados a partir das diversas
oficinas de pesquisa histrica e das afinidades temticas e pessoais.
Dentre estas oficinas, destacamos: a de oralidade, na qual se
mapeia e entrevista os guardies da memria local; a dos objetos, que
propiciaa formaoe a identificaode acervos; a dos lugares de memria,
que realiza um inventrio da memria presente em importantes locais
para a histria local. A oficina de pintura (mural e tecido),
ministrada pelo artista plstico e professor Naigleison Santiago, so
momentos de reelaborao do conhecimento, como tambm este relatrio e
a exposio,
feitasapartirdetodaapesquisarealizadaedosmateriaisconstrudosdurante
oprocessodesuarealizao. Os pesquisadores, jovens e adultos da
Prainha do Canto Verde, dividiram-se em quatro grupos temticos, que
foram: histrias e lendas, saberes e modos de fazer, expresses
culturais e lugares de memria. Tais grupos foram escolhidos durante
a pesquisa, entre outros possveis, e partem
deumaconcepoantropolgicaepluraldoconceitodecultura,patrimnioe
memria. Esta iniciativa, se continuada e potencializada, pode
originar um espao de memria comunitrio, pois forma um acervo de
cultura material, se constitui enquanto um mapeamento do patrimnio
local e inicia uma capacitao de jovens para o trabalho com o
patrimnio cultural, enquanto vetordedesenvolvimentosociocultural.
Agradecemos especialmente comunidade da Prainha do Canto Verde,
pornosproporcionarumconhecimentodesuahistria. Este relatrio o
resultado o resultado de uma seleo do material produzido durante o
curso, uma leitura possvel da histria local, contada pelos prprios
moradores. Junto a uma exposio organizada sobre e para a
comunidade,soasaesquefinalizamocursoHistoriandoaPrainhadoCanto
Verde. Boaleitura! Alexandre Oliveira Gomes e Joo Paulo Vieira Neto
05
6. Dana da Carrapeta A dana da carrapeta uma dana regular Que
pe o joelho na terra E faz o corao chorar Maria levanta o brao
Maria sacode a saia Maria tem d de mim Maria me d um abrao.
diversidadede expressesculturaisidentificadasnaPrainhado Canto
Verde (Beberibe/CE) demonstra a riqueza do patrimnio cultural
Apresente na comunidade. So festas, danas, brincadeiras, cantigas
de roda, msica, poesias e crendices ligadas religiosidade e ao modo
de vida daspopulaesdolitoralcearense. Consideramos fundamental o
registro destas expresses e manifestaes, para que possam ser
compartilhadas com as prximas geraes. Existem pessoas na comunidade
que conhecem profundamente estes aspectos da cultura local e suas
prticas, algumas ainda fazem parte do dia-a-dia, outras esto
adormecidas e outras, ameaadas de desaparecimento, devido s rpidas
mudanas ocasionadas pelos efeitos da
globalizaoedosmeiosdecomunicaodemassanocotidianolocal. Graas ao
trabalho da escola e dos agentes culturais, algumas destas
expresses so relembradas e reinventadas por crianas e jovens
alunos. Dentre estas manifestaes vamos destacar algumas bem
representativas da culturalocal. Brincadeiras Tradicionais e
Cantigas de roda 1. Manifestaes Culturais Viuvinha Viuvinha da mata
da lenha Ela quer se casar Mas no acha com quem No com voc No com
ningum com uma pessoa Que eu quero mais bem. 06
7. Fui Espanha Fui Espanha Buscar o meu chapu Azul e branco Da
cor daquele cu Olha palma, palma, palma Olha p, p, p Olha roda,
roda, roda Caranguejo peixe Caranguejo s peixe Na enchente da mar
Olha a dana criola Que vem da Bahia Pega as crianas E joga na bacia
A bacia de ouro Ariada com sabo Depois de ariada Enxugada com roupo
O roupo de seda Camisinha de fil Agora vamos v Quem vai ficar Pela
vov! Terezinha de Jesus Terezinha de Jesus De uma queda foi ao cho
Acudiram trs cavalheiros Todos de chapu na mo. O primeiro foi seu
pai, O segundo seu irmo, O terceiro foi aquele Que a Tereza deu a
mo. Da laranja quero uma banda, Do limo quero um pedao, Das meninas
mais bonitas Quero um beijo e um abrao. Cai no poo Cai no poo gua
onde No pescoo Quem tira? Meu amor esse? no! esse? ! Pra, uva, ma
ou salada mista? 07
8. Eu sou pobre, pobre, pobre Que ofcio d a ela? De marr, marr,
marr De marr, marr, marr Eu sou pobre, pobre, pobre Que ofcio d a
ela? De marr dec. De marr dec. Eu sou rica, rica, rica Dou o ofcio
de (nome do De marr, marr, marr ofcio) Eu sou rica, rica, rica De
marr, marr, marr De marr dec. Dou o ofcio de (nome do ofcio) Eu
queria uma de vossas filhas De marr dec. De marr, marr, marr Este
ofcio me agrada (ou no)Eu queria uma de vossas filhas De marr,
marr, marrDe marr, dec. Este ofcio me agrada (ou no) De marr
dec.Escolhei a qual quiser De marr, marr, marr L se foi a (nome da
menina)Escolhei a qual quiser De marr, marr, marrDe marr dec. L se
foi a (nome da menina) De marr dec.Eu queria a (nome da menina) Eu
de pobre fiquei ricaDe marr, marr, marr De marr, marr, marrEu
queria (nome da menina) Eu de rica fiquei pobreDe marr dec. De marr
dec. 08 Eu sou pobre Quadrilha A tradio das quadrilhas juninas foi
revitalizada pela escola, com o Projeto Criana Construindo (1996),
hoje continua forte na Prainha do Canto Verde. A animao do So Joo
une pessoas de todas as idades, do mais novo ao mais velho. A
quadrilha uma manifestao feita pela escola no ms de junho, na qual
toda a comunidade participa de vrias noites de festa com
comidastpicas,gincana,barraquinhasemuitomais.
9. 09 Dramas Os dramas eram uma das formas de divertimento da
comunidade antigamente. Ensinado pela finada Maria Pimenta, de
Fortim, era feito somente por mulheres, aos sbados, de quinze em
quinzedias,juntandomuitosexpectadores. Dois cordes (fitas) de seis
moas, puxados por uma animadora (a contra-mestre), entoavam msicas
conforme o papel que desempenhavam na pea (dramas). Cada cordo, um
da cor azul e outro vermelho, possua sua contra-mestre, uma baiana
e as floristas, todas vestidas de longos vestidos, que carregavam
uma faixa e uma coroa da cor do respectivo partido. As floristas,
por sua vez, saam
cantandoavenderflores(umlaodacordopartido),colocavamolao no bolso
dos espectadores e, na msica, pediam um trocado. Ningumnegava. Os
dramas eram apresentados durante aproximadamente dois meses, e no
final o partido que mais tivesse arrecadado os lainhos era
ovencedor.EntocoroadaarainhadoDrama,queacontra-mestre.
OsDramassempreprecediamoforr. Bumba-meu-boi O Bumba-meu-boi uma
brincadeira que une teatro, msica e dana. O seu enredo conta que
Catarina, a mulher do vaqueiro, estando grvida deseja comer lngua
de boi (em outra verso o corao). Para satisfazer o desejo da
mulher, se mata o boi. E nisso se desenrola a histria. Vrios
personagens entram em cena: o doutor, o curandeiro, o urubu. Para
alegrar ainda mais a brincadeira, participam
destahistriaoJaragueoZdeBibiu,queprovocammedo,obode,a burrinha e a
ema, que causam riso. A mestra do boi, como se costuma
chamar,nanossaregioaHosanadafinadaMariaPequena,masoSr. Iaga tambm
conhece a brincadeira. Hoje, somente na escola local se brinca, no
ms de agosto, o Bumba-meu-boi. A brincadeira puxada
anualmentepelosjovensalunosquenodeixamoboiadormecer.
10. Festividades Ciclo Festivo da Semana Santa
OciclodefestasdasemanasantariqussimonaPrainhadoCantoVerde. A
queimao do Judas e os papangus so uma atrao parte, com uma
interessante roupa feita de palha pelos prprios brincantes. Saem em
dezenas nas ruas, animam a comunidade, num jogo de insulto e medo,
onde todos se envolvem. Na sexta-feira santa acontece a via-sacra
encenao do sofrimento e morte de Jesus. No sbado de aleluia
acontece a queimao do Judas, que se constitui numa tradio bastante
popular na localidade. noite, antes da
queimadoJuda,lidootestamento,feitopelospoetasdacomunidadeque, em
versos, relatam situaes engraadas envolvendo pessoas da prpria
comunidade, a quem o Judas deixa por herana alguma coisa, que
geralmente nem era dele. No domingo de Pscoa lembra-se a ressurreio
de Cristo. Entre os catlicos, s se pode comer peixe. Essas tradies
se renovam e permanecemvivasathoje. A Regata Ecolgica A Regata
Ecolgica da Prainha do Canto Verde consiste numa corrida de
jangadas que envolve muitas comunidades litorneas da regio. uma
manifestao relativamente nova, mas que j se tornou uma tradio,
acontece desde 1992 nos finais de ano e atrai pessoas de diversos
lugares para assistir. Diferente das tradicionais regatas de
jangadas do litoral do Cear, a Regata da comunidade dedicada a
divulgar temas e programas de educao ambiental. Destinada a mostrar
a vida humana e animal do litoral e chamar ateno para a necessidade
de preservao das espcies e da zona costeira,
incluindoaimportnciadaterraedomarparaascomunidadeslitorneas.
10
11. Temas das Regatas: 1992 - Regata experimental 1993 - Fauna
Marinha 1994 - Fauna e Flora brasileira ameaadas de extino 1996 -
Farmcia Viva: Plantas Medicinais 1997 - Tartarugas e Mamferos
Marinhos 1998 - Dia Mundial da Pesca 1999 - O Fundo do Mar 2000 - A
pesca no Planeta Terra 2001 - O Mar, a Criana e o Peixe Boi 2002 -
Os Povos do Mar 2003 - 140 Anos de Histria da Prainha 2004 - A
Historia da Pesca da Lagosta do Brasil 2005 - O Cdigo de Conduta
para Pesca Responsvel 2007 - rea Marinha Protegida da Prainha do
Canto Verde 2008 - rea Marinha Protegida de Beberibe 2009 - 30 anos
de luta da Prainha do Canto Verde 2010 - Territrios Tradicionais,
Conservao ambiental e Mudanas climticas Festa de So Pedro So Pedro
o padroeiro da comunidade, protetor dos pescadores. A festa
acontece na ltima semana de junho, se encerrando no dia 29. Oito
dias antes realizada uma srie de novenas nas quais outras
comunidades vm compartilhar o mesmo tema. No dia do encerramento,
costuma-se fazer uma caminhada conduzindo o santo padroeiro at a
praia de onde se sa em outra procisso, agora em jangadas e
catamars, pelo mar. Na volta, encerra-se a festa com uma grande
missa campal. Vale lembrar que, antes, o padroeiro da comunidade
era So Jose de Ribamar. 11
12. Msica e Poesia
Vivaamsicaeapoesiaproduzidanacomunidade,tobemproduzidase
representadas por Geraldo Firmino do Nascimento (Sr. Iaga), Jos
Firmino da Costa (Z da Nga), Jose Costa dos Santos (Valtcio),
Geraldo Ferreira (Geraldinho) e Raimundo Abdon da Silva (Raimundo
Bidonha). A seguir, algumascanesepoesiasdenossoscantadores:
Comunidade Pai-d'gua (Z da Nga) Comunidade paidgua Que eu ainda no
tinha visto no, no, no. Comunidade na luta enfrenta a guerra E na
luta da terra no perdeu uma questo Mas quando estou perto da
comunidade Eu sinto uma fora chegar perto de mim Ento eu digo vamos
dar as nossas mos Unir nossos coraes, comunidade assim, Tem gente
que vai ao juiz, vai com seu sorriso louco Vai cheio de sabedoria s
para calar a nossa boca, Mas no cala no, no cala no. Comunidade na
luta enfrenta a guerra E na luta da terra no perdeu uma questo, Mas
quando estou zangado que eu me sinto preocupado Meto a cabea no
mundo viro azavesso a cidade, Pode vir juiz e prefeito, mas no
derruba a nossa comunidade. Libertao (Z da Nga) Al comunidade!
Escute e preste ateno Porque a nossa luta da terra 12
13. A nossa terra esperada ganhou a libertao He He! H H! Quem
sorria agora quem vai chorar. (bis) Vamos, vamos, vamos, vamos meu
irmo Vamos lutar consciente Ajudando a Associao A Associao ela que
vai trabalhar Mas ns trabalhando junto Nossa vida vai mudar He He!
H H! Quem sorria agora quem vai chorar. (bis) Verso da Terra (Iaga)
13 Que a histria comeou Comearam a vender morro Que tinha muito
valor A venderam a Prainha A um atravessador. Desse tempo em diante
Comeou a confuso Ns, moradores descobrimos. E botamos na questo A
levamos pra frente Pra ver quem tinha razo. O Bispo Dom Alusio Que
estava ao nosso lado E logo constituiu O Andr advogado E pra Vencer
a questo Que estava entusiasmado. Foi em 76 Ento muita gente aqui
De ganhar perdeu a f A o advogado disse No pode ficar em p Ai veio
pra ajudar na luta Silvinho e Antnio Jos. E o detetive Beto De
lutar no se enfadava Sempre estava ao nosso lado Em todo passo que
dava O tempo foi se passando E a luta continuava. Uma luta como
essa J no se viu outra igual Comeou em Beberibe No cartrio
municipal E foi findar em Braslia No Distrito Federal.
14. Outras Manifestaes Tertlia e Mazago Segundo o Sr. Iaga
entre o final da dcada de 50 e o incio da dcada de
60,asfestaseram'bemfaladas',oforrcomradiolaerachamadodetertlia.A
tertlia era feita na sala de casa a luz do lampio a gs ou do
candeeiro a querosene, no havia sales de festas, os tertulheiros
eram o Sr. Natinha e depois o Sr. Joaquim da Rosa. Depois o Dr.
Quinim inventou o Mazago, um
forrtocado'comumabocaderadiadora'queficoutofamosoqueDr.Quinim
comeou a ser convidado para tocar fora. E a festa ganhou este nome
porque nestapocatinhaumamsicaquetodomundogostava,chamadaoMazago.
Coroao um evento realizado no ms de maio e constitui-se em uma
homenagem a Maria. um musical onde vrias crianas e adolescentes
oferecem flores a Nossa Senhora. Tambm so deixados aos ps de Maria
a palma,acruzeancoraquerepresentam,respectivamente,acaridade,afea
esperana.Essaexpressoestadormecidanacomunidadehalgunsanos. Coral
OCoralInfantildaPrainhafoicriadoem1992.formadoporumgrupode crianas
e adolescentes que cantam msicas populares de antigamente,
ouvidaspelospaisequeestavamsendoesquecidaspelasgeraesmaisnovas. O
trabalho do coral resgatou estas msicas e brincadeiras de rodas e
incorporou outras, aprendidas com comunidades prximas. Esse
trabalho se estendeu para a escola, com momentos de aulas de msica
(musicalizao) tornando, assim, o espao da escola um ambiente mais
agradvel para se aprender. 14
15. Reis Os Reis (magos) uma tradio que acontece todo dia 6 de
janeiro quando alguns grupos de moradores, por volta das dez horas
da noite, saem nas casas cantando e pedindo dinheiro. Por onde
passam alegram as pessoas com as msicas cantadas em forma de
versos. uma manifestao que lembra a visita dos trs reis magos ao
meninoJesus.maisoumenosassimabrincadeira: Na chegada a casa senhor
dono da casa Abra a porta e acenda a luz Venha ver os trs reis
magos Trazendo o sinal da cruz. Quando v que o dono da casa no vai
abrir a porta senhor dono da casa Com o seu lenol lavado Tenha pena
de quem t fora O sereno est molhado. O sol entra pela porta O luar
pela janela T pedindo uma esmola No saio daqui sem ela. Quando no
se ouve barulho das chinelas, nem a luz se acendendo Ningum v porta
se abrir Nem chinelo se arrastar T esperando sua esmola Que eu
quero me retirar. Quando j esto zangados pela falta da esmola Estou
aqui em vossa porta Em figura de macaco 15
16. Se no me der uma esmola Eu entro pelo buraco. Estou em
vossa porta Em figura de jumento Se no me der uma esmola Eu meto a
porta dentro. Quando recebem uma esmola Obrigado meu senhor Pela
esmola que nos deu Gente boa como essa S sendo filho de Deus.
Crendices As crendices so supersties que tm sido repassadas de uma
gerao para outra, atravs de um sistema de crenas que medida que vo
sendo apreendidas so incorporadas como referncias da cultura local.
Dentre as muitas crendices conhecidas, citamos algumas das mais
fortes na comunidade (principalmenteentreoscatlicos):
Andardecostaestmandandoamadrinhaparaoinferno;
Contarouapontarestrelacomodedo,criaverruganodedo; Dia de
sexta-feira santa, a pessoa de nome Maria no pode tomar banho no
marporquecriaescama;
Mulhergrvidaseolharparaumeclipse,obebnascecommanchasnapele;
Quebrarespelhoseteanosdeazarparaapessoaqueoquebrou;
Passardebaixodeescadaeouvergatopretonasexta-feira13,dmuitoazar;
Guardartesouraabertatrazazar; Ver muitas vacas na praia, o que no
comum, sinal que est chegando muitovento; Quando a rolinha canta no
p de uma casa sinal de que uma pessoa da casa vaimorrer; Se passar
e sentir um cheiro muito forte de flor no se pode contar pra
16
17. ningum,porquesinaldequeumaalmaestsesalvando;
Quandoogalocantaforadehora,moaquevaifugirdecasa; Deixar chinelo ou
cadeira virada d azar, e a jangada do pescador da
casapodevirarnomar; Plantarpinhoroxonafrentedacasaespantaazar; No
dia de So Sebastio no se pode ir para o mar, pois s se vai
encontrarcobra; Vassouraatrsdaportaespantavisitas;
Assobiaranoiteatraicobra; Se uma pessoa passar por cima de outra
com as duas pernas, no crescemais; Casca de alho correndo pela casa
sinal de que o dinheiro est indo embora;
Palmadamodireitacoando,sinalqueirreceberdinheiro; Se sua orelha
esquentar de repente, porque algum est falando maldevoc;
Guarda-chuvaabertodentrodecasatrazazar. Serenata A serenata era uma
forma romntica das pessoas declararem seu amor, seu bem querer a
pessoa amada ou a algum a quem se queira muito bem. Altas horas da
noite saam o pretendente, um tocador e um cantor e iam at a porta
da pessoa querida entoar canes de amor; geralmente, ningum
costumava rejeitar uma serenata, mesmo que no quisesse corresponder
ao afeto declarado aosomdovioloedeumabelacano. Segundo o senhor
Geraldinho, um dos que entregou muitas canes, a serenata no passado
foi um divertimento muito bom, principalmente para os romnticos, os
bomios apaixonados. Uma
pessoaiacantaroumandavacantarparaapessoaamada,enestahora podia ser
acompanhada por at uma dezena de pessoas, mas um s cantava e tocava
ou um cantava e outro tocava. Os demais faziam silncio absoluto. O
mesmo tambm podia ser feito de um amigo para outro. Conforme fosse
a msica e quem a cantava (e tocava)
agradavamatmesmoomaiscaretapaidefamlia. 17
18. Quermesse A quermesse era outra forma de divertimento
praticada na comunidade no incio da dcada de 60, era uma
brincadeira animada por um 'som de radiadora', uma espcie de
gincana com dois partidos, um azul e outro vermelho. Cada partido
monta uma barraca onde sero vendidas comidas e
bebidas.Asbarracassodecoradasesoescolhidasjovensparaserarainhade
cada partido. Alm da rainha, os partidos tambm escolhem trs ou
quatro moasparaajudaremnabarracaenavendadevotos;asmoassofantasiadas
com a cor do partido e a rainha com uma faixa. A disputa est na
venda de votos fitinhas da cor do partido e no apurado da barraca.
Cinco ou seis mesesotempodeduraodasquermesses. A brincadeira se
torna mais interessante quando a radiadora anuncia os
recadinhosoumsicasoferecidasporalgumparaumapessoamuitoespecial;
dessa brincadeira surgiram muitos relacionamentos. As rainhas so
fundamentais para o bom desempenho do partido, principalmente
quando oferecem os votos, por isso, no podem ser tmidas. Ao fim de
cinco ou seis meses conta-se os votos (o apurado dos votos e das
barracas) e o partido que mais tiver arrecadado o vencedor; e tem a
sua rainha coroada pela organizaodaquermesse. Religiosidade A
principal expresso religiosa da comunidade o catolicismo, cerca de
80% dos moradores da comunidade exercem a f catlica, que procura
aproximar as pessoas de Deus, utilizando-se muitas vezes do culto
aos santos para esta mediao. As principais formas de cultos so: a
missa, a novena, o tero(eorosrio)eocultoaossantos. Os evanglicos
surgiram somente a partir do ano de 2000. Sua crena esta
fundamentada na obedincia ao evangelho de Jesus Cristo e na luta
contra a 'ao do diabo' na vida das pessoas. A finalidade de seus
cultos
cultivaronomedeJesusCristocomonicoesuficientesalvadoreconstruirnas
pessoasumaesperanadelibertaoesalvao. Encontramos alguns adeptos da
Umbanda, mas no h nenhum terreiro 18
19. 19
nacomunidade.Entretanto,comumvirematoCantoVerdeumbandistasde outras
localidades prximas por ocasio de festas como a de Iemanj
comemorada no Cear no ms de agosto para fazer seus cultos e
oferendas beira-mar,atraindomuitoscuriososdacomunidade. Histrias
histria da Prainha do Canto Verde riqussima. Nesta cartilha,
selecionamos acontecimentos marcantes para a comunidade, que ajudam
a refletir sobre as mudanas ocorridas,
asAconquistaseamelhoriadaqualidadedevidadosmoradoresdestelugar.Estas
experincias demonstram a resistncia e a luta do povo da Prainha do
Canto Verde. O processo de articulao e mobilizao poltica, que marca
a histria de Canto Verde, desencadeou um processo de organizao
comunitria, com base local e internacional, e o fortalecimento de
um sentimento de pertencimento muito grande na comunidade, onde as
pessoas se autodenominamcomo'prainheiros'. Dentre as histrias que
marcam a memria local, destacamos: o arrombamento da Lagoa do
Jardim, a casa da Cuca, a viagem SOS Sobrevivncia, o 'raid' 7 de
setembro, a derrubada da Creche, o fim da mortalidade infantil, a
conquista do entreposto de pesca, o incndio das casas de
pescadores, a Escola dos Povos do Mar, a luta pela posse da terra,
a criao da Reserva Extrativista (Resex), entre outros. Algumas
destas histrias so contadas atravs de relatos dos prprios
moradores, outras por meio de reportagens, fotos ou documentos de
poca e de documentos produzidos
pelacomunidade,comoumdeseusfolders,quetrazoseguinteregistro: 2.
Histrias e Lendas
20. A primeira notcia documentada nos jornais sobre a
comunidade o 'raid' de 1928, quando 3 pescadores na jangada Sete de
SetembroresolveramnavegaratBelmdoPar.Aaldeiaoriginal ficava a oeste
da vila atual. Com as grandes chuvas de 1974, a vizinha lagoa do
Jardim rompeu-se levando a maioria das casas de taipa para o mar,
provocando a mudana da comunidade. Em 1976, um grileiro em
sociedade com uma empresa imobiliria entra em cena para acabar com
a paz e a tranqilidade da comunidade, tentando se apoderar das suas
terras. A reao dos moradores a luta pela terra. Em 1989, o Centro
de Defesa dos Direitos Humanos (CDPDH) do cardeal D. Alosio
Lorscheider ajudou a fundar a Associao dos Moradores da Prainha do
Canto Verde. Em 1992 inicia-se o projeto para o desenvolvimento
sustentvel da comunidade, com o apoio dos Amigos da Prainha do
Canto Verde. Em 1993, acontece a famosa viagem de protesto da
jangada SOS Sobrevivncia at o Rio de Janeiro, com 4 jangadeiros ao
mar e 2 mulheres em terra, percorrendo de carro o trajeto para dar
apoio logstico. Em 1995, nasce o Frum dos Pescadores do Litoral
Leste em assemblia na Prainha do Canto
VerdeemaistardeseampliaparatodooestadodoCear.Em2002
inauguradaaEscoladosPovosdoMarparaosjovenspescadores da comunidade
e, em 2004, o Estaleiro Escola para a construo de uma nova embarcao
a ser utilizada na pesca, o catamar. Em 14 de maro de 2006 a deciso
do Superior Tribunal de Justia
(STJ)anuloutodososdireitosdaImobiliriaeabriucaminhoparaa
regularizaodapossedaterradosmoradores. 20 Esse importante processo
de articulao e luta comunitria culminou com a criao, em junho de
2009, da Reserva Extrativista da Prainha do Canto Verde. (...)
desde 2001 os moradores organizados lutam pela criao da RESEX. A
comunidade da Prainha se fortaleceu ao longo dos anos, nas batalhas
pela
21. O que uma Reserva Extrativista? A Reserva Extrativista uma
rea utilizada por populaes extrativistas tradicionais, cuja
subsistncia baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na
agricultura de subsistncia e na criao de animais de pequeno porte,
e tem como objetivos bsicos proteger os meios de vida e a cultura
dessas populaes, e assegurar o uso sustentvel dos recursos naturais
da unidade (In: SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservao)
21 garantia do direito terra e de um futuro sustentvel. Exemplo
disso, foi a vitria de uma batalha judicial, que se arrastou por
longos 17 anos, contra uma imobiliria que tentou expulsar a
comunidade das terras onde vivia. Esta batalha foi vencida em maro
de 2006, quando do julgamento da ao da comunidade no STJ, que
anulou o usucapio da imobiliaria, abrindo caminho para regularizao
da posse e garantindo aos moradores o direito de
permanecernasuaterra.Apartirde ento,foihorade caminharnosentidode
transformaraPrainhanumaReservaExtrativista. Para Lindomar Fernandes
(liderana comunitria da Prainha do Canto Verde) "a RESEX ir mudar a
vida das pessoas que vivem na Prainha, pois a partir de agora
ningum mais vai poder se apossar dessas terras. uma conquista muito
importante pela qual tivemos que lutar durante muitos anos, mas o
resultado chegou e agora seguir em frente tentando consolidar as
estratgias desustentabilidadecomunitria".
22. Histria de Vida Casa da Cuca, contada por Dona Mirtes Ela
sempre morou ali, conta D. Mirtes. Na frente da casa dela era o
lugar que a comunidade havia escolhido para a construo de um posto
mdico para atendimento da populao da Prainha do Canto Verde. Um
senhor chamado Nilton, apoiado por Til, Joaquim da Rosa e outros
amigos seus, construiu uma casa naquele local onde a comunidade
havia escolhido para construir o posto mdico. Depois de construda a
casa dele, desejou tirar a casa da Cleonice, a Cuca, dali. Ela, com
o apoio da organizao da comunidade, resistiu a sair. O Til, que era
contra a comunidade, foi Prefeitura e arranjou material para
construir o posto mdico. Mandou construir os alicerces ao redor da
casa da Cuca, que ficou cercada. O grupo que se reunia em torno da
organizao comunitria, decidiu derrubar o alicerce que havia sido
construdo. Em certo dia, ao final da aula, quando os
trabalhadoresqueconstruamopostomdicojtinhamencerradooseudia de
trabalho e haviam deixado o local, as crianas da escola se juntaram
e derrubaram o que havia sido construdo. Pessoas que eram contra a
organizao da comunidade, ao verem aquela cena, se manifestaram
dizendo que denunciariam para o Til e Prefeitura. Ouvindo o que
tais pessoas diziam, todos os que praticavam a ao gritaram dizendo:
a comunidadeouno?!. Sr. Valtcio por ele mesmo ou Memrias do Sr.
Valtcio Tenho 48 anos e me chamo Jos Costa dos Santos, mas sou
conhecido na Prainha do Canto Verde como Valtcio. Os mais velhos
contam que antigamente tinha muita vegetao por aqui, por isso
comearam a chamar o lugar de Prainha do Canto Verde. Nasci aqui
mesmo, e acho que descendo de ndios. A primeira famlia do Canto
Verde foi a de Caboclo. As primeiras famlias se alimentavam de
frutos da terra (troca de alimentos) e do mar (pesca). 22
23. A principal fonte de renda da comunidade era o pescado, mas
alguns pescadores tambm plantavam. Aprendi a pescar com meu pai,
ele me levava dentro do sambur pro mar. Pescava-se peixe da
risca(biquara,canguloeoutros),numtipodejangadaqueerafeitade piba.
Meu pai pescava nela, eu s cheguei a ver. Comprava-se anzol no
Geraldo Carapina, que era o ferreiro da regio, que morava em
Juazeiro; tinha que ter muito cuidado com esse apetrecho, pois era
muito difcil de encontrar. A linha era feita de fio. Os nicos meios
de transportequeexistiameramosanimais.Parapegarcarrotinhaqueir
paraaParipueiraouJuazeiro(distritosprximos). Os remdios de
antigamente eram caseiros, por exemplo, cortavam as ameixas e
tiravam a goma para cicatrizar as feridas, ou remdios caseiros como
casca de pau de laranja, aroeira e outros. As rezadeiras tambm
curavam. Daquele tempo, lembro que rezavam, a
minhaavDauziza,MarianaeMariaGrande.Morriammuitascrianas, e elas
pensavam que era quebrante, por isso rezavam. No existia
hospital,gotinhaseremdios.Oscurativoseramdepanos.
Hojeascoisasficarammaisfceis,ostransportes,osapetrechos de pesca,
as casas s de alvenaria. As escolas de antigamente eram pagas,
funcionavam em uma colnia de pescadores na Caucaia. Os professores
eram Zacarias e seu 'Raimundin'. Na minha lembrana, o primeiro
professor foi seu Zacarias. Entre as coisas que permaneceram na
nossa comunidade, ainda existe a luta pela terra e algumas casas de
palhas e de taipas. Entre as nossas festas mais antigas esto festa
do padroeiro So Pedro e as da Semana Santa.
Lembrotambmquehaviammuitasprocisses. Em nossa histria, muito
marcante foi a luta pela terra. A nossa organizao comunitria
iniciou-se quando soubemos que o mundo tinha luz, a comeamos a nos
reunir debaixo da latada do seu Dimilsim, para pensar uma forma de
combater o grileiro. Nossa comunidade se reunia e batalhava contra
homens muito ricos, e foram vitrias que me marcaram muito. Antes no
existia especulao, o povo era livre pra fazer casas onde quisesse,
no existia ambio. De l para c foram muitas conquistas, entre elas:
entrepostoparaopescado,horta,materialdepescaeoutros. 23
24. Ateno caros leitores Para a viagem-protesto Para o que vou
lhes contar Contra aquela situao. A faanha deste povo Que gosta de
trabalhar O Mamede foi o mestre Da Prainha do Canto Verde Por ser
mais experiente Litoral do Cear. Um dos lderes dessa luta Portanto,
mais consciente No dia 4 de abril Homem corajoso e feito H dez anos
j passados Pra enfrentar o batente. Saram de Canto Verde, Sendo
eles por Deus guiados, A Marlene e a Michelle Rumo ao Rio de
Janeiro Fizeram um papel importante Os quatros heris afamados.
Acompanhando por terra Prestaram apoio constante Levavam duas
bandeiras Durante toda a viagem, De resistncia e protesto A ajuda
foi relevante. Ao conhecimento pblico Expor nosso manifesto A
jangada SOS Em favor do pescador Com um destino certeiro Por um
mundo mais honesto. Movida a ventos fortes Fez o percurso ligeiro
Essas so as duas coisas Com setenta e trs dias Que marcaram nossa
histria: Chegou no Rio de Janeiro. ESPECULAO IMOBILIRIA E a PESCA
PREDATRIA A viagem SOS Sobre as quais mais desejamos SOBREVIVNCIA,
ento Obtermos a vitria. Foi um ato de herosmo Daquela tripulao E
foi muito emocionante Que admirou a todos O dia em que eles saram
Do litoral ao serto. Vi muita gente chorando Na hora que eles
partiram Um grito de pleno apelo Aquela fora e bravura Em prol da
SOBREVIVNCIA Todos ali aplaudiram. Com o qual ns construmos Mamede
e Chico Augusto, Toda nossa experincia. Edilson e Chico 'Sio'
Depois de Deus o que Foram eles que toparam Sustenta a nossa
existncia. Compor a tripulao SOS Sobrevivncia de autoria de Jos
Maria (Ded). Trecho retirado do cordel 10 Anos de SOS Sobrevivncia,
24
25. Lendas As lendas da Prainha do Canto Verde so um conjunto
de causos e histrias contadas pelos moradores, que as presenciaram
e/ou ouviram dos mais velhos. So passadas de uma gerao a outra
atravs da oralidade. Existem algumas que fazem parte do folclore
brasileiro, como a do Lobisomem e a do Batato (Boitat), outras so
especficasdolugar,comooCarrodaVisagem,oPaidoMar,oNeguim da Barra, o
Cajueiro do Violo, entre outras. So narrativas dos mais velhos,
testemunhos de pessoas que presenciaram ou estiveram
envolvidascomtaissituaes. Batato O Batato um fogo que aparece s
pessoas em locais com vegetao, podendo at segu-las. Ele como uma
fasca, que vai se tornando uma tocha de fogo enorme. Nunca se soube
o que ele faz com as pessoas, porque se aprendeu que para se
defender dele basta 'avessar' uma pea de roupa ou dobrar o
embainhado da cala ou da blusa. Ento ele segue outro rumo. Mas
quando se apresenta em lugares com vegetao densa, s se v o 'fogaru'
queimando. O curioso que no outro dia est tudo do mesmo jeito, nada
est queimado. OSr.GerardoFerreiranoscontouoseguinte:certavez,sonze
horasdanoiteeuvinhadoCampestrequandosubiomorroedoaltovi a casa da
Nega, vi um fogo, como se jogasse uma ponta de cigarro, o vento era
forte, e o fogo caiu longe. Depois ele subiu, quase da altura do
ombro de uma pessoa. Lembrei logo do Batato. Fiquei olhando para no
perder de vista, e ele seguia meu rumo. Quando cheguei na beira de
um brejo que tinha no caminho, ele j vinha bem perto. Eu estava de
cala e no podia passar ligeiro pela lama. Virei a manga da camisa,
arregacei a cala. Riscava fsforos mais o vento apagava. Ento
caminhei e quando ia no meio do brejo, ele j ia longe. Fiquei
olhandoecomumtempoelesumiu.
OBatatotambmvistoemoutrospontosdolitoralcearense,
semprecomoumfogoquesemovimentarapidamente. 25
26. O Pai do Mar Trecho retirado do cordel O presente do Filho
do Pai do Mar, de autoria de Jos Maria (Ded). Contam que o Pai do
Mar Homem de muita destreza De to tamanha grandeza Vivia s de
pescar Pela altura era notado A distncias elevadas Chegava em
poucas passadas No pesqueiro desejado S pescava em gua funda A gua
dando no peito O uru daquele jeito E a tarrafa na corcunda Uns
chamavam Pai do Mar Porque vivia na mar Outros, no sei porque
Chamavam de Gargantu E que morou por aqui Pela circunvizinhana Lhe
digo com segurana Que viram-no por a. Neguins da Barra Os tais
Neguinsso encantadosque costumamaparecerna barrado seu Diassis.
Quem passava por l noite, era surrado pelos neguins, negcio feio
era a 'peia' que eles davam, quando a pessoa reagia. Alguns que
passavam armados eram enganados, atiravam e esfaqueavam pensando
que atingiam os neguins. Mas, nada disso acontecia, pelo contrario,
'pense nuns negos' espertos e ligeiros, eles que surravam vrios,
deixando-os assombrados; e ainda sorriam e zombavam das pessoas,
grande era a acanalhao. Algumas
vtimas,aoamanhecer,voltavamlnolugar,pensandoqueiamverosneguins
26
27. mortos por l. O rebolio era grande, mas nem se quer
escavacado ficavaolugarondeeleshaviamaparecidonanoiteanterior.
Carro da Visagem Neste tempo ainda no havia nem estrada na Prainha
do Canto Verde, no caminho do p do morro at a Prainha, por volta da
meia noite,apareciaumcarro,umjipe,muitoiluminado,tantoquealgumas
pessoas o chamavam de carro de fogo. Era um carro que no fazia
barulho e s era percebido pela sua grande iluminao e o mais
sinistro que dentro dele, seus tripulantes, motorista e
passageiros, eram caveiras, que faziam assombrao a quem fossem
encontrando no caminho. As pessoas, ao verem a luz do carro
aparentemente muito bonito e chamativo por sua intensidade
aproximavam-se dele com muita curiosidade e, ao se deparar com as
caveiras, assombravam-se e caam em terra, acordando-se s no dia
seguinte. I.V.N.eM.C.F.contamqueviramestecarro. Cajueiro do Violo
Htemposatrs,nopdomorro,existiamalgunscajueiros,que hoje no existem
mais, pois as dunas os soterraram, cobrindo-os por completo. Havia
tambm uma senhora conhecida por Zabel, que
tinhaumacasanopdomorro;tododiaelavinhaparaaPrainha,onde tinha duas
filhas, e se relacionava com outras pessoas. Esta senhora gostava
muito de beber cachaa, tomar 'umas duas', como diziam
naqueletempo.Conta-sequecertodia,na'boquinha'danoite,depois de
tomar 'suas duas', ela saiu da Prainha em direo a sua casa e ao
aproximar-se de um daqueles cajueiros, ouviu um som, como se fosse
um toque de violo. Ela foi at l, entrou debaixo do cajueiro e ouviu
mais forte o toque de violo e um barulho de dana. A senhora, ento,
ps-se a danar, passando parte da noite danando ao som do violo, sem
que houvesse algum l que tocasse. Desde ento, esse cajueiro passou
a se chamar de cajueiro do violo. Outras pessoas contam que j
ouviram o mesmo som e o barulho de dana naquele cajueiro,
inclusivemulheresqueiamapanharlenhanomato. 27
28. 3. Lugares de Memria onsideramos lugares de memria os
locais ou espaos significativos para a construo da histria e memria
local. Constituindo-se no Capenas em marcos fsicos, mas tambm
naturais, simblicos e/ou imaginrios. So referncias para a memria
social da comunidade e permitem refletir sobre o que lembrado ou
esquecido, numa relao com o passado que se expressa nos
significados construdos nestes lugares de memria. Os coqueiros da
Tia Boi A Tia Boi plantou cinco coqueiros, que se tornaram smbolos
da comunidade, os primeiros a serem plantados no Canto Verde.
Destes, hoje, restam apenas quatro, dizem que um corisco (raio)
matou um deles. So de grande importncia para comunidade, servindo
at como referncia espacial
paraospescadoresseorientaremquandoestonomar. A Escola Velha A
Escola Velha assim chamada porque foi a primeira sala de aula da
comunidade, a partirdo seu funcionamentosurgiua organizaocomunitria
nas novenas do sagrado corao de Jesus e do sagrado corao de Maria,
por isso tem um sentido muito especial. Num destes momentos de
reflexo
comunitria,surgiuocomentriodequeasterrasdacomunidadetinhamsido
vendidas para a imobiliria Antnio Sales Magalhes, desse encontro
saiu uma comisso de pessoas para irem ao cartrio de Beberibe se
informar da
realsituao.Lfoiconstatadoqueeraverdade,queacompratinhasidofeita, e
um dos argumentos era que a Prainha no tinha morador; e que o tal
especulador j tinha um usucapio, que precisava ser anulado. Comeou,
ento,alutapelaterra. 28
29. Os coqueirais do seu Dimilsim Seu Dimilsim plantou vrios
coqueiros em um local perto de sua morada, mas as dunas enterraram
a sua casa, e ele teve que se mudar paraoutrolocaldacomunidade. Um
dos coqueiros mais famosos que seu Dimilsim plantou, conhecido como
Coqueiro do seu Dimilsim, se encontra em frente
aocentrocomunitrio.Essecoqueirocresceueadunaoenterrouuma poca,
ficando s o 'olho' de fora. A duna passou e hoje ele est l
novamente, servindo at como carto-postal da comunidade. Quando a
lagoa enche, ele fica no meio, deixando a paisagem mais bonita.
Guardamos uma grande lembrana de seu Dimilsim que alm de plantar e
pescar gostava de calafetar jangadas e de Dona Alzira,
suaesposa,tambmjfalecida,queforammoradoresmuitoantigose
estiveramjuntosotempotodonalutacomunitriapelodireitoaterra.
Felizmente, o coqueiral continua aos cuidados de seus filhos
Geraldo e Telma, pois so uma lembrana viva de seu Dimilsim um dos
eternos guardies da memria da comunidade alm de ser um espao j
utilizado para vrios momentos importantes da comunidade, como: o
primeiro encontro do Frum dos Pescadores, o lanamento da Caravana
da Lagosta, os 'arrais' e as aulas de campo da escola; sem contar
que um espao muito agradvel para se descansar. Jangada comunitria A
jangada comunitria uma embarcao conseguida atravs da elaborao de
projetos para captao de recursos, ela muito
importanteparaorganizaocomunitria,poisospescadoressofriam muito por
no ter sua prpria embarcao. Por ser uma jangada comunitria, seu uso
era feito atravs de um rodzio entre os pescadores, que nela iam ao
mar, garantiam suas pescarias e melhoravamosustentodesuasfamlias.
29
30. Hoje, esta jangada no mais utilizada para pesca, mas uma
pea importante de memria da histria local, porque foi nela que
quatro pescadores viajaram da Prainha do Canto Verde at o Rio de
Janeiro pelo mar. Tratava-se da viagem-protesto que ficou conhecida
na histria como S.O.S Sobrevivncia, que denunciou a pesca predatria
e a especulao imobiliria,
durou73diasemobilizoumeiosdecomunicaoeaopiniopblicanacionale
internacional. A cruz do finado Z Dantas Esta cruz fica na praia e
lembra um morador e pescador da Prainha do Canto Verde chamado Jos
Dantas. Certa noite ele saiu para pescar na barra do Crrego do Sal,
atividade que ele gostava de fazer com bastante freqncia, pois
pescar de tarrafa para ele 'era tudo'. Mas nesta noite ventava e
chovia muito e mesmo a famlia pedindo para que ele no fosse, o
mesmo seguiu; a espera pela sua volta foi at altas horas da
madrugada, como de costume, mas ele no chegou. Quando a famlia
percebeu que no voltava, comeou a procura. Logo ao amanhecer, bem
cedinho, quando outros pescadores iam pro mar encontraram na praia
um corpo e a tarrafa ao lado. Quando chegou a notcia, todos j
sabiam que se tratava do Z Dantas. A famlia e outras pessoas
chegaramao local e confirmaramque era ele mesmo. No se sabe se
morreu de frio ou afogado, s sabemos que foi fazendo o que
maisgostavadefazer:pescar. Centro Comunitrio No incio da construo
do Centro Comunitrio a inteno era que fosse uma igreja, mas como as
instituies que iam ajudar financeiramente no puderam contribuir
para construo do templo religioso, decidiu-se pela construo de um
Centro Comunitrio. Em 1985, mesmo com a construo do Centro
Comunitrio estando somente no alicerce, aconteceu o primeiro evento
no local: o Seminrio Rural, que contou com a participao de
representantes de comunidades de todo o Cear e com presena de Dom
AlosioLorscheider,CardealeBispodeFortaleza. O Centro Comunitrio um
espao de mltiplos usos na comunidade, j 30
31. 4. Saberes e Modos de Fazer onsideramos saberes e modos de
fazer os conhecimentos tradicionais enraizados no cotidiano das
comunidades que lhes permitem, a partir Cda experincia, produzir
seus alimentos, construir suas moradias,
fabricarobjetoseferramentasnecessriassuacomodidadeesobrevivncia.
Esses saberes so compartilhados socialmente, transmitidos de gerao
em gerao e constituem o patrimnio vivo de uma comunidade. Dentre os
saberes e modos de fazer identificados na Prainha do Canto Verde
destacamos: foi usado como creche e sala de aula, hoje utilizado
para reunies de pais da escola e de pescadores, para as assemblias
e reunies da Associao de Moradores da Prainha do Canto Verde, para
festas da comunidade, para
eventosdeturismocomunitrioe,tambm,paracelebraesreligiosas.
AcasadofinadoJoaquimdaRosaeNazar Joaquim da Rosa e Nazar foram dois
dos primeiros moradores que chegaram ao bairro Vermelho, a casa
deles abrigava pessoas que chegavam e no tinham onde ficar. Por
esse acolhimento, Seu Joaquim e Dona Nazar eram um casal do qual
todos gostavam muito. Um grande desejo do Seu Joaquim era construir
uma igreja, por ter ajudado na construo do centro comunitrio,
quando a inteno era que fosse uma igreja. Hoje, nenhum dos dois
vive mais com a gente, 'Deus os levou', mas a casa continua
habitada por umdosnetos. AcasadoseuCcero Foi a primeira casa de
alvenaria (tijolos) construda na Prainha do Canto Verde pela famlia
do Sr. Z Amncio, que hoje mora na comunidade de Parajuru. O Sr.
Ccero e a Dona Francisca, os atuais moradores, compraram a
casaparamorar,preservandoaestruturadacasa. 31
32. As Construes Tradicionais As construes tradicionais para
moradia na Prainha do Canto Verde eram as casas de taipa e palha,
construdas de forma artesanal com a utilizao de materiais
encontrados na prpria 'natureza' da regio: tocos de sabi e
marmeleiros, barro molhado retirado do mar e palhas de carnaba para
portas, janelas e telhado. Essas moradias tinham, na maioria das
vezes, um carter provisrio, pois com pouco tempo tinham que ser
abandonadas,poisoventocavavaousimplesmenteenterravaascasas Quase
todos os moradores possuam os saberes necessrios para estas
construes, aprendizado que era passado de pai para filho, ou seja,
transmitido de gerao para gerao. Os antigos construam suas prprias
residncias, cada uma do seu jeitinho, fazendo de suas moradas um
lugar aconcheganteecaractersticodolitoral. A Renda de Bilro Dizem
os mais idosos da Prainha do Canto Verde que a renda foi primeira
tcnica de artesanato da comunidade, s depois de muito tempo surgiu
o labirinto. Hoje existem pouqussimas pessoas que sabem fazer
renda, Maria Salete, rendeira da comunidade, diz que a renda feita
com linhasebilros,papeloealmofada,equeaprendeuafazerrendanoIguape,
com sua cunhada, a cerca de vinte anos. O que produzem, geralmente
exposto em barracas e pousadas para facilitar a venda, e esta
atividade a principal fonte de renda dessas artess. A Chica do
'Veim' e a Rosa do Pedro do 'Turico' so as outras mulheres que
ainda se dedicam a renda de bilro na comunidade. O Labirinto O
Labirinto uma tcnica de artesanato de grande importncia na
comunidade, se constituindo numa tradio muito antiga. A maioria das
mulheres da Prainha do Canto Verde sabe fazer labirinto e dizem ter
aprendido essa tcnica com as geraes passadas. Elas se renem para
fazer o labirinto em frente de suas casas. Conversando e
trabalhando com agulha, linha e pedaos de tecidos, vo criando
lindas peas, como toalhas, 32
33. panos de prato, dentre outros. Para muitas, o labirinto se
constitui como a nica fonte de renda, de onde tiram o sustento para
suas famlias. A Costura
Antigamente,aspessoasdaPrainhadoCantoVerdecosturavam suas roupas a
mo, utilizando tecidos de sacos de acar, pedaos de algodozinho (que
sobravam das velas das jangadas), sacos de estopas etc. Cortavam e
costuravam os tecidos utilizando apenas tesoura, linha e agulha e
em seguida tingiam com tinta da cor de sua preferncia. As roupas
dos pescadores irem trabalhar no mar eram tingidas com tinta
retirada da casca do cajueiro, que tornava a roupa maisdurvel.
Smuitotempodepoisapareceumquinadecosturaeapartir desta inovao a
maioria das pessoas no costura mais mo, s na
mquina.Atualmente,oscostumesdesecomprartecidosefazersuas prprias
roupas vo aos poucos se perdendo. Muitos j compram as roupas
feitas, prontas e acabadas, de sacoleiras, bancas de feiras e
pequenas lojas. Mas, ainda hoje na comunidade temos pessoas que
costuram suas roupas a mo. Segundo dona Nega, todas as roupas que
ela usa so ainda feitas mo, com ela mesma as cortando e costurando.
As Parteiras O acompanhamento da gestao e o parto das mulheres eram
feitos na prpria comunidade pelas parteiras. Detentoras de um
conhecimento que era passado de me para filha, estas mulheres
exerciam um papel importante na comunidade. Eram consideradas sbias
pela comunidade, pois geralmente davam conselhos e muitas
vezesserviamdemediadorasemconflitosfamiliares. Acompanhavam as
grvidas desde o incio da gestao at o parto, com visitas de tempos
em tempos; o acesso s parturientes era
bemdifcil.Sairnomeiodanoiteparaatenderochamadodemaisuma 33
34. vida que est por chegar era, para essas mulheres, encarado
com muito prazer e disposio. Iam muitas vezes a p, ou montadas em
algum animal. Por isso, so tidas por todos como uma parenta muito
prxima, afinal muitos dos moradores nasceram com a ajuda dos seus
conhecimentos. Tratadas por madrinha, tia ou me de umbigo, muitos
pedem a elas bno para receber sempreboasorte. Dona Maria de Lurdes
do Bajurau, 55 anos, a nica parteira viva da comunidade, conta que
aprendeu a fazer isso sozinha. Diz precisar de muita coragem para
realizar seu trabalho, mas sente-se orgulhosa e tem muita satisfao,
pelo importante papel desempenhado e pelo carinho que recebe de
quem a respeita. Com o passar dos anos, cada vez maior o nmero de
partos feitos nos postos de sade e esse saber vai aos poucos se
perdendo. Nos dias de hoje, resta apenas D. Maria de Lourdes o
ttulo de parteira da PrainhadoCantoVerde. O Mestre de Jangada Os
mestres de jangada so os detentores dos saberes e modos de fazer
destetipoparticulardeembarcao.Adquiremseusconhecimentosapartirda
experinciaeostransmitemdegeraoemgerao. Antigamente, as principais
embarcaes utilizadas para a pesca na comunidade do Canto Verde eram
as jangadas feitas de piba, uma madeira vinda do Norte. As
primeiras jangadas de piba do Canto Verde foram
produzidaspelofinadoAntnioCorriademaneiracompletamenteartesanal.
Estes barcos eram compostos de seis paus de piba, os dois do centro
chamam-semeios,osdoisimediatosdebordos,eosdoisltimosdememburas,
amarrados por uma corda formam o casco. Sobre o casco so colocados
outros elementos: o banco da vela, carninga, salgadeira, banco de
governo, calador, espeque, calos da bolina, tolete, forras,
cavilhas, mastro, tranca,
fateixadentreoutros.Nestetipodejangada,apescaficavamaisperigosa,pois
no era uma embarcao segura. A jangada de seis paus, como tambm era
chamada, fica em cima do mar, por isso tem pouca estabilidade,
embora tivesse um lugar para os pescadores se protegerem das
tempestades ou sentaremparadescansar. 34
35. A partir da dcada de 60, comeou a surgir outro tipo de
jangada, a jangada de tbua, que feita de madeira de louro e piti do
Par. Esta jangada, por ser mais pesada, oferece muito mais
estabilidade e segurana nas manobras no mar, viaja mais rpido, tem
espaoparasentar,cozinhareatpralevarpassageiros.Mesmoseela virar no
mar, dois pescadores experientes conseguem desvir-la rapidamente.
Depois do mestre Z Amncio, o senhor Antnio Corria comeou a
construir jangadas. Hoje, quem detm esse saber o Dair, morador da
comunidade, que j fez muitas jangadas, e acha muito importante o
seu trabalho. A partir dessas embarcaes artesanais que vem o
sustento e a principal fonte de renda do Canto Verde. O navegador
Amyr Klink, que esteve na Prainha do Canto Verde na ocasio da sada
da Jangada SOS Sobrevivncia para o Rio de Janeiro, atesta que a
jangada a embarcao que oferece as melhores caractersticas de
navegao entre todas as embarcaes vela. O casco do barco que ele
desenhou para velejar na Antrtica inspirado najangada. A Pesca no
Canto Verde Antigamente as jangadas eram feitas de Piba e as linhas
usadas para a pesca de fio de algodo torcido, encerado e pintado
com tinta dacascadecajueiro;damesmaformaeramconfeccionadasasredes.
Os pescadores saam para o mar e passavam de quatro a cinco dias
para voltar. Apesar do nmero dias que ficavam no mar, no precisavam
explorar regies martimas muito afastadas da costa, pois havia
grande fartura de peixes disponveis na parte mais prxima da praia.
O pescado era salgado 'ao claro da lua' e quando as jangadas
chegavam beira da praia, os peixes eram vendidos ali mesmo. Neste
tempo,jpescavamlagostacomjerer,arcodecipcompanodefioe anzol, e as
vendiam na quantidade, no no quilo. Isso era possvel
porquenestapocatinhamuitafarturadepeixeselagostas. Hoje as jangadas
so feitas de tbuas, as maiores so ocas e as 35
36. menores, chamadas de botes, possuem no isopor seu interior.
As linhas, as redes e os rengalhos so feitos de nilon e,
majoritariamente, produzidas em fbricas; j a cangalha e o manzu so
confeccionados artesanalmente,
gerandorendaparaoutrosmoradores,sobretudoosjovens. A pesca tambm
mudou muito, os pescadores vo e vm no mesmo dia, pescam de linha,
rede, manzu e rengalho e levam gelo para resfriar o pescado. Quando
retornam a maior parte da produo entregue aos marchantes para ser
vendida s pessoas de fora e o restante fica para ser
comercializadonacomunidade. Os pescadores tambm conquistaram um
entreposto de pescado para poder comercializar o pescado sem passar
pelos atravessadores, que com o tempo passaram a controlar os
preos. Hoje, o peixe e a lagosta so vendidos diretamente para os
consumidores e os exportadores, o que permitiu
estabelecerumpreojustoecomissomelhorararendadasfamlias. A
comunidade inovou a realizao da pesca artesanal com a introduo de
uma nova embarcao o Catamar, que apesar de ser mais conhecido como
barco de passeio, lazer ou de regatas olmpicas, aps vrios testes e
adaptaes tem colaborado muito com a melhoria da pesca. Essa
experincia comeou em 1999, quando alguns moradores conheceram uma
praia no Maranho onde um portugus chamado Manellis construa e
pescava com barco do tipo Catamar. Encomendou-se, ento, o primeiro
Catamar da Prainha, construdo no Maranho e batizado de Esperana. Os
resultados
dostestescomoEsperanaforamtobons,queem2006foifeitoumestaleiro para
construir barcos na Prainha. O estaleiro se constituiu em um
importante projeto que permitiu a aprendizagem da construo desse
tipo de embarcao, adaptada as condies do estado do Cear.
Participaram desse
projetopescadoresecarpinteirosvindosdevriascomunidadesdoCear. O
primeiro catamar construdo em canto Verde recebeu o nome de
Gnesisefoiseguidopormaisquatrobarcos. Paraospescadores,oCatamar
oferece:conforto,segurana,espaoparatrabalhar,altavelocidadeeenergia
solar para poder usar os instrumentos eletrnicos de ultima gerao,
como o GPS.OspescadoresdeoutraspraiaschamamocatamardeiatedaPrainha.
36
37. Modos de Comer: A Culinria
UmdospratosmaistradicionaisdaculinriadaPrainhadoCanto Verde o piro
de peixe, base da alimentao local, consumido diariamente desde os
primeiros moradores da comunidade. Segundo relatos de pessoas mais
idosas da localidade, tinha-se o costume de se trocar na praia o
peixe pela farinha de mandioca, um dos ingredientes indispensveis
no preparo do piro do peixe. Hoje esse produto de
fcilacessonaregio. Com o passar do tempo alguns pratos tradicionais
como o piro de 'grosar', a farofa de taioba, a farofa de aru e de
pistoleta, dentre outros; esto ficando cada vez mais raros na
alimentao da comunidade. Hoje em dia os pratos tpicos tradicionais
mais consumidos so: grolado, ximbu de batata, beiju, mungunz,
moqueca de arraia e lagosta, cuscuz, peixe assado, peixada, baio de
dois. Muitas destas receitas so segredos de famlia, passados de
geraoparagerao. Modos de Curar: As Rezadeiras
Oqueeucuro?Carnetriado,ossorendidoenervotorto.Esse um dos trechos
das oraes de Dona Nega, de 72 anos, uma das rezadeiras mais antigas
da comunidade. assim e de vrios outros modos que elas colocam em
prtica seus segredos de cura, aprendidos atravs da oralidade com
familiares e antepassados. As rezadeiras so espcies de mdicos
divinos da comunidade. No precisam de remdios para curar,
utilizam-se apenas da f e de suas rezasfortes. Pra ser uma boa
rezadeira tem que ter bom corao e muita f, assim fala Dona Altina,
de 70 anos, que aprendeu a rezar aos 10 anosdeidade.
Suasrezascuramquebrante,ventocado,malolhadoe
muitomais.Eugostoeachomuitoimportanteserumarezadeira,me sinto feliz
aqui no Canto Verde. Rezar pra mim uma forma de caridade, me sinto
bem em poder ajudar aos outros com minhas rezas, afirma com orgulho
Dona Nega, outra rezadeira da comunidade. So assim as rezadeiras do
Canto Verde, que com seus saberes tradicionaisproporcionamacura.
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38. 38 Modos de Curar: Remdios Caseiros H muito tempo, na
comunidade da Prainha do Canto Verde, as famlias usam remdios
caseiros como ch de ervas, lambedores, entre outros, extrados dos
recursos disponveis na comunidade e feitos pelos moradores
paratratardedoenas. Mel de Beterraba Ingredientes: beterraba,
tomate, acar. Modo de fazer: pegue a beterraba e o tomate j
cortados e coloque em uma panela com gua, leve ao fogo e deixe
ferver; logo aps a fervura retire do fogo e passe em uma peneira
deixando s o caldo, em seguida acrescente acar a gosto e leve ao
fogo novamente pra ferver mais uma vez. Usado para: gripe e
resfriado. Mel de Pepaconha Ingredientes: papaconha, casca de rom,
casca de jatob, capim santo. Modo de fazer: junte os ingredientes j
cortados em uma panela com gua e leve ao fogo, deixe ferver; ao
ferver retire do fogo, passe na peneira deixando s o caldo;
acrescente o acar a gosto e leve ao fogo novamente at que ferva
outra vez. Usado para: gripe e inflamao no corpo. Ch de Arruda
Ingredientes: arruda, gua, acar. Modo de fazer: lave as arrudas,
coloque em uma panela, acrescente gua e acar a gosto; leve ao fogo
e deixe ferver bastante. Usado para: dor de clicas e outras dores.
Mel de Abelha Ingredientes: mel de abelha e rom. Modo de fazer:
misture o mel da abelha com a rom e deixe conservar por cinco dias.
Usado para: inflamao na garganta e gripe.
39. 39 Ch de Colnia Ingredientes: colnia, gua, acar. Modo de
fazer: lave as colnias (folhas) rasgue em pedaos e coloque em uma
panela, acrescente gua e acar a gosto; leve ao fogo deixe ferver
bastante. Usado como: calmante e remdio para o corao. Ch de Hortel
Ingredientes: hortel, gua. Modo de fazer: lave as folhas da hortel
e coloque em um copo. Leve gua ao fogo para ferver, aps a fervura
despeje a gua no copo onde est a hortel e abafe. Usado para: gripe
e resfriado. Ch de Papaconha Ingredientes: papaconha, acar, gua.
Modo de fazer: lave as papaconhas e coloque em uma panela,
acrescente gua e acar a gosto; leve ao fogo e deixe ferver
bastante. Usado para: gripe e resfriado. Ch de Boldo Ingredientes:
boldo, gua, acar. Modo de fazer: lave as folhas de boldo, coloque
em uma panela e acrescente gua e acar a gosto; leve ao fogo
deixando ferver bastante. Usado para: dores no estmago. Ch de Capim
Santo Ingredientes: capim santo, gua, acar. Modo de fazer: lave o
capim santo, corte em pedaos e coloque em uma panela. Acrescente
gua e acar a gosto; leve ao fogo e deixe ferver bastante. Usado
como: calmante. Ch de Cidreira Ingredientes: cidreira, gua, acar.
Modo de fazer: lave as cidreiras, quebre em pedaos e coloque em uma
panela, acrescente gua a acar a gosto. Leve ao fogo e deixe ferver
bastante at que fique douradinho (amarelinho). Usado como:
calmante.
40. 5. Sobre os autores
PossuigraduaoemHistriapelaUniversidadeFederaldoCear(UFC).
Atualmente Mestrando do Programa de Ps-Graduao em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco (PPGA/UFPE), no qual desenvolve
pesquisa sobre etnicidade, museus indgenas e colees etnogrficas no
Cear. Esteve vinculado ao Museu do Cear entre 2001 e 2010,
inicialmente como bolsista e posteriormente como pesquisador,
gestor e tcnico do Sistema Estadual de Museus do Cear (SEM-CE). Tem
experincia na rea de Histria e Patrimnio Cultural, com nfase em
Histria e Antropologia indgena, atuando principalmente nos
seguintes temas: histria e antropologia indgena no Cear, memria
social, etnicidade, museus indgenas e comunitrios, polticas
culturais, gesto museolgica, patrimnio
eorganizao/movimentossociais. JooPauloVieiraNeto
PossuigraduaoemHistriapelaUniversidadeFederaldoCear(UFC).
Atualmente Mestrando em Patrimnio Cultural pelo Programa de
Especializao em Patrimnio (PEP/IPHAN). Assessor do Instituto da
Memria do Povo Cearense (IMOPEC) e atua nos seguintes temas:
histria, patrimnio, cultura, memria, museus comunitrios, educao
patrimonial, grupostnicosemuseologia. AlexandreOliveiraGomes
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