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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS – PROFLETRAS UFS / ITABAIANA CURTO OU LONGO, O POEMA NO ENSINO FUNDAMENTAL COMO CORPUS SENSÍVEL E POSSÍVEL Waldemar Valença Pereira 1

Qualificação de mestrado

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPEPRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS – PROFLETRAS

UFS / ITABAIANA

CURTO OU LONGO, O POEMA NO ENSINO FUNDAMENTAL

COMO CORPUS SENSÍVEL E POSSÍVEL

Waldemar Valença Pereira

Itabaiana – SEjulho de 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPEPRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS – PROFLETRAS

UFS/ITABAIANA

CURTO OU LONGO,O POEMA NO ENSINO FUNDAMENTAL

COMO CORPUS SENSÍVEL E POSSÍVEL

Projeto de Dissertação de Mestrado apresentadoao Programa de Pós-Graduação do Mestrado

Profissional em Letras (PROFLETRAS), UFS/Itabaiana.

WALDEMAR VALENÇA PEREIRAOrientadora: Prof.a. Dr.a. Christina Bielinski Ramalho

Itabaiana – SEjulho de 2014

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Resumo

Centrando-nos em composições sobre indígenas brasileiros, reunimos dez poemas líricos e curtos, de Olga Savary (1933), em forma de haicais que, somados a um poema épico, não tão longo, pois de 712 versos, A lágrima de um Caeté (1849), de Nísia Floresta (1810 – 1885), possam ser utilizados como corpus na pratica de ensino de leitura literária. Entendendo o discurso literário como único e inesgotável, a teoria da Semiotização Literária do Discurso (1984), de Anazildo Vasconcelos da Silva, proporcionou, juntamente com uma releitura do gênero épico e lírico, o necessário aprofundamento teórico a partir do qual pudéssemos elaborar uma metodologia de trabalho em sala de aula com o texto lírico/épico. Buscamos, assim, promover o debate sobre a “autonomia feminina”, o “eu do poema” e o “heroísmo épico”, a partir de obras como Poemas épicos: estratégias de leitura, de Christina Ramalho. Além disso, pesquisamos sobre como construir um corpus possível ao estímulo da leitura, a partir da sensibilização estética durante leituras de poemas. Paralelamente, abordamos algumas questões sobre ensino e literatura a partir de nomes como Umberto Eco, Roland Barthes, Constância Lima Duarte, Marisa Lajolo, Regina Zilberman, Antônio Cândido, Afrânio Coutinho, Massaud Moisés, Hênio Último Tavares, Salvatore D’onofrio, Vilson Leffa, Rildo Cosson, Tzevtan Todorov, Carlos Magno Gomes, Roberto William Cereja, entre outros pesquisadores.

Palavras-chaves: Ensino; Haicai; Epopeia; Heroísmo.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – pág. 05

1 – SOBRE O POEMA NA SALA DE AULA - pág. 11

1.1 Literatura e ensino– pág. 11

1.2 O poema como corpus – pág. 15

2 – AS FORMAS LÍRICAS CURTAS E OS POEMAS DE OLGA SAVARY–

pág. 21

2.1 O poema curto: variantes e recepção teórica – pág. 21

2.2 A poesia de Olga Savary – pág. 25

2.3 A seleção e análise de poemas curtos de Olga Savary – pág. 27

3 – ESTRATÉGIAS DE RECEPÇÃO EM “A LÁGRIMA DE UM CAETÉ” (1849) DE NÍSIA FLORESTA - pág. 38

3.1 Nísia Floresta (1810-1885), uma escritora poliglota – pág. 38

3.2 A lágrima de um Caeté (1849) de Nísia Floresta: estratégias para uma nova leitura do gênero épico – pág. 40

3.3 A lágrima de um Caeté (1849) e a questão do indianismo romântico indigenista – pág. 45

4 – DO CURTO AO LONGO: UMA EXPERIÊNCIA SIMBIÓTICA – pág. 54

CONSIDERAÇÕES FINAIS – pág. 57

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – pág. 58

ANEXOS – pág. 62

Anexo 1 – Seleção de poemas de Olga Savary - pág. 62

Anexo 2 – A lágrima de um caeté, de Nísia Floresta - pág. 64

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INTRODUÇÃO

Discutir sobre “o papel da arte literária no ensino de Língua Portuguesa

para o Ensino Fundamental” é imprescindível. Mas qual seria o papel da produção

artística de viés literário ao ser inserida em sala de aula? E essa produção literária

encontra-se, por acaso, em ampla concorrência com o ensino de Língua

Portuguesa, no Ensino Fundamental, ou, simplesmente, faz parte dele, no

currículo, integrando-o e o redimensionando em salas de aula?

Essas perguntas surgem no momento em que pesquisadores de

universidades brasileiras promovem estudos sobre o que é mais necessário para

o ensino de Língua Portuguesa executado em nível fundamental de escolas

públicas. Queremos também, por menor que seja, corporificar cientificamente a

nossa contribuição didático-pedagógica na área de Língua Portuguesa com vista

ao ensino multidisciplinar ou interdisciplinar.

Neste debate sobre “Literatura e Ensino de Língua Portuguesa”

destacamos também a importância de ser fundamentar um ensino que tenha

como meta a valorização das “variedades do português brasileiro como elemento

de identidade cultural, apontando também as nomenclaturas afro-brasileiras e

indígenas como constituintes dessa identidade” (REFERENCIAL, 2001, p. 81).1

Quando a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei 9394 de

1996 – foi modificada pela Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, estabeleceu-se as

diretrizes e bases da educação nacional, no currículo oficial da rede de ensino,

em prol da obrigatoriedade temática, não só da História e Cultura Afro-Brasileira,

com também da Indígena. Em 10 de março de 2008, o Governo altera essa

1 REFERENCIAL CURRICULAR – REDE ESTADUAL DE ENSINO DE SERGIPE, numa abordagem sobre as competências gerais para o 9º (nono) ano do Ensino Fundamental. Disponível em: http://www.lefgb.fe.ufrj.br/wp-content/uploads/2013/02/Referencial-Curricular_SE.pdf. Acessado: 04/07/ 2014.

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mesma LDB, através da Lei 11.645/08, para redigir dois parágrafos de um mesmo

artigo da LDB, mais exatamente, o artigo 26, alínea A. No primeiro parágrafo, há a

referência à importância de se estudarem diversos aspectos históricos e culturais

desses dois enormes grupos étnicos (Africanos e Indígenas); no segundo

parágrafo, o Governo decreta que conteúdos “referentes à história e cultura afro-

brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o

currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e

história brasileiras”.2

Essas preocupações denotam que, além das questões relacionadas ao

gosto pela leitura literária e à instrumentalização teórica que deve orientar a

preparação dos jovens alunos em sua formação como leitores de textos literários,

há aspectos de ordem conteudística, ou seja, relacionados aos conteúdo

veiculados pela literatura que devem ser inseridos nas práticas cotidianas de

leitura literária na escola, de modo a contribuir para que temas importantes

relacionados à cultura brasileira sejam problematizados através desses textos.

Assim, ao centrarmos nossas reflexões no trabalho com a literatura no

Ensino Fundamental, tendo como foco investigativo a poesia, tratando, em

especial, de suas formas opostas, o poema curto e o longo, necessitaremos, de

um lado, refletir sobre o conhecimento teórico relacionado a essas formas do qual

não deve prescindir um professor de Língua Portuguesa e Literatura,

independentemente do nível em que atue; e, de outro, pensar sobre como a

abordagem a essas duas formas poéticas podem, ainda, levar em consideração

2 Lei 11.645, assinada em 10 de março de 2008, pelo presidente do Brasil Luís Inácio Lula da Silva (1945 - ), quando Fernando Haddad era o Ministro da Educação, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm . Acessado em 01 /07/ 2014.

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essa preocupação com o dimensionamento da presença das minorias na

sociedade brasileira.

Em vista disso, optamos por selecionar duas autoras, Olga Savary e

Nísia Floresta, o que já demonstra nossa preocupação em dar espaço à autoria

feminina no espaço escolar, e, de sua produção, destacar textos que contemplem

o universo indígena. Assim, de Olga Savary recolhemos poemas curtos com

temática ou repertório léxico indígena; e, de Nísia Floresta, escolhemos o poema

A lágrima de um caeté, cuja feição épica será devidamente comentada no

capítulo destinado à obra. Feitos os estudos, sempre com base em teorias

compatíveis com o corpus selecionado, partimos para a proposta de uma

metodologia a ser desenvolvida em turmas do 9º. Ano do Ensino Fundamental,

com vistas a proporcionar, simultaneamente, a esses estudantes, o contato com

duas formas poéticas opostas, o poema curto e o poema longo, e a possibilidade

de, através de uma leitura sistematizada das obras escolhidas, redimensionar a

imagem cultural do índio brasileiro e problematizar questões relacionadas aos

enfrentamentos que as etnias indígenas sofreram e têm sofrido no Brasil.

A proposta, portanto, se orienta pela visão de que tanto o poema curto

quanto o longo, se estudados a partir de orientações teóricas consistentes, podem

promover um maior envolvimento dos estudantes com a leitura de poesia. E, para

estimular o gosto pela leitura e a intensidade das reflexões, optamos pelo trabalho

com a poesia ilustrada, com foco óbvio na imagem do indígena brasileiro, tal

como se discriminará no capítulo 4.

Em termos de estrutura, este trabalho se divide em quatro capítulos.

No primeiro, tratamos de questões relacionadas à presença do poema na sala de

aula e à formação do gosto pela leitura literária. Para isso, fizemos uso de

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reflexões de nomes como Antônio Candido, Magda Soares, Carlos Gomes,

Roland Barthes, Rildo Cosson, Tzevtan Todorov, Salvatore D’Onofrio, Massaud

Moisés. Ainda nesse capítulo, discriminamos avalição prévia que fizemos de livros

didáticos, com o intuito de dimensionar, dentro da perspectiva que nos interessa,

a presença neles do poema curto e longo assim como de conteúdos relacionados

às questões indígenas em atendimentos aos preceitos da Lei 11.645/2008. Os

livros didáticos estudados foram os de Menna, (2012), Discini e Teixeira (2012) e

Travaglia (2012). Concluímos o capítulo com breve reflexão de Funari e Piñón

sobre o trabalho com questões indígenas na escola.

No capítulo 2, passamos à categoria poema curto e à abordagem aos

poemas de Olga Savary, sem deixar de oferecer algumas informações sobre a

autora e sua obra. Hênio Tavares e Massaud Moisés foram os nomes em que nos

apoiamos para investigar as formas líricas curtas e sobre elas trazer algumas

observações, com o intuito de ilustrar os procedimentos de pesquisa que, mais

adiante, nos levaram ao haicai (ou hai-kai) e à poesia de Olga Savary. No âmbito

da análise dos poemas selecionados, fizemos uso das reflexões teóricas de

Anazildo Vasconcelos da Silva. Também é importante registrar que as análises

foram apresentadas de forma a explicitar que tipo de reflexões prévias orientaram

a preparação da metodologia. Como nos encontramos em um momento de

qualificação, é importante termos a oportunidade de verificar se o

encaminhamento crítico da leitura dos poemas está bem estruturada e coerente

com a proposta metodológica apresentada. Assim, restringimo-nos à análise de

um poema, enquanto sugerimos o desenvolvimento das outras. Após a

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qualificação, teremos mais parâmetros para desenvolver mais profundamente a

leitura analítica dos haicais de Savary.

No capítulo 3, estudamos, teoricamente, a poesia épica e nos

debruçamos, especificamente, sobre Nísia Floresta e sua epopeia A lágrima de

um caeté. A base teórica sobre o épico veio de Anazildo Vasconcelos da Silva e

Christina Ramalho. Já o estudo crítico do poema de Floresta partir da importante

contribuição crítica da nisiana Constância Lima Duarte.

No capítulo 4, apresentamos, neste momento, um rascunho da

metodologia a ser desenvolvida. Iniciamos com reflexões de Perini e Leffa sobre o

ensino de gramática e os estudos metacognitivos e passamos a descrever os

primeiros esboços da metodologia a ser proposta, adiantando que a mesma

envolve os seguintes passos: a) trabalho de leitura crítica de dez haicais de Olga

Savary; b) atividade lúdica de ilustração dos poemas; c) leitura crítica do poema A

lágrima de um caeté; d) atividade lúdica de ilustração de trechos do poema

nisiano.

Quantos aos anexos, esclarecemos que, além de apresentarmos todos

os poemas selecionados, cuidamos de inserir, sob forma de notas de rodapé,

informações sobre alguns aspectos dos poemas e questões que brotaram da

observação de algumas peculiaridades dos mesmos. Posteriormente decidiremos

quais dessas notas serão mantidas e quais delas suprimidas, ou em função do

esclarecimento da dúvida ou por concluirmos não ser necessário ampliar ou

aprofundar o debate sobre o aspecto destacado. De toda maneira, em relação ao

poema de Nísia floresta, nossa intenção é preparar uma versão comentada do

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poema e oferecê-lo a professores do Ensino Fundamental que desejem trabalhá-

lo em sala de aula.

O objetivo maior deste trabalho, enfim, é, dos poemas curtos ou haicais

de Olga Savary ao poema longo de Nísia Floresta, criar uma maior habilidade

estratégica à competência leitora de estudantes do 9º (nono) ano do Ensino

Fundamental.

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1 – SOBRE O POEMA NA SALA DE AULA

Graças ao Romantismo, a nossa literatura pôde se adequar ao presente.(CANDIDO, 2003, p.327)

1.1 Literatura e Ensino de Língua Portuguesa

As produções literárias antigas, modernas e/ou contemporâneas não

são realizações mecânicas que possam ser apenas decodificadas. Devidamente

elucidadas, as obras literárias ultrapassam a barreira da decodificação textual,

indo mais além de uma análise ingênua.

Por sua vez, a crítica literária ofereceu leituras de viés historiográfico,

psicológico, sociológico, linguístico ou semiológico, a fim de promover uma leitura

mais apurada. As obras literárias, no âmbito específico das aulas de Língua

Portuguesa, no Ensino Fundamental, são abordadas através de práticas

pedagógicas interacionistas ou conservadoras. Hoje, é quase um consenso entre

os pesquisadores, a afirmação de que o ensino, através do recurso do texto

literário, ocupa um lugar de destaque no âmbito educacional brasileiro público ou

privado. De quem ensina é exigido, cada vez mais, estratégias inovadoras, pois

nelas “O leitor precisa desenvolver uma consciência crítica que reconheça as

fronteiras identitárias e passe a produzir o saber de um lugar atual (...)” (GOMES,

2009, p. 02), o que é primordial.

Essa busca pela abordagem do texto literário como uma forma eficaz

de proporcionar o estímulo à leitura, realmente, corrobora-se em livros didáticos,

por todo o país, substituindo o tradicional e ineficaz método de ensino de

memorização pela memorização, de textos como “pretextos”, onde jaziam

ensinamentos ausentes de teor crítico.

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Embora inquestionável pela sua eficácia, nos resultados de proficiência

em leitura e escrita com crianças, jovens ou adolescentes, essa abordagem

didática do ensino de Língua Portuguesa, através da utilização de textos ou obras

literárias, ainda é inovadora, pois não apresenta sequer 50 anos. Na maior parte

das aulas de língua materna, apesar da importância dada ao estudo do texto

literário, mesmo assim, sua presença ainda surge como obstáculo à aquisição do

saber.

Se, nas épocas da Colônia e do Império, o texto literário apresentava

respaldo, principalmente por existirem sociedades que valorizaram as

manifestações clássicas, excluindo os outras para o ensino-aprendizagem,

atualmente, o texto literário funciona, em livros didáticos, como uma forma de

minimizar o insucesso registrado. Seja por meio de regras gramaticais normativas

impostas e nunca debatidas, seja por meio de interpretações textuais

descompromissadas, poemas podem promover a inércia intelectual, em relação à

construção de competências textuais neste século XXI. Essas competências

leitoras a que nos referimos tornaram possível o reconhecimento da importância e

da necessidade de que os excluídos sociais “(...) adquiram o domínio do dialeto

de prestígio, não para que ele substitua o seu dialeto de classe, mas para que se

acrescente a ele, como mais um instrumento de comunicação” (SOARES, 2002,

p. 74).

Antes de ser uma ferramenta didática, em caráter multimodal ou não, o

texto literário é obra de arte a priori que provoca interpretações, em muitos casos,

ambíguas ou paradoxais. Ensinar, permitindo o acesso direto aos textos literários,

é visar a superação do seguinte desafio: como utilizar didaticamente um texto

literário (poético) de modo satisfatório e motivador (possível e sensível)?

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Muitas respostas em formas de novas ideias aparecem, na imprensa

jornalística, em livros publicados, resultados de teses acadêmicas de mestrados e

doutorados, e todas elas, direta ou indiretamente, apontam para a legitimidade do

uso do texto literário (por si mesmo), no geral, e do poema, em particular, como

sem pretexto para o ensino de outras habilidades que não estejam relacionadas à

leitura, interpretação e produção textual. A obra literária para ensinar Literatura, o

poema lírico ou épico para ensinar o “eu do poema”, “eu do poeta” e “heroísmo

épico”, eis o princípio norteador de várias estratégias de ensino em Língua

Portuguesa.

Em um momento de Aula (1991), o crítico Roland Barthes sintetizou

bem esse assunto, ao afirmar: “Se, por não sei que excesso de socialismo ou de

barbárie, todas as disciplinas tivessem de ser expulsas do ensino, exceto uma, é

a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no

monumento literário” (BARTHES, 2001, p.18). Desse modo, educadores(as) não

podem (ou não deveriam, ao menos) resumir os estudos literários aos estudos

gramaticais normativos, aparentando dissecar a obra de arte literária como uma

reunião artificial de regras fonológicas, morfológicas, sintáticas ou semânticas.

Analisar esses níveis estruturais, no discurso literário, e, em especial, no discurso

lírico e épico, é “quebrá-los” (sondá-los das menores às maiores partes e vice-

versa) até reconstruir o significante poético3, que exaure deles durante o processo

de mimesis (ou mimeses) literária4.

3 Segundo os pesquisadores Silva e Ramalho, para que possamos entender melhor o que seja o significante poético: “A semiose literária neutraliza a condição enunciatória do sujeito histórico, impede a expressão da experiência existencial da relação factual, e instaura, ao mesmo tempo, a condição significante do investimento literário no discurso, possibilitando a elaboração sígnica da experiência lírica” (SILVA e RAMALHO, 2007, p. 29). 4 Se formos fazer uma analogia com o grego antigo, em face de uma harmonia com o nosso conceito de “analisar”, confirmamos que a palavra “análise”, realmente, significa “quebra” (BAGNO, 2004, p. 87).

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No século XXI, o pesquisador Rildo Cosson, a partir de estudos de

Wilson Leffa sobre a leitura como um processo de meta-cognição, no final do

século XX, de modo sintético, teorizou sobre a existência de três perspectivas

para o estudo da leitura e, por conseguinte, para a evolução da competência

leitora: a do texto, a do leitor e a da interação social.

O estudo da leitura poderia ser centrado no texto ou, contrariamente,

ser centrado no leitor. Entretanto, de modo mais prudente e racional, o professor

centralizado na interação conciliatória, entre o texto e o leitor, atua de modo mais

promissor (COSSON, 2011, p. 40). A partir dessa conciliação, a leitura apresenta-

se como “(...) o resultado de uma série de convenções que uma comunidade

estabelece para a comunicação entre seus membros e fora dela” (IBIDEM, 2011,

p. 40).

Nessa releitura sobre esse terceiro grupo, que entende a leitura como

um ato conciliatório entre leitor e texto, em simbiose, Cosson adverte-nos para o

fato de que “Leffa não traz as críticas que ela tem sofrido” (IBIDEM, 2011, p. 40).

Cosson defende a tese de que, envolto à individualidade de cada leitura (literária),

o leitor é remetido mais uma vez ao mesmo texto literário do qual partiu

inicialmente, encerrando com ele o processo interpretativo (IBIDEM, 2011, p.40).

Sobre esse assunto, inclusive, no texto “A descrição em significação em

literatura”, o pensador Tzvetan Todorov advertiu-nos sobre o perigo de sujeitar o

ato interpretativo aos mandos e desmandos de leitores(as), já que “A

interpretação de uma imagem na consciência do leitor é necessária e pode não

ter fim nunca” (TODOROV, 1972, p. 152).

Na obra Letramento literário: teoria e prática (2011), o pesquisador

Cosson defendeu que leitores(as), em seu processo linear de construção do

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significado textual, percorrem três etapas distintas: “antecipação”, “decifração” e

“interpretação”.

A “antecipação” funciona como a etapa de ativar as operações, antes

da leitura do texto, ou seja, detectar diferenças conceituais entre uma receita

médica e um poema de amor, por exemplo; já na decifração, segunda etapa, o

momento torna-se fundamental na distinção entre um leitor iniciante e um outro

leitor mais maduro ou crítico. O leitor maduro “(...) nem percebe a decifração

como uma etapa do processo de leitura” (COSSON, 2011, p. 40); e, na terceira e

última etapa, a interpretação restringe o sentido da leitura diante das “(...)

relações estabelecidas pelo leitor quando processa o texto” (IBIDEM,, 2011, p.40)

A partir das ideias de Cosson, aprendemos que a interpretação não é

um mero sinônimo de leitura, já que:

O centro desse processamento são as inferências que levam o leitor a entretecer as palavras com o conhecimento que tem do mundo. Por meio da interpretação, o leitor negocia o sentido do texto, em um diálogo que envolve autor, leitor e comunidade” (IBIDEM, 2011, p. 40-41).

1.2 O poema como corpus

De todos os textos literários, os poemas são aqueles que mais

satisfazem o estímulo pela leitura, por serem textos em versos e, aparentemente,

de fácil leitura e compreensão. Entretanto, contrariando essa premissa

insustentável, no campo da razão, os textos poéticos são quase sempre

complexos, de difíceis interpretações, sejam eles clássicos, românticos, modernos

ou pós-modernos, em suas Retóricas.

Geralmente, poemas curtos são utilizados por livros didáticos de

Língua Portuguesa, mas suas interpretações resumem-se a métodos

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conservadores de leitura (depreensões óbvias) que transformam a interpretação

do texto poético em um mero pretexto para o ensino de conteúdos gramaticais ou,

no máximo, para um debate com resposta previamente elaboradas e

demarcadoras de “certo” ou “errado”, sob o disfarce atual de “resposta pessoal”.

Absorvemos a mudança de perspectiva (da conservadora à inovadora) com a

implantação, a partir dos anos 90, século XX, de questões respondidas como

“Resposta pessoal”. No entanto, aqui se fazem necessárias duas críticas: a

primeira é que existe uma proporção, aproximadamente, entre cinco ou mais

questões arbitrárias para uma só questão menos arbitrária com “Resposta

pessoal”; em segundo lugar, as questões de “Respostas Pessoais” são

delimitadas pelo contexto arbitrário de quem educa, enclausurando o aluno dentro

de um esquema pronto para uma educação depositária ensinada em Paulo Freire.

Se o texto for de um grandioso José de Alencar (1829 – 1877) ou de um exímio

Machado de Assis (1839 – 1908), por mais libertários que sejam autores e alunos,

a (o) educanda (o) é excluída (ou sem respaldo) a permissão de questionar “por

que este e não outro artista?”. Uma estética literária também singularmente

sofisticada, poderia ser encontrada (e aqui o é) nas escritas diferentemente

revolucionárias de escritoras poliglotas como Nísia Floresta ou Olga Savary,

ambas ausentes em livros didáticos destinados ao Ensino Fundamental.

Segundo Massaud Moisés, em seu Dicionário de termos literários

(2013), o vocábulo corpus é proveniente do Latim e significa “corpo”. Aqui,

modernamente, adotamos esse termo referindo-se “às obras selecionadas para

objeto de uma dissertação ou tese acadêmica” (MOISÉS, 2013, p.92). Nosso

corpus, constituiu-se por um total de dez haicais (forma oriental), de Olga Savary,

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tematizando indígenas brasileiros e de títulos (formas ocidentais) em Tupi-

guarani5, somados à epopeia A lágrima de um caeté (1849), de Nísia Floresta.

Com dez poemas curtos e líricos (haicais) fomentando o acesso a um só poema

longo e épico, de 712 versos, no 9º (nono) ano do Ensino Fundamental, partimos

do pressuposto de que “(...) poesia, segundo seu étimo grego, indica todo fazer

artístico, qualquer criação literária (...)” (D’ONOFRIO, 2007, p. 181).

Em seguida, enfatizamos outro pressuposto: o de construir uma

pesquisa original sobre as práticas de ensino, em Língua Portuguesa, no Ensino

Básico, elencada a partir das propostas pedagógicas (para leitura, interpretação e

escrita) ausentes, nos livros didáticos brasileiros, infelizmente. Não se cogita

muito a presença dos debates acerca do gênero épico, no Ensino Fundamental,

assim como já é consolidada a presença do gênero lírico, inclusive, cada vez mais

presente, poemas líricos modernos e pós-modernos.

Mediante esse descaso, no ensino de um gênero textual, o épico, tão

imprescindível à formação identitária de uma sociedade, mas excluído do conceito

de “textos de uso”, por autores e mercados editoriais, iniciamos nossos debates

entre orientadora e orientando, em busca sempre de sanar essa carência. Para

nos certificarmos de que as novas abordagens didáticas não resolveriam esta

latência curricular, principalmente, diante de novas leis pluriculturais para o

ensino, realizamos uma investigação de nove obras didáticas6, para o 9º (nono)

ano de ensino de Português, publicadas em 2012.

5 Segundo os pesquisadores Funari e Piñón, os principais grupos linguísticos, nesta época, na América do Sul, eram cinco: Aruaque, Caribe, Macro-jê, Tucano e Tupi (FUNARI e PIÑÓN, 2011, p. 58). 6 Selecionamos obras de diferentes editoras, entre elas a Moderna, Saraiva, Ática, Editora do Brasil, FTD, Leya, Dimensão e Edições SM.

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O intuito era o de compreender como a presença do texto poético (lírico

e épico) foi percebida por autores(as) dessas obras didáticas, ou seja, focalizando

um pouco mais, procuramos investigar quantos (as) autores (as) buscam cumprir

os preceitos da Lei 11. 645/2008, que obriga o estudo da História e Cultura afro-

brasileira e das nossas comunidades indígenas7.

Nos livros didáticos, constatamos a presença do poema lírico muito

maior do que a do épico. Os nove livros didáticos investigados trabalharam textos

poéticos e apenas dois deles não dedicaram a nomenclaturas de seus capítulos

uma reverência especial ao estudo do poema em versos, direta ou indiretamente.

Por outro lado, subcapítulos confirmam que todos esses livros

abordaram o estudo do texto poético. Mesmo assim, a poesia épica não foi

contemplada, não recebendo o mesmo prestígio que recebeu as formas líricas

que, para agravar o problema do desprestígio, se comparado às formas

prosaicas, foi visível uma enorme desvantagem de formas poéticas frente à prosa.

Muitas obras didáticas sequer fizeram menção aos poemas épicos clássicos, no

mínimo, quase sempre excluídos do ensino brasileiro público ou privado, sem

nenhuma razão preliminar convincente, a ser falsamente motivada pelo tamanho

longo ou pela linguagem hermética, no contexto de um jovem público leitor, pois

para isso, autores de obras didáticas são livres para amalgamar trabalhos com

fragmentos textuais, portanto que sejam em número reduzidos em relação

número de textos completos, preferenciais.

Emoldurando as obras didáticas, encontramos poemas dos mais

diversos estilos: clássicos, românticos, modernos e pós-modernos. Não obstante,

7 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acessado em 06/07/2014.

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um breve debate sobre a epopeia aparece somente em dois livros didáticos.

Ambos trazem a abordagem mais convencional possível e elegem Camões e Os

lusíadas (1572) como modelo estereotipado para os estudos do gênero épico

(MENNA et al., 2012, p. 224) e (DISCINI e TEIXEIRA, 2012, p. 263).

A questão do debate sobre a temática indígena, nesses livros que

estão funcionando como um suporte didático imprescindível para o ensino de

língua materna, é quase ausente. Apenas dois livros dos que foram analisados

apresentaram um debate significativo. Um deles, inclusive, apresentou-se com

dois capítulos exclusivos para a compreensão das culturas indígenas

(TRAVAGLIA, 2012, p. 99-165). Já o outro livro didático trouxe um fragmento do

poema lírico “I-Juca Pirama”, publicado em Últimos Cantos (1851), de Gonçalves

Dias (1823 – 1864), acompanhado de uma brevíssima explicação (um parágrafo)

sobre o Indianismo da 1ª Geração de poesia do Romantismo brasileiro, em razão

da utópica exaltação da natureza (MENNA et al., 2012, p. 233).

No mais, admiramos a ousadia desse livro discutir sobre estéticas

literárias já em nível Fundamental. Infelizmente, o senso crítico não foi o viés

preferido para o debate de temas tão importantes para a formação cultural de

estudantes brasileiros. Segundo os pesquisadores Funari e Piñón, ao debater

sobre a presença da temática indígena, nas escolas brasileiras, afirmam que, na

atualidade, “(...) os livros didáticos de História são os que mais tratam dos temas

indígenas na escola, ainda que estes apareçam também em obras de Geografia

(...)” (FUNARI e PIÑÓN, 2011, p. 99). Eles defendem o pensamento de que:

Se a convivência com os indígenas constitui a primeira e mais profunda maneira de se conhecer seu modo de vida e de pensamento, ela não é a única. Além da experiência etnográfica, o conhecimento da arqueologia e da literatura é fundamental. Por literatura, entenda-se não apenas tudo o

19

Page 20: Qualificação de mestrado

que os indígenas escreveram como também o que sobre eles tem sido escrito. (FUNARI e PIÑÓN, 2011, p. 34)

20

Page 21: Qualificação de mestrado

2 – AS FORMAS LÍRICAS CURTAS E OS POEMAS DE OLGA SAVARY

2.1 O poema curto: variantes e recepção teórica

A poesia lírica nasceu em forma de canto na Grécia Antiga. Sua

inscrição ainda não habitava em papiros. O texto oral ou poema oral era feito para

ser cantado com o auxílio de um instrumento musical conhecido como lira, é o

que tudo indica, pois que já havia outros instrumentos musicais, na antiguidade,

como por exemplo, a cítara e a flauta. Entretanto, a lira fora mais consagrada e

segundo Moisés:

A significação do vocábulo “lírica” articula-se estreitamente à sua etimologia: no início, designava uma canção que se entoava ao som da lira. Assinalava, pois, a aliança entre a música e o poema, ou entre a melodia e as palavras. (...) Após os gregos, fora da Europa os mais recuados e numerosos documentos concernentes à poesia lírica se encontram entre os egípcios, cujos Textos das Pirâmides datam do século III a.C. (MOISÉS, 2013, p. 269)

Se passarmos a considerar a poesia lírica como relacionada ao canto,

sem obrigatoriedade da composição escrita, então, estaremos a par de toda a

carga histórica que o poema transmite ao leitor. Até a Idade Média, os poemas

eram feitos em formas de cantigas e, na língua portuguesa, prestigiamos

belíssimas composições “de amor, de amigo, de escárnio, de maldizer”, assim

como eram conhecidas as famosas cantigas trovadorescas, registradas em

antigos cancioneiros. Essas cantigas portuguesas assemelhavam-se às canções

provençais (MOISÉS, 2013, p. 68). O que sabemos é que “(...) o consórcio com a

música persistiu como timbre dessa espécie de poesia. Até que se operasse, com

o Renascimento, o definitivo corte de relações” (IBIDEM, 2013, p. 270).

21

Page 22: Qualificação de mestrado

Investigando sobre as origens do poema curto, não podíamos deixar de

notificar que só após o século XV, “(...) com a dissociação havida entre o poema e

a pauta musical, o vocábulo “cantiga” passou a significar toda peça lírica em

versos curtos, sobretudo o redondilho, menor e maior (cinco e sete sílabas)”

(IBIDEM, 2013, p. 68).

Para melhor esclarecer essas questões, encontramos no livro Teoria

Literária (2002), de Hênio Tavares, uma obra de fôlego sobre os estudos de

Teoria Literária e, em particular, para os objetivos desta nossa pesquisa, que são

os estudos poéticos. O quinto capítulo dessa obra é dividido em duas partes para

eficácia metodológica no estudo do poema ou Poética8: Versificação e Poemática

(TAVARES, 2002, p. 161). De acordo com o poder de síntese desse autor, vimos

a saber que a Versificação é o estudo do verso poético, ou seja, uma análise

sobre os seus quatro elementos fundamentais: Ritmo, Metro, Estrofe e Som

(IBIDEM, 2002, p. 166). Por outro lado, a parte que completa o estudo da Poética,

além da Versificação, será a Poemática que busca estudar o conceito do poema9

e classificar os textos poéticos, de acordo com o gênero épico, lírico ou satírico ou

humorístico (IBIDEM, 2002, p. 224). Para Tavares, em relação aos estudos sobre

a Poética:

Tivemos, por exemplo, a arte poética dos trovadores, a “Gaia Ciência”, na época medieval da literatura portuguesa; no classicismo renascentista refluíram os preceitos de Aristóteles e de Horácio, através de suas respectivas Poéticas. (IBIDEM, 2002, p. 161)

8 Tavares faz questão de explicar que investigará o termo Poética, em seu sentido mais restrito, como: “o simples arrolamento ou compendiação de preceitos versificatórios e do estudo formal dos poemas” (TAVARES, 2002, p. 161).9 Para Tavares, o poema “É o nome genérico de toda composição literária com intenção poética. O poema pode ser em verso (o que é mais comum) ou em prosa (...)” (TAVARES, 2002, p. 225)

22

Page 23: Qualificação de mestrado

Concentrando-se, agora, nesse período medieval, uma época em que

a poesia lírica foi bastante rica em suas formas, embora ainda sendo registrada

em cancioneiros associada à musicalidade, mas já apresentando além das

cantigas ou canções trovadorescas (de amor, de amigo e de escárnio ou

maldizer), formas outras diversificadas e musicais como a Canção Redonda10,

Baladas11, Barcarolas12, por exemplo e, nas formas do gênero épico, as Canções

de Gesta13, Romances14 ou Xácaras 15, aprendemos com o pesquisador Salvatore

D’Onofrio, na terceira parte do seu livro chamada de “Teoria da Lírica”, na obra

Forma e sentido do texto literário (2007), antes de iniciarmos esta pesquisa sobre

o estudo de poemas no Ensino Fundamental, o seguinte sobre a poesia lírica sui

generis:

Evidentemente, os arroubos líricos só existem em fugazes momentos, não podendo sustentar uma longa composição literária. Daí decorre que a lírica se manifesta por meio de poemas curtos. Muito embora momentos líricos possam ser encontrados em gêneros literários de textos maiores, na epopéia (como o episódio de Inês de Castro em Os lusíadas, de Camões) ou no romance (a abertura de Iracema, de José de Alencar), a lírica, como gênero literário à parte, opera por meio de formas poéticas reduzidas: a cantiga, o soneto, o rodó etc. (D’ONOFRIO, 2007, p. 181)

10 “É a “cansó redonda” dos trovadores provençais; consiste numa variante de “leixa-pren” (poema estrófico que repete no início de cada estância o último verso da estrofe anterior), – em que o verso inicial vem a ser o último do poema” (TAVARES, 2002, p. 276).11 “As baladas, sob o aspecto narrativo, são antigos poemas medievais, cujo assunto se prende à vida cavalheiresca” (IBIDEM, 2002, p. 234).12 “Composição sentimental, acompanhada ou não de música, acusa sempre referência a caminhos por água. Em música, é típica dos gondoleiros de Veneza” (IBIDEM, 2002, p. 272)13 “São composições em versos, geralmente decassílabos e assonânticos, cujo conteúdo é a exaltação dos feitos heróicos, algumas também relatando passagens religiosas e da vida de santos. Estilizadas em linguagem popular, parecem ter surgido mais ou menos pelo século XI (...)” (IBIDEM, 2002, p. 233).14 “Etimologicamente, o termo “romance” significa “língua popular”, opondo-se à “língua literária”, que era ainda o latim nos primeiros tempos da época medieval nas civilizações dos povos ocidentais, integrantes do antigo império romano. Ficou, em conseqüência, como sinônimo de “vernáculo”, e como os poemas narrativos eram escritos “em romance”, a palavra passou a especificar essas composições (...)” (IBIDEM, 2002, p. 226). 15 “Essa espécie literária é também conhecida pelo nome de “xácara”, palavra de origem árabe, e pela variante “rimance” (...) (IBIDEM, 2002, p. 226)”.

23

Page 24: Qualificação de mestrado

Além de explicar esse lugar comum do poema, quando pertencente ao

gênero lírico, que é o lugar do poema curto, e que muito nos interessa tal certeza,

nesta pesquisa, D’Onofrio ainda realiza uma dedução elementar e muito útil, na

fundamentação teórica, aqui presente, quando argumentamos sobre a eficácia de

se elaborar uma “passagem” do poema curto e lírico ao o longo e épico, em nível

fundamental de ensino. A dedução dele consiste exatamente no seguinte: “(...) se

toda lírica é sempre poesia, não importa se em verso ou em prosa, nem sempre a

poesia em verso é lírica (...)” (IBIDEM, 2007, p. 181).

De muitos poemas curtos que existem, não há como nos abstermos da

Trova16, que é uma forma lírica de apenas uma estrofe, ou seja, “(...)

monostrófica, formada de quatro versos que condensam todo o pensamento ou

emoção.” (TAVARES, 2002, p. 309). Tentando elucidar melhor, D’ Onofrio explica-

nos que a Trova é “(...) apenas um poema, de 4 versos, medindo cada verso 7

sílabas. (IBIDEM, 2002, p. 309). Então, em uma rápida leitura, percebemos a

produção de Trovas em poetas modernistas como, por exemplo, Carlos

Drummond de Andrade e Mário Quintana. No entanto, uma outra forma, assim

como a Trova, por consistir em uma forma popular de poema curto, talvez

comparando-se apenas ao Mote17. O Mote, como não consiste a priori em uma

forma poética autônoma, assim como a Trova, na Idade Medieval, restou a lírica

moderna reduzir ainda mais o tamanho de um poema lírico. Muito provavelmente

inspirados no Mote, os poetas modernistas começaram a minimizar o poema a tal

ponto de criar a forma lírica conhecida como Micrologia. Mais uma vez, é 16 Segundo Tavares, o Rubai pode ser classificado como “(...) a trova popular dos persas, turcos, árabes, etc., gênero em que se imortalizou Omar Khayiám com o seu famoso Rubayát escrito no século XII (...)” (TAVARES, 2002, p. 301). 17 Com os Motes, eram produzidos poemas líricos como a Glosa, por exemplo. Segundo Tavares, a Glosa nasce a partir de “(...) um motivo (ou mote) e desenvolvê-lo ideativamete, repetindo-lhe os versos ou verso, através da composição ou final dela. É uma espécie de variante do vilancete.” (IBIDEM, 2002, p. 285).

24

Page 25: Qualificação de mestrado

D’Onofrio que nos ensina que Micrologia pode ser um sinônimo de “poema

minuto” dos modernistas, em outras palavras, uma forma lírica muito sintética e

breve (IBIDEM, 2002, p. 288).

2.2 A poesia de Olga Savary: seleção e análise de poemas curtos da autora

Em 1933, na cidade de Belém, no estado brasileiro do Pará, sob o ar

atmosférico da Floresta Amazônica, apresentando-se à sociedade geneticamente

e culturalmente constituída por sangue e ideias de ancestrais indígenas do Brasil

com europeus portugueses, por parte da mãe, misturados aos de europeus

russos, por parte do pai, nasceu Olga Savary.

Radicou-se no Rio de Janeiro, e, aos 19 anos, conheceu o poeta

Carlos Drummond de Andrade de que se tornou bastante amiga18.

Em entrevista concedida ao jornalista Luiz Lobo, em 2013, pela Rio TV

Câmara19, a poeta Olga Savary relata brevemente uma pequena parte de sua

imensa biografia: o seu amor pela leitura e as mais de 50 obras traduzidas, assim

o amor pela filha Flávia Savary (escritora e artista plástica) e a morte do filho

Pedro Savary (artista plástico), ambos legados da união ou casamento, no

passado, com o cartunista Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe (1932 - ), mais

conhecido pelo pseudônimo de Jaguar.

Apresentada como uma das fundadoras do Pasquim, semanário que

dura de 1969 a 1991, nessa conversa com o jornalista Lobo, ela mais uma vez

confessa a preferência de ser chamada de poeta, em vez de poetisa. Segundo a

18 Segundo ela mesma, o poeta mineiro investigou e descobriu que as famílias Savary e Drummond apresentavam ligações parentais de segundo grau, mais especificamente, famílias de primos na Rússia. 19 Olga Savary, gentilmente, concede uma entrevista à rede pública de televisão do Rio de Janeiro por aproximadamente 45 minutos. Disponível em << http://www.youtube.com/watch?v=WfsSzWk_hCQ>>. Acessado: 21 /07/2014.

25

Page 26: Qualificação de mestrado

autora, no Colégio Moderno, em Belém, foi o seu professor de filosofia Benedito

Nunes (1929 – 2011) quem a ensinou que poetas (mulheres ou homens) são os

fazem bons poemas.

Atualmente, aos 81 anos de idade, ela continua a organizar antologias

poéticas e nos revela ter um romance guardado há 20 anos, mas por ser

perfeccionista nunca o considerou publicável. Em 1982, publicou a primeira

antologia de poesias eróticas, no Brasil, reunindo 77 poetas. Entretanto, a

produção poética da Monalisa de Copacabana, assim como era chamada por

alguns artistas plásticos contemporâneos, começou doze anos antes.

Em 1970, através da Livraria José Olympio Editora, prefaciado pelo

escritor Ferreira Gullar, a poeta Olga Savary publicou Espelho provisório. Com

essa coletânea de poemas que reúne textos de 1947 a 1970, a escritora foi então

agraciada com o Prêmio Jabuti (1971) como “Autor revelação”, exatamente no

mesmo ano em que o estudioso Antônio Houaiss recebeu, esse mesmo prêmio,

como “Personalidade literária do ano”20.

Poucas vezes, referimo-nos aqui às formas líricas orientais, como o

Rubai, aqui já definido. Só que, buscando formas que se assemelham à Trova ou

ao Rubai, pesquisadores hão de se deparar com a estética (e por que não a

brevidade estética) do Haicai.

Segundo o consenso geral dos grandes estudiosos de teoria literária, o

Haicai consagrado é definido como uma:

Espécie literária japonesa de forma fixa, em estrofes de 3 versos. A estrofe deve conter 17 sílabas métricas, na seguinte ordem: 1º verso: 5 sílabas; 2º verso: 7 sílabas e o último com as cinco sílabas restantes (5 – 7 – 5). (IBIDEM, ANO, p. 285)

20 Essa informação encontra-se no site da Câmara Brasileira do Livro, a instituição organizadora do Prêmio Jabuti desde 1960. Disponível em: <http://premiojabuti.com.br/edicoes-anteriores/premio-1971/>. Acessado: 15/07/2014.

26

Page 27: Qualificação de mestrado

Direcionando-se neste sentido do poema curto de viés oriental, a fim de

concretizar nossa proposta pedagógica de criar estratégias de leitura do poema,

selecionamos dez haicais de Olga Savary, retirados do livro Hai kais (1986). Dos

cem poemas curtos, em forma de Haicais, que compõem essa obra organizada

em forma de coletânea, selecionamos justamente dez poemas líricos que

pertencem aos Inéditos de Repertório selvagem (1975-1986)21.

Em relação a essa suposta ortodoxia do Haicai (5 – 7 – 5), já

rapidamente explicada, este estudo vai em outra direção de perspectiva crítica.

Nas palavras do escritor e jornalista, também membro da Academia Brasileira de

Letras, o crítico Antônio Olinto, em 1998, prefaciando Repertório selvagem (1998),

admite que “(...) rebelde é o que a poeta Olga Savary revela ser, nos poemas

breves, nos haicais, tanto quanto nos poemas espraiados e quase como água

tocando como corpos e objetos” (SAVARY, 1998, p. 16). Por fim, já que esse

assunto será retomado no próximo subcapítulo, reproduzimos a priori, como

forma de concluir esse tema, as próprias palavras de Savary, no prefácio de Hai

kais (1986) sobre sua estética:

(...) os hai-kais destes 36 anos de poesia (1950 – 1986) têm uma liberdade que na origem não existe, condicionados às tradicionais 5/7/5 sílabas em seus 3 versos. Também não tratam só dos temas habituais: impressões da natureza e uma filosofia ligada ao fluir do tempo. Embora alguns estejam nessa linha, outros estão distantes disso, pois foram escritos com uma visão ocidental, por mais oriental que eu possa me sentir. (SAVARY, 1986, p. 7)

2.3 A seleção e análise de poemas curtos de Olga Savary

A obra poética de Olga Savary, de tão vasta, imprime ao pesquisador

um magnânimo desafio: o de se ater aos estudos de poemas compostos por

21 A obra poética Repertório Selvagem (1998) é composta pela reunião de textos líricos retirados de 12 (doze) livros de poemas de Olga Savary.

27

Page 28: Qualificação de mestrado

pessoas vivas. Inspirando-se naquelas pessoas que, como Savary, elaboraram

organizações de Antologias “não só para dar visibilidade aos colegas do fazer

poético, como também para deixar de olhar o próprio umbigo” (SAVARY, 2011,

p.83), selecionamos dez haicais de Olga Savary, uma autora de relevância no

cenário artístico brasileiro.22

Aqui, podemos mencionar as palavras de Antônio Candido, em uma

entrevista, quando se referia aos desafios de uma pesquisa voltadas para a obra

literária e a gama de autoras e autores disponíveis. Candido, afirmando que a

tradição literária brasileira, há séculos, defende a impossibilidade de se realizar

uma boa pesquisa sobre uma obra escrita por uma pessoa ainda viva. Citando o

crítico literário português Fidelino de Figueiredo (1889 – 1967), é com Candido

que aprendemos que a tese conservadora legitimada e praticada pelos estudiosos

literários era a seguinte: “enquanto o autor está vivo, ele pode mudar”23. Ele

relembra subjetivamente sua visão historicista, entre uma ótica individual-coletiva:

A minha mulher deu o primeiro curso de Modernismo na Universidade de São Paulo. Depois a coisa mudou: os jovens hoje só querem fazer tese sobre autores atuais. (...) A Universidade está aplicando os métodos de pesquisa erudita à atualidade. Cada época tem seu perfil. Não é melhor, nem pior! (CANDIDO, 2011)24

O que, contudo, é tradicionalmente visto como um empecilho para uma

avaliação crítica pertinente, porque restrita a uma obra acabada (no caso dos

escritores falecidos), parece-nos instigante desafio e forma interessante de

revelar aos estudantes uma “poesia viva” e em transformação, já que é

justamente a renovação por que todo escritor passa durante uma vida dedicada à

22 Para a SPTV, uma emissora televisiva paulista, Antônio Cândido concedeu uma entrevista brilhante sobre Literatura. Disponível em:<< https://www.youtube.com/watch?v=z912yXNZY94>>. Acessado: 20-07-2014.23 Em uma parte da entrevista de Antônio Cândido, referida aqui, há essas afirmações do crítico literário. 24 Disponível em: << https://www.youtube.com/watch?v=z912yXNZY94>>. Acessado: 20-07-2014.

28

Page 29: Qualificação de mestrado

literatura a prova de que a criação literária se renova constantemente, assim

como se renovam as leituras que se fazem das obras literárias.

Na poesia lírica de Olga Savary, há dez haicais que podem ser

pensados didaticamente a partir de nossa proposta, todos eles intitulados com

nomes de origem tupi-guarani, são eles: “Teipó” (Finalmente); “Enuçaua”

(Postura); “Uaruá/Caápura! (Espelho/ Dentro do mato); “Umbuéçaua” (Aula),

“Mairamé” (Quando); “Amurupe” (Diferente); “Iaraqui” (Bebida inebriante); “Uíre”

(Vir à tona); “Aetecupi” (Assim sim); e, por último “Catuana” (Paz). Esta foi a

ordem de retirada desses poemas curtos, no livro de coletâneas Hai Kais (1986).

Todos esses haicais também foram republicados no livro Repertório Selvagem

(1998). No entanto, nem sempre será essa a mesma ordem para a análise dos

poemas, levando-se em consideração seu discurso lírico pós-moderno25.

O poema “Teipó” e mais os outros nove haicais integram um

estratégico corpus de pesquisa, cujo intuito é estimular o gosto pela leitura crítica

em ambientes literários e poéticos do Ensino Fundamental.

A seleção e análise dos poemas exigiu-nos que dividíssemos os dez

poemas em três grupos e um de abertura. Todos são haicais, com nomes em tupi

e legendados em nota de rodapé, revelando um eu-lírico que não possui, em

nenhum momento, a visão do colonizador. Ao contrário, leitores e leitoras são

postos diante de uma voz poética que nem sempre permite a definição do gênero

desse eu lírico, partindo do ponto que estamos diante de uma escritora feminista

e erótica, no que mais de Eros (Deus do amor na mitologia grega) tem a nos

oferecer essa palavra: a ótica de Eros ou erótico.

25 Além das características modernas, os haicais de Olga Savary apresentam, esteticamente, uma manifestação discursiva que transpõe o projeto modernista, acrescentando: notas de rodapé ao poema; desconstrução das formas fixas do haicai; e, a presença do idioma indígena Tupi-guarani, propriamente dito.

29

Page 30: Qualificação de mestrado

Na abertura do projeto, será utilizado o haicai “Umbuéçaua”, com seu

significado misterioso, pois “aula” é, com certeza, um outro modelo de aula para

os povos nativos do Brasil. Talvez esse modelo de aula seja proveniente da

escola, não a moderna, mas sim a noção de skholé, na Grécia Antiga, enquanto

sinônimo de “ócio, lazer, tempo sem trabalho (...)” (FUNARI e PIÑÓN, 2011, p.

65). Os indígenas não conceberam as palavras do mesmo jeito que a

concebemos, ou seja, uma tradução que não seja crítica, felizmente, não serve e

é justamente isso, essa interpretação mais aguçada, que pretende Olga Savary,

ao escrever haicais de um jeito bem brasileiro.

Até mesmo a concepção do José de Anchieta (1534 – 1597), quando

construiu uma gramática e um dicionário sobre o idioma Tupi-guarani26, não é

igual à que compartilham as mulheres e os homens da inevitável era digital. Uma

aula é uma “Umbuéçaua”, como nos informa a nota de rodapé, editada pela

poeta, mas uma aula gerada por eu lírico que em nenhum momento permite que

seja identificada seu gênero sexual, mas que se revela como um suposto

indígena capaz de entender “de coisas plenas”, ou melhor, do amor.

É pelo tema do “amor para o indígena” que iniciaremos nossa análise,

propondo uma Sequência Didática27, no quarto capítulo. Irrompemos na busca de

interpretar o hermetismo envolto no eu-lírico, que, como já dissemos, não permite

26 José de Anchieta publicou, em vida, a Arte de Grammatica da Lingva Mais Vsada na Costa do Brasil (1595), em Coimbra, pela Editora Antonio Mariz. A cópia digital do exemplar da primeira edição pertence à Biblioteca Nacional do Rio. Disponível em: << http://biblio.etnolinguistica.org/local--files/anchieta-1595-arte/anchieta_1595_Arte_de_Grammatica.pdf>> Acessado: 25 – 06 – 2014.27 Com Délia Lerner aprendemos que as “Sequências Didáticas” ou “As sequências de atividades estão direcionadas para se ler com as crianças diferentes exemplares de um mesmo gênero ou subgênero (poemas, contos de aventura, contos fantásticos...), diferentes obras de um mesmo autor ou diferentes textos sobre um mesmo tema. Ao contrário dos projetos, que se orientam para a elaboração de um produto tangível, as sequências incluem situações de leitura cujo único propósito explícito – compartilhado com as crianças – é ler. ” Disponível em: << http://revistaescola.abril.com.br/producao-de-texto/modalidades-organizativas.shtml>>. Acessado em: 27/07/2014.

30

Page 31: Qualificação de mestrado

ser identificado como eu lírico feminino ou masculino. Isso emana do poema pós-

moderno, na medida em que ele afasta-se da “autoreferenciação modernista”, em

detrimento de uma “hetero-autoreferenciação pós-moderna”28. É por isso que:

A intertextualidade pressupõe uma relação externa de contraposição do referente original com o novo, propiciando o diálogo; já a intratextualidade cria uma relação interna de assimilação dos fragmentos referenciados no significante do novo poema, impedindo o diálogo explícito entre os textos. Ou seja, o diálogo torna-se implícito, intratextual, podendo todavia, ser resgatado pelo crítico que, conhecendo as obras referenciadas, faz uma leitura dos enunciados no interior da nova obra, contrapondo os textos na instância dialógica da comparação. (SILVA, 2010, p. 24)

Utilizamo-nos da teoria do pesquisador Anazildo Vasconcelos da Silva,

e aprendemos que o discurso moderno está voltado mais para a natureza da

intertextualidade, enquanto que o discurso literário apresenta-se mais soerguido

por um arcabouço intratextual, exigindo, indiscutivelmente, do analista leituras

prévias. No âmbito da intratextualidade, quem lê uma obra poética como a de

Olga Savary29, por exemplo, precisa remontar a outros discursos poéticos

(haicais, indianismo crítico, notas de rodapé, etc.), implícitos no texto lírico pós-

moderno. Em outras palavras, o poema curto, forma escolhida por nós e, em

muitos momentos, na poesia lírica de Savary, remete-nos a outras análises ou

observações conclusivas sobre os poemas minutos ou Micrologia (TAVARES,

ANO, p. 288) do poeta modernista Oswald de Andrade (1890 - 1954) ou sobre os

milenares poemas orientais (japoneses).

28 Segundo Silva, “A retomada modernista converte a referenciação poética num processo metapoético que inscreve o ato da criação poética no âmbito discursivo do próprio poema” (SILVA, 2010, p. 22); enquanto que, por outro lado, na lírica pós-moderna, referir-se a “hetero-referenciação poética consiste, basicamente, em fazer de enunciados poéticos a matéria do poema, desvinculando-os, porém, de seus referentes originais (IBIDEM, 2010, p. 23)29 Silva define Olga Savary esteticamente de poesia autoral. Para ele, esse grupo não se incompatibiliza, de forma alguma, “com o fechamento metalinguístico das vanguardas”, já que, na geração de 1960, autores como Mário Faustino, Marly de Oliveira, Carlos Nejar, Ivan Junqueira, Affonso Romano Sant’Anna, Ildásio Tavares, Marcos Accioly, Olga Savary e dezenas de outros sustentaram “o esgotamento da tradição modernista na continuidade poética da série literária” (SILVA, 2010, p. 15).

31

Page 32: Qualificação de mestrado

Em “Umbuéçaua”, temos um poema arquitetado sob a base de versos

escritos em redondilhas maiores, ou seja, na forma 7/7/7. Savary30 reconstruiu

assim, a partir das mais antigas formas orientais de poetas como Bashô, Buson e

Issa31, formas ligadas a uma escrita transmitida por ideogramas, mas que agora

são vivenciadas com a poeta brasileira, partindo de temáticas ocidentais e/ou

indianista crítica. O eu-lírico volta-se para outros valores e visões sobre a

colonização europeia.

Embora composto por três versos, em redondilhas maiores,

“Umbuéçaua” é um poema lírico com apenas duas frases (ou dois movimentos). A

primeira é: “De coisas plenas melhor não fazer alarde.” Só para essa frase,

Savary usou dois versos ou duas linhas poéticas. O que isso quer dizer?

Há uma metáfora implícita nisso, ou seja, “coisas plenas” merecem um

tempo-espaço maior nas preocupações humanas e, no contexto poético,

poderíamos sentir isso. O eu-lírico (implícito), como se quisesse induzir leitores

(as) a interpretar que “coisas plenas” seriam um sinônimo de “Amor”, já que essa

palavra é a que segue após o término da frase, fechando a métrica do segundo

verso: “não fazer alarde. Amor”.

A visão pessimista do amor, quando pergunta o eu-lírico de modo

satírico, no terceiro verso, “que mais é senão gorjeta?”, não pode ser vista sem o

mínimo de criticidade.

30 Todos foram haicais brasileiros que dificilmente seguem a fixação da contagem métrica de 5/7/5. 31 Sabemos que Olga Savary foi uma poeta que se mostrou “Apaixonada pela cultura japonesa desde menina, tendo traduzido O LILVRO DOS HAI-KAIS, de Bashô, Buson e Issa, os 3 mestres do hai-kai (editado em 1980 por Massao Ohno/ Roswitha Kempf/ Editores, com prefácio de Octávio Paz e desenhos de Mabe) (...) (SAVARY, 1986, p. 7)”.

32

Page 33: Qualificação de mestrado

A expressão “Umbueçaua” e “Gorjeta” são pares paradoxais32. Não há

aulas de como conquistar “gorjeta” entre os nativos brasileiros, a não ser que o

aluno perceba que “gorjeta” tem parentesco etimológico com o verbo gorjear,

relacionado ao canto das aves e que os índios assobiam para atiçar os pássaros

a gorjearem. Logo, em uma leitura mais crítica, a polissemia da palavra “gorjeta”,

misto de canto de pássaro e dinheiro pago por um serviço, revela um amor

pessimista. No entanto, esse pessimismo sobre o conceito de “Amor”, associado

friamente (ou não, pois canto de pássaro) à “gorjeta”, é totalmente focalizado

numa espécie de “Amor Europeu”. É como se, em uma aula indígena, os mais

velhos ensinassem, por tradição, aos mais novos, que suspeitem sempre que

ouvirem a palavra “Amor” em boca de homens europeus, já que esses

colonizadores são mal acostumados a transformar “gorjetas de pássaros” em

“gorjetas de dinheiro”, com seus espelhos e suas doenças venéreas.

Essa noção de amor assemelha-se àquela que os europeus

ensinaram, teoria e prática: a de ser, no final das contas, uma simples “gorjeta”.

Psicologicamente, o eu lírico de “Umbueçaua” propõe que é “melhor não fazer

alarde”, ou seja, não subestimar a fraqueza e a falta de plenitude desse amor, o

que é paradoxal. No entanto, não haveria aula mais crítica e mais justa, a ser

ministrada entre os nossos ancestrais indígenas, já que a palavra “Amor” tem, no

espaço lírico dessa composição poética, um teor severamente crítico, ou melhor,

“amor” entendido e ensinado como “forma de pagamento”, seja em canto ou

dinheiro. Deparamo-nos diante de uma metáfora inteligente para aquele momento

de colonização em que europeus deram espelhos e doenças venéreas, como 32 Encontramos que gorjeta “Vem de gorja, sinônimo desusado de garganta, de onde proveio também o gorjeio dos pássaros. A gorjeta era uma pequena quantia que se dava a quem tivesse realizado trabalho extenuante e cansativo, a fim de que ele comprasse uma bebida para molhar a garganta" Disponível em: << http://www.dicionarioetimologico.com.br >> . Acessado em: 27/07/2014.

33

Page 34: Qualificação de mestrado

forma de “gorjeta”, além do alarde que fizeram para ditar o “Amor” através de

procissões e missas católicas portuguesas ou cultos protestantes holandeses ou

franceses. O “Amor europeu” que busca destruir ou expulsar os povos nativos do

litoral para o interior, subestimando-os ou, simplesmente, aculturando-os, desde o

final do século XV até – e por que não dizer? – os nossos dias atuais do século

XXI.

A seleção dos outros nove poemas, como já frisamos, ocorreu em três

grupos contendo três poemas em cada grupo, já que a nossa intenção

metodológica é envolvermos os demais poemas com três grandes temas: a

“autonomia feminina”, o “eu do poema” e o “Heroísmo épico indianista”).

Começando pelo tema da Autonomia Feminina, já que tanto Nísia

Floresta quanto Olga Savary mostraram ser mulheres feministas, mergulhadas no

estudo intensivo das letras e das artes e nos postergando produções inovadoras,

revolucionárias e imemoráveis, iremos analisar três haicais, em função da

autonomia da mulher. Os poemas que integraram este grupo para facilitar um

debate sobre a “autonomia feminina” serão: “Teipó”, pois apresenta uma

personagem feminina em simbiose com a água “e arde sem saber”; outro poema

deste grupo é “Aetecupi”, que apresenta duas personagens pela perspectiva do

“ventre”, por que não, feminino; e, por fim, integra este grupo o haicai “Mairamé”,

que exigirá uma interpretação de fôlego, já que o “Amor”, antes debatido no

poema “Umbueçaua” como “gorjeta”, ganha novas proporções, a partir de novas

relações metafóricas com a “prisão” e a “religião”.

O segundo trio de poemas a ser analisado aqui será por nós formulado

para que se proporcione sentido (Sequência Didática) aos estudos literários sobre

o “Eu do poema”. Esse eu lírico que irá ser apresentado, na segunda parte do

34

Page 35: Qualificação de mestrado

trabalho ligada ao épico, apresentar-se-á como um eu lírico/narrador. Para

trabalhar o “eu do poema”, apenas no gênero lírico, pensando na perspectiva do

estudo de gênero (feminino ou masculino) do eu lírico, a fim de diferenciá-lo do

“eu do poeta”, aqui sempre feminino pois são duas poetas em estudo. Serviram-

nos, então, os haicais “Catuana”, por apresentar um eu-lírico feminino “não

completamente revelado” pela palavra “aleluiada”, já que esta pode referir-se ao

eu lírico, mas também à questão da “sangria”; depois, pensamos em analisar o

haicai “Iaraqui”, por identificar-se como um vampiro, possibilitando associações

com o gênero masculino para um eu lírico antropofágico, assim como em

“Catuana”; e, para fechar a tríade, analisaremos o poema “Uíre” e seu

envolvimento com o plano maravilhoso sustentado pelo fato de o eu lírico

comparar-se não a uma “esfinge”, mas sim, a “estátuas de sal e de mel”,

dificultando perpetuamente a identificação do gênero (masculino ou feminino)

desse mesmo eu-lírico, diferente do “eu do poema”, fácil de ser depreendido, em

seu eu feminino ou masculino identificado, através de dados biográficos apenas.

Por último, analisaremos o terceiro grupo de poemas que serão

apresentados com o intuito de fortalecer e estimular o debate sobre o tema do

“heroísmo épico indianista”, já pensando que, depois dessas análises, nesse

bloco, o projeto irá inserir o poema épico, no Ensino Fundamental, facilitado pela

concepção do poema curto, em forma de haicai, e pela estética romântica da

epopeia nisiana que, por ser revolucionária, não apresenta mais de 712 versos

eivados de momentos líricos.

Nesse terceiro e último bloco, analisaremos o haicai “Enuçaua”, por

versar sobre o “perigo” e o “amor natural”, descontruindo agora aquela noção

primeira de amor que apresentamos como “gorjeta”; em seguida, analisaremos

35

Page 36: Qualificação de mestrado

“Uaruá/ Caápura” e todo seu lirismo no prisma do verbo “perseguir”; e, por fim,

analisaremos o poema “Amurupe”, já que o simbolismo do “mar” e temos,

novamente, a temática do “Amor”, só que agora, sob o prisma do “prazer” como

forma de libertação.

No último capítulo, desta dissertação, dispusemo-nos a delimitar as

estratégias de leituras, em prática, para fomentar um ensino-aprendizagem

autônomo e plenamente capaz de promover uma apreciação literária estético-

crítica. Do poema longo e, por extensão, do gênero épico em diálogo com o

gênero lírico, dissertaremos sobre uma possível simbiose que condensará o

entendimento do estudante sobre o eu lírico num eu lírico/ narrador, capaz de se

movimentar com a primazia de um heroísmo épico.

Já o que demarcamos como contexto histórico-literário, dos poemas

deste projeto, a seleção percorre o indianismo romântico do século XIX e chega

aos resquícios da poesia autoral (SILVA, 2010, p 15) pós-modernista intratextual

(IBIDEM, 2010, p. 23).

O próximo capítulo irá, justamente, tratar de tais fundamentações

teóricas para a construção de uma metodologia didática, a fim de se construir

uma experiência simbiótica possível (e sensível), a partir da percepção mais

apurada do corpus, dos poemas, e mais especificamente, dos haicais (ao épico),

numa busca intelectual pela medida exata da fruição textual em cada estudante

sem o abandono do senso crítico e das técnicas de leitura.

36

Page 37: Qualificação de mestrado

3 – ESTRATÉGIAS DE RECEPÇÃO EM A LÁGRIMA DE UM CAETÉ (1849) DE NÍSIA FLORESTA

3.1 Nísia Floresta (1810-1885), uma escritora poliglota

Além de conhecida principalmente como Nísia Floresta, a educadora

Dionísia Gonçalves Pinto adotou vários pseudônimos durante sua carreira

profissional de escritora ou de tradutora: de Telesila a Nísia Floresta Brasileira

Augusta, ou de Floresta Augusta Brasileira a Mme. Brasileira Augusta ou então a

F. Brasileira Augusta, entre outros em formatos abreviativos desses mesmos

nomes citados. Esses pseudônimos marcaram a carreira dessa escritora poliglota

e intercontinental. Segundo a pesquisadora Constância Lima Duarte, ela atingiu

um status internacional de escritora, em sua época, e foi amiga (discípula às

avessas, pois Metafísica)33 de Auguste Comte, filósofo positivista do século XIX.

Em 1856,

(...) na medida em que o poeta se distingue do cidadão, a voz do poema equivale à do poeta. E dado que a voz do poeta é, pelo menos, um “eu” contíguo do “eu social”, podemos supor que a voz do poema seja igualmente um “eu”, agora insulado, livre de qualquer sujeição à origem, incluindo o “eu do poeta”. (MOISÈS, 2003, p. 137)(…) Nísia já estava na Europa e, mais precisamente, em Paris. Neste período, uma Lettre au Brésil (datada de 1846) atribuída a ela, era publicada na revista francesa Ideal dos Povos (n° 3), ao lado de uma colaboração de Auguste Comte. (…) (DUARTE, 1995, p. 45).

Era a fase da maturidade de Nísia? Talvez sim, segundo Duarte (1995,

p.45). Nísia publicou de 1832, iniciando com Direitos das mulheres e injustiça dos

homens (1832), que foi uma tradução livre do livro Vindication of the rights of

33 Constância Lima Duarte é uma cientista brasileira do campo literário que, ao ler as 13 cartas de Auguste Comte e de Nísia Floresta, datada em 1856 (Duarte, 1995, p. 45-49), destaca que, para o filósofo francês, a pessoa amiga e discípula de Nísia era de “hábitos metafísicos”, mas preciosa discípula.

37

Page 38: Qualificação de mestrado

woman – with Scritures on Political and Moral Subjects (1792), da autoria original

em inglês de Mary Wollstonecraft, até 1878, em Paris, com a publicação intitulada

de Fragments d’un Ouvrage Inèdit – Notes Biographiques (1878). Nísia produziu

por completo 15 obras34. E nesse todo encontra-se A lágrima do Caeté (1849)35.

Duarte (1995) elaborou, no final do século passado, uma opção de

releitura, não só da vida, mas também da obra de Floresta, incluindo publicações

internacionais (França, Itália e Londres), e elucidando cientificamente o segredo

autoral de obras36 de autoria(s) duvidosa(s), sob o rótulo (autoral) de

pseudônimos, como, por exemplo, o poema épico A lágrima de um Caeté (1849),

publicado sob o mistério de um nome secretíssimo: o pseudônimo de Telesila37.

Os pseudônimos de Nísia (ou textos sob o véu dos anonimatos) foram

criados também na intenção de evitar a censura imperial brasileira, principalmente

por suas obras geralmente incutirem um teor revolucionário contra o

conservadorismo vigente, seja na educação, seja na estética literariamente

romântica em vigor no Brasil Império, perto da metade do século XIX. Não era,

portanto, apenas uma questão de marketing editorial voltado aos jornais e aos

livros.

Na juventude dessa artista oitocentista, o Brasil já era bem dividido em

dois grupos políticos: conservadores e liberais. Pode-se dizer, inclusive, que Nísia

34 Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/NisiaFloresta/obr.html Acessado: 15/03/2014.35 A veracidade dessas informações e de outras informações aqui sobre vida e obra de Nísia Floresta – também agora um nome de um município do brasileiro (antiga cidade de Papari), localizado no Estado do Rio Grande do Norte, provém de estudos da especialista no assunto Constância Lima Duarte (1995; 1997).36 Ao encontrar na Itália, um único exemplar de uma única edição italiana de Le lágrime de un Caeté, traduzido por Ettore Marcucci e publicado em Florença no ano de 1860, a pesquisadora Constância Lima Duarte termina por comprovar a veracidade da autoria de Nísia Floresta nesta obra que, como era de teor revolucionário, foi publicada sob o recurso do pseudônimo “Telesila”.37 Conta-se que Telesila, poetisa grega, nascida provavelmente no século VI a. C., viveu em Argos e assumiu a liderança da resistência contra as tropas espartanas de Cleómenes. Na ausência do exército, vestindo-se de forma masculina, Telesila com outras mulheres e escravos conseguiriam a vitória na resistência frente aos guerreiros espartanos.

38

Page 39: Qualificação de mestrado

herdou do anonimato ou dos pseudônimos dos revolucionários poetas árcades

(brasileiros), um referencial épico. Mas ela acrescentou à estética neoclássica

novas intenções estilísticas panfletárias e um romantismo de viés tão crítico que

incomodou muita gente. Por isso mesmo, muito tempo depois de viver o

anonimato nos manuais de literatura, inclusive até os dias atuais, por uma

questão não só de erro de percurso historiográfico, a princípio, mas por razões

talvez de dificuldade ao acesso a suas obras e escritos jornalísticos. Nísia

Floresta, contudo, foi aos poucos redescoberta, ainda mais, a partir de 1938, com

uma reedição editada pela Revista das Federações das Academias de Letras,

contendo um estudo crítico de Modesto de Abreu e comentários de Adauto

Câmara. Foi o próprio Adauto Câmara que fez uma pesquisa e a publicou no livro

História de Nísia Floresta (1941) 38, abrindo caminho para um novo viés crítico

sobre a escritora poliglota.

Aproximadamente 17 anos depois do primeiro livro, viria a outra

consagração, com o poema épico A lágrima de um Caeté (1849).

3.2 A lágrima de um Caeté (1849) de Nísia Floresta: estratégias para uma

nova leitura do gênero épico

O que possibilitaria uma comparação do heroísmo épico de um índio,

no poema A lágrima de um Caeté (1849) de Nísia Floresta, com o heroísmo épico

através dos feitos bélicos do personagem Ulisses, na Odisseia (século X a.C.), de

38 Somente dez anos depois, em dezembro de 1948, um Decreto-lei de número 146, modifica o nome da cidade de Papari para o nome Nísia Floresta, agora também um nome do Município Nísia Floresta no Estado atual do Rio Grande do Norte.

39

Page 40: Qualificação de mestrado

Homero? Essa será a pergunta a ser paulatinamente respondida até o final deste

artigo.

Primeiro, é preciso notar que, infelizmente, não é pequena a lista de

estudiosos da crítica literária que, em vão, argumentam sobre a decadência, no

século XIX, e a extinção, no século XX, da poesia épica e, por extensão, da

epopeia. No entanto, desde tempos imemoriais, a produção literária acontece de

modo soberano diante da crítica literária. É fato. Caso assim não fosse, todo

processo literário estagnaria em um simples modelo, uma só estética e um

exclusivo estilo individual e coletivo. A cada século, no mínimo, os estilos literários

são atualizados pelos artistas num processo ideológico e crítico, como foi o caso

das escolas românticas e modernas brasileiras. Sendo assim, a

contemporaneidade é ainda até hoje arrematada pelo discurso épico i,

retoricamente atualizado. De acordo com a teoria de Anazildo Vasconcelos da

Silva:

O discurso épico caracteriza-se por sua natureza híbrida, isto é, por apresentar uma dupla instância de enunciação, a narrativa e a lírica, mesclando por isso mesmo, em suas manifestações, os gêneros narrativo e lírico. (…) Com a conversão da proposta aristotélica em teoria do discurso épico, impõe-se o reconhecimento da epopéia apenas por sua instância narrativa, predominante na elaboração discursiva da épica clássica, fazendo com que a crítica, inadvertidamente, arrolasse a epopéia ao gênero narrativo, figurando-a ao lado de uma narrativa de ficção (…) (SILVA e RAMALHO, 2007, p.49).

O discurso híbrido (lírico e narrativo) é o que definirá o discurso na

epopeia. A tendência mais para um ou outro polo, lírico ou narrativo, não anula o

discurso épico, como julgou a crítica literária que compreendeu o romance como a

nova forma do épico.

i “Os discursos são semiologicamente neutros, isto é, não determinam a natureza significante de suas manifestações, que é uma atribuição das semióticas que os investem” (SILVA e RAMALHO, 2007, p. 26).

40

Page 41: Qualificação de mestrado

Retirando esse atraso conceitual da crítica literária oitocentista, que,

atrelada aos paradigmas do filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.),

terminou por descontextualizar e por não perceber os fenômenos de

transformação da épica clássica em épica romântica e, posteriormente, em

moderna e em pós moderna, pode-se dizer que um Caeté pode ser tão herói

quanto Ulisses. Porém, a falta de advertência encontra-se em muitos livros de

teoria literária, que confundem o gênero narrativo com o gênero épico, afirmando

que este sucumbiu diante daquele. Só que, por outro lado, há pesquisadores que

conseguiram atualizar as reflexões críticas acerca da epopeia e do gênero épico,

chegando à conclusão de que o épico ainda sobrevive ii, com seu discurso

transformado ao longo do tempo, com sua matéria épica e com seus elementos

referenciais ressignificados, embora a crítica literária vigente não os tenha

reconhecido totalmente.

Não seguindo a mesma proposta teórica aqui empregada, que é a da

dupla semiotização do discurso épico, nas instâncias lírica e narrativa (SILVA e

RAMALHO, 2007, p. 62), Massaud Moisés é mais um consagrado nome a

defender a existência de poemas épicos na produção de escritores consagrados e

modernos. Segundo suas palavras:

(…) Com as transformações introduzidas pela estética romântica e subseqüentes, a poesia épica despojou-se de seu caráter narrativo, mas preservou os demais ingredientes: eis por que, apesar da aparência contrária, a poesia épica continua a ser cultivada. T.S. Eliot, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima são alguns dos exemplos modernos do gênero. Sucede, porém, que a rejeição da peripécia faz que a poesia épica dos nossos dias se assemelhe à poesia lírica. (MOISÈS, 2007, p. 53)

ii Para aprofundar no assunto, sugere-se o site do Centro Internacional de Estudos Épicos (CIMEEP)/ Universidade Federal de Sergipe. Disponível em: <<www.cimeep.com>> Acesso: 20-07-2014.

41

Page 42: Qualificação de mestrado

Por peripécias, Moisés quis referir-se ao heroísmo épico clássico e

seus feitos grandiosos, aventureiros. Embora esse crítico literário defenda, assim

como este estudo, a presença obrigatória do maravilhoso na epopeia, “isto é, a

interferência dos deuses na ação dos heróis” (MOISÉS, 2007, p. 53), ele

compreende que o “plano dramático” pertence às esferas do gênero épico. Neste

artigo, por outro lado, compreendemos o poema épico obrigatoriamente como

uma composição em que o plano maravilhoso funde-se ao plano histórico, e os

dois fundidos em si mesmos, a engendrar o plano literário, de onde emana o

estético. Moisés chega a discriminar as atribuições de um possível analista que

venha a interpretar um poema épico – clássico ou não –, depois de ser alertado

para a presença da dupla instância lírico e narrativa dos versos:

(…) cabe-lhe orientar sua atenção no sentido da macroestrutura do poema (…). Por macroestrutura, entende-se o arcabouço que sustenta o poema todo, o modo como se engrenam suas partes maiores (introdução, narração e epílogo), formando a unidade do conjunto: o nexo entre as peripécias, o plano dramático, etc. (…) (IBIDEM, 2007, p.53)

A concepção de macroestrutura do poema épico, proposta por Moisés,

visivelmente rompe com as concepções conservadoras que apenas entendiam o

poema épico como uma cópia inautêntica do viés retoricamente clássico. Neste

estudo, “(…) identifica-se como épico ou epopeia todo poema longo que

desenvolva uma matéria épica por meio da dupla instância de enunciação lírica e

narrativa” (RAMALHO, 2013, p. 19). Nele ou nela estará a ação heroica integrada

somente aos seguintes planos: maravilhoso e histórico.

No entanto, não se deve confundir a matéria épica com a manifestação

épica ou com o texto épico. A matéria épica preexiste diante da macroestrutura do

poema épico. Explicando melhor, a matéria épica, em formação, “pode estar

42

Page 43: Qualificação de mestrado

configurada como uma unidade autônoma que faz e se dá pronta ao poeta, ou

apenas como epos, referenciais históricos e simbólicos dissociados no processo

de formação da tradição cultural, mas que podem ser unificados literariamente”

(SILVA e RAMALHO, 2007, p.54).

No primeiro caso, em que a matéria épica surge pronta para o poeta, já

estão configurados o plano histórico e mítico simultaneamente; já no segundo

caso, em que essa mesma matéria aparece no âmbito cultural, enquanto epos, é

mais visível o seu engendrar-se a partir do plano literário (SILVA E RAMALHO,

2007, p. 55). Sendo assim, após uma revisão conceitual de estudiosos que se

debruçaram sobre a investigação do gênero épico, depois de Aristóteles, como,

por exemplo, Emil Staiger, Cecília M. Bowra, Leo Pollmann, Gilbert Highet,

Ronald Daus, Lynn Keller, os pesquisadores Silva e Ramalho (2007) publicaram a

História da epopéia brasileira (2007) e reconstruíram a noção de matrizes épicas

que estariam ligadas aos discursos épicos e à Retórica. E assim definiram:

(…) A Retórica Clássica compreende quatro períodos definidos no curso da Civilização Ocidental, o da antiguidade greco-romana, o do Renascimento do século XVI, o do Neoclassicismo do século XVIII e do Realismo do século XIX; a Retórica Romântica compreende também quatro períodos, o da Idade Média, o do Barroco do século XVII, o do Romantismo do século XIX e o do Simbolismo/Decadentismo da virada do século XIX; e a Retórica Moderna compreende os períodos do Modernismo do século XX e o do Pós-Modernismo do final e virada do século XX. (SILVA e RAMALHO, 2007, p. 24)

Diante dessas novas propostas de recepção teórica à poesia épica, o

passado esquecido tem se preenchido, e a escritora Nísia Floresta tem sido cada

vez mais reconhecida entre o público leitor moderno e pós-moderno. O nome dela

é agora o mesmo nome do município onde ela nasceu, no Rio Grande do Norte;

as obras dela estão sendo aos poucos republicadas; estudos acadêmicos têm se

debruçado sobre a vida e obra dessa patriota. Em prova de reconhecimento

43

Page 44: Qualificação de mestrado

àquela primeira mulher que teve sua imagem num quadro de parede, após ser

reconhecida como primeira escritora abolicionista brasileira, na Fundação

Joaquim Nabuco, a Petrobrás anunciou Nísia Floresta como temática para a

realização do Projeto Memória 200639.

Buscando contribuir para esse resgate, esta pesquisa, através da

perspectiva da dupla semiotização do discurso épico (SILVA, 1984) apresentada

e dos conceitos da obra Poemas épicos: estratégias de leitura (2013), de

Christina Ramalho, investigou o poema A lágrima de um Caeté (1849), três vezes

publicado (em 1849, 1938, 1997), com foco no tema do heroísmo histórico

híbrido, elaborado pelo plano literário, atualizando a questão do indianismo

romântico brasileiro.

3.3 A lágrima de um Caeté (1849): a questão do indianismo romântico indigenista

Buscando contribuir para esse resgate, esta pesquisa, através da

perspectiva da dupla semiotização do discurso épico (SILVA, 1984) apresentada

e dos conceitos da obra Poemas épicos: estratégias de leitura (2013), de

Christina Ramalho, investigou o poema A lágrima de um Caeté (1849), três vezes

publicado (em 1849, 1938, 1997), com foco no tema do heroísmo histórico

híbrido, elaborado pelo plano literário, atualizando a questão do indianismo

romântico brasileiro. Pareceu-nos importante levar a estudantes do Ensino

Fundamental, mais especificamente do 9º (nono) ano, uma obra que revela o

índio de outra forma, a engendrar poemas longos e curtos, realçando aspectos de

uma sobrevivência que só pode ocorrer a partir do enfrentamento da única

39 Disponível em: << http://www.projetomemoria.art.br/NisiaFloresta/pro.html>>. Acessado em: 26/07/2014.

44

Page 45: Qualificação de mestrado

realidade possível: a fuga. Inclusive, de acordo com os estudos historiográficos de

Silva e Ramalho (2007):

O isolamento geográfico de sociedades indígenas, apesar de sido fator importante para a sobrevivência de sua cultura, promoveu um distanciamento cada vez maior dessas sociedades do percurso registrado como história do Brasil. (SILVA e RAMALHO, 2007, p. 287)

A fuga tornou-se uma atitude heroica diante da escravidão que foi

imposta às pessoas indígenas que ficaram. Em sua obra The making of new

world slavery (1997), traduzida para o português por Maria Beatriz de Medina, em

2003, o historiador Robin Blackborn, um britânico nascido em 1940, ao dissertar

sobre “A seleção da escravidão no Novo Mundo”, na primeira parte de sua obra, é

exatamente no quarto capítulo, ao tematizar “a ascensão do açúcar brasileiro”,

revela que, no ano de 1570, no Brasil, durante o governo de Mem de Sá (1557-

72), “havia apenas uns dois ou três mil escravos africanos nas povoações

portuguesas, comparados ao número dez ou quinze vezes maior de escravos

indígenas” (BLACKBURN, 2003, p. 207). Talvez os estudiosos que, mesmo

assim, não compreendam a fuga como um ato heroico, em se tratando de um

poema longo que tematiza um contexto sociocultural de colonização brutal dos

portugueses – e de seus aliados espanhóis com a União Ibérica (1580 – 1640) –,

com todo viés crítico necessário à literatura nacional brasileira, seja pelo simples

fato de ainda hoje afirmarem que não houve escravidão das tribos indígenas

durante a colonização europeia40. Um dado muito curioso, por exemplo:

Em 1571, o Engenho Sergipe, fundado por Mem de Sá, tinha 21 trabalhadores indígenas nas tarefas especializadas da fabricação de açúcar; em 1591 já não havia nenhum trabalhador indígena nessas

40 Segundo Blackburn (2003), no século XVI, no Brasil, “Índios ‘brutos’ eram vendidos por um escudo cada, em comparação com o preço de 13 a 40 escudos de um escravo africano; índios treinados para as plantações de cana ou nos engenhos eram vendidos por cerca de metade do preço dos africanos treinados (…)” (BLACKBURN, 2003, p. 207-208)

45

Page 46: Qualificação de mestrado

funções, e sim 30 africanos, dos quais treze ocupados nas tarefas básicas da fabricação de açúcar (…). (BLACKBURN, 2003, p. 208)

Com 712 versos, o poema longo A lágrima de um Caeté discursa sobre um

“vulto de um homem”, mais tarde identificado de modo épico como um índio

Caeté que viveu e que lutou contra a colonização portuguesa, ainda no século XV

e XVI. Esse índio surge no poema, depois de uma proposição nomeada de

“Avant-Propos” em forma de prosa, às margens do Rio pernambucano

Capibaribe:

Lá quando no Ocidente o sol haviaSeus raios mergulhado, e a noite tristeDenso ebânico véu já começavaVagarosa a estender por sobre a terra;Pelas margens do fresco Beberibe,Em seus mais melancólicos lugares,Azados para a dor de quem se aprazSobre a dor meditar que a Pátria enluta!Vagava solitário um vulto de homem,De quando em quando ao céu levando os olhosSobre a terra depois tristes os volvendo…(FLORESTA, 1997, p. 35)

Esse início em decassílabo já faz alusão às solenidades do poema épico

de um Camões, por exemplo. O texto prossegue com o herói Caeté que está com

sentimentos de vingança contra o invasor português. Disposto a deixar a mata do

Catucá, nas proximidades do Recife, o índio é interpelado pelo Gênio do Brasil.

Mas, como já se advertira ao leitor, no “Avant-Propos”, esse poema foi

severamente censurado em algumas partes, inclusive essa, em que, na primeira

interseção do Gênio do Brasil, parece. Como demarcação dessa censura, a

autora põe linhas pontilhadas, e, ao se ler o poema, percebe-se uma visível

fragmentação, um ar de estrofes incompletas.

46

Page 47: Qualificação de mestrado

O Caeté segue rumo à luta de modo consciente, em busca de se aliar a

inimigos dos portugueses, os revolucionários praieiros. Antes de isso acontecer, o

Caeté rememora lembranças de nomes de personagens históricos das revoluções

que ocorreram, três séculos depois da derrota da tribo dos Caetés.41 O índio, após

ouvir o grito de guerra “Eia, avante guerreiros!”, seguido de um grande estopim,

quando pode ver melhor a cena, depara-se com o herói morto Nunes Machado

(1809-1848)42, um dos líderes da Revolução Praieira.

O Caeté, que dignamente chora, recebe a presença do Gênio do Brasil, um

personagem bastante enigmático e mitológico, pertencente ao plano maravilhoso.

O gênio quer que ele desista da vingança, argumentando onipotentemente que

essa luta não seria a mesma luta do Caeté e de seu povo há séculos e que os

objetivos dos Praieiros eram políticos e partidários, diferentes dos seus, contra o

invasor luso.

Ainda não totalmente convencido, o Caeté vê sair da cidade, partindo em

direção à boca da mata, onde ele estava, duas personificadas figuras femininas: a

Realidade e a Liberdade. Primeiro vem a Realidade, com um rosto feio, que

causa horror ao Caeté, deixando-o receoso. Depois vem a Liberdade, descrita

como uma bela virgem, que o convida à batalha e à vingança. Quando o Caeté

tendia para aceitar a Liberdade como escudeira, a Realidade conseguiu vencer

pelo argumento, mostrando ao Caeté, através de palavras, que a Liberdade era,

na verdade, um ilusório caminho, fadado ao insucesso.

41 Os Caetés tornaram-se inimigos dos portugueses e fugiram ou foram extintos, durante a época colonial. Tornaram-se inimigos antropofágicos, já que provavelmente se uniram aos franceses, na Invasão Francesa, em 1555, no Rio de Janeiro, e quase quarenta anos mais tarde no Maranhão. 42Nunes aparece apenas como revolucionário no poema, morto durante a Revolução. Entretanto, muitos brasileiros sabiam que ele era deputado liberal e que morreu em batalha, inspirando o poema longo.

47

Page 48: Qualificação de mestrado

Enfim, triste, mas principalmente resignado por tomar a decisão certa de

não se vingar (por não haver como se vingar), já que a luta constituirá outra futura

derrota, diante do forte poderio bélico do opressor português, o canhão contra as

flechas, o herói Caeté resolve voltar à mata e terminar sua trajetória às margens

do Rio Goiana, buscando respostas para suas perguntas que, mais uma vez, o

revelam como um índio protagonista consciente.

Na antepenúltima estrofe, encontram-se os seguintes versos:

- Goiana!...clama ele ali vagando,Mais triste do que lá no Beberibe:Onde está teu Herói? o filho teu!43

- No céu…(IBIDEM, 1997, p. 56)

O heroísmo é dual, histórico e híbrido, como se verá daqui em diante. A

pergunta “Onde está teu herói?”, feita pelo Caeté, é justamente a que aqui tenta

se resolver. O eu lírico/narrador sabe da incapacidade de existir no Caeté o

heroísmo épico clássico.

Predominantemente lírico, contextualizado na concepção literária do

Romantismo, e com traços de oralidade, A lágrima de um Caeté teve sua

categorização estabelecida como épico, a partir da perspectiva da dupla

semiotização do discurso épico (SILVA, 1984). Encontrar uma interpretação

satisfatória para o heroísmo épico por meio de História da Epopéia Brasileira

(2007), de Anazildo Vasconcelos da Silva e Christina Ramalho, tornou-se uma

tarefa menos complexa. Na segunda parte, alertando para a importância

imprescindível do nacionalismo presente no texto, quando o assunto é epopeia,

Ramalho, ao debater sobre a questão do Mito, na poesia épica, afirma que, no

43 Depois do sinal interrogativo, na 4ª edição do poema longo de Floresta, vem letra minúscula mesmo.

48

Page 49: Qualificação de mestrado

Brasil, “nesse gênero, reúnem-se diversas manifestações que incluem as imagens

míticas étnico-regionais (…)” (SILVA& RAMALHO, 2007, p.285), como, por

exemplo:

(…) Prosopopéia, de Bento Teixeira, Caramuru, de Santa Rita Durão, O Uraguai, de Basílio da Gama, A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, A lágrima de um Caeté, de Nísia Floresta, Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, Cobra Norato, de Raul Bopp, Sociologia Goiana, de Gilberto Medonça Teles, ou Brasiliana, de Silvia Jacintho, só para citar alguns são exemplos desse enfoque. (Ibidem, 2007, p. 285-286)

O enfoque a que se refere a citação acima é o do recurso poético às

imagens míticas étnico-regionais, bastante presente na consolidação do herói

épico no poema de Nísia. O outro enfoque, do qual não participa A lágrima de um

Caeté (1849), segundo Ramalho, seria o daqueles poemas “que ampliam o

universo mítico étnico-regional brasileiro remetendo-o para o contexto mítico das

Américas. (…) (IBIDEM, 2007, p. 286). Com esse outro enfoque, há poemas

longos como O Guesa, de Sousândrade (1832-1902), Toda a América (1925), de

Ronald de Carvalho, A grande fala do índio guarani perdido na história e outras

derrotas (1978), de Affonso Romano de Sant’Anna, e Latinomérica (2001), de

Marcus Accioly.

Voltando ao poema nisiano, encontra-se uma estrofe que é uma peça

chave na análise do heroísmo que se apresenta como histórico (com o herói

Caeté e com Nunes Machado) e híbrido, pois, ao mesmo tempo em que é

individual, pela presença de personagens singulares, mas que de forma

metonímica, representam uma grande metáfora coletiva do brasileiro, apelidado

abaixo de “caboclo”:

Indígenas do Brasil, o que sois vós?Selvagens? os seus bens já não gozais…Civilizados? não… vossos tiranosCuidosos vos conservam bem distantes

49

Page 50: Qualificação de mestrado

Dessas armas com que ferido tem-vosDe sua ilustração, pobre Caboclos!44

(…) (FLORESTA, 1997, p. 39)

Partindo de uma fala autoral engajada, como se pode ver pelos

questionamentos acima, fazendo um percurso cíclico que inicia no plano

maravilhoso, segue pelo histórico e depois retorna ao maravilhoso, esse heroísmo

histórico híbrido, acentuado de forma crítica, já que dificilmente os excluídos

assumiriam o direito de ter voz e expor seus sofrimentos, remete o crítico a uma

revisão sobre a questão do indianismo romântico no Brasil.

Em Vozes épicas: história e mito segundo as mulheres, tese de doutorado

defendida pela UFRJ, em 2004, Ramalho faz um estudo dedicado aos poemas

épicos escritos por mulheres. Em seu capítulo X, temos uma referência ao poema

de Floresta aqui estudado que serve para a compreensão de como essa

construção do heroísmo histórico híbrido, no poema nisiano, atualiza o

indianismo:

(…) a epopéia de Nísia Floresta destaca-se no conjunto das produções românticas indianistas, pois abarca condições históricas opressoras e perversas não assinaladas, ao menos de modo tão contundente, em outras obras do Romantismo brasileiro. A projeção do fato histórico cultural na subjetividade de um índio alia a dimensão privada à coletiva, pois esse índio, simultaneamente, retrata os danos pessoais e coletivos gerados pelo processo de colonização portuguesa no Brasil.(…) (RAMALHO, 2004, p. 648)

São então duas dimensões: a privada e a coletiva que distinguem o

hibridismo, quanto à forma heroica. Como aparecem dois heróis, o Caeté e Nunes

Machado, um que foge e outro que luta e morre, é válido lembrar as seguintes

44 A metáfora “armas da ilustração” que fere aos “pobres caboclos”, é uma forte crítica ao estrangeiro e, ao mesmo tempo, aos brasileiros que, índios ou não, são homogeneizados como “caboclos”, ou seja, não haveria necessariamente no caboclo o sangue do índio, já que caboclo era uma designação genérica para a complexidade da mestiçagem brasileira em meados do século XIX.

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Page 51: Qualificação de mestrado

palavras: " A lágrima é, pois, a única forma possível de conciliação dos dois

heróis, o que partira martirizado e o que, igualmente martirizado, ficara” (IBIDEM,

2004, p. 647).

A pesquisadora mineira Constância Lima Duarte esclarece melhor e

sinteticamente o que a autora Maria José de Queiróz, em sua obra Do Indianismo

ao Indigenismo – nas letras hispano- americanas (1962), em uma tese

apresentada à Faculdade de Filosofia da UFMG para a cátedra de Literatura

Hispano-Americana, em Belo horizonte, quis dizer com o termo técnico

indigenismo: “pretende tratar o índio como ele é” (QUEIROZ, 1962, p.95 apud

DUARTE, 1995, p.125). E, embora o poema nisiano não expresse um heroísmo

épico clássico (“Onde está teu Herói?”), mesmo assim, vale recordar aqui que o

herói grego Ulisses, no poema épico de Homero, capítulo X, após ser expulso por

Éolo ( Deus dos Ventos), encontra-se diante dos Lestrigões, monstros que

dominavam a ilha de Lemos, na Lestrigônia, e, sem poder enfrentá-los, para não

morrer, por ser bem mais fraco, assim como o Caeté diante dos portugueses

invasores, foge com seus sócios para escapar da morte, perdendo onze navios:

eu, arrancando da espada cortante , que ao lado pendiaLogo as amarras cortei do meu barco de proa anegradaE muito à pressa dei ordem aos meus companheiros, dizendoque a toda força remassem, por ver se da Morte escapávamos.(HOMERO, 2011, p. 198)

Se alguém quiser entender o porquê de se compreender que o poema

longo de Nísia Floresta, A lágrima de um Caeté (1849), pode ser considerado um

poema épico ou epopeia, aplicaria a esse poema certamente:

(…) o que Silva fixou como especificidade estrutural de um poema épico foi: a dupla instância de enunciação – narrativa e lírica, sem importar qual das duas seja predominante – e a existência de uma matéria épica, inerente à epopeia, na qual o plano histórico e o maravilhoso, integrados através da ação heróica, representam, respectivamente, a dimensão real

51

Page 52: Qualificação de mestrado

e a mítica (e sua fusão), ambas inerentes à experiência humano-existencial que motiva a criação poemática. As formas como a instância lírica e a instância narrativa incidem para a elaboração do texto épico e o modo como a matéria épica é apresentada variam sempre em função da concepção literária à qual determinado poema se prende. (…) (RAMALHO, 2013, p. 19)

Na perspectiva teórico-crítica aqui adotada, foi detectado que, no heroísmo

épico nisiano, além do histórico, marcado pela presença dos caetés e de Nunes

Machado, há intrínseco um heroísmo híbrido que perpassa por todo o poema.

Isso porque esses dois heróis, na verdade, são metonímicos, pois apontam

enquanto parte para todo um povo brasileiro e toda uma tribo indígena. Vê-se,

também, no poema, um Caeté consciente do seu destino, que precisa fugir do

invasor português como única opção de sobrevivência. O leitor é forçado a ver um

índio mais consciente, diferente de índios mais idealizados como o de Gonçalves

Magalhães (1811-1882) ou Gonçalves Dias (1823-1864). Por fim, em Nísia

Floresta e A lágrima de um Caeté (1849) encontra-se um texto que é

esteticamente bem mais do que um simples poema-manifesto da Revolução

Praieira (1848), como julgou erroneamente a crítica, segundo Constância Lima

Duarte (1995, p. 100), já que traça contornos indigenistas, de viés crítico-

engajado. O índio apresenta-se mais realista e mais consciente do que nas

correntes puramente indianistas do Romantismo brasileiro.

52

Page 53: Qualificação de mestrado

4 - DO CURTO AO LONGO: UMA EXPERIÊNCIA SIMBIÓTICA

Aqui, levamos em conta que “(…) estudar gramática não leva, nunca

levou, ninguém a desenvolver suas habilidades de leitura, escrita ou fala, nem

sequer seu reconhecimento prático do português padrão escrito” (PERINI, 2010,

p. 18)45. Partindo dessa premissa, não nos referindo em momento nenhum ao

ensino gramatical de modo investigativo e, assim, científico e não-dogmático,

perguntamo-nos sobre como desenvolver competências e habilidades referentes

à aptidão de um modo de ler mais competente, capaz de transformar leitores

iniciantes em leitores críticos e ativos?

Para o pesquisador Wilson Leffa (1996), os estudos metacognitivos, ou

seja, aqueles que refletem sobre o próprio ato de ler, não apenas sobre o

conteúdo explícito ou implícito, na leitura, poderiam ajudar na realização dessa

missão. Leffa defende que “O domínio dessas estratégias não é apenas um

conhecimento que o leitor já possui da língua, mas um conhecimento

complementar, que às vezes pode até compensar deficiências linguísticas do

leitor” (LEFFA, 1996, p. 65). E quase sempre compensamos essa ausência de

conhecimentos prévios, através da leitura de mundo anterior à leitura da palavra

textual, em um ensino que integra autonomia e pesquisa, segundo os princípios

mais sólidos ensinados por Paulo Freire (1921 – 1997).46

45 Buscando compreender melhor a importância do ensino gramatical, embora desprezando esse conservadorismo que predomina no ensino de regras gramaticais estereotipadas, incapazes de se sustentarem no cotidiano dos falantes, cultos ou não, Mário Perini argumenta que “(…) Se quisermos manter os estudos gramaticais na escola, temos que descobrir outra justificação para eles (…) a gramática é uma disciplina científica (…)” (PERINI, 2010, p. 18), exigindo de quem a ensina uma abordagem científica. 46 Em uma palestra sobre O papel da educação na humanização, realizada em 1967, na capital do Chile, Santiago, Paulo Freire ensinou o seguinte: “A concepção humanista, problematizante, da educação, afasta qualquer possibilidade de manipulação do educando.” Disponível em: <http://acervo.paulofreire.org/xmlui/bitstream/handle/7891/1127/FPF_OPF_01_0003.pdf>. Acessado em: 02/07/2014.

53

Page 54: Qualificação de mestrado

Para escrever este capitulo, precisamos transpor as fronteiras que

ligam as teorias acadêmicas aprendidas, em aulas de Mestrado Profissional, com

as práticas de ensino, mais precisamente, na escola pública em que somos

vinculados. Em particular, concentrei-me na realidade do Colégio Estadual

Arabela Ribeiro, Município de Estância, em pleno Estado de Sergipe, no Brasil.

A ideia de trabalhar as duas extremidades da produção poética, o

poema curto e o longo, com foco na temática indígena, envolvendo autoria

feminina, uma do século XIX, outra viva e em plena capacidade de criação,

nasceu tanto do desejo de tratar de tema importante no âmbito das questões

educacionais da atualidade quanto de expandir o contato dos estudantes com a

poesia, proporcionando-lhe duas experiências estéticas bem distintas, a leitura

crítica de poemas curtos e a de um poema longo, o que, a nosso ver, amplia e

potencializa a capacidade de leitura literária dos estudantes.

Quanto à sequência proposta, esclarecemos que o trabalho com os

haicais de Savary se insere na metodologia como uma “antecipação” à obra

nisiana, já que faz os estudantes mergulharem no universo léxico indígena e, ao

mesmo tempo, iniciar as reflexões sobre os valores culturais dessa natureza

étnico-temática. Todavia, a própria leitura crítica desses poemas envolve

“decifração” e “interpretação”, logo, a sequência com os poemas de Savary é,

simultaneamente, uma etapa de preparação para o trabalho com o poema

nisiano, e uma sequência completa em si mesmo, já que dela resultarão trabalhos

ilustrativos que demostrarão o envolvimento dos estudantes com as questões

nascidas das leituras analíticas realizadas em aula.

Assim, esquematicamente, temos:

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Page 55: Qualificação de mestrado

Haicais de Savary

Sequência 1

Antecipação: leitura-estímulo do poema

Sequência 2

Decifração: leitura crítica dos outros 9 haicais

Sequência 3

Interpretação: registro interpretativo, sob forma de ilustrações dos

poemas lidos e analisados

Epopeia de Nísia floresta

Sequência 1

Antecipação: todo o processo anterior com os poemas de Savary,

despertando os alunos para as questões indígenas + reflexões básicas sobre o

poema longo, em linguagem simples, mas esclarecedora em relação às ideias

contidas no “épico”.

Decrifração: leitura analítica do poema

Sequência 3: registro interpretativo, sob forma de ilustrações de

trechos do poema que se relacionem mais diretamente às questões indígenas.

No final do processo, esperamos ter reunido material para possível

edição de publicação com os poemas ilustrados.

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Page 56: Qualificação de mestrado

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria acadêmica, com muito zelo, foi por nós, os pós-graduandos da

Universidade Federal de Sergipe (UFS), Campus de Itabaiana, aprendida (ou

apreendida) com ensinamentos no qual fizeram discursos um corpo docente,

qualificado por doutoras e doutores concursados (as), sob a tutela das

orientações acadêmicas estabelecidas pela coordenação do Prof. Dr. Carlos

Magno Gomes, com auxílio do Colegiado formado por estudantes e professores,

durante o período de agosto em 2013 ao de agosto em 2015, os anos esses

letivos, levando-se em consideração o nosso curso conhecido como Mestrado

Profissional em Letras (PROFLETRAS). Esse Mestrado Profissional é oferecido,

em nível nacional, por sua vez, sob a coordenação nacional da Prof.a Dr.a. Maria

das Graças Soares Rodrigues, representando a Universidade Federal do Rio

Grande do Norte (UFRN).

Neste momento de qualificação, sabemos ser ímpar a oportunidade de

recebermos a contribuição dos olhares atentos de mais dois professores-

doutores, que, a partir do que até aqui foi desenvolvido, poderão avaliar o

encaminhamento do projeto em execução.

Para finalizar, esclarecemos que, em termos de cronograma de

desenvolvimento das partes ainda incompletas, projetamos dedicar os próximos 2

meses à análise críticas dos haicais de Savary, os três meses seguintes à

complementação da metodologia, discriminando, em detalhes, todas as etapas

das sequências didáticas propostas; e, nos meses finais, aplicarmos a

metodologia em uma turma de 9.o. ano do Ensino Fundamental, de modo a

termos, no trabalho final, registrado como a proposta se realizou na prática.

56

Page 57: Qualificação de mestrado

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Page 61: Qualificação de mestrado

ANEXO 1 - Haicais pré-selecionados de OLGA SAVARY47

HAI-KAIS (1975-1986)(Inéditos do livro REPERTÓRIO SELVAGEM)

Teipó

Tudo o que seiaprendi da água, ela diz.E arde sem saber. (SAVARY, 1986, p. 79)

TEIPÓ, em Tupi, significa FINALMENTE.

Enuçaua

Culpa sem falta e sem volta,só sobrevivo entre aurorasse o perigo é o que amo na vida natural. (SAVARY, 1986, p. 80)

ENUÇAUA, em Tupi, significa POSTURA.

Uaruá / Caápura

De tanto perseguir-te mato adentroo que deixo de meus passos pela trilhaé confundir teu rastro no meu rastro. (SAVARY, 1986, p. 85)

UARUÁ/CAAPURA, em Tupi, significa ESPELHO /DENTRO DO MATO.

Umbueçaua

De coisas plenas melhornão fazer alarde. Amorque mais é senão gorjeta? (SAVARY, 1986, p. 94)

UMBUEÇAUA , em Tupi, significa AULA.

Mairamé

Amor é de se ver comoreligião ou uma prisão.Afinal tenho uma. (SAVARY, 1986, p. 95)

MAIRAMÉ , em Tupi, significa QUANDO.

47 Digitalização e notas de rodapé realizadas pelo mestrando da Universidade Federal de Sergipe (UFS), campus Itabaiana, pelo programa de mestrado profissional em Linguística (PROFLETRAS 2013/2 à 2015/2) Waldemar Valença Pereira e orientado pela professora Dra. Christina Ramalho. No ano de 2014, primeiro semestre.

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Amurupe

Ao mar, ao mar – diz o velame à naveao levar a confundida cabeça: Eu não te amoamo só o prazer que tu me dás. (SAVARY, 1986, p. 97)48

AMURUPE , em Tupi, significa DIFERENTE.Iaraqui

Vampiro, em uma tardebebo-te todo o sangueda vida. (SAVARY, 1986, p. 98)

IARAQUI , em Tupi, significa BEBIDA INEBRIANTE.Uíre

Não sou esfinge, mas daqui não saio.E vivo estátua de sal?Não: de mel. (SAVARY, 1986, p. 100) UÍRE , em Tupi, significa VIR À TONA.

Aetecupi

Dois ventres destilam licores rarosno momento final de êxtase e horrorE quatro olhos vêem a beleza do náufragio. (SAVARY, 1986, p. 103)

AETECUPI , em Tupi, significa ASSIM SIM.Catuana

Sangria desatada.Vais me diluviandoaleluiada. (SAVARY, 1986, p. 116)49

CATUANA , em Tupi, significa PAZ.

48 Após os dois pontos, por decisão pessoal, provavelmente por aludir a uma iniciação de um novo discurso, mesmo que sem aspas, a poetisa utilizou letra maiúscula após dois pontos.49 Este poema estabelece, entre outras interpretações como as de batalha e lutas sangrentas, já que pertence ao repertório do livro “Repertório Selvagem” (Ano), uma grande metáfora com a menstruação do eu-lírico feminino que agora, mais de um século depois de Nísia Floresta e sua epopeia A lágrima de um Caeté (1849), esse eu-lírico pode ser ressignificado com a voz feminina no discurso lírico ou épico.

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ANEXO 2 – A lágrima de um caeté

A LÁGRIMA DE UM CAETÉ (1849)

Autora: NÍSIA FLORESTA (1810-1885)

Avant-Propos

O infeliz Caeté, apesar de ter chegado a esta corte no mês de Fevereiro logo depois da revolta dos Rebeldes em Pernambuco, é somente agora que lhe permitiram aparecer, e isto depois de o terem feito passar por mil torturas inquisitoriais! ... Graças à benfazeja mão, que o fez renascer, qual Fênix, das cinzas a que o haviam ou queriam reduzir!

Lá quando no Ocidente o sol haviaSeus raios mergulhado, e a noite tristeDenso ebânico véu já começavaVagarosa a estender por sobre a terra;Pelas margens do fresco Beberibe,Em seus mais melancólicos lugares,Azados para a dor de quem se aprazSobre a dor meditar que a Pátria enluta!Vagava solitário um vulto de homem,De quando em quando ao céu levando os olhosSobre a terra depois tristes os volvendo…

Não lhe cingia a fronte um diadema,Insígnia de opressor da humanidade…Armas não empunhava, que os tiranosInventaram cruéis, e sob as quaisSucumbe o rijo peito, vence o inerte,Mata do fraco a bala o corajoso,Mas deste ao pulso forte aquele foge…Caia-lhe dos ombros sombreadosPor negra espessa nuvem de cabelos,Arco e cheio carcaz de simples flechas:Adornavam-lhe o corpo lindas penasPendentes da cintura, as pontas suasseus joelhos beijavam musculosos50

50 Verso que termina sem pontuação no livro de Constância Lima Duarte.

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Em seu rosto expansivo não se viamOs gestos, as momices, que contraiA composta infiel fisionomiaDesses seres do mundo social,Que devorados uns de paixões feras,No vício mergulhados falam outros,Altivos da virtude, que postergamDe Deus os são preceitos quebrantando!Orgulhosos depois…51 ostentar ousãoDe homem civilizado o nome, a honra!...52

Não era um homem destes o que láSolitário vagava meditando,Como aquele, que busca uma lembrança,Uma idéia53 chamar, que lhe recordeUm fato anterior da vida sua,Vivamente um lugar, que já foi seu,Do qual o Despotismo o despojara…

Era um homem sem máscara, enriquecidoNão do ouro roubado aos iguais seus,Nem de míseros africanos de além mar,Às plagas brasileiras arrastados54

Por sedenta ambição, por crime atroz!Nem de empregos que impudentes vendem, A honra traficando! o mesmo amor!!55

Mas uma alma, de vícios não manchada,Enriquecida tinha das virtudesQue valem muito mais que esses tesouros.

Era da natureza o filho altivo,Tão simples como ela, nela achandoToda a sua riqueza, o seu bem todo…O bravo, o destemido, o grão selvagem,

51 Será uma ruptura com padrões clássicos a poetisa escrever letra minúsculas após o uso do sinal de pontuação das reticências? No original de CLD está com letra minúscula. 52 O exagero da pontuação, com dois sinais de pontuação (a exclamação e as reticências) em semiose, atesta um discurso romântico com retórica romântica. 53 Ideia está no texto original de CLD com acento, de acordo com a norma ortográfica vigente até o ano de o novo código ortográfico54 Observar que a poetisa utiliza muitos jogos de masculinos versus femininos na estruturação do poema. Isso reflete-se atraves de hipérbatos (inversão de ordem sintática da frase do sujeito ao predicado, terminando com os adjuntos adverbiais ou adnominais) e jogos de concordância nominal entre substantivos que são associados pelas questões de número (singular e plural), em meio às questões de gênero (masculino e feminino). Por exemplo: “brasileiras arrastados”.55 No original, depois das reticências vem letra minúscula. Seria possível investigar o por quê? Seria também possível associar o início dos versos com letras maiúsculas com um recurso de glamour, embelezamento estético, puro arranjo ornamental ou associar a uma ruptura com os padrões clássicos que não permitem a letra maiúscula, quando a frase não foi ainda acabada e por isso o recurso do “enjambement”? Pesquisar mais sobre o assunto.

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O Brasileiro era… - era um Caeté!

Era um Caeté, que vagavana terra que Deus lhe deu,Onde Pátria, esposa e filhosEle embalde defendeu!...

É este… pensava ele,O meu rio mais querido;Aqui tenho às margens suasDoces prazeres fruído…

Aqui, mais tarde trazendoNa alma triste, acerba dor,Vim chorar as praias minhasNa posse de usurpador!

Que de invadi-lasNão satisfeito,Vinha nas matasFerir-me o peito!

Ferro nos trouxe,Fogo, trovões,E de cristãosOs corações

E sobre nós Tudo lançou!De nossa terraNos despojou!

Tudo roubou-nos,Esse tirano,Que o povo diz-seLivre e humano!

Filho se dizDe Deus PotenteDe quem profanaA obra ingente!

Ó terra de meus pais, ó Pátria minha!Que seus restos guardando, viste de outrosLongo tempo a bravura disputarAo feroz estrangeiro a Pátria nossa,A nossa liberdade, os frutos seus!...

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Recolhe o pranto meu, quando dispersosPelas vastas florestas tristes vagamOs poucos filhos teus à morte escapos56,Ao jugo de tiranos opressores,Que em nome do piedoso céu vieramTirar-nos estes bens que o céu nos dera!57

As esposas58, a filha, a paz roubar-nos!...Trazendo d’além-mar as leis, os vícios,Nossas leis e costumes postergaram59!

Por nossos costumes singelos e simplesEm troco nos deram a fraude, a mentira.De bárbaros nos dando o nome, que delesNa antiga e moderna História se tira.

Maldito, ó maldito sejas60

Renegado Tapeirá!...Teu nome em nossas florestasEm horror sempre será!

Tabajaras miserandos61! Raça escrava!Que a voz incautos desse chefe ouvisteMandando exterminar os irmãos teus,Para um povo estrangeiro auxiliar!O anátema do céu feriu-te, ó mísera!

Para ele um país conquistaste:Em paga te deu ele a ignomínia!!

Em eterno desprezo eis-te62 esquecido,Como estão tantos outros teus iguais!Que perdendo na Pátria os seus costumes,As vantagens não gozam desses homens,A quem sacrificaram Pátria, honra!...

56 Refletir sobre a palavra “escapos”, qual sua Morfossintaxe.57 A visão panteísta modificada por uma visão monoteísta que contradiz o céu com a terra, em forma de um espírito barroco.58Possivelmente há aqui uma alusão a poligamia, observe o binômio singular x plural na forma “esposas” x “filha”, o que não justificaria apenas o uso de uma voz coletiva monogâmica. Abre-se brechas para a percepção do indigenismo? Pesquisar mais sobre o assunto.59 Analisar o sentido de “postergaram” neste verso e um pouco mais acima, na 3ª estrofe, onde lê-se:“Altivos da virtude, que postergam”, parece haver polissemia e situação antitética. Pesquisar sobre.60 O uso do pronome “tu”, no século XIX; o uso do “você”, no século XX; e, agora, a escrita “vc” nos meios digitais de redes sociais na internet, merecem provavelmente um pequeno debate.61 A autora, pertencente à sua época, provavelmente distingue bem “miserando” de “esmolés”. Pesquisar mais sobre esses dois termos.62 Forma presente do verbo haver. Pesquisar mais.

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Indígenas do Brasil, o que sois vós?Selvagens? os seus bens já não gozais…63

Civilizados? não… vossos tiranosCuidosos vos conservam bem distantesDessas armas com que ferido tem-vosDe sua ilustração, pobre Caboclos!64

Nenhum grau possuís!... Perdeste tudo,Exceto de covarde o nome infame…

Dos Caetés os manes vingados estão!Desse Camarão, também renegado,Que bravo guerreiro a Fama65 apregoa,O título de nobre lá jaz desprezado!

Nobreza, que o crimeAudaz transmitiuaquele que aos seus66

Cruel perseguiu;Somente sorrisoDe mofa devia,Excitar depoisQue já não vivia;

E que de seu braçoCruel parricidaMais não precisavaUm Liberticida:Um vil estrangeiroCom quem se aliou,E de seus irmãos

63 Além da letra minúscula, possível ruptura da retórica romântica, no discurso épico, é bom compreender a relação “bens” com grande efeito estético, pois essa palavra é revestida de um teor materialista para o estrangeiro e essencialista para os/as índios (as). Daí mesmo é que emana a relação romântico-crítica, aparentemente, anti-romântica, de “bens/propriedade privada” e “gozo/capitalismo egoísta”; mas, quando interpretada pela semiótica literária na perspectiva de um povo enquanto um signo literário, proveniente do signo linguístico relativo a povos indígenas, aqui no poema épico de Nísia Floresta, deve-se associar a ideia de “bens”, enquanto “propriedade coletiva” e de “gozo”, por sinônimo aproximado para socialismo e heroísmo épico”. Tanto é que os Tabajaras, antagonistas no poema ao lado dos estrangeiros portugueses, não desfrutaram do “gozo”, ou seja, do heroísmo épico. Em outras palavras, o Caeté adquire o heroísmo épico que categoriza-se como um heroísmo híbrido histórico, ou seja, num plano individual e coletivo, num percurso que vai do histórico ao maravilhoso, sob a ação heróica de feitos bélicos e políticos. 64 A metáfora “armas da ilustração” que fere aos “pobres caboclos”, é uma forte crítica ao estrangeiro e, ao mesmo tempo, aos brasileiros que, índios ou não, são homogeneizados como “caboclos”, ou seja, não haveria no caboclo o sangue do índio, já que caboclo era uma designação genérica para a complexidade da mestiçagem brasileira em meados do século XIX.65 Por que Fama é escrito com letra maiúscula? Pensar sobre a possibilidade de personificação e sobre a existência mitólógica da “Fama”.66 Não entendeu-se bem porquê desse verso iniciar com letra minúscula. Erro tipográfico?

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O bem lhe outorgou!

Dos Caetés os manes vingados estão!Em triste abandono, sem Pátria, sem bens,Às cegas seguindo a voz de um senhorPureza e costumes perdido tu tens!...67

Dos Caetés os manes vingados estão!Aqui neste solo a nós arrancado,Tem vindo outros povos também d’além-marAos nossos tiranos o tem usurpado!

Dos Caetés os manes vingados estão!Como nosso sangue, o sangue correuNas mãos do Batavo seu poder caiu!Como nós o dele seu julgo sofreu...

Dos Caetés os manes vingados estão!Curvaram-se os Lusos da Ibéria ao poderGemeram, choraram, por anos sessenta!Quis Deus ao opróbio fazê-los descer…

Mais tarde se viuOs seus descendentesContra eles se armarem;Pô-los em correntes!Alguns filhos seusQue crime! que horror!68

Cruéis lhe mandaramA morte, o terror!...

Assim pune Deus um crime com outroQuem fere, quem mata, ferida ou a morteRecebe de mão feroz como a sua…É esta dos homens, das nações a sorte.

Conosco cruelFoi uma nação,Lançou-lhe o Eterno69

Sua maldição

67 Pode-se ver metáforas do índio idealizado romântico, mas aqui neste poema, os índios chamados manes (antagonistas) perderam a guerra ao se aliar com o povo português e ser por ele dominados.68 Original vem com letra minúscula após o sinal indicativo de exclamação.69 A personificação da palavra “eterno”, referente provavelmente para uma ação mítica, de uma mística monoteísta, que, ao aparecer com letra maiúscula “Eterno”, no texto original, remete o leitor ao plano do maravilhoso, além dos outros dois planos: histórico e literário.

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Depois de seus filhosO braço se armou,Em seu próprio sangueO crime lavou!70

Injustos! ingratos!71

Vai ela bradando;A seus descendentesSeu mal exprobando.

Não vês, ó Luso povo, em teu sofrerDo Onipotente o dedo, que te apontaO mal, que sobre nós lançado tens,No mais de séculos três? oh dor pungente!Oh lembrança fatal de males tantos!…………………………………………….

Onde as choças estão, simples asilo,Santuário feliz de nosso amor?Onde as frondosas árvores, cujos ramosFagueiros balouçavam inclinadosSobre as águas dos nossos prediletosMelancólico-amoroso Beberibe,Capibaribe undoso, que abraçandoSe vão em sua foz, já não sorrindo,Como outrora faziam, mas do prantoEngrossado dos filhos seus instintos,Gemendo confundir-se nos bramidosDo terrível-majestoso Atlântico?!...72

70 A expressão “lavar o crime”, durante o século XIX, assim como no século XX e XXI, teria o sentido coloquial e formal e o verso de Nísia Floresta um tom de oralidade: “o crime lavou!”, com direito a um uso de sinal de pontuação exclamativo, apesar do hipérbato que permeia a estrofe em redondilha menor impecavelmente, ou seja, paradoxalmente, cometendo o crime da métrica em meio ao estilo romântico de cunho histórico-crítico.71 No texto original vem com letra minúscula. Será que, se confirmando a devida tipografia usual aqui, com os textos revisados criticamente de Constância Lima Duarte, poderia ser também, além dos motivos de rebeldia românticos na forma e nas regras de pontuação, paradoxalmente aos versos iniciarem sempre com letra minúscula, enfim um caso de desmerecimento não tornar maiúsculas a letra em palavras que tornam-se expressões de desabafo: “ingratos!”. Em outras palavras, o “Injusto!” só teria aparecido com letra maiúsculas por ser do princípio estilísticos de iniciar os versos assim. Por outro lado, são “injustos” e são “ingratos”, ou seja, além de não personalizados, os portugueses ocupam o papel de colonizadores e são maldizidos por “ela”, a “nação”, que de certa forma, apresenta-se como centro do plano histórico. Seria a nação a “Pátria”, a mesma que sempre surgindo com letras maiúsculas.72 Uma ótima imagem a ser trabalhada a nível de interpretação: Vai das choças ao rio Beberibe/Capibaribe e termina no par singular “terrível-majestoso” para um oceano, que o leitor do Ensino Fundamental terá o pleno direito de desafiar o professor a explicar a possibilidade de personificação na palavra “Atlântico”. A letra maiúscula seria para determinar substantivos próprios apenas? Acredita-se que Nísia Floresta, mesmo tendo sofrido impáctostipograficos, pois seu texto ficou a mercê de publicação e de reedições, que só veio a ressurgir em 1938. (BARBOSA, 2006,

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Quanta vez, oh, lembrança doce-amarga!Depois de longa pesca fatigado,Ou voltando das selvas, onde eu iaAs feras perseguir, alegres vinhamA meu encontro aqui, a esposa, os filhos73

Oferecer-me felizes os seus cuidados!...Venturoso em triunfo me levavamAo tosco asilo nosso, onde maiorQue um Pagé74 me julgava, onde TupãNosso puro prazer abençoava,Nosso amor de selvagem tão ditoso75!

Amor de selvagem,Amor venturoso,Teu riso amorosoÉ d’alma expressão.

Mentir tu não sabes,Não sabes fingir,Só sabes fruirSeus doces prazeres.

Se Anhangá76contra nós mandava o mal,Para longe a cabana transferíamos;Nossas eram as matas, suas frutas,Seus regatos, seus rios, tudo eraPropriedade nossa… A NaturezaPor toda a parte bela nos sorria-nos…Sorria-nos o amor, o céu sorria-nos…

Onde estão, fero Luso ambicioso,Estes bens, que eram nossos?Porangaba77 perdi, perdi os filhos; Ai de mim! inda vivo!!Com a Pátria lá foram esses tesouros!

p. 30)73 Hoje, sabendo-se que o índio, até mesmo na mesma tribo, era dividido entre monogamias e poligamias, sendo diferente seu conceito de adultério em relação aos portugueses colonizadores, em nada desafeta o comentário anterior sobre a alusão possível à poligamia. Sabendo que Nísia era uma poetisa de esquerda, muitas vezes podia criar falsos golpes de vista no leitor, como crítica implicita à familia patriarcal feliz. 74 No original com “g”. Pagé, e não “Pajé”. Pesquisar a ortografia ao longo dos anos dessa palavra.75 O amor do eu lírico/narrador (índio) não é sublimado, mas sim carnal, prazeroso, até mesmo, e por que não, erótico, dionisíaco.76 Plano maravilhoso, mitologia indígena. Pesquisar sobre a divindade Anhangá, antagonista de Tupã.77 Segundo Constância Lima Duarte, Porangaba é um nome para mulher de indígena, que no poema seria a esposa do Caeté.

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O pranto só me resta!...78

Só me resta um sentir, um só desejo, Desejo de vingança!Vingança de selvagem tão tremenda, Tão nobre como ele!

Não vingança de balas despedidas Pela mão do assassinoMiserável covarde, que não ousa De frente acometer!Nem de ferro à traição, que ao bravo priva79

De uma vida de glória!!

Mais nobre, que o selvagem das cidades, As armas ocultando,O selvagem dos bosques se apresenta A peito descoberto…

Vingança contra os tiranosQue a nossa terra tomaram!Que com perfídias e com astúciasAlguns dos nossos armaram!Com eles pereça a glóriaNos anais de sua história!80

78 Destaque para duas questões estéticas de valor literário aguçado: a primeira, essa transformação metamorfoseada do eu lírico/narrador que virá um nós, que assume polifônico, assume a voz do índio, da poetisa, dos revolucionários brasileiros; e, em segundo lugar, a ideia bem posta da reticências concedendo a ideia de “pranto”, possivelmente, uma duração/longevidade (o pranto é do século XV ao XXI) e uma profundidade/autenticidade (o índio é digno de pranto, diferente do estrangeiro que invade a terra chamando-a de Brasil, destruindo a organização social coletiva indígena, em nome de um agir colonizador materialista do Despotismo)79 A vírgula, transformando a oração adjetiva restritiva, ou seja “que priva o bravo de uma vida de glória”, em oração adjetiva explicativa, Nísia mostra que está a explicar o que seria uma “traição de ferro”. Após desfeito o hipérbato, no final da estrofe, o objeto direto preposicionado “transforma-se” (retorna à condição de) em objeto direto: “ao bravo” em “o bravo”. “Privar alguém de algo” ou “privar algo de alguém”, com embasamento mais que jurídico aqui em Nísia Floresta, NÃO funcionaria na forma atual do verso com dois objetos indiretos (privar ao bravo, privar de glórias) com diferentes ligações prepositivas. 80 Acredito que Nísia, como educadora, sabia desse duplo sentido da palavra “Anal”/”Anais”. Num primeiro momento significando conjunto de documentos escritos e científicos (“Os anais de sua história”), para, já demonstrando isso com a inicial minúscula de “História”, um sentido mais pejorativo, mais vingativo, mais sexual, talvez como forma do eu lírico/narrador encontra para expurgar a repressão sexual sofrida pelos indígenas com termos do colonizador, que ambíguos, demonstram crítica implicita ao “anal” que vem de “anus” e que remete à noções, não só do alívio fecal humano, mas principalmente, à ideia de o alívio ser implicitamente não mais que o acúmulo de sujeira ou fezes. Uma metáfora possível para “anais da história” seria, então, “fezes da história”, pois esses anais da História seriam construídos pelos colonizadores, sem fundo crítico.

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Sobre os nosso opressoresMande o céu seu raio ardente!E na pátria dos Caetés Sofram eles dor pungente!Mas dor tão grande, que possaFazê-los lembrar da nossa!...

Então talvez um remorsoLhes entre no coração,Pelos males que trouxeramÀ nossa feliz nação!E de seu peito um gemidoCruel se escape o dorido!

Sentirá talvez aindaTardio arrependimento!Correrá à igreja suaA minorar-lhe o tormento81:E nela crê ele acharO céu que buscou calmar!...82

Mas o céu não deu ao homemDe perdoar o poder,Quando o homem à humanidadeBarbaramente fez sofrer!Se assim não pensa o cristão,Não tem ele um coração!83

Mas hipócrita, fanáticoÉ esse povo somente,Quando diz que o céu clementeAo homem deu tal poder!...Iria o mau cometer

Terrível crime nefandoA salvação esperandoDa mão do homem da terra

81 Pesquisar um pouco mais sobre a forma verbal “minorar”, usada com ou sem o pronome “lhe”. 82 Nesta estrofe, a crítica aos valores religiosos dos colonizadores brancos com suas igrejas e crenças que não serviram para sossegar/acalmar a dor na hora da vingança que cairá sobre eles. Interessante ver que a palavra calma (substantivo) forma verbos derivados como “calmar” (verbos), que possui um significado próximo do verbo “acalmar”. A mudança, embora mantenha o ritmo métrico da estrofe, toda ela formada por versos com redondilhas maiores, repercute diretamente na acentuação do tom de oralidade desta e de outras epopeias.83 Pode-se notar, se por um lado uma Nísia Floresta cristã, que sempre faz alusão a um ato cristão generesos, diferente daqueles atos praticados pelos colonizadores “que não tem coração”, ou seja, generosidades, por outro lado, há no eu lírico/narrador, intencionalmente e indiretamente uma valorização da divindade indígena Tupã e uma forma de ecumenismo religiosos, ou seja, o deus monoteísta nivelado aos deuses politeístas pelos ideais da “Bondade, Força e Coragem”.

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Que a santa vontade encerraEm seu mundo miserando!...

Lamenta povo infeliz,Em tua hora finalA tantas nações estranhasTeres feito tanto mal!

E lá da borda do túmuloA nação tua deplora,Que em decadência jazendoSe debate, geme e chora!...

Se ambiciosa não forasTerras d’África conquistar,Teu jovem rei não veriasSem dinastia acabar!

Do fanatismo os teus filhosTriste presa não seriam,Nem no teu solo os seus padresA fogueira acenderiam.84

Mas buscando estranhas terrasTu crias85 correr à glória,Tão falsa como te achasPequena hoje na história.

Outras nações guerreandoTe esqueceste de ilustrar86

A tua, que jaz pobre,Nas trevas, próxima a expirar.

Ó gênio do Brasil, às plagas tuasVolta… oh! volta a vingar os filhos teus!87

…………………………………………….

84 Crítica que o eu lírico/narrador, assumindo a voz do Caeté, faz crítica às punições de pena capital (mortes na fogueira) que a igreja católica patrocinava com o Tribunal de Inquisição do Santo Ofício, criado em épocas medievais e trazido para as colônias.85 “Tu crias” tem o valor aproximado interpretativo de “Tu querias”, mas lógico, que o ritmo e o tom da oralidade continuam a ser modificado, acentuando ritmo do poema, enxugando-o e o aproximando do coloquial. Mas lógico que a forma “crias” tem mais proximidade com o verbo crer, que por sua vez, estabelece traços semânticos com o verbo querer.86 Ilustrar é uma palavra que tem a ver com Ilustração, neoclassicismo, racionalismo. Por que o índio valorizaria a ilustração? Sabendo disso, Nísia Floresta constrói um eu-lírico que rejeita essa ilustração como sinônimo de derrota do colonizador, não pela Ilustração (conhecimento científico) em si, mas pela forma de ilustrar errônea, impositiva, inquisitorial.87 A presença de letras minúsculas, após sinais de pontuação de exclamação, de interrogação ou de reticências é constante.

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E dá que de vulcão medonha horrívelA cratera se expanda abrasadoraPara o povo engolir88, que a nós de povoO nome até roubou-nos… extinguiu!

Estas vozes soltando angustiadosEmudece o Caeté… quedo ficou,Com os olhos no céu, dele esperandoA tardia, porém certa justiça!89

……………………………………………

De repente troar ao longe ouviu-seDa artilharia o fogo… e de milharesDe peitos Brasileiros90 sai o brado,Simulando o trovão91, que o raio manda – Eia! avante! Guerreiros libertemosA terra dos Caetés, a terra nossa! –92

E qual tempestade por Deus fulminadaSobre um povo ingrato, que Ele amaldiçoaVarão denodado às fileiras voaDos filhos que a Pátria querem libertada!

Dos bravos Caetés se diz descendente,Sua triste raça jurou de vingar…Desde lá do berço aprendeu a amarO triste oprimido; dele é defendente.93

Apóstolo é daqueles que vem debelarOs vis celeratos, que à força, ao desterroSeus filhos mandaram! De alguns no enterro94

88 Na edição de Duarte (1997), encontra-se a forma “engulir”, ao invés de “engolir”. Será necessário investigar ou foi apenas um erro na tipografia?89 Duas observações são válidas de se notar nesta estrofe: o eu lírico/ narrador que deixa de ser o Caeté, emudecido (mudo) e passa a ser o eu lírico/narrador na voz da poetisa; a outra coisa é a espera do Caeté pela intervenção do plano maravilhoso diante do plano histórico no qual ele se encontra vencido.90 Brasileiros, no texto original, vem com iniciais maiúsculas.91 Mais uma vez vale ressaltar que esse olhar do índio para o céu, está associado também a divindade indígena mais conhecida como Tupã, para muitos identificado como o sol, para outros como o sol e os raios e trovões.92 Cena de luta: o trovão é o fogo da artilharia do colonizador no plano histórico e “uma tempestade de um Deus” no plano maravilhoso. Tudo isso a compor o plano literário desta poesia épica.93 Defendente, ao ser empregado em lugar de “defensor”, pode ser considerado efeitos de oralidade? Defende seria um sinônimo, no século XIX, para advogado, justamente a profissão do esposo de Nísia? Pesquisar sobre isso, se possível. 94 No original “De” aparece com letra maiúscula como pede a regra depois de pontos de exclamação.

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De sangue a bandeira se viu tremular!Viram-se as cabeças e de outros as mãosno alto de postes ao povo oferecendoExemplo feroz, espetáculo horrendo,Que de dor enluta os peitos cristãos!95

Oh! crime execrável de um povo civil!...Crime sem igual, que nos coraçõesSensíveis calando vai às geraçõesFuturas vinganças pedindo, bradando…

Ei-los que avançam nessa mesma praçaAonde os Martins, Teotônio, Miguel,Caneca, Agostinho tragaram o feldo bárbaro estrangeiro, feroz despotismo!96

O Anjo da Vitória ia coroá-los;Libertar ia enfim as plagas suas:………………………………………………

O primeiro caiu dos filhos seus,Que nesta nobre luta se empenhara!...Qual atleta romano denodadoDa Pátria só curando, o seu trinfoQuerendo aos seus primeiros anunciar,À frente se arremessa da batalha97,Impávido ao inimigo o peito mostra,Esquecendo, ai da Pátria! que era homem,Livre Pernambucano, a quem as balasDe pérfidos inimigos mais buscavam!

Caiu o Chefe imortalDos bravos Pernambucanos!Debandados estes foram;Sorriram-se os seus tiranos!Mas seu riso é convulsivo,Anuncia horrível siso!...

95 Parece que neste momento, Nísia põe novamente o símbolo “peito cristão” com teor crítico, ou seja, é capaz de “espetáculos horrendos”, por isso será acometido pela dor.96 Citação de personagens históricos da Revolução Pernambucana de 1817 e 1824 (Domingos José Martins, Domingos Teotônio Jorge, Miguel joaquim d’Almeida e Castro, todos eles decapitados em 1817; Frei joaquim do Amor divino Rebêlo e Caneca e Major Agostinho Bezerra Cavalcante Souza – enforcados em 1824. (Duarte, Ano, p. 45)97 Em Duarte (1997), “arremeça” encontra-se ao invés de “arremessa”. Seria erro de publicação ou uma intenção poética nisiana? Apurar também esse caso.

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Eis voa da margem triste98

Do Beberibe a Saudade99

Acompanhando o CaetéAo bairro da Soledade…Ali vê no chão prostradoO herói NUNES MACHADO!!100

Transido de dor o triste CaetéSuspira, lamenta, chora, se exaspera…Os joelhos dobra! Do céu inda esperaProdígio estupendo! que pós Lázaro em pé!101

Mas ah! Da Eternidade a horrível portaO Goianense Herói transposto havia!E quando os umbrais seus (lei insondável!)Uma vez se transpõe, não mais se volveDos vivos à morada, ao seu exílio!A quem da triste campa a dor somente,O desespero fica da saudadePor aqueles, que além dela passaram!

Da Natureza humana lei tremenda!Infalível tributo à morte paga!Decreto de um Deus Pio! Oh! Quem puderaResignado a ti feliz curvar-se!…………………………………………….

Do Caeté embalde o pranto correu;Seus tristes lamentos, sua intensa dor,Da sorte implacável o cruel rigorPoder não tiveram de um pouco ameigar!

Do Herói os restos insultados vão,Por míseros covardes, condiscípulos seus,A quem os seus brios jamais dera Deus,

98 A supressão do “que”, ajeita o ritmo métrico do verso, diferentemente se fosse, “eis que voa”.99 Assim como o “Eterno”, a palavra “Saudade”, vem personificada, no plano maravilhoso. Então fica do Beberibe (plano histórico) à Saudade.100 O fato de terem autorizado a publicação de A lágrima de um Caeté (1849) deve ter se dado no plano argumentativo: a mentalidade da censura era incapaz de conceber heróis que no plano histórico são vencidos, mas que, ao apresentarem voz no plano maravilhoso e também no plano literário, diante do discurso crítico, instaurado sob o discurso de uma retórica romântica, são heróis que escapam da condição de vencidos e passam ao status de vencedores. 101 Vale ressaltar, que embora haja a subvenção aos contextos do cristianismo por parte de Nísia Floresta, o fato é que o vencido NUNES MACHADO, não ressucita no plano histórico, confirmando, indiretamente, que o índio estava e continuou a estar descrente de milagres cristãos. Ou seja, esta estrofe pode ser lida, e por que não, também como uma crítica do índio frente aos dogmas religiosos cristãos, ao invés de uma suposta impottência de o herói “índio” não ser comparável ao herói “Jesus” e não ser capaz do milagre da ressucitação.

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Nem nome tão grande na História terão!102

O ódio, a intriga, a calúnia, a invejaDo profundo Averno Satanás desprende103

Contra os que sem armas um déspota prendeQue a lei proclamando afere, pragueja104…

Se diz Brasileiro, mas deste não temHumano sentir, que da DivindadeNós vem com o fogo de mor liberdadeQue os homens eleva, distingue as nações.

Aquece-lhe105 o peito centelha infernal106

Do negro, execrável, atroz despotismo,107

Que tostar protesta, quem ao servilismoCurvar-se não sabe, não pode, não quer.

Do Herói vil zoilo ele tostavaDe seu nome a glória, como vai tostandoMesmo agora a Fama108 sempre o decantando,Apesar dos ferros, masmorras, torturas!

O povo PernambucanoTosta, discípulo de Nero!109

Novo espetáculo esta Roma110

Te pode oferecer mais fero.

Tudo podes tu fazer, Menos descerÀs trevas do esquecimento

102 Agora, no poema, o termo “História” aparece com inicial maiúscula, pois não apresenta o mesmo sentido pejorativo que tinha antes na expressão “anais da história”. 103 Agora, no plano maravilhoso, mais uma figura cristã “Averno Satanás”, representando parte da antagonia no poema ao lado do povo português e dos tabajaras (índios que uniram-se na guerra ao Luso). 104 No sentido literal seria um jogar “pragas, pestes”, mas aqui o sentido é figurado, pois, segundo o eu lírico/ narrador, o déspota “pragueja” discursivamente, e depois em atos, utilizando-se da própria lei que havia antes instaurado contra àqueles que se criticam seu governo.105 Como explicar sobre esse pronome oblíquo “lhe”. É o verbo “aquecer-se” que está sendo utilizado, provavelmente. 106 Segundo a pesquisadora Constância Lima Duarte (UFMG), Nísia Floresta refere-se a Manoel Vieira Tosta, Presidente da Província que veio substituir Herculano Ferreira Pena.107 No original, “despotismo” com letra inicial minúscula.108 Mais um ser que quando não personificado, mesmo assim polissêmico, pois representa, no mínimo, uma abstração: Fama. Outros exemplos de polissemias envoltas ao tom de personificações: Eterno, Eternidade, Divindade, Realidade e Liberdade, Pátria, Ele (Deus), Satanás, Herói, Chefe, Pernambucano, Luso, Trovão, Tupã.109 Serão feitos então trocadilhos com o nome do presidente da província de Pernambuco Manoel Vieira Tosta.110 Roma, em língua portuguesa, anagrama de “amor”.

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Os mártires da Liberdade, A DivindadeLhes tem marcado o momento.111

Da decisiva vitória que a glóriaNeste solo firmar deve;Aqui onde o bem fruir De um porvirVenturoso iremos breve.

Sangram nobres corações Nas prisões!O despotismo cruentoTudo tem aqui tostado! NUNES MACHADONão morreu em pensamento!... 112

A causa, que defendia, Por quem ardia,Era causa da Nação.Mais tarde o Brasil dará, Afirmará,A prova desta asserção.

- Não chores, ó Caeté, o amigo teu!Do Brasil consternado, o Gênio exclama:Foi minha inspiração, foi meu brado, Que fiel seguiu Ele.

- Não chores, ó Caeté, o Amigo113 teu:Sua sorte, o mal seu, não mais lamentes!Pela Pátria viveu, deu tudo à Pátria, A Pátria o cantará.

- Não chores, ó Caeté, o Amigo teu:Que caiu, não morreu... porque114 o bravo Constante defensor da Pátria sua

111 No original, o verbo Ter, na forma presente, mesmo no plural, não apresentou acento. Seria uma questão de tipografia? Recentemente? Antigamente?112 Esta estrofe reflete o heroísmo épico que acontece de forma simbólica, após os embates bélicos e políticos, e de modo híbrido, pois trafega do eu individual ao eu coletivo.113 Nesta estrofe e nas seguintes, no texto de Duarte (1997), a palavra “amigo” vem grafada com letra maiúscula.114 A palavra após a reticência vem com letras minúsculas na edição de Constância Lima Duarte (1997).

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Para a Pátria não morre.

- Não chores, ó Caeté, o Amigo teu:Nas falanges de livres Brasileiros115

Combatendo mostrou à Pátria, ao mundo Que as honras desprezava.

As honras, que a vil preço vão comprandoOs anti-Brasileiros... Patricidas!Do infame interesse vis idólatras, O que foram esquecem!

Na Pátria tudo foi, fez ele tudoPara o destino seu triste mudar...De sua voz enérgica em prol da Pátria Inda soa a Tribuna.

Como do Equador RepublicanoCobarde não fugiu, abandonandoNa luta os irmãos seus, para da Pátria Longe um riso soltar!

Soltar de amor doces ais,Os prazeres seus fruindo,Enquanto da Pátria os filhosMais nobres iam caindo!...116

E depois voltando à PátriaNela o que foi, esqueceu!Em sua alma a LiberdadePouco a pouco feneceu!...

E renegado curvou-seÀ corte, que perseguiuNo tremendo vinte e quatro,Quando a república seguiu!117

De quarenta e nove o herói precla

115 Com letra maiúscula, a palavra “brasileiros” revela uma intenção metonímica, sem dúvida. Um herói que representa um povo.116 Os vencidos são, aqui, verdadeiros vencedores que terão suas memórias como patrimônio cultural da nação e os mais nobres que são os “vencedores” no plano histórico, os portugueses, na visão da autora, são os “perdedores”, derrotados pelos atos heroicos do Caeté e da autora que manteve viva a memória de um indígena épico. 117 A palavra “república”, no texto original, está com letra inicial minúscula.

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Que jamais com outro há de se confundirA morte a opróbio soube preferir;118

Seus bravos irmãos deixar jamais quis.

Não! que vale antes morrerSeus princípios defendendo,119

Que de um polo a outro polo120

Político, ir percorrendo.

Esta voz atentoEscuta o CaetéJá seu triste prantoAmargo não é;Não é sua dorJá sem esperança:Um feliz porvirSua ideia alcança…Já crê de outros bravosOuvir o chamado: - Às armas! às armas!O Povo é vingado…Do Una ao ParaíbaDo mar aos Sertões.

A vingança abalaTodos os coraçõesEnquanto ali morrem,Combatem guerreiros, Aquém, além gememOs bons brasileiros!Os maus riem, folgamAo som dos gemidos,Que dá Pátria soltamOs filhos queridos!

Mas lá inda está!...Respira o tirano,Que o povo extermina

118 Pela ausência do sinal de crase, diante do verbo “preferir uma coisa à outra”, que pode-se concluir que “a morte” é o objeto direto. Entretanto, em nada essa escolha modificaria o sentido do texto, já que se trata de justaposição de objetos: direto e indireto.119 Cabe aí um ótimo debate pertinente: morrer por defender os seus princípios? Buscar para elencar novas opiniões, sempre preocupando-se em extirpar preconceitos socio-culturais. Depois de várias reivindicações, os brasileiros criam agora manifestações que recebem nome de “rolezinhos”, ou seja, milhares de jovens, através de comunicação pelas redes sociais com colegas e amigos, marcam simultaneamente um passeio no Shopping, em protesto contra a exclusão do mundo capitalista.120 “Polo”, no texto original, sem acento. Hoje, concordando com o Novo Código Ortográfico.

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Bom Pernambucano!

Do Catucá as matas, eis que demandaO infeliz Caeté, buscando um povoQue julga o céu armar para vingá-lo, Vingando a Pátria sua!...

Dos Caetés descendente, ó povo, disse,Que hoje Pernambucano te apelidas,Onde está o valor, que ao Brasil todo Testemunhado tens?!...

Três vezes tem o sol aparecidoE no mar mergulhado os raios seus,E teu chefe imortal que lá caiu Vingado inda não tens!!

Aqueles, que perdido o Chefe seuA Pátria, a Liberdade, tudo tem,Deixar podem na vida, o que da vida Estes bens lhe tirou?!...

A cadeia de males que há tantoArrocha os pulsos teus; ah! bem o vejo121

Degenerado tem-te, ilustre povo!122

Assaz sofrido tens!

Mas se um peito Caeté, como o meu nobre123

Lá exangue caiu… eis o meu braço!Para vingá-lo é o bastante. Eia! indicai-me Do palácio o caminho!...

Manejar eu não sei de fogo as armasPara o feroz tostar, que vil insultaUm cadáver maior que a vida sua, Mais que ela venerando!...

Tenho flechas e um braço de CaetéDa dor o coração compenetradoDe uma inteira, infeliz, extinta raça… Vingando-te, eu a vingo.

121 A palavra “bem” aparece na edição de Duarte (1997), com letra minúscula, mesmo após um sinal de exclamação.122 Dificilmente utilizamos o pronome obliquo, no português do Brasil, adotando a forma, por exemplo, “tem-te”, embora ela seja uma forma válida, parece ter entrado em desuso.123 Conferir no texto original porque a estrofe da página 51 acaba com vírgula, depois da palavra “sertões”.

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E pronto o Caeté o arco brandiu…E como inspirado as matas deixando,Já de seus rodeios lá ele saiu…Ei-lo a capital feroz demandando.

Metade do espaço transposto já tinha, Quando de mulher vulto descarnadoDe longe avistou… para ele vinha:De triste cor era seu rosto afeiado.

- Pára, miserando, disse ela ao Caeté.Os restos depõe de tanta bravura;Encara-me atento… perderás a féCom que praticar vás uma loucura!

O bravo selvagem atônito ficou…- Quem és, lhe pergunta, infernal deidade?- Uma visão de inferno não sou:Sou cá deste mundo a Realidade.

Volta às selvas tuas, vai lá procurar124

Alguns desses bens, que aqui te hão tirado:Não creias, ó mísero, jamais encontrarA paz, a ventura que aqui tens gozado.

Este grande povo, que o nome tomouDe um pau simulando das brasas a corNascido na terra, que Deus te outorgou,De seu bem só cura, não de tua dor.

Em campo ei-lo agora com as armas na mãoMas seja um partido, ou outro que vençaA tua ventura não creias farão!São outros seus planos, outra a sua crença.125

Nos ares ouviu-se lá nesse momentoCelestes acordes, vozes sonorosas:Em nuvens douradas vem do firmamentoA mais bela virgem num trono de rosas!

Feições tem risonha, olhar cintilante,Um ar varonil, porte majestoso;

124 Neste momento, se o índio de Nísia aparece como um ser consciente e ávido de vingança diante da colonização do povo português, agora se faz ainda mais consciente de que a luta “Revolucionária dos brasileiros e pernambucanos” não há de ser a mesma luta dos Caetés. 125

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Lê-se em sua fronte o fogo vibrante,126

Que o peito lhe abrasa, forte, grandioso!...

Nos aires pairando olhou a cidade:Seu rosto divino contrai-se de dorApenas em luto viu a Soledade!Foi lá que caiu seu grande Amador!127

Absorto o Caeté vinha admiradoAquele prodígio, quando de repenteSai da capital um monstro enroscado,Feroz simulando enorme serpente!

Após ele vinham as fúrias cantando,128

Em funéreo coro a morte, as torturasCom que a virtude, suas criaturas129

No mundo vão elas cruéis flagelando!

Do lado da Virgem toma direçãoAquele cortejo horrendo, infernal…Do bravo Caeté treme o coraçãoPrevendo a desgraça de um encontro tal.

Da terra não pode aos ares subirPara ao lado pôr-se da Virgem formosa,Por quem a sua alma começa a sentirVeemente amor, paixão primorosa.

Um movimento fez de impaciência Da natureza o filho.Seus braços estendendo à bela Virgem, Quis ir ao seu encontroMas os olhos volvendo à terra vê Realidade horrível!

- Dissipa as ilusões, filho dos bosques, A meu rosto te afaze;E verás que tão feia eu não serei,

126

? Fronte, em lugar de, frente. Linguajar de época, século XIX. Fronte de frontal, que no século XX, passou a ser frente.127 A palavra “Amador”, no texto original, vem com inicial maiúscula, ou seja, é aqui personificada, abstraída.128 Com os estudos de Thomas Bulfinch (1796 – 1867), traduzido por David Jardim Júnior, no século XX, aprendemos que “As Erínias, ou Fúrias, eram três deusas que puniam com tormentos secretos, os crimes daqueles que escapavam ou zombavam da justiça pública. Tinham as cabeças cobertas de serpentes e o aspecto terrível e amedrontador. Conhecidas também como as Eumênides, chamavam-se, respectivamente, Alecto, Tisífone e Megera. (BULFINCH, 2000, P. 15)129 Embora não com maiúsculas, o termo “virtude’ não assume um ar de entidade mítica?

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Como agora pareço.

Se de ilusões a mísera humanidade Não amasse nutrir-se,Horrenda a face minha não seria A seus olhos depois…

- “Cruel!”130 Em desespero o Caeté bradaQue falas fria assim a um malfadado,Pois que és a inexorável Realidade,Que os passos meus retendo, me vás n’almaDo desengano o gelo derramando;Aclara a mente minha… ilusão éO que ali veem meus olhos?131 dize; oh! Dize,Ou tira-me esta vida, que se escoaNa dor, que a vista tua mais acerba.

- Não é ilusão, não, o que lá vês.Pausadamente diz a que tão duraO infeliz Caeté desabusara;Mas não temas, que seja a tua belaDo monstro que a persegue triste vítima…Contempla-a bem agora; ela sorri-teComo a um de seus filhos mais diletos132

Que nela vira sempre o seu bem todo.

Tu dobras o joelho!... oh! Sim, adora;Adora o que na vida mais tu prezas;A Liberdade adora e nela Deus.

Linda e pura se vai elaDa capital separando;Na fileira de seus filhosSeus defensores buscando.

Esse monstro que ali vêsDas fúrias todas cercado,É o feroz Despotismo

130 No texto original, não há fechamento de aspas, achou-se por melhor, fechá-la após a exclamação, como uma forma de discurso consolidado pelo Caeté com um dissílabo. Talvez como forma de vingança, pois na visão do eu lírico/narrador nem precisa de muitas palavras, nem, o povo português é merecedor de definição etnico-cultural extensa no entendimento dos que foram colonizados. Lógico que é um brado romântico, esse do Caeté, mas sem deixar de ser crítico social. Note que a expressão adjetiva vem no singular, mas representa uma coletividade.131 Aqui, retiramos o acento plural do verbo “ver”, presente em Duarte (1997), já que a nova norma ortográfica parece não criar novas interpretações que não sejam a do verbo “ver”. 132 Por que será que Nísia, além do recurso estético, usou a forma “dileto’, ao invés de usar a forma “predileto”? Será uma questão de linguagem formal de época ou linguagem informal de época? Será possível pesquisar isto?

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Inimigo seu votado.

Embalde procura eleO trono seu derrubar;Nas plagas PernambucanasUm abismo lhe cavar!

Da Liberdade um sorrisoDe desprezo esmagadorResponde só aos uivosDo Despotismo eversor…

Ele, que cruel se apraz133

Perseguir os filhos seus,Mil suplícios inventando134

Sem lembrar-se que há um Deus.

Deus, que uma raça não fezPara sobre as outras raças terRevoltante primazia,Ilimitado poder!

Deixa pois o DespotismoContra ela em vão lutar,Como do céu os maus anjosDaqui Deus o vai lançar.

Do Amazonas ao PrataO povo lhe está bradando:- Sacia-te monstro atroz,Teu império está finando!135

Mas tu, meu pobre Caeté,Escuta a Realidade;Busca as matas, lá somenteGozarás da Liberdade,

Que aqui teriasTalvez gozado,Se todos fossemNUNES MACHADO!Dos pobres índios,

133 ‘Apraz”, atualmente, é uma palavra polissêmica, pois hoje, além de apaziguar ou acalmar, “Apraz” pode significar o nome/marca de um remédio antidepressivo – (Ler proposta na nota de rodapé 79).134 Esta hipérbole “Mil suplícios” tem um tom de coloquial de oralidade, através do exagero expresso em valor numérico subjetivo.135 Pesquisar se é um neologismo “finando”? Ou uma forma abreviada de “findando”?

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que tanto amava,Mudar a sorteTambém pensava!...Mas ah! mui cedoSe foi da terra!!Teu pranto agoraNo peito encerra.………………………………………………….

E súbito o Caeté foi-se saudoso!…………………..Nas Margens do Goiana agora expande Sua dor!...

- Goiana!... clama ele ali vagando,Mais triste do que lá no Beberibe:Onde está teu Herói? o filho teu! - No céu…

- No céu… responde o eco!136 E sabe o mundoSuas grandes virtudes; sabe a glória,Que seu nome deixou, nome imortal Na Pátria!...

E lá do CaetéO triste pungir137,com ele se foiNo céu confundir!

(FIM)

* Digitalização e notas de rodapé realizadas pelo mestrando da Universidade Federal de Sergipe (UFS), campus Itabaiana, pelo programa de mestrado profissional em

136 Certamente Nísia Floresta sabia que “Eco” é uma entidade mitológica greco-romana. Se o índio, foi ao céu, mas isso é confirmado pela resposta de “Eco”, que foi condenado por Vênus a repetir o final de tudo que os outros falam, pode-se duvidar desse céu, na autora. Ela mesmo admite no poema que os indígenas apresentam outras crenças. Por que seria que “com triste pungir do Caeté” foi-se ele “confundir o céu”? 137 Tirar a foto desse remédio e utiliza-lo como demonstração de uma ilustração desta estrofe. Aproveitar e debater a relação entre o espírito romântico e a depressão. O poema curto de Olga Savary intitulado “Desperdício” traz a ideia de amor como desperdício enquanto for uma “ideia fixa”. Lembrar que o conceito de “ideia fixa” foi tracejado pelo escritor Machado de Assis, quando fez Brás Cubas imaginar o Emplasto Brás Cubas, que nada mais seria, que o que chamamos hoje de remédios antidepressivos. Além disso, seria bom explorar a série de poemas curtos de Savary intitulados “Amor”, “Amor:” e “Amor?”.

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Linguística (PROFLETRAS 2013/2 à 2015/2) Waldemar Valença Pereira e orientado pela professora Dr.a. Christina Ramalho. No ano de 2014, primeiro semestre.

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