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Comentário Bíblico CPAD - Gálatas Germano Soares

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G er m a n o S o a r e s

COMENTARI

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G erm ano S o a r es

CB4DIa Edição

Rio de Janeiro2 0 0 9

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Todos os direitos reservados. Copyright © 2 0 0 9 para a língua portuguesa da Casa Publicadora das Assembleias de Deus. Aprovado pelo Conselho de Doutrina.

Preparação de Originais: Elaine Arsenio Revisão: Daniele Pereira e Verônica Araújo Capa: Josias FinamoreProjeto Gráfico e Editoração: Luciene Oliveira

CDD: 2 2 0 - Comentário Bíblico ISBN: 978-85-263-1010-0

As citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida e Corrigida, edição de 1995, da Sociedade Bíblica do Brasil, salvo indicação em contrário.

Para maiores informações sobre livros, revistas, periódicos e os últimos lançamentos da CPAD, visite nosso site: http//www.cpad.com.br

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Ia edição: 2 0 0 9

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D e d ic a t ó r ia

Para minha mãe, Josefa Soares da Silva (in memoriam), que com carinho e afeto dedicou-se para manter sua família nos caminhos do evangelho de Jesus Cristo.

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A b r e v ia t u r a s

r ...

Livros Apócrifos

Baruc................................................................................................................BarEclesiástico ou Jesus Sirac............................................................................ EclJudite................................................................................................................. JudSabedoria de Salomão..................................................................................SabTobias..............................................................................................................TobIo Livro de Macabeus................................................................................1 Mac2o Livro de Macaneus.............................................................................. 2 Mac

Livros Pseudipígrafos

Apocalipse Grego de Baruc................................................................Apc BarApocalipse de Moisés...................................................................Apc MoisésApocalipse Síriaco de Baruc................................................................Bar SyrAssunção de Moisés ou Vida de Adão e Eva............................Ass MoisésLivro Eslavônico de Henoc ou 2Hen.................................................Hen EslLivro Etíope de Henoc ou lH en...........................................................Hen EtLivro dos Jubileus........................................................................................... JubOdres de Salomão..................................................................................Od SalOráculos Sibilinos....................................................... ............................Or SibSalmos de Salomão.................................................................................. SI SalTestamento dos Doze Patriarcas........................................................... Test 123o Livro de Esdras....................................................................................... 3 Eds4 o Livro de Esdras.......................................................................................4 Eds

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GÁLATAS CO M EN TÁ RIO

3° Livro de Macabeus................................................................................3 Mac4o Livro de Macabeus............................................................................... 4 Mac

Manuscritos de Qumran

Documento de Damasco............................................................................DAMRegra da Guerra ou Rolo da Guerra................... ....................................1QMRegra da Associação ou Manual de Disciplina.......................................1QS

VII I

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Pr e f á c io

Foi com muito prazer e satisfação que recebi o convite do professor Germano Soares para prefaciar seu primeiro trabalho: Gálatas — Comentário, publicado pela CPAD. Pastor Germano é meu amigo e companheiro de trabalho há muito anos. Tive o privilégio de conhecê-lo em 1990, ocasião em que lecionávamos no conceituado Instituto Bíblico Pentecostal das Assembléias de Deus (IBP), no Rio de Janeiro. Naquela época, esse honrado homem de Deus, de rara capacidade intelectual e acadêmica, já demonstrava claramente seu apreço e dedicação pelo estudo do Novo Testamento, especialmente, das Epístolas do Apóstolo Paulo.

“A Epístola aos Gálatas” tem despertado a atenção dos melhores comentaristas de todos os tempos, porque apresenta o pensamento de Paulo e expressa resumidamente a essência da doutrina e da vida cristãs. Podemos dizer, sem medo de errar, que a despeito da ausência de beleza estilística, nunca houve na literatura humana outro livro de igual valor. Quem estuda e entende a Epístola aos Gálatas, compreende Cristo e o Cristianismo; e quem segue piamente seus ensinamentos é, com certeza, um filho amado do Deus eterno.

Sem essa Escritura, o Cristianismo não passaria de uma seita judaica, e o pensamento do mundo ocidental jamais deixaria de ser inteiramente pagão. Toda informação existente nesta Carta é exata e adequada para servir de firme fundamento para nossos raciocínios, em termos de fé e prática. A semelhança de uma candeia em uma caverna, essa missiva sagrada talvez não possa iluminar cada canto remoto de nosso intelecto, mas fornece luz suficiente para que sigamos confiantes no caminho da compreensão dos desígnios divinos. Não resolve todos os dilemas históricos, teológicos e doutrinários, mas responde de forma definida à pergunta: Qual foi a principal contribuição do Cristianismo apostólico às necessidades humanas?

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g â l a t a s C o m e n t á r i o

Este escrito de Paulo aos Gálatas, que era enigmático para os próprios crentes da época, e que ainda hoje é, infelizmente, mal compreendido por grande parte da cristandade, expressa as mesmas idéias que Jesus ensinou nos Evangelhos. Paulo afirma que as coisas exteriores, como os ritos ou as leis têm lugar secundário na verdadeira religião, e que o autêntico Cristianismo consiste tão somente de relações pessoais e interiores do crente com Deus.

Esta epístola não é apenas um livro ou formulário de preceitos, mas contém uma série de quadros sobre como deve ser a vida espiritual. Como bem observa o autor da presente obra, “E nela que encontramos a mais pura exposição da forma correta de viver a fé cristã”. E ela que “defende com vigor a liberdade do cristão perante a lei judaica, que por mais maravilhosa ou indispensável que alguém possa conceber, somente escraviza”.

Este relevante trabalho, que vem colaborar para a maior compreensão das verdades cristãs e estímulo da fé, não se esgota em si mesmo, uma vez que há no mercado literário uma grande quantidade de livros de altíssimo valor teológico acerca da epístola em questão. Entretanto, como o próprio autor assevera, jamais encontraremos dois comentários concordantes em tudo, já que cada comentarista, “inevitavelmente, projeta boa parte de si mesmo, e de sua experiência” no labor da pesquisa.

O público estudioso da Bíblia está de parabéns por mais este oportuno trabalho. Estou convicto de que ele cumprirá plenamente a função a que se destina.

A Deus toda a glória!

Pr. Marcos Tuler, chefe do setor de Educação Cristã da CPAD.

X

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Su m á r io

Abreviaturas VIIPrefácio

IXIntrodução 13

Capítulo I -1.1-5: P r ó lo g o 27

Capítulo II -1.6-2.21: P aulo D efende sua A utoridade A po stó lica 37

1) 1.6-10: A Verdade Ameaçada 372) 1.11,12: O Testemunho do Apóstolo 423) 1.13—2.21: A Origem Divina do Evangelho 45

a) 1.13-24: A conduta do apóstolo antes e depois da chamada 45b) 2.1-10: O reconhecimento por parte de Jerusalém 53c) 2.11-21: Frente à conduta de Pedro em Antioquia 6 0

Capítulo III- 3.1-5.12: A Ju st ific a ç ã o p e l a Fé 73

1) 3.1-5: O Espírito Vem pela Pregação da Fé 792) 3.6-14: A Bênção de Abraão Descende sobre os Cristãos 79

a) 3.6-9: Os cristãos são filhos de Abraão 79b) 3.10-12: Os que vivem nas obras estão debaixo da maldição 82c) 3.13,14: A bênção de Abraão veio aos cristãos 84

3) 3.15-29: A Herança de Abraão 86a) 3.15-18: A lei não pode invalidar a promessa 87b) 3.19-25: A lei foi nosso tutor até Cristo 9 0c) 3.26-29: O cristão é descendente de Abraão 95

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GÁLATAS CO M EN TÁ RIO

4) 4.1-20: Cristo Converteu os Herdeiros em Filhos de Deus 97a) 4.1-3: A situação dos herdeiros antes de Cristo 97b) 4.4-7: Cristo resgatou os herdeiros 99c) 4.8-11: É impossível uma recaída 102d) 4.12-20: A perplexidade do apóstolo 105

5) 4.21-31: O Cristão não É Filho da Escrava, mas da Livre 109a) 4.21-23: Os filhos de Abraão 109b) 4.24-25: A escravidão em Hagar 110c) 4.26-31: Somos filhos da livre 112

6) 5.1-12: Fomos Chamados para a Liberdade 115a) 5.1-3: O jugo da escravidão 115b) 5.4-6: A fé ativa 117c) 5.7-12: Sede seguidores da verdade 119

C ap ítu lo IV- 5 .13-6 .10 :0 Uso C o rr eto da L iberdade 125

1) 5.13-15:0 Princípio Fundamental: Servir em Amor 1252) 5.16-24: Aclaração Geral do Princípio Fundamental 127

a) 5.16-18: A carne tem tendências contrárias ao Espírito 127b) 5.19-21: As obras da carne 130c) 5.22-24: O Fruto do Espírito 134

3) 5.25—6.10: O Desenvolvimento do Princípio Fundamental 137a) 5.25,26: O caminhar no Espírito 137b) 6.1-6: Levar as cargas mutuamente 139c) 6.7-10: O resultado do princípio fundamental 144

C ap ítu lo V- 6.11-18: C o nclusão da C arta 149

N o tas 155

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In t r o d u ç ã o

A região da Galácia, no interior da Ásia Menor, deve seu nome às tribos celtas.1 As tribos gálatas eram, originalmente, populações celtas que, na primeira metade do século III a.C., abandonaram a Gália e, seguindo pelas regiões do rio Danúbio, penetraram na região central da Ásia Menor, ali se estabelecendo por volta de 280 a.C. Com suas repetidas incursões e correrias, criaram uma situação de inquietação na Ásia Menor, até que, por volta do ano 2 4 0 a.C., o rei Atálio, de Pérgamo, venceu-os e obrigou-os a que se assentassem no território das cidades Ancira, Péssino e Távio.

No decorrer dos séculos seguintes, aquelas regiões se sujeitaram à cultura greco-romana, incorporando, naturalmente, o processo de hele- nização; porém, conservaram costumes originários de sua pátria, entre eles a aversão de viver em cidades. Por isso, Paulo pôde incorporar esses territórios nos seus planos de missões. O último rei dos gálatas, Amin- tas, estendeu os limites do seu país para o sul, alcançando as regiões da Psídia e Licaônia. Deixou por testamento seu reino aos romanos, e sob o comando de Augusto, transformou-o em província após a morte de Amintas, ocorrida por volta de 25 d.C. Dessa forma, essa província, que incluía a Galácia, propriamente dita, a Psídia e a Licaônia, foi ampliada até o sul, com o acréscimo de Frigia, Panfília e Ponto.

Os limites dos distritos e das cidades incorporadas à província da Galácia alteravam-se com grande freqüência, e não possuíam nenhum nome oficialmente unificado. “A designação abreviada para a província, Galácia, é usada às vezes pelos escritores do período imperial, mas não é encontrada em inscrições. O nome de gálatas só é empregado para os habitantes do distrito da Galácia, propriamente dito.”2 Faltam provas de que os habitantes da província que não pertenciam à região da Galácia eram chamados também gálatas.3

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G Á LATAS CO M EN TÁ RIO

De acordo com o versículo 2 do capítulo 1, Paulo endereçou sua carta “às igrejas da Galácia”.4 O apóstolo não menciona nenhum nome ou lugar. E aos destinatários se lhes dirige a palavra com a interpelação de gálatas (3.1).

Dada a ambigüidade do conceito geográfico de Galácia, há uma grande discussão quanto aos destinatários da carta. Geralmente são apresentadas duas teorias falsamente denominadas de Galácia do Norte e Galácia do Sul.5

1. A teoria da Galácia do Norte, ou melhor, a hipótese do território, diz que Paulo dirigiu sua carta aos habitantes da atual Galácia, o distrito da Galácia. Apesar do silêncio de Atos, a menção de igrejas em Atos 18.23 leva à hipótese de que Paulo, ao passar pelo distrito da Galácia (At 16.6), imprimiu um novo estilo à fundação de igrejas.

2. A teoria da Galácia do Sul, ou melhor, da província, diz que a carta foi destinada aos habitantes da província romana da Galácia; neste caso se pensaria unicamente nas comunidades cristãs fundadas durante a primeira viagem missionária e novamente visitadas por Paulo na segunda viagem: Antioquia, Icônio, Listra e Derbe (ver At 16.1,2).

Segundo o relato do livro de Atos, Paulo e Silas, no começo de sua segunda viagem missionária, visitaram primeiramente as comunidades fundadas por Paulo em sua primeira viagem missionária, e atravessaram a região da Frigia e da Galácia. Logo, seguindo a fronteira da Mísia, dirigiram-se a Trôade (16.6-8).

No começo da terceira viagem missionária o autor de Atos registra: “[...] partiu, passando sucessivamente pela região da Galácia e da Frigia, fortalecendo a todos os discípulos” (18.23). Segundo esse relato, o apóstolo em sua segunda viagem missionária, pregou na região da Galácia e visitou na sua terceira viagem os cristãos que haviam sido ganhos naquela ocasião.6

Surpreendentemente, o livro de Atos nos fala que Paulo percorreu apenas a região da Galácia, porém não nos diz nada sobre seu labor evan-

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IN TRO D U ÇÃO

gelístico, limitando a assinalar que o apóstolo “fortaleceu a todos os discípulos”. Isto pressupõe, seguramente, que o apóstolo, durante a segunda viagem missionária, fundou ali comunidades. Uma vez admitido isto, segue-se que Paulo visitou logo, na sua terceira viagem missionária, às comunidades da Galácia.

O fato de que o livro de Atos não o diga com palavras claras não é prova decisiva em contrário, já que suas informações têm lacunas. A Carta diz pouco, também, sobre os leitores a quem é destinada, e seus dados são interpretados de maneiras diversas.

A chamada teoria da Galácia do Sul (província) foi defendida primeiramente por J. Schmidt, em 1748. Nos tempos modernos, foi propagada de maneira muito eficaz por W. Ramsay, investigador da Ásia Menor, e por Theodoro Zahn. Mais recentemente, pode ser encontrada no comentário de D. Guthrie.7 Todos eles propõem diversas objeções contra a teoria chamada Galácia do Norte (território).

Essa teoria afirma que todas as referências à Galácia nas cartas pau- linas dizem respeito à província como um todo, e que as igrejas da “Galácia” são aquelas das cidades que o livro de Atos inclui expressamente no roteiro do apóstolo, como Derbe, Listra, Icônio e Antioquia da Pisí- dia. Essas cidades, que Paulo visitou sua primeira viagem missionária, pertencem todas à província da Galácia do tempo em que a registrada evangelização se realizou.8

1. Segundo os defensores da hipótese de que Paulo tenha enviado sua Carta aos habitantes da província, os habitantes do território da galácia não eram o campo apropriado para o labor missionário de Paulo, já que entre eles havia se difundido apenas a língua e a cultura gregas, e não existiam comunidades judias congregadas em sinagogas, que tivessem servido como ponto natural de partida para a evangelização.

Se Paulo tivesse realizado verdadeiramente na região da galácia uma atividade missionária, então haveria visitado sem dúvida a população da cidade de Ancira, na qual existiam pessoas que entendiam grego, e não era formada por gálatas, no sentido nacional da palavra, mas por gregos, romanos, sírios e judeus, e a quem o nome de “gálatas” lhe havia encaixado da mesma forma que aos habitantes de Listra.

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G á l a t a s CO M EN TÁ RIO

Contra essa suposição, deve ser notado, em primeiro lugar, que Atos 18.23 atesta, pelo menos, a presença de cristãos na região da Galácia. A região “frígio-gálata” ficava ao Norte e a Oeste de Antioquia. Evidentemente, Paulo se voltou para o Norte nesse ponto, mas o relato dado em Atos 16.6-8 indica que ele não se voltou para o Leste, em direção às cidades do Norte da Galácia, mas antes, para o Oeste, em direção à Mísia, até que chegou a Trôade. Se a frase do versículo 6 tiver realmente de ser traduzida como “região frígio-gálata”, como faz nossas versões, é provável que isso se refira ao território frígio, incluído na província da Galácia, ou então, ao território fronteiriço à Frigia como à Galácia, que ficava imediatamente a Oeste da província.9

Quanto a helenização dos gálatas, é importante ter em conta o fato de que, nos dias de Paulo, já fazia mais de 3 0 0 anos que os gálatas se haviam estabelecido na região, que, portanto, não deviam entender o grego pior do que entendiam os licaônios e os pisídios. A afirmação de que Paulo, ao designar os países percorridos por ele, se utiliza dos nomes das províncias romanas, e que, portanto, o nome “Galácia”, em Gálatas 2.1, designaria também província romana, a qual pertenciam também as regiões de Licaônia e Pisídia, não se referindo ao território da Galácia é uma afirmação insustentável.10

isto porque na linguagem oficial não era corrente, nem muito menos comum, denominar Galácia a todo território desta província romana. Além do mais, quando Paulo, em Gálatas 1.21, fala de “Síria e Cilicia”, está se referindo às regiões destes nomes; e quando fala da Judéia11, se refere à região, porque só desde Vespasiano houve uma província que levara o nome de Judéia. Também, Arábia, em Gálatas 1.17, é o nome da região, e não o nome oficial do reino dos nabateus.

2. A consideração de que os agitadores judaizantes, em caso de terem vindo de Jerusalém, haviam de encontrar nas comunidades do sul da Galácia um campo muito mais apropriado para sua propaganda do que território que rodeava Ancira e Péssino, uma região que se encontrava mais distante e que estava culturalmente atrasada, também carece de base.

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IN TRO D U ÇÃ O

Segundo os defensores de teoria da província, a presença de agitadores judaizantes nas cidades do norte é menos provável do que sua presença nas cidades do sul. Estas últimas ficam nas rotas diretas de viagem entre a Palestina e os portos do mar Egeu, e uma população judaica é especificamente mencionada em Antioquia da Pisídia e em Icônio (At 13.14; 14.1). As outras duas cidades estavam ao alcance dos judeus, visto que estes últimos desceram de Icônio até Derbe, a fim de incitar a multidão contra o apóstolo (At 14.5). Já que alguns convertidos dessa região eram judeus e prosélitos gentios, é apenas natural supormos que se sentiriam susceptíveis à influência judaica após a sua conversão.

Frente a isso, podemos dizer que o labor da agitação contra Paulo não teve por que se limitar apenas, nem muito menos, à região da Galácia.12

3. Finalmente, deve ser ressaltado que Paulo, em toda a Carta, denomina a si mesmo como fundador das comunidades cristãs da Galácia e como seu pai espiritual (4.19). Se a Carta tivesse sido dirigida às comunidades da região sul da Galácia, nos surpreenderia o fato de não se fazer qualquer alusão a Bamabé, que em Gálatas 2 é mencionado como co-fundador de tais comunidades.

Seria difícil entender por que Paulo, em Gálatas 1.21, menciona a Síria e Cilicia (evidentemente como territórios de missão), em vez de escrever: “Depois fui às regiões da Síria e da Cilicia”, não escreveu da seguinte maneira: “Depois fui a Síria e a Cilicia e depois a vocês”.13

A data da redação de Gálatas tem um problema que está indissoluvelmente unido com o de determinar quais foram os leitores.14 Segundo Gálatas 4.13, a Carta foi escrita depois que Paulo havia estado duas vezes na Galácia. È verdade que a expressão to proteron, pode significar simplesmente “antes”. Porém, se assim fora, então resultaria supérfluo o que se é colocado. Por isso, a citada expressão não pode ser entendida senão no sentido de que Paulo, antes de escrever Gálatas, estivera realmente trabalhando duas vezes na Galácia: a primeira delas seria, conforme a hipótese da Galácia do Norte, durante sua segunda viagem, e a outra, durante sua terceira viagem missionária. Desta forma, pode-se concluir que a redação da mesma não pode ter acontecido antes da chegada de Paulo a Efeso, que teve lugar no ano 54.

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G á l a t a s C o m e n t á r i o

Pois bem, que relação há entre o relato de Gálatas 2.1 (sobre a segunda viagem de Paulo a Jerusalém) e a exposição qae lemos em Atos. Dificilmente se poderá negar que as viagens a Jerusalém, uma narrada em Atos 15.22 e a outra em Gálatas 2, devem ser identificadas entre si, porque ambos os relatos tem por objetivo o enfrentamento de Paulo e Barnabé com os apóstolos primitivos, fato esse que versou sobre a necessidade da circuncisão e da observação da lei judaica para obtenção de salvação. Enquanto o decreto apostólico, que o autor de Atos menciona em relação com todo ele, e sobre o qual Paulo guarda absoluto silêncio, vemos que hoje em dia cada vez mais se impõe a convicção de que foi redigido em outra ocasião distinta e mais tardia.15

Enquanto que uma viagem anterior de Paulo e Barnabé a Jerusalém, narrada em Atos 11.30; 12.25, e na qual ambos haviam levado consigo a coleta realizada pela comunidade antioquena, dificilmente poderemos negar que neste ponto não há exatidão na exposição, em razão de o autor de Atos ter utilizado duas fontes distintas, nas quais narraria, de fato, o mesmo acontecimento. Pois bem, uma vez aclarado isto, podemos afirmar, com base em Atos 19, que Gálatas foi composta durante a terceira viagem missionária de Paulo, mais precisamente, durante os dois anos e meio de estada de Paulo em Éfeso (54-56) ou, possivelmente, um pouco mais tarde.

Os defensores da chamada hipótese da Galácia do Sul,16 que acreditam que a Carta foi escrita em época anterior, precisamente na época da primeira estada de Paulo em Corinto, entre os anos 51-53, ou mesmo antes, consideram esta Carta como a mais antiga que possuímos de Paulo. Para isso interpretam a expressão to proteron no sentido exclusivo de “antes”, ou duplicando a chamada primeira viagem missionária de Paulo (At 13,14), a saber, entendendo a viagem até Derbe e o regresso até Perge como duas viagens, coisa que dificilmente poderíamos qualificar senão como “solução de emergência”.

Se nos ativermos à hipótese do território da Galácia, considerando-a como a melhor fundada, então teremos que perguntar se a Carta teria sido escrita no início da estada de Paulo em Efeso, no final da dita estada,

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I n t r o d u ç ã o

ou talvez mais tarde. A passagem de Gálatas 1.6, em que Paulo expressa seu espanto e sua indignação pelo fato de os gálatas estarem se afastando rapidamente do evangelho que eles lhe havia pregado, é uma passagem que não deve entender-se como um ponto de partida sólido, porque tachéus (tão rapidamente) não deve ser relacionada com um termo determinado, a saber, com o breve lapso de tempo que media entre a última presença de Paulo da Galácia e sua chegada a Efeso, mas deve ser entendido no sentido absoluto.

Deve ser notado também que há uma certa afinidade entre Gálatas 4.1-6 e Romanos 8.7-16, e pode-se basear nessa afinidade para tirar a conclusão de que é possível uma data próxima para a redação de ambas as cartas. Se Romanos foi escrito no começo do ano 58, ou muito tempo antes de Paulo ir de Corinto para Jerusalém, a Epístola de Gálatas deve ter sido redigida nos meses que Paulo passou em Corinto (entre o outono de 57 e fins do inverno de 58); também pode ter sido escrita antes, quando Paulo ainda se encontrava na Macedônia, antes de se dirigir a Corinto. Também é discutível a mencionada afinidade entre Gálatas e Romanos, que colocaria uma aproximação na data da redação. E mais natural supor que o lugar da redação tenha sido Efeso, onde Paulo esteve por quase três anos. O fato de que não se encontra na Carta nenhuma referência a Éfeso (por exemplo, na saudação) pode ser pelo fato do caráter da carta. Porém, continua sendo possível, certamente, também que Paulo tenha escrito a Carta antes da sua chegada a Efeso.17 Desta forma, podemos, com certeza, fixar sua composição entre os anos 54 e 58.

Outra questão está relacionada aos adversários na Galácia. Algum tempo depois da segunda visita de Paulo às comunidades da Galácia (4.13; At 18.23), quando se encontrava trabalhando em Efeso, chegaram- lhe notícias de que missionários estranhos haviam se introduzido nas comunidades e estavam ameaçando o evangelho. Eram agitadores que atacaram vivamente o evangelho de Cristo, livre de qualquer prática formal da lei, que o apóstolo havia pregado, e em relação a ele procuraram logo tentar diminuir a sua autoridade como apóstolo. O evangelho, tal como ele havia pregado, seria um erro perigoso. Segundo os agitadores,

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g á l a t a s C o m e n t á r i o

a lei não havia sido abolida por Cristo. A salvação seria acessível também para os gentios, porém, unicamente se aceitassem a circuncisão e se submetessem à lei. Se Paulo os havia liberado das exigências da lei, fazia-o unicamente para ganhá-los (1.10).

Segundo os agitadores, Paulo não era um apóstolo genuíno. Não havia visto a Jesus nem tivera nenhum contato com Ele. Somente os doze eram apóstolos genuínos. E estes não ensinavam que a lei tivesse sido abolida, nem que houvesse acabado a supremacia religiosa de Israel por efeito da morte de Cristo. Paulo não havia recebido de Jesus nenhuma missão; ele, na realidade, não seria senão uma pessoa que havia recebido um encargo dos apóstolos primitivos, passando por sua escola e que dependia dos ensinos deles.

Talvez os agitadores afirmassem que Paulo havia reconhecido em Jerusalém a necessidade da circuncisão, e que ele mesmo a havia proclamado, porém, dos gálatas não exigiu tal coisa, a fim de ganhá-los mais facilmente (1.10).

Em todo caso, os agitadores presumiam ser os pregadores do único cristianismo autêntico, do cristianismo que derivaria da comunidade primitiva de Jerusalém, que remontaria diretamente aos ensinamentos de Jesus. O que Paulo havia começado de maneira defeituosa, eles tinham agora que retificar e aperfeiçoar (3.3).

Os gálatas não haviam se apartado dos ensinamentos de Paulo, porém, vacilam em segui-lo, sendo fiéis aos propagandistas (1.6; 3.1,10). Já haviam começado a observar o calendário das festas judaicas (4.1-10). É verdade que não aceitaram ainda a circuncisão, porém correm perigo de deixar-se convencer e começar a praticá-la (5.2; 6.12). Parece, isso sim, que os agitadores não pediram aos gálatas senão que estes se submetam à circuncisão e a certo número de preceitos indispensáveis da lei. Porém, Paulo lhes declara que o fato de aceitar a circuncisão obriga-os a observar toda a lei (5.1-3).

Paulo não diz de onde procedem os agitadores. Ele se limita a falar de pessoas que semeavam a confusão entre os gálatas (1.7; 5,12). Porém, o que não deixa dúvida é que essas pessoas haviam penetrado na comunidade vindas de fora. Em uma ocasião, Paulo fala de forma que po-

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I n t r o d u ç ã o

dem suspeitar que, por traz de tudo isso, se oculta uma personalidade de prestígio (5.10). Mas é impossível tentar descobrir a quem se refere. Com toda certeza, não se refere a Pedro, e nem tampouco a Tiago, porque estaria indo contra o que Paulo mesmo havia dito em 1.18; 2.6-8, quando fala dele e dos demais dokountesde Jerusalém.

Segundo, a opinião mais difundida hoje em dia é que a única pista que temos dos agitadores está no fato de que eles tinham certas afinidades com os grupos judaizantes que lutaram contra Paulo em Antioquia e na assembléia dos apóstolos,18 mas foram vencidos (2.4).

Nos dias atuais, diversos investigadores têm negado, de distintas formas, que tais grupos devam caracterizar-se como judaizantes de Jerusalém. J. H. Ropes é de opinião que os agitadores não são pessoas que vieram de fora, mas membros das sinagogas gálatas, os quais queriam convencer aos gálatas para que aceitassem a circuncisão e seus costumes de cultos judaicos.19 Esta opinião deve ser abandonada, porque Paulo caracteriza os agitadores claramente como cristãos.

Podiam tratar-se também de cristãos de origem gentílica, não gálatas, que haviam aceitado a circuncisão e que agora desejavam impulsionar os demais cristãos a procederem da mesma maneira.20

Outros, baseando-se no fato de que Paulo, por um lado, luta contra o nomismo judaizante, e por outro lado, na terceira parte principal — a parte perenética da carta — luta contra uma postura antinomista, tiram a conclusão de que a luta do apóstolo se realiza em duas frentes, a saber, por um lado contra judaizante, e por outro, contra os pneumáticos de caráter gnóstico e libertino. Contra esse último grupo estaria dirigida a parte perenética da Carta. A parte perenética da Carta seria supérflua e incompreensível se tivesse sido contra pessoas que pensaram completamente em termos do legalismo judaico.21 Esta opinião encontrou pouca aceitação. E parte é compreensível, pois Paulo não sugere, nem com uma só palavra, por que está mudando de polêmica. Por isso, alguns outros investigadores, para fazer justiça a essas observações, dizem que os protagonistas eram judeus sincretistas ou judeu-cristãos, que adotavam pontos de vistas parecidos com os hegeres colossenses.

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G á l a t a s C o m e n t á r i o

Em contrapartida, outros pensam, em conexão com sua própria concepção básica, que Paulo teve em todas as suas cartas os mesmos adversários, a saber, gnósticos judeu-cristãos,22 a exemplo do que ocorre também nas igrejas na Galácia.25 Não poderiam ser puros judaizantes, porque estes, por serem inimigos da evangelização aos gentios, não haviam desenvolvido labor missionário entre eles. No caso dessa heresia, Schmithals considera que a questão legal era de segunda ordem, e faz especialmente nos elementos gnósticos desse movimento.24 Não devia supor, tampouco, que tivessem vindo de Jerusalém. Se assim houvesse ocorrido, então não poderiam reprovar Paulo pela dependência em que se falava, uma dependência que eles haviam afirmado igualmente, com respeito aos apóstolos primitivos.25

Deve-se, entretanto, realçar como indiscutível o fato de que estes adversários de Paulo, se é que ele estivesse bem informado sobre eles, pretendiam impor aos gálatas especialmente a obrigação de observar a lei judaica, e eles mesmos (apesar de 6.13) se sentiam obrigados a ele. A última parte da Carta não deve ser entendida como polêmica contra os libertinos gnósticos, nem como prova de que os adversários não eram puros judaizantes, e estavam sumamente influenciados pelo gnosticismo. Pensamos que essa parte da Carta é uma conseqüência da descrição que Paulo faz da liberdade cristã, quando pretende descrever, de maneira mais pormenorizada, em que consiste e em que não consiste a liberdade cristã.

A melhor maneira de entender toda a polêmica de Gálatas é partindo do pressuposto que os adversários de Paulo eram verdadeiros judaizantes,26 com tendências apócrifas.27 Não podemos demonstrar com segurança se esses judaizantes procederam de Jerusalém, porém é algo que não deixa de ser muito provável. Eram aquela parte da comunidade primitiva radical e reacionária, que não estava de acordo com a postura dos apóstolos primitivos. Que foram influenciados pelo gnosticismo, é algo muito provável, tratando-se de judeus cristãos de Jerusalém, e é também algo muito difícil de reconhecer, para não dizer impossível, entre os hereges de gálatas.

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IN TRO D U ÇÃO

O apóstolo não diz uma palavra de quem o informou sobre as atividades dos judaizantes na Galácia. Paulo se deu conta de que uma intervenção enérgica e imediata era um imperativo do momento. Tendo em vista não ser possível fazer uma visita e pessoalmente expor a sua posição com relação aos ataques, escreve aos gálatas uma carta, na qual procede com todo rigor contra seus adversários, não deixando de chamar a atenção dos cristãos sobre a negligência e inconstância de cada um.

Nenhuma de suas cartas está tão enardecida como acontece com Gálatas, na qual o apóstolo escreve dominado pela paixão. A Epístola de Gálatas é a única carta paulina em cuja introdução não há palavras de ação de graças a Deus pelos leitores, e a única em que, ao final, não se mandam saudações para ninguém. Porém, na segunda metade da Carta, o amor do coração de Paulo, angustiado por seus filhos, triunfa sobre o enojo que sentia pelo ânimo vacilante destes. E o apóstolo lhes suplica, encarecidamente, que o escutem (4.12-20).

Não temos nenhuma notícia sobre o resultado alcançado pela Carta. Se Gálatas foi escrita antes de 1 Coríntios, então é seguro que os gálatas regressaram ao evangelho paulino (cf. 1 Co 16.1). Em favor dela está também o fato de ter sido conservada, graças ao interesse tomado pelos próprios destinatários.

O fato de que Paulo, em 2 Coríntios 9.2, não mencione Gálatas, não deve considerar-se como argumento contra o que acabamos de dizer. E tampouco que Atos 20 .4 não apresenta nomes de nenhum delegado gálata como companheiro de Paulo em sua viagem a Jerusalém, porque faltam também os delegados de Corinto.

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CAPÍTULOI

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P r ó l o g o

Capítulo I -1 . í -5 P R Ó L O G O

O prólogo, onde se menciona o remetente, contém, na chamada intitulatio, uma detalhada autoqualificação do apóstolo. O seu nome e a alusão dos demais remetentes dão a impressão de que se trata de algo oficial. Por outro lado, a titulação está redigida em estilo individual para ouvidos helenistas.

Ao nomear os destinatários, Paulo o faz de forma muito breve. Faltam, como se tem notado com freqüência e diferenciando dos demais cabeçalhos epistolares paulinos, todos os predicados em honra das igrejas às quais se dirige.1 Naturalmente, essa ausência tem seu fundamento na situação especial do apóstolo com respeito a essas igrejas. Ao mesmo tempo, tem que reforçar o caráter oficial do escrito.

O interesse do apóstolo não pode se encerrar no esquema de uma carta oficial. Entretanto, a explicação do conteúdo do prólogo é mais importante do que observar a peculiaridade formal da Carta. É verdade que a observação dessa formalidade das expressões indica como a situação obriga o apóstolo a acentuar com mais força — e não por capricho — o caráter autoritário e oficial da carta.

♦V . 1 - Paulo, apóstolo. O nome do remetente tem ao seu lado um título que contém uma riqueza de detalhe. A palavra apóstolo deveria ser traduzida como “plenipotenciário”, pois nesse conceito está implícito o duplo sentido de mensageiro: que é o enviado com uma tarefa específica pelo comitente; e a autorização para representá-lo. No conceito está incluído, a partir de sua raiz grega e judaica, a idéia de que se trata de algo de direito público.

Apóstolo é, referindo-se a uma pessoa, um delegado comissionado. De modo mais estrito, o conceito de apóstolo está relacionado com o sarilhe, uma realidade tardia entre os judeus.2 O que caracteriza o selim não é o feito de sua missão, nem o conteúdo de sua tarefa, mas o fato de sua comissão e de sua autorização, nela implicada, tornar-se tão decisiva que o comissionado é o justo representante de seu comitente.

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g á l a t a s C o m e n t á r i o

Com o título de apóstolo, Paulo chama a atenção dos gálatas, não só sobre o caráter “oficial” de sua posição, de forma que sua autoridade se distingue de antemão de alguma pessoa carismática.3 Para os leitores,0 título apóstolo inclui igualmente a idéia concreta de que este é um enviado plenipotenciário do evangelho (1.16; 2.7; cf. Rm 1.1,5; 1 Co 1.17; 9.16;1 Ts 2.4); é o que escreve como mandatário de Cristo, aspecto que acentua fortemente, já que negar a missão imediata de Paulo era o fundamento do ataque dos gálatas.

Enviado não da parte de homens nem por meio de pessoa alguma, mas por fesus Cristo e Deus Pai. Essa expressão pode ser explicada de várias formas. Não são homens que delegaram e autorizaram o apóstolo, mas Jesus Cristo, por meio de Deus Pai. Paulo é um apóstolo que não foi enviado por homens, nem recebeu a tarefa de um homem, mas está em Jesus e em Deus a origem e a mediação do seu comissionamento. Não se comenta de que homens se tratam. Paulo não pára para refletir sobre possibilidades concretas, nem tampouco seus adversários as concretizaram em seu ataque.

Ele deriva seu comissionamento imediatamente de Jesus Cristo e Deus, cuja vontade de envio e cuja autoridade eficaz se respalda neste plenipotenciário e representante seu (cf. Rm 15.15,16; 2 Co 5.20), principalmente nesta ordem-plenipotenciário e representante. O que está em mira é a comissão da tarefa.

Que o ressuscitou dentre os mortos. Paulo se tornou apóstolo através da revelação de Jesus Cristo ressuscitado que lhe foi dada. Tal revelação se deve, naturalmente, ao fato de Deus Pai haver ressuscitado Jesus Cristo dentre os mortos. Seu apostolado se fundamenta, pois, na vontade de Deus. Porém o Deus que aqui torna eficaz sua vontade é o Deus vitorioso, que ressuscitou Jesus Cristo. Há uma relação essencial entre a ressurreição de Jesus Cristo e o acontecimento pelo qual Paulo se tornou apóstolo. Essa relação que se torna mais clara em 1 Coríntios 9.1; 15.8.

# V. 2 - E todos os irmãos que estão comigo. Paulo acentua aos gálatas não só a grande autoridade de seu ministério, mas também seu acordo com os “irmãos”. O remetente da carta é ele mesmo “e todos os

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P r ó l o g o

irmãos meus companheiros”. O acento recai sobre as palavras “todos os irmãos”.4 Isto deixa implícito que o apóstolo tem junto a si e em seu favor precisamente a tais pessoas, que não foram chamadas ou comissionadas diretamente por Deus, mas que, por outro lado, podem ser mediadoras entre ele e a comunidade, eleitos do meio dela pelo apóstolo.

Pode ser que, frente a alguns membros da comunidade, a autoridade pessoal de um “irmão” haja reforçado a maneira decisiva da autoridade ministerial do apóstolo, ainda que o irmão apenas tenha contribuído ao escrito apostólico mais que com seu nome.

Paulo não menciona nenhum irmão pelo nome em particular, porém tampouco escreve “irmãos”, como algo que não tivesse importância, mas escreve, intencionalmente: “irmãos meus companheiros”. O que interessa é poder remeter ao consenso de todos os irmãos que o rodeiam.

E difícil dizer quem são os irmãos. A expressão “os irmãos” deve ser interpretada com tanta extensão como a fórmula mesmo o permita, e não limitá-la aos membros da comunidade na qual Paulo trabalha em cada ocasião. Paulo não está interessado em identificar quem sejam os irmãos, mas somente em ressaltar o feito unânime do assentimento. Escreve a Carta, portanto, também em nome dos representantes da concorde fraternidade cristã.

As igrejas da Galácia. A Carta tem como endereço as diversas igrejas existentes na Galácia. De acordo com Atos 16.6-8, a menção da região da Frigia e a descrição do restante do itinerário de Paulo através de Mísia, Bitínia e Trôade indicam que aqui se pensa no território da Galácia.5 Estas tem que estar numa relação mútua determinada e encontrar-se em parecida situação interna e externa. A direção se põe de forma concisa. Só se menciona o nome dos destinatários, e assim mesmo, com indignação. Paulo não os chamam de “igreja de Deus”, como faz em 2 Coríntios 1.1; não os chamam de “santos em Cristo Jesus”, a exemplo do que ocorre em Filipenses 1.1; nem tampouco se encontram os abundantes e honrosos predicados: “santificados em Cristo Jesus e chamados para serem santos”, encontrados em 1 Coríntios 1.2, etc. Paulo ao não fazer uma saudação, como era de seu feitio, quer, naturalmente, guardar uma certa distância dos gálatas.

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# V. 3 - A vocês, graça e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo. A bênção é uma doação de graça e paz, que procedem de Deus e Jesus Cristo, por meio do apóstolo. Pode-se, pois, dizer: o enviado de Jesus Cristo e de Deus traz na saudação às igrejas da Galácia “graça e salvação” de Jesus e de Deus. No que se refere à formula de bênção em si, é importante salientar que não é original, nem foi feita para a Carta, mas surgiu no culto e Paulo tomou-a dali. De qualquer forma, a frase mostra nesses detalhes um certo uso litúrgico. Quanto ao seu conteúdo e a sua forma, faz pensar na tradição judaica e da comunidade cristã.6

Não parece que pode duvidar-se razoavelmente de que a fórmula “graça e paz” seja uma variação judaica de bênção que corresponde ao desejar saúde. A teologia paulina, geralmente, refere-se à misericórdia divina no que diz respeito à deficiência em obras. Com isso, apareceu o conceito radical de “graça”, que expressa o atuar gratuito de Deus, necessário com vistas a qualquer ação por mais perfeita que seja.

A “paz” é mais o efeito e o resultado do atuar gratuito de Deus e, como tal, é salvação para os que se encontram abençoados. Na incompreensível paz desta salvação, os gálatas podem agora manter seu coração (Rm 5.11; Fp 4.7).

Trata-se da paz objetiva que Deus concedeu aos cristãos. Graça e paz vêm através do apóstolo sobre as igreja dos gálatas, e vêm da parte de Deus que, como “nosso pai”, realizou a filiação dos benditos, porque Jesus Cristo se fez seu Senhor, que é o juiz do mundo (1 Co 8.6; Fp 1.11; 1 Co 12.3).

Nisto consiste a bênção que se expressa na saudação. Porém, ao dizer que o “Senhor Jesus” é aquele de quem parte a bênção, Paulo aproveita a ocasião para detalhar mais sobre sua condição de Cristo como mediador da salvação.7 A bênção emana do acontecimento salvífico que agora é descrito. Com essa exposição, o apóstolo apresenta à comunidade a primeira idéia sobre a ação de Deus, que salva a todos os cristãos em sua totalidade, e que é a única que salva. Por isso é que o prólogo, ainda que longo, recebe uma certa preparação com vista à segunda parte da Carta. A ampliação da intitulação, que representa o desenvolvimento da exigência, implica o conceito “apóstolo” e remete ao que se diz nos capítulos 1 e 2 .0 suplemento da saudação, que aclara o dom que foi dado em “Jesus Cristo”, tem ante os olhos o tema dos capítulos 3—6.

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PRÓLOGO

# V. 4 - Que se entregou a si mesmo por nossos pecados. Como Paulo descreve a ação de Jesus Cristo? Formalmente, fala em primeiro lugar do acontecimento em si e depois se fixa no efeito de acontecimento. O acontecimento se chama: “Que se entregou a si mesmo pelos nossos pecados”. A ação de Jesus Cristo consistiu em sua entrega por nós. Em outras cartas, Paulo expressa a entrega de Jesus Cristo quase sempre com o verbo paradidonai(Rm 4.25; 8.32; 1 Co 11.23). Influi nessa formulação o uso de paradidonai em Isaías 53.6,12, que é interpretado cristologica- mente. Romanos 8.32 indica que paradothenaiestá atuando em Deus (cf. Jn 3.16). Tais textos contribuem para melhor explicar o conteúdo do presente versículo.

A continuação indica, olhando desde a perspectiva da vontade salví- fica de Deus, a realidade que se fez necessária e provocou tal entrega da vida de Jesus: “Entregou a si mesmo pelos nossos pecados”.8 A utilização da preposição uper (por) contém unicamente uma indicação geral da relação existente entre a morte de Jesus e “nossos pecados”. A atitude de Jesus Cristo entregar-se “por nossos pecados” aconteceu no sentido de que Ele entregou sua vida em nosso favor, por causa de nossos pecados, levando, assim, os nossos pecados. Inclui, portanto, o sentido de apresentar os pecados como razão, e seu desaparecimento como a meta da morte de Jesus Cristo.

A fím de nos resgatar desta presente era perversa. Sob esta perspectiva se explica uma dupla diferença da entrega de Jesus Cristo com respeito à entrega heróica de um homem em favor de outro: a obediência para com Deus.9

Obediência que se demonstra com o amor. A ação heróica é a consumação da lei. Tal ação equivale a um ater-se a si mesmo o que atua pela entrega a uma idéia. É também asseguradamente de sua existência graças a sua disponibilidade pelo outro. A obra de Cristo, pelo contrário, é o cumprimento da obra de Deus que “entregou a si mesmo”. Porém, ao mesmo tempo é vinculação ao próximo, renunciando a existência assegurada por Deus no amor ao próximo.

A meta da ação de Jesus Cristo é libertar-nos “desta presente era perversa”. A era presente é igual à passada. A expressão contrapõe a era pre-

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sente à futura.10 A palavra traduzida como “era” é aion}x que é um termo técnico. A “presente era” é contraposta a uma era futura na apocalíptica judaica, como uma época dominada pelo mal.12 “Era perversa” ressalta o aspecto da temporalidade deste mundo. O evento sobrepuja o mesmo e pode, além do mais, implicar a idéia de que esta era é algo ameaçador (Rm 8.38; 1 Co 7.26). A era presente é má porque se revela como poder do mal dominada pelo mal (1 Co 2.6,8; 2 Co 4.4). Somente sua derrota por intervenção divina vai introduzir a era futura.

Ao escrever sobre “resgatar desta presente era perversa”, Paulo está falando claramente sobre o poderio da era presente com respeito à existência. Isto significa que ela tem poder de nos aprisionar e nos manter submetidos a seu poder; e que sempre estivemos atados por esta era perversa em que nos encontramos. O meio pelo qual esta era se vale para amarrar-nos é, segundo Paulo, a lei. Ela faz cometer os pecados pela interpretação e uso que faz do pecado, isto é, da “carne”. Por isso é que a ação de Jesus tende, em última análise, libertar-nos, tanto da atadura da lei, como de nossos pecados.

“segundo a vontade de nosso Deus e P ai. Existe uma íntima relação entre 4a e 4b. Jesus Cristo se entregou por nossos pecados, ou seja, para acabar com eles. Jesus Cristo se entregou para arrancar-nos da era presente, que é maligna e perversa. Qual a relação existente? A era má nos amarra a si valendo-se de “nossos pecados”. E que “nossos pecados” não são outra coisa, senão as distintas formas de nossa entrega e de nossa vinculação livre e forçada a essa presença da era presente que poderosamente nos ameaça e nos atrai. Aplaudindo nossos pecados, atualiza continuamente o seu perverso poder.

Se nossos pecados são destruídos, igualmente acaba o perverso poderio da presente era sobre nós. Ao entregar-se para resgatar-nos do nosso pecado, Jesus possibilitou que fôssemos arrebatados da era presente. A ação de Jesus fez com que aparecesse para nós a era futura. Isso é realizado segundo a vontade de nosso Deus e Pai.

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Pr ó l o g o

^ V. 5 - A quem seja a glória para todo o sempre. Amém. A Deus se deve, pois, o louvor, que é, como em tantas outras ocasiões, a menção das grandes ações salvificas divinas (cf. Rm 11.36a; Fp 4.20). A expressão fixa-se no caráter incessante e incalculável da eternidade. A doxologia se encerra com o “amém”, que deve ser entendido como uma aclamação.

Nas demais cartas de Paulo, não se encontra tal agradecimento, encerrando o prólogo. Nelas, segue normalmente, segundo costume antigo, a ação de graça a Deus pelo acrescido às comunidades e nelas. Nesta, esse tipo de agradecimento foi suprido. Não que Deus não houvesse operado também nas igrejas da Galácia por meio de Paulo, porém o que aconteceu foi que a sua obra não foi totalmente correspondida entre eles.

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CAPÍTULOII

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Pa u l o d e f e n d e s u a a u t o r i d a d e a p o s t ó l i c a

Capítulo II -1 .6 —2.21

PAULO DEFENDE SUA AUTORIDADE APOSTÓLICA

Não é nenhum exagero dizer que esta Carta demonstra o quão afetado está seu autor pelas ameaças que foram feitas contra sua autoridade apostólica e seu evangelho. Geralmente, Paulo agradece à igreja (ou igrejas) destinatária pela sua conduta e perseverança, mas aqui “não há nada que Paulo possa agradecer, pois em sua opinião, eles abandonaram a fé”.1

A Epístola de Gálatas, por um lado, foi escrita com os elementos de cartas em que não se dão senão ordens, ainda que o apóstolo (exceto Filipenses, naturalmente) oscila entre a forma de carta privada e a oficial. Por outro lado, raramente se rompe o caráter oficial unitário do escrito, e quando isso ocorre é para dar uma matriz sumamente pessoal a determinados elementos da carta.

Nesta primeira parte da Carta, Paulo procura defender perante a comunidade dos gálatas sua autoridade apostólica, procurando mostrar queo seu evangelho tem procedência divina.

1) 1.6-10: A Verdade AmeaçadaNos versículos 6-10, Paulo dá algumas indicações da luta que está

acontecendo na igreja dos gálatas. Seus adversários negam que sua missão seja da parte de Cristo, ou seja, no entender de Paulo, negam que ele seja apóstolo. Porém em primeiro plano estão as ameaças contra o evangelho, o qual seus adversários querem alcançar, para assim mostrar o suposto apostolado de Paulo. A situação é perigosa.2 Num rápido processo de degeneração, os gálatas se afastam da chamada recebida de Deus e, por conseguinte, da graça de Cristo, abraçando um inexistente pseu- doevangelho que transtorna as igrejas e falseia o evangelho de Cristo. O mesmo evangelho pregado por ele e recebido pelos gálatas. O apóstolo tem a obrigação de lançar a maldição sobre qualquer que traga outro evangelho.

# V. 6 - Admiro-me de que vocês estejam abandonando tão rapidamente aquele que os chamou pela graça de Cristo. Paulo se mostra admirado em vista da situação reinante nas igrejas dos gálatas. Eles estão em perigo de renegar. Essa apostasia acontece num processo rápido. O que

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ocorre com os gálatas é uma lamentável fuga do Deus que os chamou, e que em cujo chamamento se inaugurou a nova vida. O sujeito de kalesai (chamou) é Deus, e não Jesus Cristo. Isso responde ao estilo paulino que sempre relaciona chalein (chamar) com Deus e não com Jesus Cristo.5 Se os gálatas se separaram de Deus que os chamou, abandonam também a graça pela qual Ele os chamou.

A expressão “pela graça” deve ser entendida, sobretudo, pelo contexto: “que os chamou pela graça”. Com essa fórmula se deve expressar que a chamada se fundamenta na graça divina, e que essa graça foi decisiva para a relação comunitária criada pela chamada. A ênfase está em constatar a situação em que se encontravam quando foram chamados por Deus, e na realidade em que se encontrava quando foram chamados. Foram chamados na graça e estão debaixo da graça. O substantivo designa ao mesmo tempo o que apareceu com a chamada de Deus e a realidade em que agora se encontra o chamado.

Aqueles a quem Deus chamou pela graça estão debaixo da graça, recebida por esse chamamento e também nessa graça. Os cristãos estão rodeados e submersos neste chamamento. Apartar-se dele significa renunciar à chamada e à graça.

Para seguir outro evangelho. O que aumenta ainda mais a admiração do apóstolo é o fato de que se trata do afastar-se de Deus e voltar-se para um evangelho imaginário: “outro evangelho”. Se vê claro o dito pelo fato de que o afastar-se desta chamada de Deus significa abraçar “outro” evangelho, que só é aparente e, na realidade, inexistente. A chamada de Deus chegou aos gálatas pelo “evangelho” de Paulo, conforme versículos 8,9. A chamada de Deus e o querigma apostólico de Paulo são idênticos para os ouvidos dos gálatas.

Não podem ser chamados por Deus prescindindo do evangelho de Paulo, pois Deus não contradiz sua chamada, ainda que algumas pessoas pretendam pregar outro evangelho aos gálatas, e ainda que os gálatas reconheçam em sua pregação outro evangelho, Paulo declara que não existe.4

# V. 7 - Que, na realidade, não é o evangelho. E ainda que Paulo tenha expressado no versículo anterior sobre “outro evangelho”, corrige imediatamente dizendo que não existe outro. Deus não apresenta o seu evangelho para que possa ser escolhido ao lado de outro. No que o

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PAULO DEFENDE SUA AUTORIDADE APOSTÓLICA

evangelho é pregado, ele se faz palavra inequívoca a decisão definitiva de Deus sobre os homens.5

O que ocorre é que algumas pessoas os estão perturbando, desejando perverter o evangelho de Cristo. Os adversários “perturbam” a igreja. Perturbar traz um sentido de “desordenar” (At 15.24). Essa desordenação é a conseqüência da pregação do “outro evangelho”, pois o que os adversários pretendem é alterar o evangelho de Cristo. “Perverter”, significa, não só “mudar”, mas “fazer o contrário”. Sem dúvida, quando Paulo escreve esta Carta, seus adversários ainda estão atuando, mas até esse momento não conseguiram alcançar seus objetivos. Porém, Paulo não espera até que o processo de mutilagem do evangelho se consuma. O apóstolo descobre o perigo que se aproxima e procura alertar os gálatas sobre ele.

E os que apresentam o “outro” evangelho? Paulo contesta: adulteração do evangelho de Cristo; querem perverter o evangelho de Cristo. Diz de modo que ridiculariza aos mensageiros daquele “outro evangelho”. Paulo utiliza com muita freqüência a expressão “o evangelho de Cristo”.6 Não se trata unicamente do evangelho que tem por autor a Cristo, nem tampouco se fala somente do evangelho que trata de Cristo, mas do evangelho em que Cristo prega a si mesmo. E a eficácia e a presença de Cristo. Isto se pode ver de forma clara em Romanos 15.18,19, onde Paulo entende o seu evangelho como um complemento do evangelho de Cristo, que se consuma enquanto Cristo atua através de toda sua pregação apostólica.7 Paulo prega Cristo, enquanto Cristo é pregado através dele (cf. 2 Co 5.20;1 Ts 4.2). Se os adversários de Paulo pervertem o evangelho, atacam também a Cristo que se revela no evangelho. Partindo desse ponto de vista, deve-se interpretar o que Paulo, preocupado com a comunidade dos gálatas, ressalta sobre a exclusividade de seu evangelho.

# V. 8 - Mas ainda que nós ou um anjo do céu pregue um evangelho diferente daquele que lhes pregamos. Posto que neste caso é o mensageiro o suporte do evangelho, não pode este salvar da maldição, nem a mensagem falsificada, nem a si mesmo. Não é provável e nem tampouco possível que Paulo ou um mensageiro celeste pregue um evangelho diferente daquele que foi pregado aos gálatas. Assim deve ser entendida

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a expressão aggelos ex ouranou,8 A preposição pará (diferente) não significa expressamente “contra”, de modo que se pense num contra- evangelho pregado em oposição ao paulino. O melhor sentido seria: “prescindindo de”, “em lugar de”, de modo que se pense só em um evangelho diferente, em um substituto, que não está em conformidade com o evangelho paulino. Paulo pensa em outro evangelho que não está em conformidade com o seu.

Que seja amaldiçoado! Entretanto, se isso acontecer, tal pregador deve ser amaldiçoado. Anátema designa um objeto destinado à salvação ou à condenação, exposto no templo e consagrado à divindade (2 Mac 2.13). Na LXX, traduzindo o hebraico herem, designa o ato de separação de Deus e destinado a destruição (2 Mac 2.13). Partindo desse ponto de vista, anátema torna-se uma fórmula concreta para expulsão da sinagoga, como pode ser visto em Atos 23.14.9 O evangelho não tolera falsificação alguma; aquele que tentar mudá-lo alcançará a maldição de Paulo,10 o qual está disposto a lançá-la, eventualmente, sobre um anjo.

# V. 9 - Como já dissemos, agora repito. Esta expressão indica que Paulo tem ante os olhos um fato real; que a maldição não só teria lugar em um possível caso, mas seria lançado de fato. A palavra proeirekamen (repito) equivale precisamente em relação com a expressão “como já dissemos”, provavelmente o que acabara de dizer no versículo 8. Também é possível que Paulo se refira a algo que dissera em uma visita anterior a Galácia (cf. At 18.23). O pensamento seria este: Paulo acaba de dizer aos gálatas, e lhes disse não só de passada, mas com toda consciência como que se trata de algo definitivo, e agora volta a repetir: o pregador de um “falso evangelho” ou de um evangelho substituto deve ser amaldiçoado.

Se alguém lhes anuncia um evangelho diferente daquele que já receberam, que seja amaldiçoado. Que os gálatas “receberam” este evangelho trata-se de uma realidade. Quem coloca outro evangelho em seu lugar, atrai sobre si a maldição divina através de Paulo e ao mesmo tempo, o rechaço e a perda de salvação. E significativo, por diversos motivos, que o apóstolo expresse assim essa maldição, demonstrando sua autoridade e

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também sua vontade não só de anunciar o juízo de Deus, mas igualmente de aplicá-lo (cf. 1 Co 5.3,4; 16.22). Indica ainda a realidade do juízo, que se fixa unicamente no evangelho, e não na pessoa do pregador. Mostra também a união do pregador com o evangelho que anuncia e pelo qual pode perecer. Isso nos mostra que há uma norma de pregação, que para o apóstolo consiste em seu evangelho. Isso faz possível, em princípio, a distinção entre a verdadeira e a falsa pregação.

afê V. 10 - Acaso busco eu agora a aprovação dos homens ou a de Deus?k pergunta que traz o anátema soa quase como um sarcasmo. O grego gar (acaso) é um advérbio confirmativo que chama a atenção, especialmente em perguntas sobre o que é claro, seja em si, por causa do antes dito." Paulo já se encontra em meio à polêmica com seus adversários. Porém, o sarcasmo acaba rapidamente, e Paulo, cheio de pena, e sério, contesta indicando que então ele não seria escravo de Cristo. Buscar aprovação significa convencer, tanto em bom como em mau sentido, referido seja a homens, seja a deuses.12 Como Paulo o refere também a Deus, a pergunta se torna mais importante. Aqueles cuja acusação aborda agora disseram que ele convence aos homens, que devia implicar mais que um simples agitar ou seduzir homens.13 Sua acusação talvez se refira a que Paulo pregava a liberdade frente à lei, ou seja, frente à incircuncisão e ao calendário.14

Ou estou tentando agradar a homens? Paulo parte de sua formulação e anuncia a segunda questão dentro da dupla pergunta, sabendo bem que essa é uma expressão forte: não, não persuade a homens; o que se poderia dizer é que persuade a Deus, pois o lançar a maldição contra os falsos pregadores entende ganhar-se a Deus, e é o que quer, porém em outro sentido, convencer a Deus, falando em favor de Deus, porém para o seu próprio bem.

Se eu ainda estivesse procurando agradar a homens não seria servo de Cristo. Paulo não quer viver para agradar a homens, mas a Deus ou a Cristo. É o que dá a entender ao denominar-se como servo de Cristo. A expressão “se eu ainda estivesse” tem um significado temporal e está se

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referindo ao tempo seguinte a sua chamada por Cristo, a qual lhe possibilitou, como a todo cristão, ser livre da preocupação pelo Senhor e a seu mandato. Servos de Cristo são igualmente pessoas como Timóteo (cf. At 18.23) ou Epafras (Cl 4.12) e, finalmente, todos os membros da igreja que se mantém na liberdade da chamada recebida de Deus, e que não têm suas vidas atadas a coisas e esperanças que os homens possam lhes dar (c f.l Co 7.22,23; Ef 6.6; 2 Tm 2.24).

2) 1.11,12: O Testemunho do ApóstoloO que dá direito ao apóstolo de combater os seus adversários tão rad

icalmente como acaba de fazer? E que título jurídico lhe permite defender tão absolutamente a verdade de seu evangelho, como acaba de acontecer? Porque parece claro que aqui não basta apelar à psicologia, a uma possível ofensa à pessoa de Paulo, a uma explosão do zelo judaico.15

Paulo dá indiretamente uma resposta a essas questões: age assim porque seu evangelho é o evangelho de Cristo.16 Em vista da situação nas igrejas dos gálatas lhe parece necessário ressaltar esta idéia de maneira expressa e demonstrá-la com mais detalhes. O evangelho pregado por Paulo não é humano, porque tem sua origem no acontecimento do descobrimento direto e total de Cristo ao apóstolo, acontecimento que antecipa a revelação escatológica e que não lhe foi dado em forma de tradição, que se assimila por aprendizagem.

# V 11 - Irmãos. A saudação “irmãos”, que Paulo utiliza pela primeira vez na Carta, é não somente um sinal de que a partir de agora o tom da exposição será mais amigável e manso, mas também implica o ter em conta a irmandade de que fala.

Quero que saibam que o evangelho por mim anunciado. O apóstolo introduz seu acerto como um anúncio, sem levar em conta quantos de seus leitores já haviam ouvido ou se interado de seu conteúdo: quer apresentar-lhes um novo fundamento para que estejam conscientes da verdade contra as informações distorcidas. O versículo traz uma declaração enfática (cf. 1 Co 13.3; 15.1; 2 Co 8.1), e não deve ser entendido ironi

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camente. A expressão “quero que saibam” se refere à condição de Paulo como “servo de Cristo”. Cristo revelou-se a Paulo, e deu-lhe diretamente seu evangelho. A expressão pode se referir igualmente ao conteúdo dos versículos 6-9.

Não é de origem humana. A frase expressa em geral a qualidade do evangelho por ele pregado,17 sem dizer por que e em que sentido tem essa qualidade. Na opinião dos adversários, o evangelho de Paulo é humano, ou seja, transmitido por homens. Para Paulo, entretanto, sua autoridade se fundamenta não no evangelho, mas na tarefa; não existe um evangelho de forma geral e abstrata, mas unida à tarefa; essa tarefa e autoridade do apóstolo são originais, é obra do Espírito Santo. Não é um evangelho humano, mas divino.

# V. 12 - Não o recebi de pessoa alguma. Paulo apresenta a razão de como entender o versículo 11. O evangelho pregado por Paulo deve ser levado em conta, pois foi recebido por revelação de Cristo. O conteúdo não podia ser provado, pois o evangelho trata da mensagem de um fato histórico, e não de um conhecimento dialético. A palavra paralambanein (receber) é como correlativo de paradidonai (hb. masah termo técnico para a recepção de uma tradição ( = quibbel). Na literatura rabínica, designa a atividade docente dos “pais” desde os tempos de Moisés. A terminologia judaica responde um emprego técnico no helenismo e está relacionado com a transmissão de uma palavra santa ou de uma ordenação nos cultos de mistérios. O caráter divino de seu conteúdo só é perceptível a quem o recebe obedientemente a sua autoridade (1 Ts 2.13). A sua revelação, portanto, não partiu de pessoa alguma, não recebeu nem mesmo dos apóstolos.

Nem me fo i ele ensinado. Paulo nega, portanto, haver recebido de um homem o evangelho por ele pregado em forma de uma tradição que é transmitida. A palavra didaskein ou didaskesthai(ensinar) limita-se geralmente a algo concreto segundo o uso paulino. Designa uma função intra- eclesiástica que pressupõe, naturalmente, constituída a igreja.18 Entretanto, a igreja auto-ensina também, seja sem mestres, seja por mestres com encargo

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e a capacidade necessárias (Cl 3.16; 1 Co 14.6,26; Rm 12.7). O objetivo de didaskaien (ensinar), portanto, é o mesmo de paradidonaiou de paralam- banein (receber): a tradição do Senhor em seu mais amplo sentido, tradição vivente que se pode aprender (cf. Rm 16.17, Fp 4.9; Cl 2.6).

Em relação com paradidonai indica didaskein com toda claridade o modo paulatino de transmissão da tradição, e o didaskesthai indica o modo de sua assimilação. Aprende-se de Cristo quando se ouve dEle e quando foi instruído por Ele. Porém Paulo não recebeu assim seu evangelho. Quanto à origem de seu evangelho, não é baseado na tradição que facilmente poderia ser transmitida de pai para filho, como era comum nas normas da lei mosaica. Isso é absolutamente claro pela contraposição expressada por Paulo com respeito às duas possibilidades de transmissão do evangelho, inseparáveis ambas e situadas ao mesmo nível.

Pelo contrário, eu o recebi de Jesus Cristo por revelação. Para fundamentar sua idéia de que o evangelho não é humano, Paulo não se refere a sua eficácia, mas fala, pelo contrário, da autoridade divina de seu evangelho apelando à sua origem e ao modo como lhe foi dado. Paulo utiliza intencionalmente o verbo apokalupsis(revelação), posto que tanto paralambanein como didaskesthai implicam o contrário. Paulo argumenta historicamente; quer provar o valor de sua doutrina pela sua origem. A insistência em que o evangelho paulino vem da revelação se refere a que Cristo o comunicou diretamente a ele. Refere-se ao Senhor “Jesus Cristo”. Ato que se pode receber numa “doutrina”, Colossenses 2.6,7.19

Naturalmente que tampouco assim se pode provar a veracidade de seu evangelho. Ê certo que o comportamento do apóstolo antes e depois de sua chamada e missão, junto com outros acontecimentos, fazem manifesto que a origem de seu evangelho está na revelação direta de Cristo. Esta prova vale para quem, com argumentos históricos — e este é o caso de seus adversários para não reconhecer seu apostolado — , discute que seu evangelho é revelado.

A palavra apokalupsis (revelação)20 é já em linguagem helenística, termo que substitui a musterion (mistério).21 Para Paulo, designa a revelação de algo radicalmente oculto ao mundo e a sua natural experiência,

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que, pelo mesmo, lhe é inacessível. A revelação de Jesus Cristo ocorre de três maneiras: 1) escatologicamente, em relação com acontecimentos escatológicos e como conseqüência deles (Rm 2.5; 8.18ss.; 1 Co 1.7; 3.13; 2 Ts 1.7; 23,6,8); 2) agora, visto que acontece na vida apostólica (v. 16; Rm 16.25);223) deve-se mencionar também o modo místico que acontece nas revelações divinas aos carismáticos, e se refere, se não ao Senhor mesmo, à vida no Senhor (1 Co 14.6,26,30; 2 Co 12.1,7; G12.2; Fp 3.15). Essas revelações acontecem, como todos os atos carismáticos, no terreno e dentro dos limites da revelação apostólica.

3) 1.13—2.21: A Origem Divina do EvangelhoPaulo expõe que o evangelho que ele pregou aos gálatas é o evan

gelho de Jesus Cristo, posto que o recebeu através de uma revelação direta de Cristo, porquanto se tornou apóstolo seu. Reforçam a verdade de seu evangelho e a autenticidade de seu apostolado, o seu passado de judeu fariseu, que impediu toda influência por parte da igreja, seu afastamento de Jerusalém durante quatorze anos, o total e absoluto reconhecimento de seu evangelho e de seu apostolado por parte das autoridades de Jerusalém. Avalia seu evangelho, por último, a repreensão a Pedro em Antioquia, a base do evangelho que ensina toda justificação em Cristo e que estamos nele pela fé graças ao batismo.

a) 1.13-24: A conduta do apóstolo antes e depois da chamadaNos versículos 13-24, Paulo relata qual foi a sua conduta antes e depois

da manifestação de Cristo, no caminho de Damasco. Antes, era alguém que perseguia sobremaneira o cristianismo, considerando os cristãos como hereges e dignos de morte. Mas tudo isso ficou para trás; sua conduta agora é outra, desde o momento em que recebeu o seu evangelho diretamente de Cristo bem como seu apostolado. Desta forma, Paulo considera-se a si mesmo como um legítimo apóstolo de Jesus Cristo.

# V. 13 - Vocês ouviram qual foi o meu procedimento no judaísmo. De acordo com Paulo, o tempo anterior à sua chamada é uma garantia de sua

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inimizade contra a igreja e sua ânsia de levar ao extremo suas convicções judaicas, sua independência da tradição cristã.23 O seu procedimento antes de ser cristão já é conhecido dos gálatas, por rumores, ou, o que é mais provável, pelo relato do próprio Paulo (cf. 1.21); porém, agora quer que eles fixem novamente nos fatos decisivos de sua vida com a sua perspectiva de que a origem do seu evangelho não depende de homens.

A expressão “meu procedimento” não tem como finalidade destacar a pessoa de Paulo frente a dos demais apóstolos, como acontece no versículo 12. “Meu procedimento no judaísmo” é um conceito: a forma de vida judaica anterior.24 “Judaísmo” é objetivamente considerado a religião judaica e subjetivamente a conduta judaica que tem seu centro determinante na religião judaica.25 Esse é um conceito helenístico. Seu passado como judeu incluía, antes de tudo, sua enorme inimizade contra a igreja de Deus.

Corno perseguia intensamente a igreja de Deus, procurando destrui-la. A “igreja de Deus” é considerada a partir do Antigo Testamento, a igreja com o povo messiânico de Deus em seu conjunto,26 o Israel de Deus que se encontra em cada igreja local (1 Co 1.2; 10.32; 11.22; 2 Co 1.1). A inimizade contra a igreja de Deus, que é inimizade contra a vontade de Deus, manifesta-se numa perseguição violenta e tenaz e na destruição correspondente. Este constante ataque a igreja, mencionado por Paulo também em Filipenses 3.6 não é ilustrado em Atos B.lss.; 9.1,2,13,14; 22.4,5; 26.9ss. Esse desejo de destruir a igreja é patente nas suas atitudes, nas quais ele acreditava estar fazendo a vontade de Deus.

# V. 14 - No judaísmo, eu superava a maioria dos judeus da minha idade. Quando Paulo fala sobre o seu zelo de judeu, demonstra que a inimizade do apóstolo não se devia simplesmente a uma inclinação contra a igreja de Deus, mas correspondia totalmente à sua postura de então. Paulo não se separou do seu judaísmo, pelo contrário, dedicou- se com mais intensidade às suas práticas. No seu modo de viver no judaísmo continuou cada vez mais se dedicando às tradições de seus pais, buscando sempre o conhecimento profundo, levando-o a exceder em muito a maioria dos judeus de sua idade. Paulo superava a muitos de sua idade dentre o seu povo. Esse contínuo aprofundamento no judaísmo, que

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deixava para trás outros judeus de sua idade, está no fato de que Paulo, antes de ter a revelação de Cristo, estava tomado pelo forte zelo com relação às tradições dos pais.

E era extremamente zeloso das tradições dos meus antepassados. As tradições dos antepassados não são como tal as tradições que o seu pai lhe transmitiu, mas em geral as recebidas dos antepassados. Embora a palavra grega paraichos indique freqüentemente o que vem de modo especial do próprio pai, tem também o sentido mais próprio de “recebido” ou “herdado”. Essa tradição é a continuação da Torá e a sua observação, que os fariseus fazem estremado zelo, conforme pode ser visto em Eclesiástico 8.9: “Não rejeite o ensinamento dos anciãos, porque eles também aprenderam dos próprios pais. E deles que você aprenderá a pensar e a responder no momento oportuno”. Paulo era um fariseu. E como fariseu tinha a Torá e as tradições orais como fundamento de sua vida e o alicerce de seu zelo.

0 V. 15 - Mas quando a Deus, que me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça, agradou. Paulo segue com sua exposição desapaixonada, embora aqui trate do sucesso fundamental de sua vida. Sem fazer dela uma “confissão”, menciona numa frase secundária sua conversão que, para ser fiel ao texto, devia se chamar seu “chamado”. Esta frase está subordinada ao pensamento fundamental, que é provar a impossibilidade da cooperação humana no recebimento do evangelho. Há indícios que provam a falsidade da suposição dos seus adversários. Segundo a convicção de Paulo, o seu evangelho e o seu chamado se devem à intervenção de Deus. Foi Deus quem tomou a iniciativa. Ele decidiu por livre vontade receber Paulo. A determinação de Deus se revela na sua livre vontade de escolher e chamar o apóstolo. Tal vontade re- monta-se ao começo de sua existência, antes mesmo do seu nascimento. Deus o escolheu desde o ventre, de modo que a sua vida esteve sempre debaixo da providência humana.27

Da mesma forma que Paulo, ao falar de sua separação por Deus desde a eternidade, do mesmo modo pensa na escolha e revelação desta especial providência ao mencionar sua chamada. A palavra kalein (chamar) é

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a terminologia paulina, sendo Deus o sujeito. É o chamamento de Deus pelo qual alguém é atraído à igreja através da fé.28 Aqui esse significado está incluído somente. O ponto central é a sua chamada para ser apóstolo, como se desprende da correlação entre “separar” e “chamar”. Sua chamada à salvação aconteceu no momento do seu chamado ao apostolado, que está em concordância com a consciência de seu envio aos gentios. “Por sua graça” está relacionada com “chamar”, e não a revelação, ou seja, que a graça de Deus atuava na chamada de Paulo. Seu apostolado é, portanto, uma conseqüência da graça divina.

# V. 16 - revelar o seu Filho em mim. O chamado de Deus chegou a Paulo como auto-revelação de Cristo.29 Da construção da frase nada pode deduzir-se sobre a ordem das distintas formas de intervenção de Deus. Unicamente se indica que o acontecimento é para Paulo o ato fundamental: o revelar. Da situação se deduz que a revelação de Cristo a Paulo é descrita precisamente como o modo como Paulo recebeu seu chamado. O sentido de apocalupse(revelar) é, às vezes, distinto do de faneroun. A palavra apocalupsed$dt<iz<í em Paulo, mesmo com o substantivo, de duas formas: 1) em relação com a manifestação definitiva das coisas na ação escatológica de Deus;30 2) em relação com o descobrimento que ocorre no presente em diversas formas e respeito de diversos objetos.31 A palavra faneroun acentua o que é revelado e o que está palpável, o que está à vista. Apocalupse significa mais do que uma revelação; é um desvendamento de algo oculto, que, uma vez revelado, aparece como algo desvendado. Aqui descreve um ato revelador de algo radicalmente oculto. Nesta revelação feita ao apóstolo se adianta — para ele — a manifestação escatológica de Cristo. As revelações de Deus a Paulo tem um complemento pessoal. Deus lhe revelou o seu Filho glorificado. A expressão en m oim o significa “por mim”, nem tampouco quer dizer “a mim”, mais a intensidade da manifestação do Filho, que chegou até o centro da vida do apóstolo, desta forma, nada pode deduzir-se do caráter psicológico da chamada.32

para que eu o anunciasse entre os gentios. A finalidade da divina manifestação do Filho ao apóstolo é sua pregação aos gentios. A

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revelação do Filho tem seu efeito no anúncio apostólico do evangelho. Não se pode deduzir deste versículo se a manifestação do Filho teve como conseqüência a imediata pregação do apóstolo entre os gentios. Nada diz sobre isso a formulação da frase. Nem Paulo reflete sobre isso. O que interessa é ressaltar que a revelação que Deus lhe fez inclui a tarefa da pública pregação de Cristo entre os gentios. Para o gosto lingüístico grego, que exige um complemento, de coisa, o termo é um paradoxo, tem seu pressuposto no estilo paulino, que significa na terminologia missionária paulina “pregar o evangelho" — o Filho na sua manifestação ao apóstolo se fez conteúdo do evangelho, uma vez que é Cristo quem atua atrávés de Paulo (Rm 15.18,19; 1 Co 1.23;2 Co 1.19; Fp 1.15). Ao nomear qs gentios, Paulo pensa, como indica a fórmula “entre os”, no território que toma como composição de sua missão. Não se diz, contudo, que unicamente gentios tenham que ser guiados à fé por ele.

Não consultei pessoa alguma. Paulo relata que o seu evangelho não foi recebido de ninguém, nem tampouco das autoridades de Jerusalém. Portanto, tampouco a revelação de Cristo se deveu à classe de tradições apostólicas. A palavra eutheos (consultar) indica que se trata de uma decisão tomada por Paulo repentinamente. Esta é a maneira como deve ser interpretado por razão da independência que o termo recebe ao ser anteposto à frase negativa. A expressão no sentido de “já então” é demasiado geral e não muito clara. O pensamento de Paulo é: “Imediatamente tomei a decisão, não consultei pessoa alguma para aconselhar-me”. A locução deixa transparecer a revelação que ele teve do Filho, a qual o arrastou até o caminho solitário do apostolado. A palavra traduzida como “consultar” significa “acercar-se de alguém [para aconselhar-se]” (2.2; At 25.14). Paulo não pensa concretamente em determinados apóstolos, mas em certos cristãos, que pelo que se refere à revelação estão também na categoria de homens.

# V. 17 - Tampouco subi a Jerusalém para ver os que Já eram apóstolos antes de mim, mas de imediato parti para a Arábia. Este não subir a Jerusalém não significa que não reconhecesse a posição e autoridade dos

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demais apóstolos, nem que negara sua autoridade apostólica e eclesiástica.33 O apóstolo relata que quando recebeu a revelação se encaminhou para Jerusalém, mas para a Arábia, região do sudeste de Damasco que abarcava as partes setentrionais do reino Nabateo (2 Co 11.32), hoje correspondente ao reino da Jordânia. Nada se pode dizer do lugar da Arábia em que Paulo esteve, nem tampouco qual foi a razão de ele ter ido para lá. Paulo deixa essa questão em aberto, como acontece no versículo 21. Pode-se aceitar como provável pelo contexto (vv. 15-17)34 e pelo versículo 23, que Paulo foi trabalhar naquela região como missionário.35 Além disso, a Arábia não era uma região desértica e isolada, e sim um território habitado e, tal como hoje, atravessado/por beduínos.36

Voltando outra vez a Damasco. Da Arábia Paulo voltou a Damasco (2 Co 1.16; Fp 1.26). Seu itinerário abarca, pois a rota de Jerusalém para Damasco. Foi interrompido antes de Damasco pela revelação de Cristo. De Damasco marchou para o sudeste, e dali outra vez para Damasco. Nem mesmo uma intervenção por parte dos apóstolos de Jerusalém pode ser admitida com respeito à origem do evangelho paulino, para o tempo imediato posterior à revelação de Cristo.

sfê V. 18 - Então, depois de três anos, subi a Jerusalém para conhecer pessoalmente a Pedro e estive com ele quinze dias. Nesses anos deve ser colocada a primeira visita do apóstolo a Jerusalém. A primeira data temporal propriamente dita dos três anos trata-se de um número arredondado. E bastante claro que Paulo coloca o acontecimento antes de Damasco como o fato que determina o novo começo da sua vida. A data temporal é colocada não para ressaltar o seu interesse cronológico, mas para acentuar a independência do seu apostolado e do seu evangelho. Mediam pelos menos dois anos completos entre a revelação de Cristo ao apóstolo e o momento em que foi pela primeira vez a Jerusalém.37 Trata de uma certa visita, e não de uma viagem, que o levara a Jerusalém para receber ensinos ou até mesmo para se fazer dependente dos demais apóstolos e da igreja de Jerusalém. A palavra traduzida como “subir” indica, no grego helénico, uma visita com a finalidade de conhecer, seja

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cidade ou um país, seja, como aqui, pessoas. Ao nomear somente a Pedro (2.9,11,14; 1 Co 1.12; 3.22; 9.5; 15.5), apresenta-o indiretamente como cabeça dos apóstolos.38 A visita de que aqui se trata durou não mais que 14 dias — duas semanas em número redondos.

# V. 19 - Não vi nenhum dos outros apóstolos, a não ser Tiago, o irmão do Senhor. Para esta primeira viagem de Paulo a Jerusalém é importante destacar, por último, que não viu nenhum apóstolo, senão Pedro e Tiago, o irmão do Senhor. Ao escrever quer dizer que não viu outros apóstolos além de Pedro, e d;as autoridades de Jerusalém só a Tiago. Ao chamar Tiago de “irmão do Senhor”, supõe que Paulo queria distinguir entre dois apóstolos chamados Tiago. Nem Paulo o disse nem se pode supor, porque em sua primeira estada em Jerusalém não viu a outro apóstolo. Para o apóstolo, os fatos históricos como tal não interessam muito, mas sim, provar a independência da revelação recebida a respeito da influência do colégio apostólico de Jerusalém.

# V 2 0 - Quanto ao que lhes escrevo, afirmo diante de Deus que não minto. Pode parecer estranho dizer que dentre todos os apóstolos de Jerusalém não viu senão a Pedro e Tiago. O versículo é um parêntese — não se refere expressamente a tudo o que foi dito nos versículos 13-24, mas só a de sua primeira visita em Jerusalém e, sobretudo, a sua última, de acordo com o versículo 19. A frase é uma forma de juramento (1 Ts 2.5; 2 Co 11.31). Deus é testemunha do que Paulo diz, e com a frase chama a atenção sobre algumas particularidades que não se podiam controlar, e ao mesmo tempo ressalta sua importância para provar sua independência.

# V. 21 - A seguir, fui para as regiões da Síria e da Cilicia. É provável que ambas regiões não indiquem a rota do apóstolo, mas os lugares de sua atividade missionária, com o centro em Antioquia e Tarso. Paulo aqui pensa na Síria, e exclui a Palestina.39 A Síria, que geograficamente está mais próxima de Jerusalém, é nomeada em primeiro lugar, por ser o local principal onde o apóstolo pregara o evangelho. Também é indicado a Cilicia, de menor importância e também mais distante de Jerusalém. A Síria e a Cilicia

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são, portanto, territórios onde Paulo atuara como missionário, pelo fato de ressaltar no v. 22 que não havia sido conhecido das igrejas da Judéia.

# V. 22 - Eu não era pessoalmente conhecido pelas igrejas da Judéia que estão em Cristo. Paulo seguia sendo desconhecido pelas igrejas da Judéia apesar da sua estada em Jerusalém. A expressão tôprosôpô significa literalmente “de vista” e quer dizer “em pessoa” (cf. At 20.25; Cl 2.1; 1 Ts 2.17). “As igrejas da Judéia” são as distintas igrejas locais, ainda que naturalmente a expressão “em Cristo” não tenha o sentido preciso do nosso adjetivo cristão. Judéia indica, por analogia com Síria e Cilicia, mencionadas no versículo anterior, provavelmente a região da Judéia, que se estende desde o sul de Samaria até o Jordão. Não parece, pois que se deva pensar na procuradoria romana.40 Não se pode decidir com segurança se Paulo inclui a comunidade de Jerusalém entre as da Judéia. Na linguagem corrente, Jerusalém pertencia à Judéia naturalmente. E pelo contexto Paulo não tinha razão alguma para separar Judéia de Jerusalém. Pelo contrário, sua argumentação adquire mais força contando a igreja de Jerusalém entre as da Judéia. De qualquer forma o acento recai sobre “as igrejas”. Paulo chegou a ser conhecido pelos determinados membros das igrejas, pelo menos em Jerusalém, porém não para as “igrejas” como tais.

# V 23 - “Estas pessoas apenas ouviam dizer. Aquele que antes nos perseguia, agora está anunciando a fé que outroia procurava destruir”. A palavra p/stís (fé) não é um crer no sentido vivencial da comunidade, como em 1 Tes- saloninenses 3.6, nem o conteúdo da fé, mas a fé no Messias como caminho de salvação, ou a mensagem de fé como poder objetivo, como é apresentado em 3.23; antes que viesse esta fé, estávamos sob a custódia da lei (cf. 6.10; At 6.7; Rm 10.16; também At 14.22; Cl 1.23). “Estas pessoas” são, incluindo os que o dizem e os que ouvem, os membros de outras comunidades cristãs, que comunicaram às comunidades da Judéia a maravilhosa mudança de Paulo.

# V. 24 - Egloríãcavam a Deus por minha causa. Em conseqüência das notícias, conforme relatada no versículo 23, as igrejas da Judéia louvavam a Deus por Paulo (Rm 2.17,23; 1 Co 4.6; 2 Co 7.16). Também

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as indicações gerais dos versículos 23 e 24 podem apoiar a tese geral da independência do evangelho e do apostolado paulino. A primeira atividade missionária de Paulo não se desenvolveu na área de influência de Jerusalém, nem como continuação da sua missão. Paulo começou uma missão independente. A última notícia dos versículos 15-24 indica com toda força como se aceitava então ao apóstolo como dom da graça de Deus, inclusive em ambiente cristão proveniente do judaísmo.

b) 2.1-10: O reconhecimento por parte de JerusalémNa continuação da narração, há um claro progresso na argumenta

ção de Paulo. A independência de seu evangelho e de seu apostolado se manifesta não só pela razão da origem do seu evangelho, mas na atividade do seu apostolado longe da igreja de Jerusalém.41 Também pode ser acrescentado como prova positiva de que seu evangelho é revelado e da legitimidade de seu apostolado, a sua aprovação pelos apóstolos de Jerusalém. Isso vale, naturalmente, só para o ponto de vista de Paulo. Para ele valia um fato que “objetivamente” — ou seja, dos vários pontos de vista — um observador imparcial julgaria de vários ângulos. E em virtude desse fato que seu evangelho se impôs.

# V. 1 - Catorze anos depois, subi novamente a Jerusalém. Este versículo enlaça com o 21 e deve ser suprido o dado temporal: “depois de quatorze anos”. A preposição dia (depois) indica os anos mencionados que já passaram (Dt 9.11; 15.1; Mc 2.1; At 24.17). Não está claro a partir de quando, os quatorze anos começaram a ser contados, porém para Paulo dificilmente será outra a data que a da sua primeira visita a Jerusalém. E possível contá-los partindo da vocação do apóstolo, posto que os três anos de 1.18 se contam a partir dessa data, e porque a vocação está em primeiro plano em toda a exposição.42 Deve-se ter em conta que o número 14 vai anteposto e que com ele se pretende ressaltar claramente o longo espaço de tempo, quando não voltou a ter contato com ou outros apóstolos.

Desta vez com Barnabé. No decorrer dessa viagem, Paulo foi acompanhado por Barnabé. Paulo era, a seus próprios olhos, a pessoa principal. Menciona que ele era então o enviado de Antioquia, não mais

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como testemunha principal do acontecido em Jerusalém, no que diz respeito ao apostolado entre os gentios. Barnabé é o levita José de Chipre que desde cedo já fazia parte da igreja de Jerusalém (At 4.36ss.). Segundo Atos, é ele quem introduz Paulo perante os apóstolos de Jerusalém (At 9.27); ele é uma espécie de homem de confiança dos de Jerusalém em Antioquia (At 11.22; 13.1,2; 15.35). Ele serve, se podemos assim dizer, como um representante da igreja de Jerusalém em Antioquia (At 11.25,30; 12.25). Trabalhou com Paulo até o começo da chamada segunda viagem missionária, quando houve a separação (At 15.36).

levando também a Tito comigo. Além de Barnabé, Paulo também levou consigo Tito, de que Paulo disse que o tomou consigo, o que leva a supor que Tito era seu ajudante. Em outras ocasiões Tito aparece como companheiro de Paulo e também como seu mensageiro a Corinto e Macedônia (2 Co 2.13; 7.6,7,13-15; 8.6-19,23; 12.18). É difícil dizer se Paulo o levou já prevendo um choque futuro com Barnabé.

%£ V. 2 - Subi por causa de uma revelação. Por volta de meia geração depois da primeira viagem a Jerusalém, teve lugar a segunda. Paulo não a realizou, contudo, por decisão própria, mas por ordem divina: O kata apocalupsin (por causa de uma revelação) pode significar: “De acordo com” (At 23.31; Rm 16.26; 2 Ts 3.6), “por causa de”, “em força de” (Rm 16.25; cf. 3.3). E impossível dizer de que forma ocorreu a revelação;45 mas para Paulo o que lhe interessa não é a forma da revelação, mas sim sua realidade, a realidade de um mandamento divino, pois assim fica claro que a sua segunda viagem não aconteceu por sua própria iniciativa, nem de uma exigência das autoridades de Jerusalém e, tampouco, pelo fato de ser enviado pela comunidade de Antioquia.

E expus diante deles o evangelho que prego entre os gentios, fazen- do-o, porém, em particular aos que pareciam mais influentes. Também nessa ocasião, ele se apressou em fazer essa viagem, nem os apóstolos de Jerusalém esperavam dele uma prestação de contas. Neste sentido a situação era a mesma de quinze anos atrás. Existia uma missão não independente que nem estava submetida à comunidade de Antioquia, nem dependia da central de Jerusalém.44 É importante observar que o apóstolo

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PAULO DEFENDE SUA AUTORIDADE APOSTÓLICA

não se confinava a relatar sua obra missionária entre os gentios. Estava interessado em que os cristãos de Jerusalém soubessem o conteúdo da sua pregação. Para ele, isso era de importância suprema. Expressamente se diz que a finalidade da segunda viagem é procurar um acordo sobre o evangelho paulino. A expressão ‘anatithethai tini ti, está na voz média, significa, de acordo com o seu uso clássico, expor algo a alguém ou, melhor, apresentar algo a alguém para sua aprovação ou para que decida. Aqui se refere naturalmente aos membros da igreja de Jerusalém. Embora não estejam determinados — autois se refere aos habitantes de uma cidade precedentemente mencionada.

Paulo expõe para ulterior decisão precisamente o evangelho que agora anuncia. Quem tem que decidir não é toda a igreja, mas os “mais influentes”, que é aqui usado no sentido de autoridade. Estes são os mesmos do v. 6. São geralmente aqueles que têm uma posição de honra. Paulo, pois, apresenta seu evangelho a uma assembléia dos dirigentes da igreja.

Para não correr ou ter corrido em vão. O que Paulo quer dizer é que apresentou perante os apóstolos de Jerusalém o evangelho que prega entre os gentios, com o temor de “correr” ou de “haver corrido" em vão. Ele está convencido, portanto, de que não basta haver recebido o evangelho e o apostolado por revelação de Cristo. Precisamente por ser este com toda certeza o caso, tem que manifestar-se a unidade do evangelho e do ministério apostólico entre aqueles que eram apóstolo antes dele. O verdadeiro evangelho e a legítima missão apostólica levam em si a característica da unidade, posto que a igreja se edifica só pelo evangelho uno mediante o apostolado que é único.45 Mas essa unidade tem que se fazer visível, não suposta. Um segundo aspecto deve ser ressaltado: a autoridade definitiva está representada pelo evangelho “mais antigo” e o apostolado “mais antigo”. E Paulo quem vai a Jerusalém, e não os apóstolos que vêm a ele. Paulo descreve a autoridade da igreja mãe e de seus dirigentes. Se os apóstolos da Igreja em Jerusalém não tivessem dado a aprovação, ele teria corrido em vão nos últimos quatorze anos.

♦ V 3 - Nem mesmo Tito, que estava comigo, fo i obrigado a circunci- dar-se, apesar de ser grego. O estilo deste versículo é pesado. Não se pode

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explicar por razões formais e de conteúdo. Paulo ressalta para começar um fato não muito importante em geral, porém, no contexto atual e na situação de então, é de grande importância: pois Paulo não foi obrigado à circuncisão a Tito, seu companheiro, um incircunciso, não judeus e de nacionalidade helenística.46

O que interessa ao apóstolo é o juízo e a postura dos apóstolos de Jerusalém. Visto que não impuseram nenhuma exigência para que Tito se circuncidasse, também não havia razão nenhuma para que algumas pessoas exigissem dos cristãos gentílicos a observância de algum mandamento.

% V. 4 - Esta questão foi levantada p o rqu e alguns falsos irmãos infíltra- ram-se em nosso meio. Porém, posto que Paulo, segundo Atos 16.3, circuncidou a Timóteo por consideração aos judeus, por que não fez o mesmo nesta situação? Paulo dá a resposta: agiu assim por causa desta mesma liberdade que estava em perigo, ao ser exigido tal circuncisão por um determinado setor.47 É no versículo seguinte onde se encontra o pensamento que o apóstolo pretende expressar. O que quer dizer é: resistimos por causa dos falsos irmãos que haviam se infiltrado em nosso meio. Nada mais é dito sobre os adversários. Não são idênticos com os atuais adversários dos gálatas, ainda que coincidem no fato que exigirem a circuncisão.

Para espionar a liberdade que temos em Cristo Jesus e nos reduzir a escravidão. Os falsos irmãos se apresentam como membros da comunidade, mas, na realidade, eram falsos irmãos. Eles se infiltraram de maneira obscura nas igrejas em conjunto e também nas distintas igrejas locais, entretanto, agora estão aparecendo. Eles são duplamente intrusos: na igreja como tal enquanto falsos irmãos; e também no lugar onde aparecem. A impressão é de oposição pessoal, que poderia ocorrer tanto em Jerusalém com o em Antioquia.48 O que os adversários queriam era “espionar a liberdade que temos em Cristo”. A palavra espionar tem os sentidos de observar com olhos inimigos, inspecionar e examinar. Este último significado manifestaria que os adversários se autodenominavam como autoridades. A palavra liberdade é concretamente a liberdade com respeito à circuncisão. Essa liberdade que pertence a todos os cristãos, quer judeus, quer gentios, foi possível graças ao sacrifício de Cristo Jesus.

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PAULO DEFEN DE SUA AUTORIDADE APOSTÓLICA

$ V. 5 - Não nos submetemos a eles nem por um instante, para que a verdade do evangelho permanecesse com vocês. Paulo não cede em nenhum momento à pretensão dos adversários. Para ele, exigir a circuncisão significa um ataque ao evangelho. E com o evangelho não se pode fazer compromissos nem definitivos nem provisórios. A firmeza do apóstolo está motivada pela questão: com a aceitação da lei se havia renunciado a verdade do evangelho.49 “Verdade do evangelho” é uma expressão característica de Paulo. Não é uma circunlocução substituindo, nem tampouco equivale ao verdadeiro evangelho para diferenciá-lo de um falso. Paulo não conhece um falso evangelho. A locução diz que o evangelho está ameaçado por uma falsa doutrina, desenvolvida pelos seus adversários.50

Está novamente claro que a pregação dos adversários não só ameaça a existência da comunidade, enquanto que a induz ao erro, mas também afeta igualmente a existência do evangelho, por falsear sua verdade. Tal pregação quer colocar junto a Cristo a lei como meio de redenção, destruindo a salvação dos cristãos já conseguida pelo sacrifício de Jesus.

♦ V. 6 - Qüanto aos que pareciam influentes — o que eram então não faz diferença para mim. Negativamente a decisão consistia em que não foi imposto nada ao apóstolo com respeito ao seu evangelho.51 Positivamente implicou por uma parte o ato de selar a comunhão dos apóstolos de Jerusalém com ele na igreja e, em segundo lugar, que se repartiram os territórios destinados à missões;52 assegurou, em terceiro lugar, a vin- culação da missão com a igreja mãe de Jerusalém pela instituição de uma coleta em prol dos membros da igreja de Jerusalém.55

Deus não julga pela aparência — tais homens influentes não me acrescentaram nada. Sempre que a palavra grega traduzida aqui por “julga pela aparência” ocorre no Novo Testamento, leva o sentido de “olhar a aparência externa e ser influenciado por ela”. Ao fazer tal asseveração Paulo está sustentando que Deus não baseia seus julgamentos em fatores externos, mas julga conforme a condição da vida espiritual de cada um. Desta forma, qualquer parcialidade dos adversários é imediatamente vista

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como sendo inconsistente. O cenário histórico judaico de intenso nacionalismo levou à convicção de que Deus devia demonstrar favor especial a Israel em contraste com os povos gentios. Mas ta] atitude é estranha ao cristianismo. Paulo repete sua referência àqueles de reputação para tornar mais impressionante o verdadeiro ponto crucial da questão. Os “homens influentes” nada tinham imposto além daquilo que Paulo já proclamara e praticara.

# V 7 - Pelo contrário, reconheceram que a mim havia sido confiada a pregação do evangelho aos incircuncisos, assim como a Pedro, aos cir- cuncisos. Até agora Paulo apenas mostrara o lado negativo. Agora chega ao lado positivo. Aquilo que as autoridades estavam dispostas a fazer era oposto àquilo que os falsos irmãos estavam alegando. A primeira ação positiva da parte deles fora perceber a natureza da comissão de Paulo. Conseguiram discernir imediatamente, na base do relatório que Paulo lhes apresentou acerca da sua pregação, que tinha evidentemente sido consagrado para esta obra específica. 0 reconhecimento por parte tanto de Paulo quanto de Pedro de que o ministério de cada um deles era um cargo recebido de Deus significava que não poderia haver questão de um submeter-se ao outro.

Ao falar do evangelho da incircuncisão e da circuncisão, Paulo não quer sugerir qualquer diferença de conteúdo.54 A mesma palavra “evangelho” é usada nas duas frases no original. Há uma distinção no modo de apresentação e nada mais. O evangelho da circuncisão não era, de modo algum superior ao evangelho da incircuncisão, não o oposto. O apóstolo não podia conceber dois evangelhos adaptados a tipos diferentes de pessoas. Tantos os judeus quanto os gentios precisavam essencialmente das mesmas Boas Novas.55

# V. 8 - Pois Deus, que operou por meio de Pedro como apóstolo aos circuncisos, também operou por meio de mim para com os gentios. Este versículo reforça a declaração do anterior. Assim como a entrega das diferentes comissões forma um paralelo, a capacitação era igualmente

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paralela. Da mesma forma que é Deus quem deu o evangelho e o fez apóstolo, assim também é Deus quem atua em seu favor. Tal atuação, referente a Pedro,56 é naturalmente só uma parte da atuação mais ampla de sua revelação.57 Mais uma vez Paulo está consciente da igualdade de seu próprio apostolado com o de Pedro.58 Deus fez atuar sua palavra em favor de Pedro e de Paulo (1 Ts 1.5; cf. Rm 15.19; 1 Co 2.4; 2 Co 12.12). Deus atua em prol de Pedro e Paulo dando eficácia a seu evangelho anunciado com palavra e força. Assim se consumou seu apostolado entre judeus e gentios.59 Ele, sem dúvida, muda a ênfase do evangelho para o cargo apostólico a hm de chamar atenção mais específica para a implicação de que um apostolado comum deve andar de mãos dadas com um evangelho comum.

V. 9 - Reconhecendo a graça que me fora concedida, Tiago, Pedro e João, tidos como colunas, estenderam a mão direita a mim e a Barnabé em sinal de comunhão. Junto ao fato de Deus ter confiado o evangelho a Paulo, está também o reconhecimento da graça concedida. Trata-se da graça recebida com o apostolado.60 O evangelho é a palavra da graça. A base do exame do evangelho e da graça apostólica de Paulo pode ser tomada na resolução positiva dos de Jerusalém: os principais apóstolos, tidos como colunas da igreja,61 reforçaram a unidade do seu apostolado, dando-lhe “carta branca” como sinal de comunhão.

Eles concordaram em que devíamos nos dirigir aos gentios, e eles, aos circuncisos. Paulo nomeia como colunas da igreja Tiago, Pedro e João, que estavam em Jerusalém e encontravam-se destinados ao evangelho entre os judeus, enquanto ele estaria responsável pelos gentios. Os três são chamados de colunas. A imagem indica aqueles sobre quem descansa a comunidade. Na literatura rabínica, é um título honorífico de Abraão e também dos rabinos, dos poderosos e dos piedosos. E claro que no sentido cristão se pensa na igreja como casa celeste. São, portanto, fundamento da edificação celeste da igreja. São os suportes da igreja. Isso não indica que os de Jerusalém devam pregar somente aos judeus e Paulo aos gentios, mas estabelece somente as direções em que devem se encaminhar. A repartição dos territórios de missão pressupõe o reconhecimento do apostolado paulino e a constatação da unidade do apostolado comum.62

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# V. 10 - Somente pediram que nos lembrássemos dos pobres, o que me esforcei por fazer. Existe outro acordo além da repartição de territórios, que é o de despertar entre os gentios a consciência da igreja una que partiu de Jerusalém. A preocupação com os pobres é o único laço existente entre a missão paulina e Jerusalém, o único que foi pedido expressamente. Os pobres não são os da igreja universal, mas os membros da igreja em Jerusalém.63 O acordo de enviar a Jerusalém coletas das comunidades cristãs gentílicas não tem o caráter de direito eclesiástico. A comunidade primitiva não faz nenhuma exigência legal. E mais uma lembrança com cunho religioso e moral. Pelo menos é assim que Paulo entende, que também recomenda as coletas às comunidades cristãs gentílicas, como pode ser visto em2 Coríntios 8,9.64 Jerusalém é o lugar primeiro da igreja histórica: entretanto, essa função é somente moral, não no sentido legal.

c) 2.11-21: Frente à conduta de Pedro em AntioquiaEste é o terceiro exemplo que Paulo utiliza para provar que o seu evan

gelho tem origem em uma revelação recebida diretamente de Jesus. Não menos manifesto é, todavia, que o apóstolo colocou o episódio do choque com Pedro em Antioquia no final de suas considerações, nesta primeira parte de sua carta, não só por motivos cronológicos, mas também porque esse choque, que acreditava ser uma difícil prova, é um exemplo da independência de seu evangelho, assim como a independente autoridade de seu apostolado. Trata-se, nada mais nada menos, de Pedro, cujas indecisões foram descobertas por Paulo à luz da verdade do evangelho.65

♦ V. 11 - Quando, porém, Pedro veio a Antioquia, enfrentei-o face a face. Sem mais transição, que já está indicada pela preposição dé (porém), Paulo passa a tratar de um novo acontecimento: a conduta de Pedro, que viera a Antioquia. Paulo não diz nada sobre a razão dessa visita, nem tampouco quando teve lugar, porém deve ter sido realizada antes do acontecimento registrado em (At 15.37ss.), pois Barnabé estava presente. Em Antioquia, Paulo se opôs a Pedro. A palavra antesten (enfrentar) significa

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“opor-se” ou “ficar contra”, e implica uma resistência ativa (At 13.8; 2 Tm 3.8) ou passiva e pressupõe que tenha tido um ataque. No versículo 12, percebe-se claramente em que, para Paulo, consistia tal ataque.

Porque se fizera condenável. A expressão não tem em si nenhum sentido de inimizade (cf. At 25.16; 2 Co 10.1). A oposição de Paulo a Pedro se apresenta com uma breve indicação: “porque se fizera condenável”. A palavara kategvosmenos (condenável) não significa repreensão ou acusação, mas condenado no sentido de que sua prória conduta o condenara. No grego clássico e nos papiros, esse verbo traz um sentido de pronunciar uma condenação, tanto pessoal como judicial.66 Pedro foi condenado pelas suas próprias ações contraditórias ou pela própria consciência. Porém, por que Pedro condenou a si mesmo e como Paulo se lhe opôs? As duas coisas são encontradas no versículo seguinte.

# V. 12 - Pois, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele comia com os gentios. A culpa concreta de Pedro consistia, segundo o ponto de vista de Paulo, no fato de ele deixar de comer com os cristãos gentios quando chegaram em Antioquia algumas pessoas vindo de Jerusalém a mando de Tiago, que é quem as envia (cf. At 15; G11.24).67 Pedro não era em si mesmo, um judaizante, como Paulo faz crer. O imperfeito sunesthein implica comidas regulares. Por isso, a refeição a qual Paulo faz alusão que Pedro participava não eram comidas só com pão e vinho, nas quais o perigo de contaminação não era tão grande como nas outras. Pedro violou as prescrições sobre os alimentos ao participar em tais comidas correntes,68 das quais o kuriakon deipton começou a separar-se como comida sacramental.69 Para Paulo o problema residia não nas comidas privadas. A separação delas é que pareceu tão grave para o apóstolo.

Quando, porém, eles chegaram, afastou-se e separou-se dos gentios, temendo os que eram da circuncisão. Supostamente, Pedro não era um adversário no que se refere aos princípios, nem um adversário convicto, porém equivocado.70 Era, provavelmente, um adversário que na prática negava sua idéias. Pedro estava inseguro com relação à postura que deveria ser tomada. Mas o separar-se do kuriakon deipvon ressaltava

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fortemente a separação de judeus e gentios que ainda perdurava e a validez das prescrições judaicas sobre os alimentos. Tal atitude de Pedro trata-se de um ataque fundamental à ordem da graça na qual a igreja vivia, retornando à ordem baseada no rendimento cujo princípio de ação é a lei. A fé ocupa o lugar da lei criando uma vívida unidade entre todos aqueles em quem Cristo vive pela fé. A conduta vacilante de Pedro em Antioquia coloca em perigo a unidade da igreja.71 A decisão de Paulo assegura a resolução em prol da unidade não por concessão e política, mas pela força da fé em Cristo e de sua vida sobrenatural em nós. Em Pedro, Paulo tinha um adversário parecido aos que encontrara nas comunidades gálatas e em Jerusalém. Só assim se compreende a sua atitude acentuada e enérgica.

% V. 13 - Os demais judeus também se uniram a ele nessa hipocrisia, de modo que até Barnabé se deixou levar. Paulo não qualifica a conduta de Pedro e dos demais, simplesmente a caracteriza de hipocrisia. A grande importância de Pedro para os “demais judeus” se manifesta em que também eles optaram pela “hipocrisia”. A atitude de Pedro foi ainda mais censurável porque influenciou muitos outros. 0 apóstolo lembra que até mesmo Barnabé, que era bastante conhecido dos gálatas, se deixou levar por essa atitude hipócrita. E importante observar que Paulo não sugeriu que Barnabé desempenhasse qualquer papel ativo na dissimulação. Além disso, Barnabé não foi acusado diretamente pela falta de sinceridade, mas, sim, de se deixar levar pela hipocrisia de Pedro.

♦ V 14 - Quando vi que não estavam andando de acordo com a verdade do evangelho, declarei a Pedro, diante de todos. E novamente manifesto a semelhança com a situação acontecida em Jerusalém, antes mencionada. Trata-se, como se expressa Paulo, de um entorpecer, de um “proceder que entorpece” (não estavam andando de acordo com a verdade do evangelho). Isso também tem sua relação com a “verdade do evangelho” e nela se encontra ao mesmo tempo a norma do proceder. Também por sua conduta estava ameaçando o desenvolvimento do evangelho. Pedro tinha, pelo menos no que se refere aos princípios,

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a mesma doutrina que Paulo. O incidente se faz, injustamente, ponto de partida de uma oposição permanente entre Paulo e Pedro. Teoricamente, Pedro está de acordo com Paulo, porém, na prática, age inconseqüentemente, uma vez que hesita ao ter que renunciar à observância da lei. Mas Pedro queria, agora na prática, uma igreja para os cristãos do judaísmo, a qual devia estar separada da dos gentios.72 Essa separação se percebe no que se refere à comida. Na prática negava, pois, o que Cristo Jesus fizera com a lei, negava a presente realidade da cruz e da ressurreição de Cristo Jesus na visível unidade daqueles que participam do seu corpo, e que são, portanto, seu corpo. Paulo se opõe a tal negação prática e objetiva da verdade do evangelho. Para defender a pureza do evangelho, o apóstolo chega a fazer uma acusação pública contra Pedro. A expressão grega em- prosthenpanton (diante de todos), significa diante de todos os membros reunidos da igreja (1 Co 11.18; 14.23; 1 Tm 5.20). O escândalo público tem que ser criticado e removido na igreja publicamente.

Você é judeu, mas vive como gentio e não como judeu. Portanto, como pode obrigar gentios a viverem como judeus?A acusação de Paulo não se fixa primeiramente no transfundo real. Tampouco descobre como era de se esperar, a contradição entre a teoria e a prática de Pedro, ou seja, a “hipocrisia”. O que se critica é a oposição entre sua conduta anterior e o que agora exige dos cristãos gentios. O que está dizendo é certamente só uma espécie de introdução ao ataque fundamental que começa no versículo 15. É provável que também apresente alguma questão da postura de Pedro “diante de todos”. Trataria, portanto, de dirigir a atenção para uma inconseqüência de Pedro, relativamente secundária para o conjunto da questão. O apóstolo emprega o presente zen (viver) não no intuito de dizer que Pedro mudou sua conduta só no que se refere à participação nas comidas, mas no próprio comportamento de Pedro, que age contrariamente à verdade do evangelho de Jesus Cristo.

A palavra iodaizein (judeus) não significa aqui somente simpatizar com o modo de viver judeu, mas tomar parte nele. Paulo pensava, de acordo com seu discurso de então, naturalmente no caso concreto de se subjugar aos preceitos judaicos acerca da alimentação. Com vistas a sua disputa atual

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com seus adversários de origem judaica. Provar tal inconseqüência de Pedro certamente não é o bastante. Paulo se opõe mostrando que o judaísmo de Pedro se choca radicalmente com a verdade do evangelho. Nós somos justificados, também como judeus, pela fé em Cristo Jesus.

# V. 15 - Nós, judeus de nascimento e não ‘gentiospecadores. A partir desse versículo até o versículo 21, o apóstolo abandona seus comentários históricos e passa a uma discussão teológica dos princípios básicos implícitos nos incidentes que acabam de ser mencionados, embora ainda se dirija mentalmente a Pedro e a seus companheiros judaico-cristãos. Os versículos 15-21 são sem dúvida também para Paulo um discurso “diante de todos”, portanto, continuação do que começou no versículo 14, que não teria sentido nenhum se fosse tomado separadamente. O pronome “nós” abarca Pedro e os cristãos judeus enquanto tais, o mesmo que a Paulo, “judeus de nascimento”. O pronome está enlaçado, pois, com a situação. Não é o discurso que Paulo pronunciou em Antioquia. Isso aclara algo sobre a questão da intenção histórica de todo o relato 1.11; 2.21 e de sua veracidade. As frases têm características de um resumo.

# V. 16 - Sabemos que o homem não é justificado. Paulo toma a palavra dikaiousthai (justificado) do vocabulário da LXX. A citação do contexto é de Salmos 143.2, que aparece igualmente em Romanos 3.20. Paulo toma assim um conceito que inclui o sentido de declarar justo.73 Analisando alguns aspectos do conceito paulino, percebe-se que dikaioun não significa um declarar justo por contraposição ou fazer justo. Baseia-se no acontecimento salvífico em Cristo Jesus, ou seja, em seu sangue (Rm 3.24,25), na obra da graça (Rm 3.24) que atua na sua redenção, onde tem lugar a justificação do mundo pecador (cf. 1 Co 1.30; 2 Co 5.21). Desta forma, justificação é a definitiva realização da justiça divina pela ação de Deus. Por último, deve ser dito que dikaioun se consuma no futuro como conseqüência da justiça de Deus para conosco (Rm 2.13; 3.30; 5.18,19; 1 Co 4.4; G15.5). Também se antevê o sentido primário do dikaionpaufmo que inclui o realizar no homem a justificação de Deus por Cristo Jesus.

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Esta realização da justiça é chamada “justificação”, no termo que mais ou menos tem o sentido formal de uma declaração de justiça. Tal aspecto se deve à atuação revelada de Deus. Este declarar justo é um fazer justo pela poderosa palavra de Deus.

Pela prática da lei, mas mediante a fé em Jesus Cristo. O que está dizendo sobre a justificação não se deriva das obras da lei,74 mas da fé em Cristo Jesus.75 A concepção paulina da prática da lei corresponde ao aramaico ‘Ubede miswawta ou ao hebraico ma ase misot, que significam obras dos mandamentos.76 Na tradição rabínica às vezes é chamada simplesmente “obras”. Disso se deduz que a “prática da lei” em seu aspecto formal são obras concretas que a lei exige que sejam cumpridas.77 Isso pode ser visto de forma mais clara quando lembramos que as obras dos mandamentos, que são as exigidas por Deus, se opõem as que Ele mesmo elegeu. Estas são obras da “lei de Belial”, opostas à “lei do Senhor” (cf. Test 12, Naf 2).

Assim, nós também cremos em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pela prática da lei, porque pela prática da lei ninguém será justificado. 0 apóstolo procura mostrar aos gálatas que os cristãos, tanto os de origem judaica, quanto os de origem gentílica, são justificados não pelas obras da lei, mas pela fé em Cristo. A justificação não se deve aos cumprimentos dos mandamentos, mas na fé. Com isso Paulo formula a mais profunda oposição à convicção judaica. Jesus Cristo é o meio por intermédio de quem a justificação do homem é possível perante Deus; o fundamento da justificação não é a lei, ou obras da lei que pudessem ser cumpridas para obter “favor de Deus”, mas a justificação que foi possível com a morte de Cristo.

# V. 17 - Se porém, procurando ser justificados em Cristo nos descobrimos a nós mesmos como pecadores. Assim termina a argumentação que Paulo começou no versículo 15, ou talvez no versículo 14b. Entretanto, o texto não se conclui ainda. Paulo responde a uma dificuldade, dando a conhecer parte de sua discussão teológica com seus adversários. A objeção se faz na forma de pergunta. O apóstolo está pensando de modo hipotético.

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O que a objeção pretende dizer é que a justificação pela fé ou, como agora se formula, “em Cristo”, coloca-o a serviço do pecado. Isso ocorre porque em tal justificação são justificados os pecadores. A objeção se opõe de um modo muito singular, como é o gosto de Paulo (Rm 7.7ss.). Esta não é uma suposição irreal.

O apóstolo contempla a autêntica situação: “nós”, ele e os judeus, também se descobriram “pecadores”. Se aquilo que os seus adversários concebem como sendo justificação em Cristo faz aumentar o pecado, é claro que deve haver algum erro em seu conceito de justificação.

Será Cristo então ministro do pecado! A idéia é que se o processo da justificação leva os homens a pecar, isso faria de Cristo um agente para produzir o pecado, sendo isso claramente oposto à natureza dEle. Paulo não aceita a idéia errônea dos adversários e procura negá-la de duas maneiras. Em primeiro lugar, apresentando o contrário da justificação em Cristo como transgressão, pelo menos em seu resultado (v. 18). Logo, apresenta a prova positiva de que Cristo não presta seus serviços ao pecado (vv. 19,20). A primeira resposta tem o caráter de um parêntesis. O gar (pois) no versículo 19 se relaciona primeiramente, pela relação do pensamento, com o versículo 18 e depois com o versículo 17. Contudo, quanto ao conteúdo é o contrário: em primeiro lugar se trata de uma relação com o versículo 17, e em segundo com o versículo 18.

# V 18 - Se reconstruo o que destruí, provo que sou transgressor. Cristo não serve o pecado quando justifica aos pecadores, pois se alguém torna a valorizar a lei torna-se pecador. Paulo passa da primeira pessoa do plural para a primeira pessoa do singular. Este passo não se deve a uma razão especial, mas trata-se de um meio estilístico. O “eu” não é precisamente o de Paulo falando pessoalmente de si, mas do geral.78 A utilização da primeira pessoa do singular é equivalente para todos os verdadeiros cristãos. O mesmo vale naturalmente para a continuação da primeira pessoa do singular nos (versículos 19 e 20). A palavra oikodomein (reconstruir) consiste em que a lei se declarava novamente válida neste sentido. Se isso ocorre, o cristão torna-se, novamente, transgressor, pois

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volta a cumprir determinadas exigências, como se estas fossem válidas para a sua salvação. A palavra sunJstavein tem um sentido de “expor” (cf. Rm 3.5; 5.8; 2 Co 7.2).79 Por outro lado, o sentido aqui deve ser “colocar”. Se Pedro e os cristãos do judaísmo — a situação de Antioquia segue presente aqui — voltam a colocar a lei com suas prescrições sobre os alimentos como meio de justificação perante Deus, então, estão voltando novamente a submeter-se ao poder da lei. Cristo não serve ao pecado, simplesmente pelo fato de justificar os pecadores.

# V. 19 - Pois, por meio da lei eu morri para a lei, a fim de viver para Deus. Paulo declara que agora vive somente para Deus, e para a lei, com seus mandamentos, ele está morto. Essa libertação da lei foi proporcionada por ela mesmo. Não deve ser entendido como se a lei me tivesse matado, de modo que ao experimentar o pecado tivesse também experimentado a morte (cf. Rm7.9, santificação), pois para Paulo apothaveinnão é um estar morto para a lei, mas um estar vivo para ela. O conteúdo se torna claro ao fixarmos que Paulo declara enfaticamente o “por meio da lei eu morri para a lei” com uma segunda fórmula. Esta descreve a duração do acontecimento mediante a crucificação de Cristo.

Uma aclamação sobre isso temos em Romanos 6.6. Paulo, ao morrer para o velho homem, também morreu para a lei. Isso aconteceu no batismo.80 E ao mesmo tempo, a criação de um novo fundamento de vida, no que o homem se abre para Deus em Cristo. É certo que em relação a Romanos 6.1-6, a atenção está centralizada no desligar-se do homem ocorrido no batismo. Esse desligar-se se refere ao domínio do pecado. Aqui se fala de um desatar-se do poder da lei. Entretanto, lei tal e como é experimentada na esfera do pecado, é a cooperadora do pecado (Rm 7.7ss.). Esse acontecimento da inclusão do ser humano em Cristo, ocorrido no batismo, retirou fundamentalmente o cristão da existência do pecado e da lei. Paulo jamais poderia deixar qualquer descrição da sua experiência num plano negativo. Morrer para a lei imediatamente sugere viver para D eus. Uma coisa é resultado da outra.

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G Á l a t a s C o m e n t á r i o

# V. 20 - Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida do justificado em Cristo pelo batismo não deve ser designada somente como “viver para Deus”. A seqüência da argumentação é clara: o morrer é explicado como sendo “crucificado com Cristo”, o viver está no fato de que “Cristo vive em mim”. Porém, a vida do cristão não se caracteriza tampouco só como um estar “em Cristo”, como acontece em Romanos 6.11 (cf. Rm 8.1), 1 Coríntios 13 e 2 Coríntios 5.17 (cf. Rm 12.5), em que o que mais se ressalta é o novo ser do cristão. A vida do justificado em Cristo se pode entender também como um “Cristo vive em mim”.81 Assim, a existência do cristão já não se apóia no seu “eu”, ou seja, no homem natural que dominava até então, mas em Cristo, a nova vida criada no batismo. Cristo foi integrado em nosso ser quando fomos transladados ao ser de Cristo. Trata-se de fórmulas orientadas primeiramente ao batismo. A justificação não só matou o homem velho e o arrancou da lei, mas criou também em nós o novo homem escondido em Cristo.82 Ao nos “revestirmos” dEle (ou seja, de Cristo como aioii), se faz o aion ao mesmo tempo “homem interior”. O “revestir-se” ocorre no batismo”. Esse novo homem se fortalece e se configura pelo Espírito e pela fé (4.19). Desta forma, como poderia Cristo favorecer o pecado com a justificação dos pecados? Pois também para os cristãos judeus é indubitável que Cristo não tem pecado.

A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim. O novo ser se conserva no presente pela fé em Cristo. Porém, a sua existência se relaciona de uma nova forma “pela fé”. A fé representa o modo de viver que corresponde ao batismo, posto que a fé revela pessoalmente a Cristo enquanto justificador. A nova vida baseada em Cristo é recebida e se desenvolve como tal na fé. Supostamente, trata-se da fé concreta em Cristo, descrita aqui como a fé “no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”.83

A fé se relaciona, pois, com o filho de Deus e com Ele por estar vinculada à ação de sua entrega amorosa por “mim” (Rm 8.32; cf. Rm 4.25; G11.4). A vida justificada é aquela que está cimentada de novo em Cristo. Partindo dessa perspectiva se compreende a oposição radical existente

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PAULO DEFENDE SUA AUTORIDADE APO STÓ LICA

entre a vida pela fé e a justificação em Cristo, com a vida resultante do cumprimento dos mandamentos e da justificação pela lei. Pois quem se justifica pela lei quer ganhar a vida justificada tendo como base as obras exigidas pela lei, enquanto que, quem se justifica pela fé em Cristo, reconhece a vida que lhe foi dada pelo amor de Cristo, como algo que lhe foi presenteado.

V. 21 - Não anulo a graça, a de Deus, pois, se a justiça vem pela lei. Cristo morreu em vão. A insistência do apóstolo se explica porque a dificuldade não é só teórica, mas de conseqüências práticas na vida da igreja. A ênfase está sobre toda a frase com a qual Paulo rechaça a acusação de que suprime a graça. O verbo grego traduzido como “anular” tem um sentido de “abolir”, “invalidar” ou “derrogar”.84 Essa acusação deve ter sido lançada pelos adversários no sentido de que para eles a “graça” é a “lei” ou sua “justificação”, ou seja, a circuncisão.85 Para Paulo, porém, as coisas são distintas. Para ele graça é a graça que superabundou com a obediência de Cristo (Rm 5.20), a que recebemos (Rm 5.17), na qual agora estamos (Rm 5.2), a que perdemos se é que chegamos à justificação graças à lei (Rm 5.17). Porém, é possível anular essa graça, e isso ocorre quando alguém procura se justificar pelas obras; se isso acontece então Cristo morreu inutilmente.

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CAPÍTULOIII

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A JU STIFICA ÇÃ O PELA FÉ

Capítulo III - 3.1— 5.12 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ

Paulo não se conforma com a prova histórica da condição de originalidade de seu evangelho e de seu apostolado, pois os gálatas duvidaram destes. A questão estava relacionada ao conteúdo da pregação do apóstolo. Por isso, ele volta a falar sobre esse conteúdo e o faz agora com mais detalhes e mais profundidade doutrinária. Procura expor sua argumentação partindo de um ponto fundamental: a importância da fé para a salvação.

O modo de exposição paulina não é a de um desenvolvimento sistemático da matéria, mas de um movimento reflexivo de um tema de maneira variada, voltando continuamente ao começo. O apóstolo contempla em certo sentido seu tema a partir de diversas perspectivas, para fazê-lo candente aos gálatas à base de considerações sempre novas.

1) 3.1-5: O Espírito Vem pela Pregação da FéE significativo como Paulo começa suas novas e contundentes argu

mentações. Ele pergunta aos gálatas pela fonte da salvação que é revelada pelo Espírito, que para eles é o fator característico que envolve a força fundamental da vida cristã. Paulo pergunta pela fonte do Espírito. O Espírito é recebido não pela lei, mas pelo anúncio da fé. A forma de sua exposição é a pergunta. E através dela apela aos gálatas baseando-se em suas próprias experiências.

# V. 1 - O gálatas insensatos! A capacidade de conhecimento é pequena agora. Em vez de chamá-los de amados, chama-os de insensatos. A saudação deixa transparecer sua emoção e seu zelo apostólico, tomando uma atitude dura e firme contra aqueles a quem se dirige.1 A palavra “insensatos”, traz um sentido de “torpe” ou “incapaz”. Designa uma carência de capacidade intelectiva própria dos néscios,2 uma limitação não natural. Aqui se pensa especialmente na insensatez dos gálatas no que se refere às coisas da fé. Eram insensatos por não saber distinguir entre a lei e a fé. Não haviam ainda penetrado no mistério do cristianismo.

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G á l a t a s C o m e n t á r i o

Quem os enfeitiçou?A palavra “quem” expressa uma admiração, que se opõe ao Cristo pregado pelo apóstolo. Cair do poder de Cristo no domínio da lei só é explicável a partir do engano e da mentira. Tal insensatez é explicada por uma espécie de encantamento. A palavra baskaino, geralmente traduzido por fascinar, é um termo de encantamento, que ocorre sem necessidade de ações, por meio de palavra ou do olhar.3 No contexto, a idéia é, sem dúvida, de encantamento por um olhar, pois Paulo pressupõe que os olhos dos gálatas deveriam ter sido cativados pelo Cristo crucificado. Tem lugar uma estranha mudança entre o símbolo da imagem (ver) e a mensagem (ouvir). Essa mudança mostra o interesse com que os gálatas recebiam a pregação apostólica e, também, a dos adversários de Paulo. Eles caíram em mãos de um encantador estranho.

Por trás da pregação da lei, feita por meio daqueles destruidores do evangelho e das comunidades, está uma coação. Os gálatas não foram convencidos humanamente, mas caíram numa trama. Não mudaram simplesmente suas idéias, mas se deixaram levar pelo fascínio de um novo poder, ao qual estão a ponto de submeter-se.

Não foi diante de seus olhos que Jesus Cristo foi exposto como crucificado? O verbo progragein (exposto) ocorre no grego em três sentidos: 1- “registro informativo”, “escrito de antemão”;4 2- “escrito abertamente”, “escrever publicamente”, ou melhor, “fixar publicamente”, referindo à propaganda, citação, notificações; e 3- relativo a ordenações oficiais, disposições e editos. Essa proclamação de Cristo visível a todos aconteceu na pregação de Paulo.5 No contexto, Paulo não pára para meditar sobre como é visível e palpável a imagem do crucificado que os gálatas têm ante seus próprios olhos, porque foi colocada diante deles histórica ou tipicamente. Para Paulo, a sua mensagem tinha de estar ante aos olhos dos gálatas incomparavelmente clara como em um quadro, posto que em sua pregação foi exposta, de forma clara, a imagem do crucificado com as mais vivas cores, tudo isso foi colocado através de palavras. Essa imagem de Cristo foi pintada diante dos olhos de todos. Como se Cristo houvesse sido crucificado entre os gálatas. Paulo fixa-se no caráter público e oficial, por assim dizer, de sua pregação apostólica. E é em comparação com ela

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que lhes pergunta se agora submeter-se-ão a um encantador gesticulante que atua de modo privado e pessoal.

A explicação dada se apóia também no “crucificado” colocado intencionalmente ao final da pergunta, a fim de ressaltar que a pregação de Cristo não aconteceu através de carta, mas oralmente, e entre eles. O tempo verbal (particípio) apresenta Cristo não como alguém que está na cruz e tenha de ser considerado assim, mas como aquEle que foi crucificado entregue à morte e ressuscitado (1 Co 1.23; 2.2).

Agora se compreende melhor a admiração e a consternação de Paulo pelo encantamento por meio do qual foram vítimas os gálatas espiritualmente imaturos. A força da pregação apócrifa e anônima da lei, o apelo caprichoso e mentiroso às obras da lei, mostra-se mais fascinante que a proclamação feita por Paulo acerca de Jesus, o Messias entregue para morrer na cruz pelo ser humano. E ante essa proclamação, nada pode ser desconhecido pelos gálatas, e nada pode fechar-lhes os olhos.

# V. 2 - Gostaria de saber apenas uma coisa. Paulo não deseja se utilizar de uma série de argumentos baseados na experiência cristã, mas se fixa no fundamental que é o bastante para levar os gálatas a tirarem suas próprias conclusões.

O verbo thélo (saber) significa “conhecer”, “inteirar-se” (At 23.27; Cl 1.7). Paulo acentua que quer saber precisamente deles, que são os interessados por fazer tais experiências. São eles, portanto, que devem dizer. Paulo parece mais um professor de uma classe de crianças desatentas, exigindo delas uma resposta que dissipará sua indiferença.

Foi pela prática da lei que vocês receberam o Espírito, ou pela fé naquilo que ouviramlt. indiscutível que os gálatas possuam o Espírito, assim como outras igrejas e o levam como prenda e anúncio da salvação escatológica.6 O recebimento do Espírito aqui se refere evidentemente às marcas no início de suas vidas cristãs. Para Paulo a questão é saber de que forma foi recebido. Só há duas possibilidades: através da prática da lei ou pela fé naquilo que foi ouvido. Ambas se opõem de modo que se excluem mutuamente. O contraste entre essas duas frases percorre toda a carta.

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G Á LATAS CO M EN TÁ RIO

Deve-se ter em conta que a questão formulada por Paulo não intenta, todavia, aclarar por qual caminho e por quais meios foi dado o Espírito à igreja. Paulo tem em mente o segundo princípio como causa da recepção do Espírito pelos meios e o caminho que sejam.

Os gálatas receberam o Espírito não através do cumprimento das leis (do cumprimento dos mandamentos), mas pela fé no que ouviram. A palavra grega traduzida por “ouviram” traz o sentido de ouvir ou do órgão de ouvir (ouvir o rumor, a notícia), e pode estar se referindo a ouvir a transmissão da pregação. Aqui se caracteriza pelo seu sentido duplo: é a transmissão do que foi ouvido, é o ouvir que se pode ouvir e é, ainda mais, o que por revelação se anuncia com a palavra recebida da revelação. Fixa-se mais na origem da pregação do que no fato e no modo de sua transmissão.

O ouvir pela fé é o oposto da prática das obras da lei. Tal confiança na lei, despertada pelos adversários, não concorda com a experiência dos gálatas. Eles não têm de ser gratos ao Espírito ou à lei, mas à pregação da fé. O Espírito, fundamento celeste da vida da Igreja, veio como dom da revelação que traz consigo a fé. Não é, pois, o resultado de esforços humanos. O cristão vive a sua vida no Espírito graças não às obras da lei, mas pelo ouvir (fundamento) e o poder (fé) de uma ação divina.

♦ V. 3 - Será que vocês são tão insensatos que, tendo começado pelo Espírito. Paulo não contesta expressamente a pergunta dirigida aos gálatas; pelo contrário, ele enfatiza ainda mais com o que segue. Concentra- se na expressão “vocês receberam o Espírito” do versículo 2, e isso pela pergunta do versículo 3, com a qual enlaça imediatamente o versículo 4 e 5. Tende a precisar mais o versículo 2, chama a atenção dos gálatas sobre o começo de sua existência como cristãos: “tendo começado pelo Espírito”. Começado refere-se ao início na vida cristã. O Espírito foi a força na qual e pela qual se realizou esse começo. Como os gálatas estão cientes do que Paulo está se referindo, não há necessidade de provas. Este começo tem lugar “no Espírito”, que é o princípio de sua nova vida cristã. O Espírito vinculado a Cristo, que se faz presente, que é vivificante,

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A JUSTIFICAÇÃO FE LA FÉ

os libertou da “lei” do pecado e da morte e, portanto, os arrancou da vida da “carne” que os escravizava (Rm 8.1 ss.).

Querem agora se aperfeiçoar pelo esforço próprio! Entretanto, o Espírito concedeu não só o tornar-se cristãos, mas também a existência baseada na exigência que mantém atual a palavra da fé. Esta exigência é de não voltar a viver de acordo com seus próprios esforços. “Próprios esforços” é uma tradução para o grego sarx, que significa carne ou corpo. Isso significa conceder à carne seu aparente senhorio, nem submeter- se mais à sua lei. E todo cristão que faz isso, destrói novamente o que começou pelo Espírito, fortalecendo novamente o ser carnal com sua força de morte. Quando Paulo fala novamente sobre a carne, recorda ao mesmo tempo, a exigência da circuncisão por parte de seus adversários. E com a volta da lei tomariam de fato uma decisão, pelo que outra vez renunciariam à origem de sua nova vida. A questão de como o homem deve viver, se da lei e suas obras ou da fé em Cristo, afeta o fundamento da existência humana.

Uma certa relevância adquire também a palavra epiteleisthe (querer se aperfeiçoar). Ela ocorre no Novo Testamento no sentido ativo,7 contendo o sentido de “alcançar um determinado fim”, “completar algo”.Tal- vez Paulo tenha tomado aqui uma expressão dos adversários que vêem nas “obras da lei” a consumação do caminho da fé, e ironiza a termo. Paulo adverte aos gálatas quanto a esse retrocesso, quando o que havia de se esperar era um progresso. A contraposição entre “tendo começado” e “aperfeiçoar” designa o começo e o fim, ou seja, o término de uma ação de oferenda, ou, em geral, de uma ação cultual. Encontra-se aqui a ressonância de um termo técnico de linguagem sagrada. É uma linguagem comum nas religiões de mistério, nas quais tem um início imediato no estado religioso, atingindo um estado de perfeito conhecimento contra o imperfeito conhecimento. No fundo, teríamos aqui a idéia da vida sacerdotal do cristão, que se realiza como ação de oferenda.

# V. 4 - Será que sofreram tantas coisas em vão?Se de fato fo i em vão! Esta volta a viver e querer se aperfeiçoar conforme seus próprios esforços

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G Á LATAS CO M EN TÁ RIO

(voltar à carne, viver debaixo da lei) tem de estar em contradição, naturalmente, com tudo que os gálatas experimentaram. A referência é a grande experiência pela qual os gálatas já haviam passado em sua vida cristã. A expressão ei ge kai eikê pode significar duas coisas: pode ser tomada como estímulo confiando ou como ameaça. O primeiro, se deve a que o Espírito que vem com o evangelho não se apodera do cristão para depois abandoná- lo, de modo que possa voltar à lei. O segundo, a experiência do Espírito não deixa em nenhum caso de ter efeito, pois o Espírito é agora individualmente o novo princípio da vida. Um retorno à lei é um desperdício deste dom e também da própria vida em Cristo. De qualquer forma, o questionamento de Paulo serve também para reforçar a pergunta sobre se os gálatas querem acabar na “carne”.

# V 5 - Aquele que lhes dá o seu Espírito e opera milagres entre vocês. Este versículo contém a terceira pergunta do apóstolo, que, de certa forma, não deixa de dar uma resposta à anterior. Ela ressalta um novo aspecto em relação ao dom do Espírito na comunidade. Agora a pergunta não é pela causa do Espírito que veio sobre as comunidades. Também não se fixa na origem ou no começo da nova vida no Espírito. O que Paulo faz agora é colocar ante os olhos dos gálatas a conseqüência e atuação presente do Espírito em suas manifestações carismáticas. Deus não se utilizou da lei para realizar os sinais do tempo messiânico. E verdade que tampouco para Paulo eles podem provar as manifestações extraordinárias do Espírito. Contudo, supondo que se trata de sinais de Cristo (os gálatas nem discutem isto), sua existência fala da superioridade do frutífero evangelho frente à lei que é estéril.

Paulo não menciona Deus, porém está implícito na palavra “aquele” (Rm 4.6; 5.5; 2 Co 1.22). “Dar”, “conceder”, é o verbo epichoregon. Possivelmente o prefixo epiindique a idéia quase desaparecida do “dar intensivo”.8 O dom do Espírito de Deus tem lugar enquanto Deus é quem “dá o seu Espírito” e opera milagrosamente entre os gálatas. O grego é um/h, significa “entre vocês”, mas pode significar também “através de vocês”, mas nunca “em vocês”.

Faz isto pela prática da lei ou pela fé naquilo que ouviram?ÍL quase uma reprodução da pergunta encontrada no versículo 2, com a diferença

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de que a ênfase muda agora dos recebedores para o doador. Deus concedeu aos gálatas poder sobre os maus espíritos de modo que podem expulsá-los, porém, em seguida esses espíritos, agora na forma de pregadores da lei, fascinam toda comunidade que a eles se submete. E é manifesto que não é a lei que dá esses dons. O que a lei faz é manifestar a pobreza do homem, ao fazê-lo retornar à sua carne, que não tem outra coisa que a si mesma, sua morte e sua inclinação perversa. Foi Deus quem concedeu os dons pelo poder do Espírito que está atuando no evangelho para aquele que crê.

Nesta última pergunta Paulo também não aguarda uma resposta, porque o faz de forma retórica, porém é evidente que irá contestá-la. Ele rebate os adversários que crêem na lei, e o faz com base em experiências próprias vividas pelos gálatas, de modo que reconheçam a necessidade de obediência ao ensino do evangelho, e não das obras exigidas da lei. Assim, o Espírito é um dom gratuito e não fruto da ação puramente humana.

2) 3.6-14: A Bênção de Abraão Descende sobre os CristãosPara o apóstolo, as bênçãos decorrentes da obediência de Abraão não

são para os judeus que praticam a lei, ainda que eles tomem para si tal coisa, antes, as bênçãos estão à disposição de todo cristão, que é na realidade, o herdeiro de Abraão.

a) 3 .6-9: Os cristãos são filhos de AbraãoO apóstolo procura mostrar que o fato de os cristãos serem conside

rados filhos de Abraão não é algo novo, as Escrituras já haviam previsto isso. Essa questão está baseada no fato de que todas as nações da terra seriam abençoadas em Abraão. A utilização do nome de Abraão não é um mero incidente, mas parte vital do argumento.

# V 6 - Considerem o exemplo de Abraão. Paulo chama a atenção para a comparação entre a fé dos gálatas com a de Abraão. O que está registrado nas Escrituras deixa conhecer claramente, a quem saiba lê- la e interpretá-la, o princípio de salvação pela fé, e a perdição pela lei que se encontra, de forma irrefutável, na pessoa de Abraão,9 o justo, o

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G á i a t a s C o m e n t á r i o

pai de Israel corporalmente.10 Não é possivel concluir se os adversários lançaram mão da história de Abraão para confirmar suas opiniões. Um indício neste sentido não se encontra nas considerações de Paulo. Entretanto, eles se consideram precisamente como filhos de Abraão. O verbo logizomai (considerar) traz o sentido de “colocar na conta de”, “imputar” e “reconhecer”. A idéia principal é “dar crédito” ou “mudar algo”. 11 Com a utilização da palavra kathós, Paulo traça um paralelo entre a justificação de Abraão e a justificação atual. Kathós é geralmente usado para introduzir uma palavra da Escritura.12 Paulo insiste que os gálatas receberam o Espírito pela pregação da fé, da mesma forma que Abraão. Enquanto ouvintes da pregação da fé eles estão na mesma linha de Abraão.

Ele creu em Deus, e isso lhe fo i creditado como justiça. Aqui Paulo não argumenta partindo da história de seu povo, mas da Escritura. Paulo cita Gênesis 15.6, segundo a LXX. Pensa na fé de Abraão que está em conformidade com a promessa concreta de Deus: outus estai to sperma sou, Gênesis 15.5b. Paulo interpreta de forma diferente daquela que era interpretada na sinagoga,15 que via em ha 'emunah um mérito e não um ato de fé. Ainda que para Paulo o “crer” seja um ato dentro da vida de fé, vida que vive da promessa de Deus, e ainda que os rabinos considerem o ato de fé de Abraão como um certo mérito, ou seja, ele alcançou a justiça por mérito, Paulo entende que a justiça foi alcançada pela fé. A existência da fé, que se realiza em determinados atos de fé, não se pode identificar com a justiça por razão de uma igualdade que possa ser medida, mas pela ação gratuita de Deus que possibilita a fé por sua palavra.

sfê V. 7 - Estejam certos, portanto, de que os que são da fé, estes é que são filhos de Abraão. Pela formulação do relato da Escritura no texto de Gênesis, a única conclusão a qual Paulo acredita que seja possível chegar é que todos que são da fé são filhos de Abraão. A expressão “os que são da fé” tem um sentido amplo: são as pessoas que têm na fé o fundamento de sua vida; são as pessoas de fé, às quais se contrapõem as da lei (Rm 4.16, G1 3.10). Para Paulo é a fé “cristã”, a fé no Deus que se revela em Cristo.

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Só aqueles que vivem da fé são filhos de Abraão. Isso é totalmente oposto à pretensão daqueles que vivem ex ergon nomos (de acordo com as obras da carne) e querem ter Abraão por pai, pois pregam que da mesma forma que ele cumpriu toda a lei,14 também eles se sujeitam a ela.

# V 8 - Prevendo a Escritura que Deus justiãcaria pela fé os gentios, anunciou primeiro as boas novas a Abraão. A Escritura diz que Abraão não foi justificado pela lei. Por conseguinte, os filhos de Abraão são filhos segundo a fé. A Escritura disse que Deus justificará os gentios pela fé, e disse a Abraão, que todos os gentios receberão a bênção por Deus. “Anunciou” se considera aqui como algo vivo como palavra pessoal de Deus. A expressão “prevendo a Escritura” corresponde à forma rabínica: “o que foi dito pela Torá?”15 Expressões parecidas sobre a atividade pessoal da Escritura se encontra freqüentemente em Paulo (3.22; Rm 9.17; 4.3).

Por meio de você todas as nações serão abençoadas. A previdência da Escritura corresponde ao seu anúncio, ou referindo-se ao tempo da promessa que precede à realização presente, isto é, para Paulo o evangelho para os povos começou com a promessa feita a Abraão de que ele seria uma bênção aos pagãos. A citação é de Gênesis 12, em que se encontra pela primeira vez a bênção de Deus a Abraão quando o chamou de sua terra natal.16 A bênção prometida a Abraão consiste na concessão de uma numerosa descendência e de um país para eles.17 Essas coisas eram naturalmente um presente e um sinal de que seria incluído na bênção, do que a constituía numa bênção extraordinária de aliança feita por Deus com Abraão e sua descendência.

Pelo fato de ter recebido a bênção pela fé, ela foi estendida para os povos que, como ele, vivem na fé, prevendo o que agora se realiza, para o qual vale o “pela fé”, quando Deus declara justos os gentios, a revelação contida na Escritura antecipou para Abraão o evangelho, ao anunciar- lhe que em sua bênção todos os gentios seriam benditos. Formalmente, o que Paulo estava falando está muito próximo da interpretação da teologia rabínica, a qual se fixa na obediência e na justiça de Abraão, segundo encontramos no livro de Jubileu: “Por mim mesmo jurei, disse

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Deus, abundantemente te bendirei, porque fez isto e não me negou o teu primogênito, ao que amar (...) E serão benditos em teu nome todos os povos do orbe (terra), porque ouviu minha voz. E a todos se deu a conhecer, porque me é fiel em tudo o que te disse” (Jub 18.15,16). Paulo não considera a fé de Abraão como um mérito próprio, mas como obediência à promessa de Deus.18 E fruto da ação de Deus que se justifica de acordo com a sua bênção. Essa ação de Deus manifesta-se a todos os que crêem, e fazendo sentido para todas as pessoas em Cristo Jesus.

# V . 9 - Assim, os que são da fé são abençoados juntamente com Abraão, homem de fé. A Escritura havia previsto que Deus justificaria os gentios pela fé e por isso anuncia que são benditos em Abraão aqueles que vivem da fé, que receberão a bênção junto com Abraão, o “cristão”. No versículo 7, Paulo mostrou que os filhos de Abraão são aqueles que vivem da fé. Só que agora ele parte de outro lugar da Escritura, que trata exatamente de Abraão, o “cristão”, que foi justificado pela fé e não pelos méritos. Ao mesmo tempo o apóstolo procura clarear o sentido da questão sobre o caráter de ser filho de Abraão, se fundamenta tanto na fé como na participação da bênção de Deus. Essa bênção cria a autêntica descendência de Abraão.19 O apóstolo confirma o que já se podia ver em Gênesis 15.6.

b) 3.10-12: Os que vivem nas obras estão debaixo da maldiçãoDesenvolvendo seu raciocínio, o apóstolo procura mostrar que aque

las pessoas que vivem praticando a lei, achando que isso conduz à salvação, estão completamente erradas, pois os que vivem da lei estão debaixo da maldição. Se os praticantes da lei estão debaixo da maldição, então a lei não poderá justificar ninguém.

♦ V. 10 - Já os que são pela prática da lei estão debaixo de maldição. A decisão que a comunidade de gálatas tem de tomar entre a lei e a fé terá para ela toda sua importância, considerando-se que a bênção de Deus só pode contrapor-se à maldição. Os cristãos são os benditos de Deus junto com Abraão, e os que vivem da lei são, por outro lado, os malditos de Deus. Paulo

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A JU STIFICAÇÃO PELA FÉ

formula primeiramente de forma geral: os homens que têm no cumprimento da lei o princípio de sua existência estão debaixo da maldição. Estão também debaixo da maldição aqueles que se confessam estar em Cristo, mas continuam submetendo-se à lei. A fé dessas pessoas é ilusória, porque as obras exigidas pela lei são a verdadeira fundamentação de sua existência.

Pois está escrito: Maldito todo aquele que não persiste em praticar todas as coisas escritas no livro da Lei. O fato de as pessoas que vivem da lei estarem debaixo da maldição pode ser provado pela Escritura. Trata-se de Deuteronômio 27.26 (cf. 28.58; 30.10), segundo os LXX. Para Paulo, a citação da Escritura não tem por finalidade assinalar a causa da maldição que pende sobre os que vivem das obras da lei. Esta maldição não depende de que em nada cumpra a lei, mas se trata de atuar na lei. Nada cumpre a lei ou nada pode cumpri-la. A Escritura não tem mais que reforçar que os da lei estão debaixo da maldição.

# V 11 - Eevidente que diante de Deus ninguém e justificado pela lei, pois o justo viverá pela fé ’. É importante ressaltar que o pensamento de Paulo é

no sentido de mostrar que os cumpridores da lei são malditos, pois na lei nada se justifica perante Deus. O pressuposto para acabar com a maldição seria ser justificado pela fé. Porém, isto não se realiza pela lei, como prova a Escritura. O apóstolo cita Habacuque 2.4, que por ser tão conhecido,20 não necessita de uma forma introdutória (cf. 1 Co 15.27; Rm 9.7). A sua citação em outras partes do Novo Testamento indica que esta passagem é utilizada costumeiramente no ensino cristão elementar (Rm 1.7; Hb 10.37,38).21

O texto hebreu diz: “mas o justo viverá por sua fidelidade”, a versão dos LXX muda e traduz: “o justo viverá pela minha (de Deus) fé”(?). Paulo suprime o pronome “minha”, porém, não o interpreta como faz a sinagoga, mas no sentido original do texto, que é o conformar-se à Palavra de Deus e a sua ação. A lei não justifica ninguém, por isso não é nada diante de Deus, porque, conforme a citação, o justo tem a possibilidade da vida com a justificação, e o princípio desta justificação é a fé em Deus e não pelas práticas das obras da lei.

# V. 12 - A lei não é baseada na fé; pelo contrário, quem pratica estas coisas por elas viverá. Para o apóstolo a lei não está baseada na fé, ela não

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tem a fé como princípio fundamental de sua vida. Um novo argumento para Paulo é Levítico 18.5. Se a vida fundamenta-se na lei, só será alcançável pelo seu próprio princípio fundamental, a ação. A lei está junto à “fé” como um fato fundamental da existência humana, e tem seu modo próprio de dar a vida: fazer o que exige, onde a lei domina não se pode falar de fé. A existência edificada na base da lei é maldita, porque na lei se realiza, pela força do pecado, a paixão da carne, a existência com base na maldição. O homem tal e como existe na realidade se vê sempre na necessidade de tomar alguma decisão, isso com ações e obras que estarão em conformidade ou não com a lei. Tal homem existe para realizar a maldição que gravita sobre ele, pois todas as suas obras e ações que são exigidas pela lei, oculta ou manifesta, realizam, em definitivo, a existência que busca sua própria utilidade e seu próprio capricho, levando à morte. Onde só existe a lei e o homem, unicamente amadurece a morte na vida sem a lei. Se os gálatas esperam outra vez a vida pela razão do cumprimento da lei e abandonam a fé como verdadeiro e único princípio, então se voltam para a morte e colocam-se debaixo do poder da maldição que pesa sobre a vida.

c) 3.13,14: A bênção de Abraão veio aos cristãosDe acordo com Paulo, a bênção destinada a Abraão não estava restrita

a uma pequena comunidade, mas a todos os cristãos. E para que pudéssemos alcançar essa bênção, Cristo tornou-se maldito em nosso lugar, nos redimindo da maldição da lei.

# V. 13 - Cristo nos redimiu da maldição da lei quando se tornou maldição em nosso lugar. Redimir é um termo helénico que é utilizado com o sentido de “adquirir”, “libertar” ou “resgatar”.22 Substitui o simples agorazein de uso mais freqüente e que tem sua importância junto a outros conceitos no resgate de escravos, tanto profano como sacro23 e se relaciona com a obra de Cristo (1 Co 6.20; 7.23; 2 Pe 2.1; Ap 5.9). O passado do qual Cristo nos libertou era o de estar debaixo da maldição. Indica também que não está só ameaçada por ela, de modo que na existência se patenteia a maldição. A maldição da lei é a que traz a lei e é também a lei

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neste sentido. De tal passado, atualizado continuamente pela lei, Cristo nos tirou e nos resgatou. Certamente que os judeus são também, aqui para Paulo, o tipo de quem está debaixo da lei, porém isso não significa para ele, em absoluto e muito menos aqui, onde se fala do sucesso fundamental da salvação, que somente eles estejam debaixo da lei ou incluídos debaixo da maldição da lei, mas também os pagãos estão incluídos. Não só os judeus, mas também os gentios devem ser resgatados desta maldição para receber a bênção.

Pois está escrito: “Maldito todo aquele que for pendurado num madeiro A morte de Cristo pode ser considerada como o pagamento de um resgate do mundo escravizado. Porém, no contexto, Paulo fala unicamente da forma do resgate (2 Co 5.2). Paulo diz que Cristo nos resgatou da maldição da lei tomando-a sobre si,24 de tal maneira que representava a maldição que pesava sobre ele. Como prova de que Cristo se fez realmente maldição, Paulo cita livremente Deuteronômio 21.23 só que entre parêntesis. O fator decisivo depende do que ele mesmo disse. E para sua fórmula agora é claro que o “maldito”, que o apóstolo toma de Deuteronômio 27.26, é para indicar a relação entre aquela e esta maldição. Naturalmente, tal escolha se deve a que no conceito “maldito”, relacionado com uma pessoa, se expressam dois aspectos: a validez na pessoa do fato de que o crucificado está totalmente coberto de maldição e que se converteu no objeto maldito.

Paulo não disse em que consistiu concretamente o “maldito”, porém é claro que pensa no juízo e ação daqueles que o levaram à cruz por seguir a lei. Portanto, a maldição que Cristo tomou sobre si e na qual Ele foi submergido, se fez real nEle pela sua entrega amorosa por nós e por carregar nossos pecados. Deve se entender uperemon, “em nosso lugar”, no sentido de “para nosso bem”, “por amor”. A maldição se realizou no cumprimento da justiça exigida pela lei (Rm 8.4), na ação da justiça e na obediência (Rm 5.18,19).

# V. 14 - Isto para que em Cristo Jesus a bênção de Abraão chegasse também aos gentios. A libertação da maldição da lei se deve ao fato de Cristo haver se tornado maldição em lugar do cristão. Com Ele estava

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cumprida a condição para que a bênção vinculada a Abraão pudesse estar disponível a todos os povos. O ponto central está na frase “em Cristo”. Quando Cristo arrancou a existência humana da maldição da lei, passou a ser o portador da bênção da aliança de Deus com Abraão, bênção que viera com ele. Em Cristo se cumpriu aquela bênção de Abraão:25 realizou- se na sua pessoa. A bênção em seu sentido amplo se cumpriu também em Cristo, pois passou de fato da vinculação a um povo próprio, de uma bênção terrena se fez, em Cristo, uma bênção “também aos gentios”,26 e quanto a extensão de sua validade, se converteu numa bênção escatoló- gica, em absoluta bênção da existência.

Para que recebêssemos a promessa do Espírito mediante a fé. Em que sentido se cumpriu a bênção de Abraão em Cristo para todos os povos? A bênção de Abraão, manifestada em Cristo Jesus, é recebida no dom do Espírito prometido. A promessa consiste no Espírito (cf. At 2.33), participar da realização da promessa (Rm 8.2; cf 2 Co 3.17).

Somente é possível participar desta bênção trazida aos gentios por meio de Cristo mediante a fé.27 Certamente que Abraão creu e recebeu assim a bênção pela promessa de Deus. Entretanto, sua fé se distingue da fé atual dos cristãos (gentios), como se distingue sua benção da que recebem agora os povos. Sua fé estava na promessa de Deus. Como a fé de Abraão é a fé na promessa, assim a fé que é possível através da obediência de Cristo é a fé no cumprimento ou fé realizada: fé cumprida.

Contudo, esta fé é o acesso à promessa ou às bênçãos cumpridas. É o modo como se experimenta o Espírito. Por meio desta fé é possível se aproximar de Cristo e assim receber a bênção. A bênção de Abraão se interpreta como Espírito. A herança da promessa corresponde ao Espírito que o cristão recebeu em Cristo. Portanto, o Espírito é o conteúdo da promessa.

3) 3.15-29: A Herança de AbraãoNo versículo 15, Paulo inicia uma nova idéia, e tem como palavra cha

ve o conceito promessa, encontrado no versículo 18. O apóstolo volta a apresentar aos gálatas a questão da herança de Abraão, exaltando, por um lado, aqueles que crêem na justificação pela fé, e rechaçando, por outro, aqueles que crêem na lei. Paulo trata do papel da lei como intermediária

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da promessa. Considera agora a lei como poder objetivo da história e lhe contrapõe a promessa e a fé como potências.

a) 3.15-18: A lei não pode invalidar a promessaA promessa foi feita a Abraão independente da lei.28 A lei que veio

4 3 0 anos depois não tem o poder de invalidar a promessa. Pois, segundo o pensamento do apóstolo, se a herança depende da lei, já não depende de uma promessa. Este é um fato que deve ficar claro para os gálatas.

♦ V. 15 - Irmãos, humanamente falando. O primeiro argumento de Paulo é que a lei é importante perante a promessa. No início do novo pensamento está a saudação “irmãos” para despertar logo a atenção dos leitores. A seguir o apóstolo lança mão de uma comparação tomada da vida jurídica. Com ela se procura aclarar a relação entre promessa e lei. A expressão “humanamente falando” parece muito com “falo isso em termos humanos”, encontrada em Romanos 6.19.29 Não é uma fórmula tomada do judaísmo ou do helenismo.30 Paulo apela aqui para uma prática comum na época, e procura demonstrar como até mesmo uma analogia humana está em harmonia com as declarações da Escritura que acabam de ser citadas.

Ninguém pode anular um testamento depois de ratificado, nem acrescentar-lhe algo. A palavra diatheke é geralmente traduzida por acordo, tratado, testamento, aliança. Aqui significa testamento. Há fortes razões para supor que Paulo pensa na disposição jurídica mtntbry’, segundo a qual a resolução tomada não podia ser revogada ou mudada. Pode-se cumprir a qualquer momento e tem efeito imediato. Paulo está querendo dizer que uma vez que o acordo seja feito para a disposição de bens, nada pode alterá-lo senão a parte ou partes contratantes. Não pode ser cancelado por qualquer outra pessoa.

A linguagem legal utilizada por Paulo é clara. Uma cláusula adicional que modificaria as condições originais sempre era possível numa disposição legal. O apóstolo imaginava que algumas pessoas talvez considerem a lei como um tipo de cláusula adicional à promessa que, portanto, cancela sua eficácia. Mas não pode pensar que Deus se contradiria assim,

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de modo algum, e ninguém mais tinha poderes para fazer isso, conforme suficientemente ilustrado pelas disposições humanas, em que somente as partes contratantes podem alterar as condições.

♦ V 16 - Assim também as promessas foram feitas a Abraão e ao seu descendente. O apóstolo identifica aqui o testamento que acaba de aludir. Este testamento não é coisa nova, pelo contrário, foi feito a Abraão. Ninguém conseguiu desde então modificá-lo ou anulá-lo. A despeito de sua antiguidade e de tudo quanto tem acontecido no correr do período intermediário, ainda permanece ratificado. Encontramos aqui a inimpugnabilidade deste testamento. A frase parece uma citação porque as promessas foram feitas precisamente a Abraão e a sua descendência51 e isso é importante para Paulo. Ele segue a tradição judaica, onde a promessa refere-se a Abraão e a descendência que abarca os herdeiros naturais, os cristãos.52 A palavra “descendente” é essencial ao argumento de Paulo.55 Com essa expressão, o leitor tem uma indicação velada, segundo a exegese halakhika,34 que aponta para “Cristo”, o herdeiro universal de todas as promessas.

“A Escritura não diz; ‘E aos seus descendentes’, como se falando de muitos, mas: Ao seu descendente’, dando a entender que se trata de uma só um pessoa, isto é, Cristo”. As considerações exegéticas de 16b só têm sentido se apontam para Cristo como herdeiro das promessas feitas a Abraão. Para o apóstolo, ninguém, antes de Cristo, herdara a promessa. A bênção verdadeira vinda igualmente para os judeus e gentios proveio, exclusivamente, em Cristo. Ele é descendente de Abraão por excelência, e todos os que estão nEle são igualmente filhos de Abraão.

# V. 17 - Quero dizer isto: A lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não anula a aliança previamente estabelecida por Deus, de modo que venha a invalidar a promessa. Paulo retorna o pensamento interrompido no versículo 16b, introduz a aplicação do exemplo do versículo 15: “quero dizer isto”.

Ao dizer que um testamento é inviolável, Paulo procurou mostrar que o testamento outorgado nas promessas a Abraão e a seu descendente

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não pode ser anulado pela lei, muito menos tendo em conta que ela veio “430 anos” depois da promessa. Assim Paulo se coloca outra vez contra a tradição judaica, pois esta atestava por testemunho escrito que também Abraão não só conheceu a Torá, como a cumpriu,35 e o fez por sua própria iniciativa.36 Esta lei que veio tardiamente não anula, pois, o testamento de Deus, nem tampouco destrói as promessas de Deus A promessa é o testamento.

# V. 18 - Pois, se a herança depende da lei, já não depende de uma promessa. Agora Paulo procura mostrar que lei e promessa não podem comunicar o mesmo bem. Ou é a lei que traz a herança ou é a promessa. Elas se excluem mutuamente como fonte da esperança messiânica. Baseando na relação histórica entre promessa e lei é claro que a promessa, e com ela a herança, não pode ser equiparada com a lei. Os judeus estavam profundamente conscientes da sua participação na herança de Abraão. Quando eles se tornaram cristãos não perderam este privilégio. Entretanto, os critérios utilizados pelos adversários de Paulo eram estranho daquele usado pelo apóstolo, o qual insistia que a fé por si só bastava para a salvação, não sendo necessário a prática de obras da lei. Não poderia haver meio-termo entre esses princípios opostos. A promessa não pode ser completada pela lei e que, portanto, a herança não pode fluir de ambas as fontes.

Deus, porém, concedeu-a gratuitamente a Abraão mediante uma promessa. A herança que Deus concedeu gratuitamente a Abraão, mediante a promessa, contém em si a salvação messiânica, e está vinculada a Cristo. A lei veio demasiadamente tarde, e por isso não pode invalidar a promessa. Não outorga nenhuma possessão real. Não proporciona herança alguma escatológica, nem a enriquece em nada. Quem vive da lei ou debaixo dela adquire unicamente uma falsa idéia de posse. Quem quer viver da promessa e da lei dilapida sua herança pela participação maldita da lei. Se a lei não está relacionada com a herança, e inclusive impede de tomar posse dela, então deve ser discutida a questão do significado da lei como tal. Em sua brevidade, o versículo 18b, ressalta três coisas: 1) que Deus já tomou a decisão que segue em vigor e não foi invalidada; 2) Deus

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decidiu pela promessa, não pela lei; e 3) esta decisão foi gratuita, prova de sua amizade e de sua bondade, que precede e exclui todo mérito que se deva às próprias ações.

b) 3.19-25: A lei foi nosso tutor até CristoA pergunta feita pelo apóstolo no versículo 19 não se relaciona só com

a finalidade da lei, mas em geral, pelo seu lugar e seu significado em todo o acontecimento salvífico. A contestação se dá em várias etapas. Primeiramente nos versículos 19,20, porém, é melhor colocado nos vesículos 21,22, com um complemento novo e mais concreto nos versículos 24,25. A finalidade de Paulo é mostrar que a lei foi dada por Deus apenas por uma período de tempo: até a vinda do Salvador, período esse que foi o nosso tutor apenas.

♦ V. 19 - Qual era então o propósito da lei? Foi acrescentada por causa das transgressões, até que viesse o Descendente a quem se referia a promessa. A lei foi “acrescentada”. Isto quer dizer que ela veio 430 anos depois da promessa. A lei,37 portanto, é um complemento, e isso por causa das transgressões do povo.38 Em relação à promessa, a lei representa algo secundário.39 Tal lei é uma interpolação com vistas à vontade salví- fica de Deus. Não pertence, como pensam os judeus, a “sete coisas que foram feitas antes da criação do mundo”.40 A lei que obriga os homens a viverem das obras, que os chama para suas obras, esta lei empírica que tem sua cronologia precisa, não pertence à essência do cosmos, senão à histórica. Não foi feita com a criação. Pertence à história do cosmo, não a suas forças primárias, consideradas histórica e objetivamente. A promessa de Deus a precede.

Tais idéias sobre a lei recebem sua classificação baseadas na expressão: “por causa das transgressões”. Não indica somente a causa, mas também a finalidade, aquilo em cujo favor se faz algo. Sendo assim, é fácil supor que o sentido é. “para provocar as transgressões”. Assim, a lei trouxe à luz as transgressões como tais, enquanto o pecado se concretizou nessas transgressões e através delas se multiplicasse (Rm 5.20; 7.17,18; 8.3; 1 Co 15.56). A lei tem

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um fator provisório,41 sua atividade se desenvolve somente até um tempo determinado: “até que viesse o descendente, a quem se referia a promessa”42 O descendente é Cristo a quem, junto com Abraão, se fez a promessa (v. 16). Esse caráter provisório da lei indica outra vez a atividade permanente daquela promessa que foi feita uma vez. Assim como teve um começo na história, assim também terá um hm. Como não existiu desde a eternidade, tampouco existirá eternamente.43 Para Paulo a lei acaba em Cristo.

E foi promulgada por meio de anjos, pela mão de um mediador. O caráter temporário da lei está no fato da mesma ter sido promulgada por meio de anjos, e pela mão de um mediador.44 Sua essência é inseparável de sua origem. E convicção muito difundida no Antigo Testamento, no judaísmo e no Novo Testamento que os anjos intervieram no ato da promulgação da lei. Em Êxodo 19.9,16,17 e Deuteronômio 4.11,12; 5.22 não se fala em anjos, porém nomeia-se alguns fenômenos naturais que acompanham o ato de doação da lei: fogo, nuvem, escuridão. Por isso, era natural a exegese judaica interpretar esses fenômenos da natureza como anjos (SI 102.20,21; 103.4), e constatar, portanto, assim a presença deles no Sinai, por ocasião da entrega da lei (Jub 2.2,3; Hen Et 60.11,12). Junto à menção de fenômenos naturais, a exegese judaica fala também do papel desempenhado pelos anjos na ajuda quando da doação da lei, os quais vieram como um exército, acompanhando a Deus.45 São importantes as tradições que fazem participar de algum modo aos anjos na mesma doação da lei,46 onde encontramos mais detalhada a intervenção dos anjos.47

Provavelmente a tradição da promulgação da lei por meio de anjos, continha para Paulo um indício de que a lei é divina somente de modo mediato e, por isso, corrompida. Paulo via no fato de a tradição falar que a lei fora promulgada por anjos, a sua inferioridade.

Sobre o “mediador”, algumas colocações são importantes: 1) o mediador é sem dúvida Moisés; 2) Paulo o qualifica assim para descrever com um substantivo a atividade de Moisés no Sinai, atividade diversamente definida na LXX (Êx 19.7,9,21,22; 20.19; 24.3,4; cf. 24.12; 31.18; 23.16,19,30); 3) Paulo segue uma tradição conhecida no judaísmo rabí- nico e helénico que, a exemplo do Antigo Testamento, apresenta Moisés

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como mediador entre Deus e Israel e, às vezes, como intérprete da lei;48 e 4) em certas tradições que colocam as aparições de Moisés quase divinas: como tal, têm ao mesmo tempo um papel soteriológico e cosmológico. Também em outros lugares apresentam Moisés como pertencendo ao mundo dos anjos.49 E interessante notar que no original “mediador” está sem o artigo e que, portanto, Paulo apresenta Moisés não como o mediador determinado, mas genericamente como um mediador.

# V. 2 0 - Contudo, o mediador representa mais de um; Deus, porém, é um. Esse versículo é exegeticamente muito maltratado. Existe provavelmente cerca de 430 interpretações diferentes, baseadas mais em rumores do que em comprovações. A dificuldade para explicá-lo não está no mero conteúdo da frase, mas na relação desta com o contexto: o melhor sentido seria, “o conceito de mediador implica que não representa a um só, mas sempre a muitos.50 Porém, Deus é um”. O conceito de “mediador” significa para Paulo um representante de um grupo.51 Logo, parte da idéia da tradição do Antigo Testamento e da literatura judaica, em que o mediador é alguém que medeia entre Deus e Israel. Entretanto, interpreta em seguida como representante dos anjos, a cuja promulgação se deve a lei. Para Paulo, a verdadeira e autêntica mensagem da salvação é aquela que foi revelada por Deus sem nenhuma mediação. O que Paulo diz tem seu fundamento objetivo no peculiar caráter incoerente da lei, que foi dada por Deus e, na verdade, não faz com que o homem dominado pelo pecado se encontre com Ele. Essa mensagem consiste na promessa de Deus a Abraão e seu descendente. Portanto, a Torá é, na sua essência, um testamento dos anjos e mediadores, e de Moisés seu representante. Não é a revelação do único Deus.

^ V. 21 - Então, a le i opõe-se às promessas de Deus? De modo nenhum! Pois, se tivesse sido dada uma le i que pudesse conceder vida, certamente a justiça viria da lei. A lei não pode concorrer com a promessa de Deus, pelo fato de não trazer a justificação, posto que a justificação vem pela fé. Não há nenhuma oposição entre lei e promessa, nem

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tampouco uma concorrência, pois a lei dada ao povo de Israel no Sinai não é uma lei que possa dar vida. A lei não pode dar, na garantia do Espírito, a herança futura,52 o que faz precisamente a palavra dada por Deus a Abraão e cumprida em Cristo. A lei não pode dar vida, pelo contrário, ela foi dada para a vida, mas se fez morte na experiência da carne (Rm 7.10). A impotência da lei está no fato de não haver proporcionado a justiça, uma vez que a vida consiste na justiça. A justiça é a manifestação da vida, como a vida é a realidade da justiça. Porém, a lei não foi capaz de proporcionar justiça na vida das pessoas.

# V. 22 - Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado. Segundo a Escritura “tudo” está submetido ao pecado. A ênfase do versículo está na palavra “Escritura”. Isso quer dizer que o pecado é também para os adversários uma autoridade de maior peso que suas próprias tradições e opiniões. A frase acentua em segundo lugar, “debaixo do pecado”. Isso contradiz a justiça de que falam os adversários. O juízo da Escritura é válido porque é o juízo de Deus, que não só manifesta a justiça, mas a concretiza. Deus encerrou tudo “debaixo do pecado” (Rm 11.32). A Escritura trata disso, e Paulo fixa-se de acordo com o que está escrito. Sua sentença foi o ato revelador daquilo que está na Palavra de Deus. Esse ensino é para aquele que vive de modo peculiarmente pessoal, e que procura sempre conhecer a vontade de Deus. Desta forma, se a Escritura, enquanto reveladora da vontade de Deus encerra tudo debaixo do pecado, significa que o pecado exerce seu domínio sobre o mundo (Rm 3.9).

A hm de que a promessa, que épela fé em Jesus Cristo, fosse dada aos que crêem. A meta que a Escritura, e, portanto Deus, tem ante seus olhos era o dom da promessa, que é a fé em Jesus Cristo. Esta meta realizou-se agora e deu-se a conhecer também como tal. O que faz é chamar a atenção sobre o fato de que a Escritura submeteu todo o ser humano ao senhorio do pecado, e que, portanto, tudo está dominado por ele; trata-se de uma meta que para Deus já era segura e cuja realização confirma agora a precedente intenção de Deus. Recebemos a promessa por meio da fé. A fé, enquanto novo princípio de salvação atualiza-se em cada ato de fé do indivíduo.

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# V. 23 - Antes que viesse esta fé, estávamos sob a custodia da lei, nela encerrados, até que a fé que haveria de vir fosse revelada. Não se pode negar o fato de que Paulo divide a história -em duas partes, tendo como ponto divisório a fé. Ainda que antes de Cristo houvesse cristãos e fé nas promessas,55 não existia, todavia, a fé concretamente como fé em Cristo. Antes de chegar a fé, o mundo estava governado pela lei, ainda que não houvesse se extinguido a promessa que fora feita a Israel. O domínio da lei significava para os homens ser prisioneiro dela. Não se diz quem impôs a prisão, mas só em que consiste: o homem é mantido sob a custódia da lei. Ele era seu prisioneiro o que significa que estava debaixo da lei. O sentido objetivo é que a prisão consiste em estar debaixo da lei e que foi ela mesma que os fez prisioneiros. O resultado claro dessa prisão está no fato de a lei fazer com que os homens experimentem continuamente o pecado e a morte. A prisão do “aion” dominado pela lei e o inevitável círculo de caída no pecado, círculo ao qual nos arrola continuamente a lei em quanto poder e força do pecado (1 Co 15.56). Esta prisão durou objetivamente até um tempo determinado: até a revelação da fé. A lei durou, pois, até a revelação da fé que estava prevista por Deus e oculta nEle. Agora aparece como mistério, prenúncio da futura revelação da glória (Rm 8.18).

♦ V. 24 - Assim, a k i fo i o nosso tutor até Cristo, para que fôssemos justificados peia fé. Neste versículo é contestado a pergunta fundamental da perícopa, proposta no versículo 19, e que segue presente enquanto está dizendo: “a lei foi nosso tutor até Cristo”. “Tutor” é o grego paidagogos, um termo demasiado freqüente. E possível que uma tradução paulina de ‘omer, Números 11.12 (ama), a LXX traduza por tithenos. Na literatura

rabínica a palavra paidagogos é um estrangeirismo. Nas famílias greco- romanas, “tutor” eram escravos que recebiam a tarefa de vigilância global dos adolescentes, entre 6 e 16 anos. Esse tutor era eleito dentre os escravos que não serviam para oútra coisa. Os seus métodos de educação consistiam abundantemente de repreensões e de castigos. Por isso, geralmente não era estimado, nem respeitado. Ao declarar que a lei foi nosso “tutor” até Cristo, talvez Paulo tivesse em mente a sua função

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A JU ST IF K X Ç Ã O PELA FÊ

de vigilante e de forte controle, que era limitado temporalrocn e ' primeira dessas funções pensou já com a imagem da prisão na Qua' nos encontrávamos no tempo da lei.

A lei se interpreta, pois, como o instrumento da vontade de Deus aPn" sionada, mediatizada, instrumento limitado temporalmente, que n°s vlSia de forma ameaçadora. Tal atividade da lei não está na falta de s ^ d o e finalidade na providência de Deus, mas no fato de que a lei é incotnp^- Ela não tem nenhuma função na justificação do homem. A fé que a*raves de Cristo e que se atualiza na fé em Cristo, é o princípio da justifi03?30 na qual cada cristão recebe o bem prometido.

# V. 25 - Agora, porém, tendo chegado a fé, já não estamos s0 o controle do tutor. Esse versículo declara, como conclusão, o termino da função da lei como tutora. O sentido secreto da justificação Pe a ^ se realiza agora, ainda que já existisse no tempo da lei. Desde a chegada da fé estamos livres do domínio do vigilante, a lei. Paulo passa agora a desenvolver a bela imagem da salvação que chegou. O apóstolo nao que depois da vinda da fé não haja tutor algum, mas que não estamos mais submetidos a nenhum tutor (Rm 10.4).

c) 3.26-29:0 cristão é descendente de AbraãoApós mostrar que a lei foi necessária até a vinda de Cristo, o apóstolo

mostra que agora todos são filhos de Deus mediante a fé no seu filho. E por meio dessa filiação não há mais nenhuma separação dentro da humanidade, quer seja de cor, de nacionalidade, de sexo; pois em Abraão todos são herdeiros da promessa.

# V. 26 - Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé && Cristo Jesus. Paulo declara que nós já não somos mais sujeitos ao tutor, q^e era a lei, e isso ele conclui pelo fato de agora todos aqueles que foram justificados pela fé “serem filhos de Deus’ . Paulo procura mostrar aos gálatas que embora antes de conhecerem a Cristo fossem escravos, Deus n ã° evou isso em consideração, pelo contrário, em razão desse fato foi qü<z Ele se compadeceu dos gálatas e livrou-os do poder da lei.

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A utilização por Paulo do pronome “vocês” implica numa relação direta. Todos os gálatas são filhos de Deus “mediante a fé em Cristo”. A fé é, pois, o meio pelo qual os gálatas são filhos de Deus. Não separa na realização da fé, mas na fé que se acaba de mencionar como chegada. Uma vez que a fé chegou, não estamos mais sob os cuidados do tutor. Isso é o que proporcionou a fé que Paulo menciona. Foi através da fé e não da lei que os gálatas passaram a ser o que são agora: o estar em Cristo. Fé é a nova possibilidade do homem que chcgou com Cristo, possibilidade que é real. É um fato, independente de qualquer situação pessoal.

# V. 27. - Pois os que em Cristo foram batizados, de Cristo se revestiram. A fé possibilitou aos gálatas a filiação divina. Esse ato de ser recebido se efetua segundo Paulo, através do batismo.55 Isso é para o apóstolo não somente uma ação simbólica, mas um ato misterioso em que os cristãos entram em comunhão mística com o Cristo crucificado e ressuscitado. O ponto de vista de Paulo é o seguinte: já não estamos debaixo da lei, pois todos são filhos de Deus na força da fé em Cristo e porque todos aqueles que foram batizados em Cristo se revestiram dEle, de modo que sois um em Cristo.56 Revestir em Cristo pressupõe a idéia de que Cristo é como um vestido celeste preparado para todos, vesti-lo significa entrar em um novo “aion”.57 Assim como a roupa que uma pessoa veste a envolve e identifica sua posição nesta vida, assim também a pessoa batizada em Cristo é totalmente revestida nEle e na salvação trazida por Ele.

Descreve o começo da participação na pessoa de Cristo, que se realiza ao nascer o novo eu. Este ponto de vista já foi exposto por Paulo ao tratar da nova criatura em Cristo (2.20).

# V. 28 - Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus. A palavra grega éni; usada aqui como advérbio de negação significa “não há”, e é uma declaração de fato, não indica mera possibilidade. Após o batismo em Cristo ficam supridas, de modo velado e real, as diferenças metafísicas, históricas e naturais, procedentes do velho “aion”. A expressão “não há judeu nem grego” acentua fortemente a realidade da igualdade em Cristo.58 Os gregos,59 segundo o

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ponto de vista do apóstolo, se distinguem dos judeus no aspecto salvífico por vontade divina (Rm 3.1 ss). Entretanto, isso não muda o fato de ambos serem pecadores e o necessitar de salvação.

Em Cristo todos são iguais; não há mais separação, pois todos são um em Cristo, o corpo de Cristo.

^ V. 29 - E se vocês são de Cristo, são descendência de Abraão e herdeiros segundo a promessa. Fundamentalmente a argumentação de Paulo é: se são de Cristo, são também descendentes de Abraão, para quem as promessas foram feitas. Ao dizer que os cristãos são herdeiros da promessa, o apóstolo não quer dizer que eles recebem a promessa da terra feita a Abraão, mas sim, que participam das bênçãos espirituais da justificação por meio da fé, que incluem todos os aspectos da vida cristã, tanto na vida presente como na futura. São herdeiros no sentido absoluto.

A incorporação a Cristo pela fé é ao mesmo tempo uma incorporação ao único “descendente de Abraão”, portanto, equivale a ser recebido na filiação de Abraão, e que, portanto, não é necessário que os cristãos de origem gentílica se submetam à circuncisão.

4 ) 4 .1-20 : Cristo Converteu os Herdeiros em Filhos de DeusO apóstolo, depois de apresentar aos gálatas a questão da herança

em Abraão, da qual a lei era apenas um caminho, passa agora a mostrar a situação deles antes de conhecerem a Deus. Nesse período eram escravos de outros deuses, agora Cristo os libertou dessa escravidão tomando-os herdeiros e filhos de Deus, por isso se torna impossível qualquer recaída.

a) 4.1-3: A situação dos herdeiros antes de CristoNeste texto, Paulo explica outra vez o que foi dito em 3.23-29, mostrando

novamente as características gerais da vida humana antes e depois da vinda de Cristo. Entretanto, a sua ênfase já não está no fato de ser herdeiro, mas no seu significado. Está justificado, pois, utilizar esta seção para aclarar aquela.

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zfcV.l- Digo, porém que, enquanto o herdeiro é menor de idade, em nada difere de um escravo, embora seja dono de tudo. Paulo inicia expressando sua idéia com uma nova comparação tomada outra vez da vida jurídica dos cidadãos, desta vez, ao que parece, servindo-se de situações do direito helenístico. 0 termo herdeiro era usado em inscrições na Ásia Menor para indicar “um filho, após receber a sua herança” como representante de seu pai, subscrevendo todos os direitos e obrigações de seu pai. A expressão “menor de idade” é mais bem traduzida por “alguém sem entendimento”. Aqui descreve um “menor”, em qualquer estágio de sua menoridade (legal). Ainda que o herdeiro, cujo pai está morto, é um menino menor de idade, a sua situação não se distingue da de um escravo. Embora o termo para “menor de idade” não seja um termo jurídico, no conceito rabínico, cujo correspondente é qatan, tem um significado jurídico-religioso de que aqui carece. Não tem direito para dispor dos bens que lhe pertence, ainda que é senhor ou, melhor, possuidor de tudo (v. 12).

# V. 2 - No entanto, ele está sujeito a guardiães e administradores até o tempo determinado por seu pai. Não se sabe por que Paulo menciona duas categorias de inspetores. Guardião é um termo genérico, e se refere à pessoa que é encarregada da educação e dos cuidados da criança, ao passo que administrador é um escravo que agia como mordomo para seu mestre, ou um empregado encarregado das finanças de seu patrão, A submissão mencionada dura até um certo tempo. Era costume no mundo antigo que o pai determinasse um dia certo para o seu filho assumir a idade adulta legalmente. Essa sujeição não significa uma submissão por ausência transitória do pai, mas durante toda a meninice depois da morte dele. Neste caso é, sem dúvida, o direito helenístico o que aqui se supõe que conhece, segundo os papiros, tal limite da tutelaria fixada pelo pai.60 Essas situações concordam bem com o tema utilizado por Paulo, posto que o término da menor idade dos gálatas chegou também por fixação e não pelo natural passar do tempo.

# V. 3 - Assim também nós, quando éramos menores, estávamos escravizados aos princípios elementares do mundo. “Nós” éramos

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parecidos com tais “menores” e isto em dois aspectos. Também “nós” estávamos submetidos a determinados “guardiães” e “administradores” (ou escravos) e, ademais, esta submissão durou até um tempo assinalado. Paulo tem ambos os aspectos ante os olhos, se bem que ressalte só o primeiro. A palavra “menores” como tal não tem relevância alguma. E tomada simplesmente como comparação.

É de grande importância a frase: “estávamos escravizados aos princípios elementares do mundo”. Esse tempo até a vinda da fé foi um tempo de escravidão. Embora a expressão “princípios elementares do mundo” tenha um grande número de interpretações, é mais provável que Paulo pense em primeiro lugar, nas forças elementares dos astros. Esse modo de pensar de Paulo pode ser ilustrado com idéias que aparecem, sobretudo, na literatura apócrifa judaica. Eles falam, por um lado, de uma relação especial e estreita entre os astros e os elementos,61 e por outra parte os astros e “anjos” ou “espíritos”.62 Ali se fala finalmente da exigência de tais seres siderais. Não é certamente uma causalidade que nesta literatura se reprove aos gentios que têm por deuses os astros.63

A tais “princípios elementares”, disse Paulo, que os gálatas estavam submetidos como escravos. Paulo interpreta a situação pré-cristã dos gálatas e dos judeus da mesma forma. Como escravos das forças elementares do cosmo. Ele entende o servir aos elementos, pelos gálatas, analogicamente ao servir à lei por parte dos judeus. Essa equiparação é facilitada pelo fato de que os adversários de Paulo mostravam na sua maneira de pensar, formas religiosas que têm seus paralelos mais próximos às idéias “apócrifas”, podendo relacioná-las com teorias “gnósticas” Por outro lado, os gentios gálatas passaram a observar um tipo de serviço rigoroso de astros, anjos e elementos que não se diferenciava do serviço de habitantes gentios da Ásia Menor. Nesse serviço pode ter existido uma matriz judaico-pré-cristã.

b) 4 .4-7 : Cristo resgatou os herdeirosApós mostrar a situação dos herdeiros antes de Cristo, Paulo passa

agora para outro assunto, que na verdade é uma seqüência do anterior: o resgate dos herdeiros. Para o apóstolo, Cristo veio para resgatar os herdeiros do poder da lei, e isto, no tempo determinado pelo próprio Deus.

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# V. 4 - Mas, quando chegou a plenitude do tempo. A situação de escravidão em que o mundo mantinha os homens, por meio da lei e de seus seres elementares, chegou ao fim.64 O conceito “plenitude do tempo” refere-se ao tempo determinado pelo Pai.65 Deus preparou o mundo para a vinda de seu Filho em uma época determinada na história. O momento como discurso temporal chegou à sua plenitude, ou seja, à sua meta. Significa o encerramento. Pressupõe-se que Deus tem sob seu domínio o tempo e todos os seus “aions”,66 como tudo no mundo, determina a medida de todas as coisas,67 e que leva esta medida à sua realização,68 para que traga o fim deste “aion” ou o começo do futuro.

Deus enviou seu Filho. Segundo Paulo, tal plenitude do tempo trouxe a vinda de Jesus Cristo. Paulo, em nenhum lugar, deixa claro a condição histórica dessa decisão de Deus, de modo que não se pode mostrar por que ocorreu, mas que Deus permitiu que se realizasse.69 O final do tempo se realizou com a aparição do filho de Deus no cosmos.70 Há, pois, que julgar esta aparição como irrupção do “aion” futuro no presente (Hb 9.26), que experimentou assim a privação do poder da sua essência. A aparição de Cristo se apóia no ato do envio divino. Neste contexto revela a denominação “seu filho”, a “pré-existência” do envio divino, ou seja, revela o ser divino que desde sempre lhe é próprio (cf. Rm 1.3,4; 8.3,29,32; 1 Co 8.6; 2 Co 8.9; Fp 2.6,7; Cl 1.13,14). O começo do final do mundo, a conclusão do tempo se revela no envio do Filho de Deus, enquanto eterno fundamento divino, meio e meta do ser.

Nascido de mulher, nascido debaixo da lei. O tempo final é o tempo no qual o “princípio” divino de nosso ser, Jesus Cristo, irrompeu nesta existência. A aparição de Jesus Cristo neste “aion” se fundamenta no ato do envio e consiste na encarnação. O Filho de Deus enviado foi introduzido na natureza do homem determinada pela mulher, como o “nascido de mulher”, que ressalta a verdadeira humanidade do Filho. A sua humanidade pertence não só à natureza, mas também à história. A historicidade de sua aparição ressalta como sendo “nascido debaixo da lei” (submetido à lei). Para Paulo, submeter-se à lei não significa que ele foi obrigado a tal coisa. Aqui, pensa-se na igualdade da sorte do enviado com aqueles em cujo favor havia acontecido o envio.

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% V 5 - A hm de redimir os que estavam sob a lei, para que recebêssemos a adoção de filhos. Essa total entrega do Filho no cosmos, tinha por finalidade libertar aqueles que estavam debaixo da lei. Trata-se, sem dúvida de todos os homens, gentios e judeus. A redenção a respeito da lei é, sem dúvida o pressuposto para receber a filiação, e isto para todos, tanto judeu quanto gentio. Estes foram recebidos como filhos por meio da adoção. A palavra traduzida como adoção é um termo técnico jurídico. Receber a filiação é pois como ocupar o posto de um filho adotivo. Deveria mencionar como meta do envio do filho em realidade o fazer maior de idade. Contudo, a nova posição do homem, a de não ser mais escravo da lei do mundo, acontece a partir do momento em que aceita a Cristo como filho. O homem é livre enquanto está unido juridicamente ao pai por uma arte de direito. O conceito de filiação ressalta a livre ação de Deus não apoiada em existência alguma e ao mesmo tempo, a mediatização da nossa categoria de filhos.

# V 6 - E, porque vocês são hlhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho aos seus corações, o qual clama: ‘Aba, Pai’. A filiação que se fez realidade por meio do envio do filho de Deus, moveu-o para que enviasse aos nossos corações o Espírito dè seu Filho. Deus nos presenteia, pois, não só pelo faj0 jg sermos filhos, mas também a maneira e o saber dos filhos. E nos dá de graça o Espírito. Sua segunda obra de amor não só está fundamentada na primeira, como a complementa. Deus não se conforma com uma ação apenas. Qe enviou seu Filho para que nós chegássemos a ser seus filhos. E porque somos seus filhos Deus enviou também o Espírito de seu Filho. Por meio de Cristo nos tomamos filhos de Deus. Isso agora se manifesta interiormente pelo movimento dos nossos corações.

O “Espírito do Filho” é o Filho mesmo na força de sua presença que conquista o coração do homem (cf. Rm 8.9,10; 2 Co 3.17; Ef 3.16,17). 0 ato de possuir o Espírito do Filho se exterioriza no clamor do próprio Espírito. A palavra krázo designa o grito do orador. Aqui tem o sentido de uma oração pública que proclama no sentido concreto. Esse clamor é: “Aba, Pai” Aqui existe uma justaposição de ambas as formas lingüísticas, com as quais a cristandade de então estava acostumada a invocar a Deus como pai. “Aba” é um termo aramaico usado pelas crianças em casa, com uma conotação bastante íntima

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e carinhosa.710 dom da oração filial faz manifestar-se experimentalmente a condição de filhos em plenitude.

♦ V. 7 - Assim, você já não é mais escravo, mas filho; e, por ser h- Iho, Deus também o tornou herdeiro. O pensamento volta ao versículo 1. Os cristãos adquiriram uma nova posição. Assim como a escravidão e a filiação obviamente se excluem uma à outra, os filhos de Deus não podem ser tampouco considerados escravos de coisa alguma. De acordo com Paulo, pelo fato de sermos filhos de Deus, somos também herdeiros da promessa de Abraão. Deus é o autor de toda riqueza que está à nossa disposição por realmente termos sido adotados como filhos. O apóstolo chama a atenção para o fato de que qualquer herança é exclusivamente em razão da ação graciosa de Deus.

c) 4.8-11: E impossível uma recaídaO ato de se aceitar as pretensões e as imposições dos propagandistas do

judaísmo equivale a uma recaída no serviço aos deuses, que era igualmente um serviço à lei. Continuamente estava a pergunta por trás do que dizia, que imprimia seu sentido prático às idéias até agora expostas. Por isso, o apóstolo lamenta o fato de os gálatas estarem cedendo aos “esforços” missionários de seus adversários. Levando o apóstolo a ficar temeroso se por acaso não havia trabalhado em vão.

# V. 8 - Antes, quando não conheciam a Deus, vocês eram escravos daqueles que, por natureza, não são deuses. A adoção dos gálatas por parte de Deus estava em uma oposição tão profunda com a “anterior” situação, quando ainda não conheciam a Deus, que, se caso atentassem para esse fato veriam que se tornava impossível uma volta à lei. A situação dos gálatas se caracteriza por não conhecerem a Deus e tributar aos deuses uma veneração própria de escravos como todo gentio. Os gálatas tinham um conhecimento de Deus somente através dos deuses (Rm 1.19,20). Desta forma, eles serviam não ao verdadeiro Deus, mas a deuses que pretendiam ser deuses, e aos quais concediam e confessavam ser Deus, pelo fato de desconhecerem o verdadeiro Deus. O cosmos em

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suas forças elementares, pedia com ordens e promessas à veneração que pertence a Deus. Os gálatas lhe concederam tal veneração, que não lhe pertencia, porque esperavam a segurança e o amparo de sua existência pela observação da lei do mundo, a qual se submetiam por desconhecer o Deus criador.

sfê V. 9 - Mas agora, conhecendo a Deus, ou melhor, sendo por ele conhecidos, como é que estão voltando àqueles mesmos princípios elementares, fracos e sem poder? Querem ser escravizados por eles outra vez. O “agora” deste versículo está frente ao “antes” do versículo anterior. Entre ambos está a vinda da fé, que chegou até eles através da pregação ministrada por Paulo. A mensagem da fé trouxe o conhecimento de Deus, que é conhecido através da prática. O conhecimento de Deus não se deu pelo simples fato de terem um conhecimento, mas pela experiência de fé na vida de cada pessoa. Aquele que conhece a Deus pelo evangelho só pode fazê-lo enquanto precedentemente conhecido por Deus no evangelho e desvelado em sua vida.72 E precisamente esse ser conhecido por Deus por meio da mensagem do evangelho, faz com que Paulo tente impedir que os gálatas voltem aos mesmos princípios elementares fracos e sem poder,75 voltando a servi-los como escravos. Eles são impotentes e ilusórios frente ao poder e à vida de Deus e de seu filho, e se vê a veneração desta força e o serviço mais escravizante e mais terrível a deuses superados e caducos.74

Se os gálatas voltassem a ceder à pressão dos adversários, retomariam à escravidão, e desta vez a uma escravidão muito mais dolorosa e subjetivamente muito mais dura, visto que os adversários estipularam inúmeras atividades e práticas que eram maiores e mais pesadas do que aquelas que eles praticavam antes de conhecerem a Cristo.

^ V. 10 - Vocês estão observando dias especiais, meses, tempos de- hnidos e anos. As práticas que os levariam a uma recaída na nova veneração do mundo, ou seja, um novo serviço da lei, deveriam fazer com que analisassem a possibilidade de uma reincidência. E pelo que Paulo

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em forma de pergunta lhes faz ver, um tanto irônico, seus novos deveres. Trata-se de uma escrupulosa observância acerca do começo de certos tempos importantes. Talvez essa observância esteja relacionada a algo pessoalmente religioso. Esse trecho é um eco de Gênesis 1.14 ss, que aparece continuamente no ambiente judaico. Paulo pretende chamar a sua atenção para que percebam que estão cedendo aos caprichos dos seus adversários. Essas exigências denotam por sua tendência e seu conteúdo, uma espécie de judaísmo, cuja forma encontramos principalmente no livro de Hen Et, que se caracteriza como “o livro do curso dos astros”, em que o autor diz ter recebido do anjo Uriel, ensinando sobre o que “ocorre com todas suas leis, todos os anos do mundo até a eternidade, até que venha a nova criação que dura para sempre” (Hen Et 72.1).75

Com o livro de Hen Et está relacionado como se sabe o livro dos Jub, que se interessa muito pelo calendário exato, o do sol. Aqui também aparece lugares que recordam este versículo.76 Com o livro dos Jub se relaciona também as idéias da comunidade de Qumrã, para a qual o calendário solar pertence igualmente aos segredos da lei, por cujo conhecimento e observância se distinguem o verdadeiro e falso Israel (1QS 1.13,14; 10.1,2; 1QM 2.4; 10.15; 14.12,13; Dam 3.12,13; 10.14,1516.1,2).

Os adversários de Paulo deveriam estar impregnados por essas idéias as quais exigiam dos gálatas o que Paulo denomina de “dias especiais, meses, tempos definidos e anos”, cumprimento de certos rituais, fruto de reincidência de um passado gentio e, ao mesmo tempo, com submissão à lei criada pelos homens. Em Colossenses 2.16-23, encontramos a prova de que também em outras comunidades se introduziam as mesmas idéias.

Os “dias especiais” podem ser sábados, dias de jejum, dias de festa, os dias que intercalavam no calendário, dias supersticiosos etc. “Meses” são os meses com divisões temporais, lua nova etc. “Tempos definidos” podem ser as festas: Páscoa, Festa das semanas e a dos Tabernáculos, ainda que, também se trate das quatro estações ou, mais exatamente, como é o caso para os meses, dos começos das estações. Quanto a “anos” dificilmente são os anos santos prescritos na lei, o ano sabático e jubilar. Não se sabe se sua observância haja tido papel prático algum e ainda mais fora

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da Palestina. A menção na lista indica que Paulo descreve de forma geral e quase formalisticamente as realidades em que se centrava a observância legal dos gálatas. Precisamente a forma irônica de mostrar aos gálatas — sem que exclua a seriedade — de modo geral a variedade das coisas que são exigidas deles, dando a entender a impossibilidade de uma recaída na lei e o fato de passar a depender dela.

# V 11 - Temo que os meus esforços por vocês tenham sido em vão. A palavra traduzida por “esforços”, traz a idéia de um trabalhar até ficar exausto. A situação de Paulo é como se ele tivesse levado inutilmente o evangelho aos gálatas. O tempo verbal usado pelo apóstolo é o indicativo, que indica que a ansiedade é dirigida a algo que já aconteceu.77 O texto ressalta a preocupação de Paulo pela sua causa e pelo fato de haver se esforçado em vão pelos gálatas. O esforço do apóstolo teria sido inútil se eles se submetessem novamente à lei.

d) 4 .12-20: A perplexidade do apóstoloPaulo se mostra perplexo com a atitude dos gálatas que se deixam

levar facilmente pelas exigências dos mestres judaizantes, os quais querem que todos pratiquem as obras da lei, deixando de lado o princípio fundamental da mensagem paulina, que é a fé em Cristo. Por isso, Paulo formula um novo argumento, relembrando aos gálatas da antiga relação que ele tinha com todos. O apóstolo apela para o coração, utilizando a força do sentimento, como indica o raciocínio entrecortado.

# V 12 - Eu lhes suplico, irmãos, que se tornem como eu, pois eu me tomei como vocês. Em nada vocês me ofenderam. Paulo introduz o texto exortando-os para que se tornem igual a ele.78 O apóstolo apela aos gálatas para se tomarem como ele no que diz respeito à liberdade da lei e à liberdade que eles têm como filhos de Deus. Aqui, Paulo espera que eles se interessem especialmente pela liberdade frente à lei, ou seja, na liberdade dos filhos de Abraão. Essa exigência, que é mais uma súplica, está no fato de que o próprio Paulo, quando da sua missão entre eles, tornou-se igual a eles. Paulo certamente está pensando no acontecimento registrado em 1 Coríntios 9.21, quando diz que se fez sem lei para os que estavam sem lei, para ganhar os que não tinham lei. Isso não fez só por acomodação práti-

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ca, mas por uma decisão dc princípio, posto que renunciou à lei enquanto caminho salvífico. Isso permitiu que se abrissem caminhos aos povos aos quais Paulo pregava a mensagem do evangelho.

# V. 13 - Como sabem, foi por causa de uma doença que lhes preguei o evangelho pela primeira vez. De todo o passado, ressalta, remetendo ao próprio saber dos gálatas, o tempo de sua primeira pregação entre eles.79 A expressão “pela primeira vez” refere-se ao primeiro encontro com os gálatas, registrado em Atos 16.6. “Por causa de uma doença” indica a ocasião em que Paulo pregou aos gálatas. Foi uma enfermidade que fez com que o apóstolo lhes pregasse a mensagem do evangelho.80 Quanto ao tipo de enfermidade, pode se pensar em ataques epiléticos ou histéricos, que nem sempre eram bem distinguidos na antigüidade, confundindo-os quase sempre com possessões demoníacas.

# V. 14 - Embora minha doença lhes tenha sido uma provação, vocês não me trataram com desprezo ou desdém; pelo contrário, receberam- me como se eu fosse um anjo de Deus, como o próprio Cristo Jesus. Essa enfermidade não fora para os gálatas obstáculo algum para aceitar o evangelho, antes uma oportunidade de demonstrar seu amor. Eles reconheceram no enfermo o mensageiro da salvação, por isso não o depreciaram, nem o afastaram. Ainda mais: venceram inclusive seu temor ante o enfermo possuído pelo demônio, segundo suas idéias. A palavra ekptuo (desdém) é o gesto que expulsa os males e que usavam contra os influxos demoníacos de enfermos, sobretudo de epilético e de outros pacientes. Pode também referir-se a desprezo ou zombaria, ou pode ser uma referência à tentativa de se proteger dos maus espíritos. Refere-se também ao fato de que eles não trataram com desdém (cuspiram) a mensagem pregada por Paulo. Livraram-se do espanto ou do preconceito e reconheceram no atacado do demônio: “um anjo de Deus”. A expressão “anjo de Deus”81 salienta que não se trata de um “anjo de satanás”, mas um anjo do próprio Deus. O apóstolo foi recebido como o próprio Cristo. Assim reconheceram o Senhor que veio a eles em seu apóstolo.

# V. 15 - Que aconteceu com a alegria de vocês? Tenho certeza que,

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se fosse possível, vocês teriam arrancado os próprios olhos para dá-los a mim. E não só isso. Felicitavam-se de que veio a eles. Assim deve ser entendido o versículo 15. A conduta dos gálatas corresponde à felicidade por ter o anjo de Deus no meio deles, por ter Jesus Cristo entre eles. Paulo pode dar testemunho deles de que lhe deram o melhor que tinham, que por ele, fizeram tudo. Assim se entende comumente a expressão: “se fosse possível, vocês teriam arrancado os próprios olhos para dá-los a mim”. Isso é correto pelo fato de que, na antigüidade, os olhos quase sempre eram colocados como exemplo de uma das coisa mais valiosas que o homem podia ter.82 E mais provável que a expressão deva ser tomada literalmente e não de forma figurada, pelo fato de Paulo tê-la elegido em relação à sua enfermidade que talvez tratava-se de dificuldades visuais devido ao histerismo ou a epilepsia.

# V 16 - Tornei-me inimigo de vocês por lhes dizer a verdadef Se os gálatas foram então bem cordiais com o apóstolo, que o receberam como Cristo, apesar de sua enfermidade, e se lhe foram tão afetivos, que lhe ajudaram em todos os sentidos, felicitando a sua vinda, não há, agora, outra explicação para a mudança de sua postura para com ele. A não ser que se fez seu inimigo pela pregação anterior da verdade. Paulo pregou-lhes o evangelho livre da lei. A substância do evangelho manifestada contra a observância da lei, precisamente este desenvolvimento da verdade parece fazê-lo, de fato, inimigo dos gálatas,85 a ponto de alimentarem um certo ódio pelo apóstolo.84

•# V. 17 - Os que fazem tanto esforço para agradá-los, não agem bem, mas querem isolá-los a hm de que vocês também mostrem zelo por eles. Paulo não espera contestação à pergunta que propôs, por isso passa a falar imediatamente daqueles que procuram agradar a comunidade. O apóstolo conhece os culpados, assim como os gálatas, por isso não necessita nomeá-los e caracterizá-los com mais detalhes. A própria conduta dos falsos mestres já qualifica um mau zelo pelos gálatas, cujo fim era “isolá-los”. Isso significa que os adversários de Paulo reforçam sua exigência da circuncisão com ameaças de exclusão da comunidade. Tal atitude significa que os judaizantes querem ser buscados como conhece-

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dores e conselheiros em assuntos da lei. Assim, se a lei ocupa o lugar da graça, eles ocupam o lugar não só do apóstolo, mas de Cristo.

# V 18 - É bom sempre ser zeloso pelo bem, e não apenas quando estou presente. Isso quer dizer que o apóstolo ao rechaçar o zelo com que seus adversários desejam ser buscados, não pretende condenar todo zelo nem o zelo como tal. Paulo procura lembrar-lhes que é importante ter zelo pelas coisas de Cristo, mas que isso não deve acontecer somente quando ele está presente, mas em todas circunstâncias. O fato de eles serem zelosos é para que não se deixem ser enganados pelos falsos mestres.

# V. 19 - Meus filhos, novamente estou sofrendo dores de parto por sua causa até que Cristo seja formado em vocês. Paulo estava em perigo de falar com sarcasmo e amargura. Porém, domina seu ímpeto e volta insinuante às comunidades gálatas com uma frase cordial e triste ao mesmo tempo. Ao começar o parágrafo Paulo chamou os gálatas de “irmãos” e agora os chama de filhos, um nome que seus adversários certamente não lhes podem dar. As dores de parto continuarão até que Cristo se forme neles pela segunda vez, até que nasça neles o corpo de Cristo.85 Tal atitude dos gálatas seria o mesmo que ter sido em vão a primeira obra missionária de Paulo entre eles, por isso faz-se necessário uma nova. Paulo pensa nos membros da comunidade em geral e não em alguns somente, em cujos corações Cristo habita, ainda que naturalmente, o conhecimento do evangelho paulino.

# V. 20 - Eu gostaria de estar com vocês agora e mudar o meu tom de voz, pois estou perplexo quanto a vocês. A insistência de Paulo se torna ainda mais nítida. Se ele estivesse presente, poderia intervir melhor. Porém, se também pudesse mudar o seu tom de voz, poderia também conseguir uma mudança. A expressão “mudar o tom de voz” dificilmente se refere à cordialidade de seu discurso. Embora quisesse estar com eles e falar de forma mais branda e mansa, adotar um tom totalmente distinto da palavra escrita. Paulo desejaria convencer os gálatas usando palavra viva, mantendo uma relação mais cordial. O apóstolo já não sabe o que fazer,

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sente o encantamento que paira sobre as comunidades, o qual não pode romper completamente com suas palavras.

5) 4.21-31: O Cristão não É Filho da Escrava, mas da LivrePaulo tenta outra vez convencê-los com um argumento objetivo. Faz

um esforço para aclarar a questão existente entre os cristãos gálatas, mediante uma exegese detalhada. Segundo a redação, a impressão é que este argumento só ocorreu a Paulo posteriormente. Ele se utiliza de uma alegoria86 para mostrar que os gálatas são agora filhos da livre, e, portanto, herdeiros da cidade celestial, enquanto que aqueles que ainda exigem práticas da lei, como necessidade para justificação, são filhos da escrava.

a) 4.21-23: Os filhos de AbraãoDepois de vários argumentos na tentativa de entender a atitude dos

gálatas, o apóstolo parte para algo mais radical. Ele se utiliza do exemplo dos filhos de Abraão para mostrar a realidade da escravidão e da liberdade, mostrando que se realmente quisessem se submeter à lei deviam também conhecê-la com mais profundidade.

^ V. 21 - Digam-me vocês, os que querem estar debaixo da lei: Acaso vocês não ouvem a lei? Com toda energia e com uma insistência que faz lembrar 3.1,2, Paulo pede a seus leitores que lhe dêem conta de sua postura partindo da lei. Os gálatas querem viver segundo os preceitos da lei. Contudo, se estão a ponto de submeter-se a ela, então, devem lhe dar ouvidos. Do contrário, só seriam inconseqüentes em seu projeto ou demonstrariam ter uma vontade indecisa. Para se submeter verdadeiramente à lei é preciso conhecer suas prerrogativas e suas conseqüências.87 Ao chamar a Escritura de lei, tem sua razão de ser na intenção com que se refere a ela. Precisamente a parte da Escritura que toma seu nome da lei, debaixo da qual querem estar, ensina que os homens da lei e os cristãos estão separados em último termo por vontade e ordem de Deus. A expressão “não ouvem a lei?” pode ser entendida no sentido de não somente ouvir como também obedecer. E como se Paulo lhes dissesse: “Vocês se alegram por estar debaixo da lei, mas, por acaso, estão escutan-

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GÁLATAS CO M EN TÁRIO

do o que ela diz sobre a presente situação?”

♦ V. 22 - Pois está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava e outro da livre. Há uma razão especial para o uso da fórmula autoritária: “está escrito”, depois do apóstolo ter apelado a eles no sentido de não somente ouvir a lei, mas lhe obedecer. A lei fala de dois filhos que Abraão teve. Paulo fixa sua atenção somente em Ismael e Isaque.88 Os filhos de Abraão se distinguem essencialmente um do outro: um nasceu da livre e outro da escrava. E importante notar que Paulo não cita inicialmente Sara e Hagar pelo nome, porque deseja chamar atenção para as categorias às quais pertenciam. O que interessa por enquanto é ressaltar a categoria de escravo de Ismael, e a de livre, de Isaque.

♦ V. 23 - O filho da escrava nasceu de modo natural, mas o filho da livre nasceu mediante uma promessa. Aqui aparece outra diferença. Não só são distintos as mães dos filhos, como também o modo do nascimento. O filho nascido da serva foi gerado segundo a carne. Isso significa o oposto da promessa, que se realizou no marco natural e em força da vontade natural (Rm 1.3; 9.5), posto que o nascimento é de um efeito permanente. O filho nascido da livre foi gerado “mediante a promessa”, promessa divina que está narrada em Gênesis 15.4; 17.16,19; 18.10, a qual foi a causa primária da existência de Isaque, de modo que se fundamenta essa existência na promessa de Deus e não na posição natural.

A promessa foi o poder criador, pelo qual Abraão, já velho, chegou a ser pai de Isaque. E tudo o que pode dizer, posto que Paulo não pára para meditar sobre a relação de uma intervenção de Deus na ação do pai ao gerar Isaque. Em conjunto é seguro o seguinte: visto de fora, ou seja, no referente à manifestação humana, ambos os filhos eram iguais; porém, considerando a origem de suas existências, se distinguiam qualitativamente um do outro.

b) 4 .24 ,25 : A escravidão cm HagarPaulo inicia uma nova seção, onde procura apelar aos filhos de Abraão

utilizando-se de uma alegoria, como sendo mais do que uma ilustração útil de uma verdade espiritual. O apóstolo está usando um evento his-

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tórico como exemplo.89 A principal intenção do apóstolo é mostrar aos gálatas que aqueles que vivem pela lei são na realidade filhos da escrava.

V. 24 - Estes eventos são usados aqui como ilustrações; estas mulheres representam duas alianças. Uma aliança procede do Monte Sinai e gera filhos para a escravidão: esta éHagar. Naturalmente que Paulo, ao se utilizar de uma interpretação alegórica, negue que tanto as mulheres como os filhos de Abraão sejam pessoas fictícias, pelo contrário, eles a consideram pessoas concretas. Isso pode significar “falar alegoricamen- te”, e também “interpretar alegoricamente”. Como tais podem ter também significado histórico-salvífico (cf. Rm 4.9).90 Aqui o que importa a Paulo é que as pessoas mencionadas são manifestações pré-anunciantes, cuja essência se revela só ao aparecer aquilo a que elas encaminham. As duas mulheres são duas “alianças”. A linha de pensamento de Paulo transfere- se dos filhos para as mães, embora ainda não tenham sido mencionados pelos respectivos nomes, uma das mulheres é a aliança que procede do monte Sinai, a qual dá à luz conduzindo à servidão. Os que estão incluídos nela adquirem o estado de escravos submetendo-se à lei. Para os judeus, a lei do Sinai foi concedida aos descendentes de Abraão através de Isaque e nada tinha a ver com os descendentes de Hagar. Para Paulo, tal pacto é Hagar.91

♦ V. 25 - Hagar representa o Monte Sinai, na Arábia, e corresponde à atual cidade de Jerusalém, que está escravizada com osseushlhos. Ao que parece, Paulo se utiliza de todas as formas para fazer a conexão de Hagar com o monte Sinai.92 Entretanto, o sentido já não é claro e a exegese é muito difícil, pois existe uma grande variedade textual. Embora se tentou dar uma interpretação coerente, o sentido do versículo 25a tem de ficar na obscuridade, e com ele o fundamento e a razão que fizera Paulo identificar Hagar com o pacto do Sinai.

Para Paulo o mais importante não é a identidade alegórica, mas o fato de que Hagar (= monte Sinai) representa para ele a escravidão experimentada por aqueles que vivem debaixo da lei. O sujeito do versículo 25b é Hagar, e também do final do 24. Ela coincide com atual cidade de Jerusalém,95 que

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G á l a t a s C o m e n t á r i o

embora esteja no país da promessa, não é o lugar para a realização da promessa feita a Abraão, pois vive na escravidão, da mesma forma que seus filhos.94

c) 4.26-31: Som os filhos da livreApós fazer uma exposição sobre a escravidão em Hagar, o apósto

lo volta agora para a questão que acha mais importante: a liberdade em Isaque. Os versículos 26-31 são uma apologia de Paulo na tentativa de mostrar que os cristãos são filhos da livre, e por isso, pertencem a Jerusalém do alto. A liberdade daqueles que pertencem a esta Jerusalém está em contraste marcante com a escravidão por causa da lei e se constitui numa antítese que é integrante ao tema da carta.

^ V. 26 - Mas a Jerusalém do alto é livre, e esta é a nossa mãe. Paulo não continua com o raciocínio feito até agora. Salta ao enunciado seguinte, o que ele considera mais essencial no contexto, tanto para ele quanto para os leitores: a “Jerusalém do alto”, que é livre, portanto, não está submetida à lei. Os gálatas são seus filhos, como se vê pela Escritura. Paulo toma da tradição judaica o conceito “Jerusalém do alto”,95 que se baseia nas promessas do Antigo Testamento referentes a uma reedificação escatológica da Jerusalém terrena.96 Mais próximo está a idéia da “Jerusalém do alto” com ditos segundo os quais a Jerusalém antiga, a terrena, é substituída por uma nova, descida do céu.97 Tratava-se evidentemente de uma figura de linguagem que teria significado até mesmo para os leitores gentios.

A imagem apresentada por Paulo é de uma Jerusalém existente no céu, preexistente, cujo exemplo mais claro encontramos em 4 Esd: “pois para vós está aberto o paraíso e plantado a árvore da vida, preparado o aion futuro, destinada a felicidade, edificada a cidade, elegida a pátria, feitas as boas obras, aparelhada a sabedoria” (4 Esd 8.52). Essa idéia é a mais parecida com a de Paulo. Sua terminologia é sumamente parecida com a dos rabinos. Para o apóstolo, Jerusalém do alto é também o novo “aion”. Ele afirma que o novo povo de Deus, que são os cristãos, que receberam sua vida desta Jerusalém celeste, são representados como os filhos. A Jerusalém celeste, portanto, já está presente na igreja cristã. Ao crescer o povo de Deus sobre a terra, multiplica-se o número dos filhos

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A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ

da mãe celeste e, conseqüentemente, o número de habitantes da Jerusalém celeste. A comunidade cristã é agora a cidade celeste em parte presente, que se consumará no futuro.

E importante ressaltar que Paulo contrapõe radicalmente esta “Jerusalém do alto” com a “Jerusalém terrena”.98 A Jerusalém de agora é terrena, imperfeita e já está destruída, ao passo que a Jerusalém do alto, a que vive a igreja, é, pelo contrário, o reino que domina em liberdade sobre o fundamento da mesma promessa divina.

# V 27 - Pois está escrito: Regozije-se, o estéril, você que não tem filhos; grite de alegria, você que não tem dores de parto;porque são mais numerosos os filhos da abandonada do que os daquela que tem marido. Para mostrar que a Jerusalém de cima é a mãe dos cristãos, o apóstolo cita a profecia de fsaías 54.1, onde o profeta antevê a maior prosperidade da Jerusalém restaurada em comparação com a antiga. Paulo considera esse cântico como sendo uma ilustração da fertilidade de Sara em comparação com a de Hagar. Sara mesmo tendo sido estéril e depreciada, logo chegou a ser a mãe do grande povo de Deus. E possível que Paulo tenha chegado a tais conclusões partindo do acervo da tradição judaica, que interpretava tal palavra como promessa referente à nova edificação deslumbrante da Jerusalém destruída.99 Uma vez que em Isaías 54.1 é prometido a renovação escatológica de Jerusalém ou de Sião, Paulo interpreta com mais exatidão do que os rabinos.

sjs V. 28 - Vocês, irmãos, são hlhos da promessa, como Isaque. Aqui termina as provas aduzidas. Paulo, dirigindo-se novamente aos gálatas, chamando-lhes a atenção para o fato de que agora são “filhos da promessa”, da mesma forma que Isaque. No texto grego a palavra traduzida como “promessa” é epangelia, e é enfática por causa da sua posição e deve ser um retrospecto das referências às promessas feitas anteriormente na carta.

# V. 29 - Naquele tempo, o hlho nascido de modo natural perseguia o hlho nascido segundo o Espírito. O mesmo acontece agora. Na comparação que Paulo faz, refere-se a um incidente que não ocorre na narra-

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GÁLATAS CO M EN TÁRIO

tiva do Antigo Testamento. O fato de a Igreja sofrer perseguições anula a promessa da qual ela é portadora. A perseguição é a melhor prova de sua identidade como filhos de Sara. Paulo pensa na perseguição dos cristãos pela sinagoga, como ele mesmo fizera, que supõe uma tentação perigosa para os gálatas. Na perseguição pelos judeus incrédulos se cumpre o que então aconteceu em protótipo: Ismael nascido segundo a carne, perseguia a Isaque, nascido segundo o Espírito, como surpreendentemente está acontecendo agora. “Nascido segundo o Espírito” difere de modo relevante da declaração semelhante no v. 23, onde o filho nascido segundo a carne é contrastado com o Filho nascido segundo a promessa. A mudança de “promessa” para “Tispírito” demonstra que Paulo transfere a expressão apropriada do passado para o presente, da promessa para o cumprimento. O ato de ser filho de Deus e da Jerusalém do alto foi possível graças ao Espírito de Deus e de Cristo que lhes foi dado.

# V. 3 0 - Mas o que diz a Escritura? A perseguição sofrida pelos gálatas não irá prejudicá-los, pois na Escritura encontramos um protótipo em Ismael e Isaque, filhos de Hagar e Sara. 0 apóstolo lança mão de uma alegoria para dar fundamentação à sua argumentação. Ele decide responder por meio da Escritura, que os judeus reconheciam plenamente às alegações de seus adversários. Por isso Paulo coloca a frase em forma de pergunta para ressaltar o dito.

Mande embora a escrava e o seu filho, pois o filho da escrava não será herdeiro com o filho da livre. A citação feita por Paulo é de Gênesis 21.10, segundo a LXX com insignificantes variações.100 A relação com o conjunto de sua exposição é o que unicamente ressalta. Paulo mudou a expressão “com meu filho Isaque”, para “o filho da livre”. A ação exigida por Sara, que foi levada a efeito, está no fato de se acabar com a hostilidade de Ismael em relação a Isaque, e Paulo a vê como símbolo da situação vivida pelos gálatas. 0 que era necessário entre os gálatas era uma ação igualmente firme para impedir que a liberdade cedesse lugar à escravidão. Cumpre-se agora o que a Escritura anunciara. E, precisamente agora, quando a escrava e o seu filho abandonam a casa e a herança de Abraão, que a livre e seus filhos recebem a herança — a herança do Espírito.

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A JU STIFICAÇÃO PELA FÉ

♦ V. 31 - Portanto, irmãos, não somos filhos da escrava, mas da livre. O apóstolo apresenta neste versículo a segunda e última conclusão, que se refere ao conjunto do argumento da Escritura, encontradas nos versículos 24,25,29. Ao empregar a palavra “irmãos” inclui todos os cristãos verdadeiros e exclui todos os filhos de Hagar. Paulo procura deixar claro que os cristãos, e aqui estão incluídos os gálatas, não são filhos de uma escrava, mas da livre. A firme convicção do apóstolo é que os cristãos nasceram para a liberdade, porque Cristo é o libertador.

6) 5.1-12: Fomos Chamados para a LiberdadeAqui começa uma longa seção que se estende até o versículo 12, em que

Paulo mostra que os gálatas foram chamados não para viverem uma vida de escravidão, quando teriam de cumprir diversos e variados rituais ou práticas, mas para viverem em total liberdade, pois foi para isso que eles foram salvos.

a) 5.1-3: O jugo da escravidãoNos três versículos que se seguem, o apóstolo fala da liberdade e sua

implicação se caso os gálatas aceitassem a circuncisão. Para o apóstolo, a prática da circuncisão é algo que somente escraviza, e se caso viessem a aceitá-la, tudo o que eles aprenderam ou creram sobre Jesus perde todo o seu valor. Cristo de nada aproveitará se adotarem práticas da lei.

# V 1 - Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Aqui parece, à primeira vista, haver repetição; mas sem dúvida o apóstolo quer ressaltar a in- congruidade de qualquer outro resultado. Por meio da lei a existência humana fica na ignorância, fica fundada sobre a falsidade de suas promessas e, portanto, sobre a falsidade dos esforços com que se lhe serve. Finalmente, a liberdade que liberta do pecado e da mentira,101 libertando da lei e também da morte (Rm 7.9-11; 5.21; 5.12; 6.21,23; 1 Co 15.56). A libertação por Cristo ocorre naturalmente na entrega de sua vida (G11.14; 2.20, 3.13; 4.4). Paulo pensa aqui no acontecimento histórico da cruz de Cristo, pelo qual tanto os gálatas quanto todos os cristãos foram chamados “para a liberdade”. Não se toca aqui na questão da imputação e aprovação da liberdade.

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GÂL.ATAS CO M EN TÁRIO

Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão. A conseqüência que se deduz do fato da liberdade outorgada por Cristo é que os gálatas devem permanecer firmes nela. A palavra liberdade é usada aqui no sentido absoluto.102 Eles são exortados, com base na liberdade em Cristo, a tomar posição firme. A utilização da palavra “submeter”, que aqui é de uso passivo, tem um sentido de “não permitir que um novo jugo seja imposto sobre eles”. O uso da palavra “novamente (palin) refere-se ao estado anterior dos gálatas”. Dobrar-se debaixo do jugo da escravidão, novamente, contradiz a situação de liberdade em que os gálatas foram colocados pela ação de Cristo. Paulo desejava guardá-los da recaída.

^ V. 2 - Ouçam bem o que eu, Paulo, lhes digo. Em muitas ocasiões o apóstolo apela à sua própria posição ou a seu próprio testemunho, e não há dúvida de que ele pretende fazer com que a sua declaração seja considerada como portadora de autoridade. Essa expressão é muito significativa no grego e, por ocorrer somente aqui nos escritos de Paulo, deve ser razoavelmente suposto que o apóstolo a emprega para chamar atenção sobre uma questão de especial importância. Ele, certamente, deseja que seus leitores entendam que ele está fazendo um apelo intensamente pessoal.

Caso se deixem circuncidar, Cristo de nada lhes servirá. Paulo chama primeiramente a atenção que Cristo de nada aproveitará ou servirá aos gálatas se eles se deixarem circuncidar. Paulo imprime o peso de sua autoridade a esta idéia; e sua autoridade tem aqui muito peso. O que Paulo não mencionou até o momento, embora estivesse com isso em mente, ele o faz agora. O fato de expressar-se de modo hipotético sugere que os gálatas ainda não sucumbiram à pressão dos adversários de Paulo. O apóstolo deixa claro que se a circuncisão for uma necessidade para a salvação, a obra de Cristo seria insuficiente; e, se for assim, não teria então proveito para aqueles que confiam na circuncisão. Se aderirem às prerrogativas dos propagandistas estarão se submetendo a um sistema legal do qual o próprio Cristo os libertou.

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A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ

# V 3 - De novo declaro a todo homem que se deixa circuncidar que está obrigado a cumprir toda a lei. A expressão “de novo” ipalin) introduz uma consideração adicional cujo objetivo é dissuadir os gálatas de se submeterem à circuncisão. O apóstolo lembra aos gálatas que se permitirem a circuncisão, terão como prêmio não a liberdade, mas toda a lei para ser cumprida.103 Paulo pretende impressionar aos gálatas com a total insensatez da ação que eles estão prontos a praticar. A inutilidade de Cristo para os gálatas que se deixam circuncidar tem seu fundamento no fato de que deverão cumprir todo o sistema legalista. Todos os homens têm algum tipo de obrigação, mas comprometer- se a observar a totalidade da lei era colocar-se em sujeição a algo intolerável, conforme experiência do próprio Paulo.

b) 5 .4 -6 : A fé ativaO evangelho pregado por Paulo está baseado na fé e não na lei. Qual

quer tentativa de se justificar pelas obras da lei será nula, pois o sacrifício de Cristo foi único. Com o seu sacrifício, tanto a circuncisão quanto a incircun- cisão não tem nenhum valor. A validade do sacrifício de Cristo está na fé, que vem pelo amor.

^ V. 4 - Vocês que procuram serjustiÉcados pela lei, separaram-se de Cristo; caíram da graça. O apóstolo apresenta mais uma justificativa para o viver livre de cada membro da comunidade. Quem se circuncidar não só deixará de experimentar a ajuda de Cristo no juízo, como também, atrairá a maldição sobre si, que é o cair da graça, porquanto intenta justificar-se pela lei.104 Em primeiro lugar, os gálatas em tal caso estão longe ou separados de Cristo, ou seja, não estão em Cristo. Em segundo lugar, em assim fazendo estão perdidos, havendo selado seu aniquilamento. A palavra traduzida por separar traz um sentido de “tornar inativo”, “destruir”, seguido pela preposição “estar separado de”, “estar cortado de”. A palavra “lei” significa “as obras da lei”. Quando os gálatas procuram se justificar pelas obras da lei ocorre não somente a perda dos benefícios da obra de Cristo que está envolvida, mas a separação do próprio Cristo, ou seja, a apostasia.105 Tentar ser justificado pela lei é rejeitar o caminho

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da graça. Esta é a conseqüência de se aderir ao sistema legal. A palavra “graça” indica tudo o que Cristo fez por eles. Envolve o favor gratuito de Deus. Abandonar a graça pelas obras da lei é como virar as costas a um dom gratuito, e nada pode ser mais trágico do que isso.

# V. 5 - Pois é mediante o Espírito que nós aguardamos pela fé a justiça que é a nossa esperança. Em certo sentido este versículo chama a atenção sobre pronome “nós” — os cristãos ou aqueles que estão em Cristo esperando por outro caminho a justiça, o que na realidade nos interessa. O sentido é de esperar ansiosa, mas pacientemente por algo ou alguém. Trata-se do caminho que sempre parte da fé, o caminho que andamos “no Espírito”, o caminho no qual aguardamos a justiça. O apóstolo volta ao tema da fé que tanto enfatizara na parte anterior da carta. Ele está ansioso, receando que eles se esqueçam da sua base de aceitação, e assim refere-se à própria posição deles. Para Paulo a “justiça” é o objeto da esperança.106 A força recai sobre a palavra “esperança”, a qual, ao contrário do sentido atual, denota uma forte certeza. Em contraste com a volta à escravidão, pelos gálatas, o apóstolo estava zelosamente antegozando a plena posse daquela justiça que herdara pela fé.

# V. 6 - Porque em Cristo Jesus nem circuncisão nem incircuncisão tem efeito algum. Este versículo fundamenta o v. 5 e indiretamente o v. 4. O posicionamento de Paulo não é tão claro. Sua importância está na contraposição de “lei” e “fé”. Aqui, o apóstolo define claramente a quem deseja indicar com a palavra “nós” do versículo 5. A frase “em Cristo Jesus” é mais expressiva do que o adjetivo “cristão”, porque há um sentido de “permanecer em”, especialmente relevante para o propósito de Paulo neste ponto. O apóstolo deseja deixar claro que não há mais virtude em ficar num estado de incircuncisão do que de circuncisão. Para quem está em Cristo, isto é simplesmente irrelevante.

Mas a fé que atua pelo amor. A combinação entre fé e amor é altamente relevante. A fé na sua forma abstrata não basta, esta deve ser seguida pelo amor. Aqui, Paulo delonga no aspecto ético da fé cristã. Não basta a fé, é preciso que esta seja uma atuação através do amor. E a pri-

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meira vez que o apóstolo utiliza a palavra ágape. O amor é precisamente a realização da justiça, porque é o cumprimento da lei.107 E por outro lado, também o justificado “na lei” conhece a justiça como esperança.

c) 5.7-12: Sede seguidores da verdadeApós dizer que o seu evangelho está baseado na fé e não na lei, no qual

qualquer tentativa de se justificar pelas obras da lei seda nula, Paulo chama a atenção dos gálatas para que eles sejam seguidores da verdade (do evangelho), e não de simples imposição de preceitos que os adversários exigem deles.

# V 7 - Vocês corriam bem. Quem os impediu de continuar obedecendo a verdade? Depois de advertir os gálatas dos perigos da circuncisão, pois a tentativa de cumprimento da lei só trará para eles o afastamento de Cristo e de seu sacrifício por todos, Paulo lhes recorda que antes se portavam bem como cristãos. Para fazer-lhes lembrar dessa época, o apóstolo se utiliza de uma pergunta, que mais parece uma acusação: antes “vocês corriam bem”. Antes eles corriam sem nenhum obstáculo na sua vida cristã, agora, entretanto, foram impedidos na sua boa carreira. O quadro é o de um corredor que deixou seu progresso ser bloqueado, ou que ainda está correndo, mas no percurso errado: “Quem os impediu de continuar obedecendo à verdade?” Essa pergunta expressa a surpresa de Paulo pelo fato dessa grandiosa caminhada ter sido interrompida. Apenas se pode imaginar quem teria impedido que eles obedecessem à verdade.108 A verdade é, sem dúvida, a verdade do evangelho: a justificação em Jesus Cristo pela fé que atua no amor de Deus, justificação explicitada contra os adversários. Obedecer a essa verdade significa um aprimoramento na boa carreira da fé.

# V. 8 - Tal persuasão não provém daquele que os chama. Nesse versículo, Paulo ressalta que a persuasão, causa da interrupção da boa carreira, não procede daquele que os chamou.109 Nessa persuasão não se escuta a voz atraente de Deus, mas uma chamada demoníaca.110

V. 9 - Um pouco de fermento leveda toda a massa. Como ocorre no versículo anterior, esse carece igualmente de união com a frase que

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o precede. Aqui Paulo cita uma halaká de Gamalielsobre a fermentação da massa, encontrado em M. Orla 2 .12 .0 fermento deve ser relacionado, especialmente, com a doutrina dos adversários na Galácia que ameaçava e que, ministrada em pequenas doses, com uma exigência, a da circuncisão, corrompe toda a verdade e, conseqüentemente, toda a fé.

# V. 10 - Estou convencido no Senhor de que vocês não pensarão de nenhum outro modo. Aquele que os perturba, seja quem for, sofrerá a condenação. A expressão “não pensarão de nenhum outro modo” não se refere certamente ao versículo 9, como se o apóstolo quisesse dizer que eles estariam sem dúvida de acordo com ele; tampouco se refere ao versículo 8, de modo que eles, segundo esperava o apóstolo, concordam com seu juízo sobre os intentos dos adversários. O conteúdo da frase é que os gálatas não devem se deixar levar por outra “verdade”, que não obedeçam a nenhuma outra mensagem que não a sua e a ele mesmo. Significa que entre eles deve vigorar um mesmo modo de pensar em relação ao evangelho (cf. Rm 12.16; 15.5; 2 Co 13.11; Fp 2.2; 4.2). Paulo está convencido de que eles se manterão na verdade: “estou convencido no Senhor”. Esta confiança constitui a base de sua esperança. Essa fé que Paulo tem “no Senhor” em relação aos gálatas, pressupõe também que eles, ainda, não haviam tomado uma decisão definitiva. Para os adversários, não acontece a mesma coisa, pois são defensores de uma ponto de vista que é contrário ao evangelho, por isso o que resta é somente anunciar a condenação que pesa sobre eles.

# V. 11 - Irmãos, se ainda estou pregando a circuncisão, porque continuo sendo perseguido? Neste versículo aparece um terceiro pensamento, que tampouco pode ser interpretado com segurança. A palavra grega traduzida como “por que” introduz uma declaração ou inferência falsa que é usada ironicamente. Não se diz de quem partiu a afirmação de que Paulo ainda — e não só quando era o fariseu inimigo da igreja — prega a circuncisão, e que defende em seu evangelho sua necessidade para a salvação. Não se diz em que se baseava a acusação. Contudo, enquanto podemos julgar a

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situação de então, só se pode pensar nos adversários cristãos provenientes do judaísmo, que interpretavam mal o fato de Paulo se considerar indiferente com relação à circuncisão, desde o momento em que a mesma não seja colocada como meio de salvação, mas por piedade. Não somente interpretam mal, como utilizam Paulo a favor de sua própria argumentação.111 Não sabemos até onde chegava a afirmação desses adversários. Por exemplo, se eles mesmos utilizavam a expressão “pregando a circuncisão” ou se é Paulo quem exageradamente resume assim a afirmação de seus inimigos. Essa última conclusão é a mais provável.

Nesse caso, o escândalo da cruz foi removido. Paulo vai contra esse mal-entendido, recordando que ele ainda é perseguido. Se seus adversários tivessem razão, as perseguições teriam de acabar, pois nesse caso o escândalo de sua pregação, a cruz, e conseqüentemente a causa da perseguição, desaparecera. Para ele a circuncisão e a cruz opõem-se e excluem-se mutuamente como meios de salvação.112 A circuncisão é a lei na pessoa, e, portanto, a personificação da obra da lei que realiza a salvação e a correção do mérito adquirido na força da lei. Em oposição a esta está a cruz que é a força reveladora do juízo sobre a lei e seu caminho, a personificação da graça que rechaça a lei, a obra e o mérito adquiridos.

♦ V. 12 - Quanto a esses que os perturbam, quem dera que se castrassem! Com este versículo, o apóstolo encerra a perícopa com um tom sarcástico que não tem nada de apologético,113 demonstrando a sua indignação contra os adversários do evangelho. Paulo deixa bem claro que se esses que trazem a revolta à Igreja gostam tanto da circuncisão, por que não se castram de uma vez. O apóstolo expressa o desejo de que seus adversários não parassem apenas na circuncisão, mas fossem mais longe, à própria emasculação. Paulo talvez estivesse relacionando a circuncisão pregada pelos judaizantes com a castração sagrada. A palavra grega apokóptein é precisamente uma expressão técnica para a castração, tal e como se praticava na Galácia, por exemplo, no culto a Cibele. Paulo apresenta a castração como conseqüência da circuncisão.

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CAPÍTULOIV

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O USO CO RRETO DA LIBERDADE

Capítulo IV - 5.13— 6.10 O USO CORRETO DA LIBERDADE

Esta terceira e última parte da carta está intimamente ligada à anterior. Não há interrupção entre 5.12 e 5.13. Depois de tratar exaustivamente sobre a questão da justificação dos gálatas, o apóstolo apresenta agora o uso correto que eles devem fazer da liberdade. O fato da liberdade que caracteriza a existência é agora apresentado aos gálatas. O versículo 13 olha ao mesmo tempo para frente e apresenta uma introdução, uma nova consideração e a recomendação do uso correto da liberdade,1 na qual a comunidade deverá pautar sua conduta.

1) 5.13-15: O Princípio Fundamental: Servir em AmorA terrível maldição sobre os que tumultuaram a comunidade através

da pregação da lei tem sua justificação objetiva no fato de os membros da comunidade terem sido chamados para viverem na liberdade. Essa liberdade tem como base um princípio fundamental, que é o amor,2 sem o qual é impossível qualquer exercício de liberdade.”3

# V. 13 - Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mais uma vez é enfatizado o trato pessoal e usado o pronome enfático, sem dúvida para ressaltar o contraste com o ataque anterior contra os adversários; os gálatas “foram chamados para a liberdade”. O verbo “ir” está no tempo aoristo, ressaltando o fato de que os gálatas já experimentaram a liberdade que é oferecida pelo evangelho, embora, levando em consideração às últimas ocorrências, parece que não tinham reconhecido a verdadeira natureza dessa liberdade. Certamente, foi por meio do evangelho de Jesus Cristo que os gálatas puderam conhecer a liberdade, não através do cumprimento da lei, que se encontra caduca.4

Mas não usem a liberdade para dar ocasião a vontade da carne. Porém, essa liberdade está naturalmente exposta a profundos mal-entendidos e abusos, que ameaça não só o nomismo, mas igualmente o antinomismo. E este antinomismo encontra-se, sem dúvida, entre os mesmos gálatas

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que caem no nomismo. Não há indícios de que aqueles aos quais o apóstolo se dirige aqui sejam distintos dos aludidos em 5.1.

Pelo contrário, a estreita união mencionada entre as passagens exclui tal distinção. Por isso, é importante não dar nenhuma ocasião para que isso aconteça. A palavra traduzida por ocasião é aquilo que constitui o pressuposto sedutor, aquilo que constitui a oportunidade favorável, que se torna um encanto para a “vontade da carne”.

Pelo contrário, sirvam uns aos outros mediante o amor. Essa pequena frase tem como meta rechaçar o perigo e indica ao mesmo tempo que o ser carnal do homem, segundo o juízo do apóstolo, está sumamente disposto a explorar todas as oportunidades que são oferecidas em proveito próprio. Inclusive a liberdade, que é a liberdade frente à lei e, conseqüentemente, como vimos, a liberdade de autodestruição provocada pela lei, incluindo a liberdade que significa o absoluto ser livre em Cristo Jesus, pode por sua vez ser a base e a sedutora possibilidade de o homem se ater a sua própria carne. Não há nada que por si esteja excluído do malentendido e do abuso do homem carnal,5 tal e como existe na carne.

A liberdade para a qual os gálatas foram chamados é, segundo seu conceito e uso correto, a liberdade para o amor. O autêntico e correto exercício da liberdade acontece no mútuo serviço do amor. A realidade da liberdade se dá na vinculação amorosa aos outros.

♦ V 14 - Toda a lei se resume num só mandamento. A seqüência de pensamento parece ser que a liberdade precisa do amor e que este é apoiado pela lei.6 A expressão “toda lei” não significa somente a lei do Antigo Testamento, mas a lei em sua totalidade, também no que se refere às suas prescrições rituais,7 como pede o contexto das discussões.8

Um contraste é claramente visto entre um só mandamento e toda a lei. Esta concentração da lei no conceito do amor teria soado estranha aos ouvidos dos adversários de Paulo, embora reconhecessem a importância da declaração citada pelo apóstolo.

Amarás a teu próximo como a ti mesmo. Essa frase é uma citação de Levítico 19.18, que se relaciona com os membros do povo israelita em contraposição com o estrangeiro. Em Lucas 10.27, o escritor cita uma das

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partes da essência da lei, por um intérprete da lei, como resposta a uma pergunta feita por Jesus. Para Jesus, o próximo não é apenas o membro da nação israelita, mas no sentido universal, como também entende Paulo.9 A exigência do amor é onde cada palavra da lei situa o homem. Nesta palavra que exige o amor, se resume todo mandamento e por ela recebe seu verdadeiro significado.

♦ V. 15 - Mas se vocês mordem e devoram uns aos outros, cuidado para não se destruírem mutuamente. Os gálatas encontram-se distantes desse “poder-amar”, por isso é que o apóstolo deduz do preocupado e quase irônico chamamento. Paulo tem diante dos olhos acontecimentos da comunidade. Suas expressões são fortes. A imagem utilizada pelo apóstolo é tomada da conduta mútua dos membros da comunidade comparada com a das feras selvagens. As palavras traduzidas por morder e devorar são dois presentes conotativos, indicando a tentativa, e os indicativos são usados em orações condicionais que assumem a verdade da condição.

O morder-se e o devorar-se mutuamente não é mais que a exteriorização e o resultado de uma escravidão interior. A perspectiva de os devoradores serem eles mesmos devorados é inesperada, mas requer vigilância a fim de ser evitada.

2) 5.16-24: Aclaração Geral do Princípio FundamentalAo tratar sobre a aclaração geral do princípio fundamental, o apóstolo

volta outra vez à exortação do versículo 13. Esse retorno ocorre enquanto explica, em certo sentido, o versículo 13, e ao mesmo tempo assinala o caminho pelo qual a perseverança na liberdade do amor é possível. A grande preocupação de Paulo é que os gálatas se deixem dominar pelas obras da carne e venham se destruir pela falta de amor.

a) 5.16-18: A carne tem tendências contrárias ao EspíritoLevado pelo medo de que se destruam por falta de amor, o apóstolo

alerta os gálatas para viverem pelo Espírito, pois somente assim não satisfarão os desejos da carne que são destrutivos e contrários ao Espírito de Deus.

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% V. 16 - Por isso digo. A expressão grega lego dé (por isso digo), dá prosseguimento a idéias já iniciadas, desenvolvendo-as em um novo sentido, explicando-as e, sobretudo, sobrepujando-as. A locução grega refere-se aqui a todos os aspectos principais da sessão anterior. Serve para introduzir uma nova explicação daquilo que já foi dito.

Vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne. A palavra traduzida por “vivam”,10 significa andar, comportar-se, conduzir a vida. O tempo verbal (presente) indica uma ação habitual, no sentido geral de “conduta de uma pessoa, ou seja, da realização de sua vida, é um termo que quase só Paulo e João utilizam”. Paulo aclara suas exortações com um conceito familiar às comunidades e que contém uma indicação de como pode ser praticado tal serviço de amor e liberdade: viver pelo Espírito. A palavra Espírito representa com o verbo viver o que caracteriza esta conduta. Espírito é o que possibilita ao homem tal comportamento ou sua causa. Assim, a expressão representa o fundamento e modo do comportamento.

Viver pelo Espírito é ser guiado no Espírito ou deixar-se guiar pelo Espírito. Quando Paulo exorta os gálatas a utilizarem para o amor, não quer dizer outra coisa, senão que eles deviam vivem a vida diária atendendo e escutando a voz do Espírito que os quer guiar. Precisamente este proceder tem a conseqüência e a promessa de que, se assim fizerem, não irão satisfazer as obras da carne.

De modo nenhum satisfarão os desejos da carne. A palavra epithumia, traduzida aqui por desejos é a concupiscência, o anelo de algo, o desejo por algo, a intenção etc. A palavra carne a determina como uma concupiscência egoísta. Certamente que a maioria das vezes epithumia é usada no sentido pejorativo, especialmente tratando-se dos desejos relacionados à carne.

sfe V. 17 - Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito. Entretanto, de onde Paulo tira sua confiança de que uma vida dirigida pelo Espírito se torna impossível o ceder às paixões da carne? No fato de que o Espírito e a carne, que tem em suas mãos respectivamente a direção de nossa vida,

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perseguem tendências opostas e que se excluem mutuamente." Assim, o Espírito tem todo o poder de destruir a carne.

No nosso contexto se fala da carne com estranha neutralidade e objetividade como se ela fosse um poder personificado. Paulo fala da carne,12 e pensa em nossa carne;13 nosso corpo humano, tal e como existimos;14 “segundo a qual” caminhamos. Pensa-se na carne, portanto, que é a medida e a norma do nosso agir e pensar.15 Esse poder carnal tem seus próprios desejos, com os quais tenta desviar a pessoa de sua conduta normal, que deve ser vivida segundo o Espírito (cf. Rm 8.3,6-8; 9.8; G1 5.13,19). Esse poder da carne está em constante luta contra outro, que é o Espírito.

E o Espírito, o que é contrário a came. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam. Não é só a carne que é um poder que procura dominar o homem, o Espírito também é um poder que também procura dominá-lo, com a diferença de que ele é determinante na vida do cristão. O Espírito não é, supostamente, um poder dado com a existência, mas o poder de Cristo, que o cristão recebe ao se converter a Ele como Salvador; é Cristo no poder de sua presença que se apodera daqueles que o tem (cf. Rm 8.2,3; 2 Co 3.17). Os desejos da carne dirigem-se, pois, contra a poderosa presença de Cristo que irrompe em nós.16 Os desejos da carne estão em oposição constante a Cristo. A oposição entre a carne e o Espírito é para Paulo uma realidade viva. Eles são adversários irreconciliáveis entre si. 0 sentido é que o Espírito tem como função frear os desejos da came.

# V. 18 - Mas, se vocês são guiados pelo Espirito, não estão debaixo da lei. Esse ato de ser guiado pelo Espírito significa a verdadeira liberdade, e isto é o que quer dizer a expressão “não estão debaixo da lei”. A lei desata os desejos da carne enquanto poder determinante sobre nossa vida, concupiscência em que se move a carne, para realizar-se plenamente nos pecados. Podemos interpretar esse versículo do seguinte modo: haveis sido chamados à liberdade pela ação de Cristo no evangelho — liberdade da lei, do pecado, do engano e da morte — , chamados à liberdade como tal. Tal liberdade não deve ser base para uma vida egoísta, mas de uma entrega de amor ao próximo. E assim que se cumpre a lei. Isso quer

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dizer: vivei no Espírito, guiados pelo Espírito e então, não cumprireis os desejos da carne, que escravizam.

Em certo sentido, isso pode ser mais bem entendido quando se consideram as metas e os resultados “propostos” pelos desejos da carne e do Espírito. Isso mostra que a idéia que segue deve ser considerada a partir deste ponto de vista: o legalismo e a vida espiritual não se misturam como fica claro na distinção entre os desejos da carne, que dominam a pessoa que vive de formalidades, e aquela que tem sua vida pautada no Espírito.

b) 5.19-21: As obras da carnePara mostrar que as obras da carne são contrárias ao Espírito, Pau

lo mostra que essas obras podem ser facilmente reconhecidas,17 pois são manifestas na atuação cotidiana de cada um.18 Essas obras podem ser de luxúria, de ordem religiosa, de impureza sexual, idolatria e falta de amor.19 Os gálatas, ao deixarem se influenciar pelos propagandistas da lei, estão sujeitos a praticar tais obras.20

# V. 19 - Ora, as obras da carne são manifestas. Os efeitos da carne são fenômenos claros, realidades manifestas. Não podem, pois, serem ignorados. Dizem por si mesmos o que são. Paulo apresenta uma série de obras, seguindo formalmente uma tradição perenética muito utilizada do judaísmo tardio.21 E, também, comum encontrar listas de vícios nas cartas do Novo Testamento.22 Na enumeração das obras, Paulo relaciona aquelas que parecem delitos “culturais” e as que ameaçam ou destroem a unidade da Igreja. Das muitas divisões propostas, algumas são: a) frutos da luxúria; b) os frutos de ordem religiosa; c) as violações da graça; d) intemperança; e) pecados contra a pureza sexual; f) contra a veneração de Deus; g) contra o amor; h) contra a temperança.25

Imoralidade sexual, impureza e lascívia. Os três primeiros itens são pecados da sensualidade. Paulo provavelmente começa com estes em razão de nos seus dias serem praticados em grande escala. Estavam em grande destaque no ambiente pagão do qual os gálatas foram tirados, sendo até mesmo aprovados nos ritos da adoração pagã. Onde mais claramente se

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manifestam as obras da carne é nos pecados sexuais e na relação com a sexualidade. Contudo, suas obras vão muito mais além desses pecados. As obras da carne podem atuar, por exemplo, no zelo ou na veneração religiosa das criaturas.

Imoralidade sexual (porneia) é a fornicação no sentido de qualquer atividade carnal ilegítima.24 Provavelmente, porneia tenha ligação com o verbo pernumi, que significa “vender”. Essencialmente, porneiaé o amor que é comprado e vendido, o que não é amor de modo algum, pois o ser humano é conduzido como um simples objeto.25

Segue “impureza” (akatharsia), que se trata da impureza, não no sentido cultual, mas moral ou religiosamente.26 Isso diz respeito a “imoralidade sexual” um conceito mais amplo.

O terceiro elemento é a “lascívia” (aselgeia), que significa literalmente a libertinagem de um modo geral, mas sem dúvida é usada aqui para a lascívia nas relações sexuais: ressalta a libertinagem desses pecados de impureza,27 em que a pessoa perdeu toda a vergonha;28 designa, além do mais, um vício descontrolado (cf. Ef 4.19; 1 Pe 4.2; 2 Pe 2.2,7,18; Jd 4).29

# V 2 0 - Idolatria e feitiçaria. Junto com os pecados carnais aparecem, como acontecem em outras cartas de Paulo, os pecados da falsa veneração a Deus (cf. 1 Co 10.7,8,14; Cl 3.5). A relação íntima entre ambas as classes de pecado é enfática em Romanos 1.23,24.0 conceito da eidoloSatria é talvez de origem judaico-cristã.30 Uma das formas mais baixas da idolatriaser realizada é através da farmakeia (feitiçaria). Originalmente é um conceito neutro que indica o uso de drogas, tanto com finalidade boa ou má.31

O ato de o homem querer colocar coisas criadas por ele mesmo no lugar do Criador tem no fundo, como conseqüência, uma dissolução interna de ordem e domínio das paixões e um descontrole de sua sexualidade, que é desordenada e incontrolada. A desenfreada impureza, que “desonra” o corpo, mantém, pelo contrário, o homem sujeito nessa adoração da criatura incapaz de dominar seus impulsos, facilitando tal adoração. Não é casual que a antigüidade religiosa esteve grandemente saturada e dominada pelo sexo.

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Ódio, discórdia, ciúmes, ira. Sem conexão imediata, Paulo relaciona os pecados que ameaçam ou que podem destruir a vida em comum dos membros da igreja, bem como a unidade das comunidades. Eles formam um grupo completo que pode ser considerado uma descrição dos males sociais.

“Ódio” (echthra) traz o sentido de hostilidade. Refere-se, sem dúvida, às inimizades pessoais de alguns membros das comunidades entre si, ou suas manifestações hostis. Echthra é a palavra grega para inimizade.32

“Discórdia” {eris) é basicamente contenda ou rixa. No Novo Testamento é um termo tipicamente paulino,33 e nesse versículo aparece freqüentemente como “ciúmes”.34 Eris é a obra da carne que mais comu- mente invade e destrói a fraternidade cristã.35

“Zelo” {zelos) é normalmente traduzido como “zelo”, no sentido de envolver outras pessoas da comunidade. A idéia no contexto é de “zelo pervertido”, que tem como finalidade o mal do próximo.

A outra palavra é “Ira” ( thumos)?b que traz o sentido de uma tremenda explosão de temperamento. Essa palavra é tipicamente paulina (cf. Rm 2.5; 2 Co 12.20; Ef 4.31; Cl 3.8).

Egoísmo, dissensões, facções. Na sua enumeração, o apóstolo apresenta mais três conceitos do catálogo de vícios, que caracterizam a mentalidade e as manifestações contra a unidade da igreja, cuja matriz se encontra na política.

Uma palavra difícil de ser interpretada é eritheia, aqui traduzida por egoísmo. Partindo do significado original da palavra, os exemplos que dispomos nos dão os seguintes sentidos:371) a conduta de certos políticos que conseguem altos postos por causa de influências não confiáveis; 2) a conduta das prostitutas que se oferecem ao varão; 3) no Novo Testamento não parece existir um uso constante e preciso.38 O seu significado, neste versículo, parece estar centrado na postura de pessoas que estão em busca de rixas, contendas ou intrigas. E provável que Paulo esteja pensando nos esforços empregados por alguns membros de destaque na comunidade, com a finalidade de expulsar os seus rivais e conseguir adeptos sem importar-se com os meios utilizados.

A palavra “dissensões” (dichostasia) não é uma palavra comum, quer no grego bíblico,59 quer no secular. Literalmente significa “ficar à parte,

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separado”. Aparece no Novo Testamento no sentido de rixa, sedução par- tidarista e separação. Só é usada novamente em Romanos 16.17.

“Facções” {airesis) é uma palavra que se refere a divisões na comunidade, “grupos doutrinários”, que contrariam a unidade da igreja, enquanto reunião legal e pública do povo de Deus.40 E o resultado da palavra anterior: divisões organizadas em facções.

♦ V. 21 - Inveja; embriaguez, orgias. Nesse versículo, Paulo apresenta um quarto grupo de vicios, os quais se relacionam com delitos graves. A lista de obras da carne termina com os pecados da intemperança, que não só predominavam como eram também sancionados por várias formas pagãs de adoração.

“Inveja” (phthonoí) serve de passagem para este grupo. E o desejo de se apropriar do que outras pessoas possuem. Refere-se ao desejo de privar o outro do que ele tem. E aquela pessoa que fica amargurada diante da visão de outra possuindo o que ela não tem, e que faria tudo quanto fosse possível não para possuir a coisa, mas para evitar que a outra pessoa a possua.41

“Embriaguez” (m ethè denota a falta de controle de alguém perante a bebida. O mundo antigo e a Escritura, embora não condenassem a bebedice, viam nela um ato vergonhoso, por isso são contra a embriaguez.

“Orgias” (komos) são orgias festivas de distintas formas. No grego secular tinha um sentido de comunicação, mas aos poucos foi adquirindo um sentido de devassidão.42

E coisas semelhantes. Com essa expressão Paulo está lembrando aos gálatas que não relacionou todas as obras, existem outras, e que por isso deviam estar atentos. Mas é próprio dos catálogos de vícios não nomeá- los todos, por isso com freqüência, como é colocado aqui, o escritor procura alertar os seus leitores utilizando a fórmula final: “e coisas semelhantes”.

Eu os advirto, como antes já os adverti, que os que praticam essas coisas não herdarão o Reino de Deus. Ao agregar a ameaça de que todas estas obras excluem do reino de Deus,43 Paulo deixa transparecer o quanto segue de perto o esquema dos catálogos de vícios, ou melhor,

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quão certo é que repete uma tradição relativamente fixa de instrução ca- tequética, ressaltando que anteriormente já alertara sobre os perigos dos vícios, e agora novamente volta a adverti-los. Isso revela a freqüência da advertência (cf. 1 Ts 4.6). Do reino de Deus, são excluídos aqueles que se inclinam para as obras da carne que são claras, da mesma forma que as suas conseqüências. Aqueles que praticam tais obras serão excluídos do reino de Deus e estarão perdidos.

c) 5.22-24: O Fruto do EspíritoEm contraste com as obras da carne, o apóstolo apresenta o Fruto do

Espírito.44 O verdadeiro alvo de Paulo é demonstrar os vários aspectos da única colheita. Nenhuma destas qualidades mencionadas pelo nome podem ser isoladas e tratadas como uma finalidade em si mesmas. Também em outras partes, Paulo não utiliza senão o singular de karpos45 O Fruto do Espírito, ou o fruto em sua diferenciação, compreende os efeitos íntimos do Espírito, que representam o suporte pessoal e a realização da vida cristã na igreja.46

# V. 22 - Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade. E notável a formulação desta frase em relação com o versículo 19. A mudança de “obras” para “fruto” é importante porque remove a ênfase do esforço humano. É significativo que Paulo use o singular “fruto” e não o plural “frutos”.

Encabeçando a lista está ágapê1 que aparece sempre ao final dos catálogos de virtudes48 e manifesta deste modo como princípio e fundamento de todas as demais virtudes.49 Este amor foi derramado em nossos corações com o Espírito Santo e se manifesta na fé enquanto amor “meu”.50 Ele dirige-se a Deus (Rm 8.28; 1 Co 2.9), a Cristo e ao próximo (Rm 13.8,10; G1 5.13,14 etc). O amor de Cristo fesus está dentro dos nossos corações, tendo sido derramado pelo Espírito Santo que atua como força vital divina que funde todos os carismas, é invariável e permanente.

Seguindo o amor, está a palavra “alegria” (cAara). t a alegria fundamentada num relacionamento consistente com Deus. Pode-se falar dela como uma

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alegria absoluta (2 Co 13.11; Fp 2.18; 4.4; 1 Ts 5.16), e também qualificá-la, baseada neste último fundamento, como alegria “no Senhor” (2 Pe 3.1; 4.4,10). Em (Cl 1.11), aparece como fundamento do agradecimento unido à alegria da obra salvadora ocorrida aos cristãos, que os fazem ser cordeiros dos santos na luz. Essa alegria natural tem duplo sentido: primeiro, tudo aquilo que favorece a vida dos cristãos é a alegria pela felicidade do próximo;51 em segundo, porque se mantém em meio de todas as tribulações é a alegria de saber que sairá vencedor em qualquer situação, ainda que passe por dores.52

A próxima palavra é “paz” (eirene). Várias vezes Paulo usa a expressão “Deus de paz, que indica o tipo de paz procurada por ele. Esta paz é muito diferente da noção geral de paz, visto ser uma possessão interna que traz consigo a serenidade mental, contrastando-se vivamente com as caóticas “obras da carne”. Em si mesmo, o Espírito está encaminhado para a paz, Ele aspira a paz. E o Espírito “do Deus da paz”,53 da vida santificada, justa, ordenada, que veio para judeus e gentios em Cristo Jesus.54 Como Fruto do Espírito, a paz que em Cristo Jesus supera todo pensamento contrário, é a que penetra o coração e a inteligência e mantém (Rm 15.13; Fp 4.7; Cl3.15), promove, conserva os membros da igreja e os ajunta na unidade. Sendo parte do Fruto do Espírito a paz deve ser buscada.

A palavra traduzida por “paciência e amabilidade” (makrothumia), significa longanimidade, paciência para suportar as injúrias de outras pessoas. E uma característica de Deus e de Cristo atuar com amabilidade. E uma propriedade essencial do amor. A ênfase principal recai sobre uma qualidade passiva, que é resistir firme sob as tensões e pressões da vida. E uma qualidade vista mais vividamente num contexto social.

A palavra “bondade” (chrestótes) tem seu uso comum tanto no grego bíblico, quanto no eclesiástico. Na LXX é o bem no sentido de bens terrenos (Ec 4.8; 5.10; 6.3) ou de felicidade (Ec 5.14), o bem que acontece a alguém (Ec 15.17; 6.6; 9.18). A bondade de Deus é provada através dos bens que Ele concede na terra (2 Esd 19.25,35) ou guarda para o céu (2 Esd 23.31). E também o bem moral que se pratica (Jz 8.35; 9.16; 2 Cr 24.16; SI 51.5). Em Paulo, significa benignidade, gentileza. Refere-se a uma disposição gentil e bondosa para com os outros, é a característica de “ser bom”.

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A palavra traduzida por “Fidelidade” {pístiè, na maioria dos casos em que ocorre no Novo Testamento significa a fé que é confiança, entrega e obediência totais no que diz respeito a Cristo. Este é o seu sentido teológico. Entretanto, aqui, o seu sentido é ético. Tem um sentido de “fé em Deus”. Traz o sentido de fidelidade a padrões da verdade ou no sentido de fidedignidade no trato com outras pessoas.

# V. 23 - Mansidão e domínio próprio. “Mansidão” (prautes) é doçura, conduta suave, atitude pacífica com o próximo.55 Contém um sentido de brandura que é visto como a disposição de submeter-se à vontade de Deus. E uma característica especial dos cristãos enquanto pessoas espirituais. Este fruto deve ser usado sempre que aparece a ira. E certo que o conceito paulino de “mansidão” é de origem helenística e, em razão disso, conserva o sentido primário de “brandura”; porém, baseado na perspectiva cristã, está em íntima conexão com a tradição do judaísmo e do Antigo Testamento, que pressupõe temor e obediência a Deus.

A outra palavra é “domínio próprio” (egkrateia), significa autocontrole, a característica de ter domínio sobre seus próprios apetites. Esta palavra também é de origem helenística, e designa para Paulo, a conduta interna e externa em oposição à imoralidade sexual, impureza e lascívia. Ela não significa somente a capacidade de controle, mas de uma forma mais ampla: o autodomínio e disciplina sexual.56 O autocontrole, no entanto, não significa a negação de si mesmo, mas uma avaliação real da função do nosso eu na forma mais nobre de vida.

Contra essas coisas não há lei. Paulo volta a falar da lei provavelmente porque tem em mente a insistência dos adversários em que um sistema legal é a única maneira de refrear as obras da carne. O apóstolo deseja indicar que a vida no Espírito é uma alternativa definitiva. Se estão vivendo pelo Espírito não há necessidade de uma lei legalista para controlar os desejos da carne.

♦ V. 24 - Os que pertencem a Cristo Jesus crucihcaram a carne, com as paixões e desejos. Os cristãos são colocados como aqueles que pertencem a Cristo. Deve ser entendido no sentido de uma posse realizada

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através do batismo.57 Crucificaram a carne com Cristo, de modo que já não vivem submetidos a ela; vivem agora para o Espírito, que lhes dá força para vencer suas paixões. Aqui se pensa na decidida destruição do antigo modo de existência devido à aceitação do batismo.

A palavra carne refere-se ao ser humano na carne, tal e como existe. São os vícios da sensualidade e do egoísmo, que se encontram em 5.19-21. Aqui se fala das paixões e desejos da carne.58 É possível, contudo, que o que está sendo ressaltado seja a inclinação da carne. O Fruto do Espírito é tão contrário às obras da carne que algo dramático deve ser feito contra — devem ser crucificadas.

3) 5.25-6.10:0 Desenvolvimento do Princípio FundamentalDepois de fazer uma certa exposição de forma clara do princípio fun

damental da liberdade de cada cristão, o apóstolo agora procura mostrar a forma desse desenvolvimento. Não basta simplesmente saber o que é contrário ou não à conduta cristã, mas também como a vida cristã deve ser vivida no dia-a-dia.

Se os adversários de Paulo apresentavam uma certa conduta para serem justificados, o apóstolo apresenta a que está baseada no Espírito de Deus.

a) 5.25,26: O caminhar no EspíritoPara o apóstolo, a prática e a teoria devem andar juntas. Não basta

dizer que tem uma conduta cristã, é preciso viver conforme essa conduta. Não basta dizer que é um cristão e anda pelo Espírito, é necessário realmente viver e andar conforme o Espírito de Cristo, não se deixando levar pela presunção ou orgulho, a exemplo do que faziam seus adversários.

♦ V 25 - Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito. Outra vez o apóstolo retoma a idéia fundamental de toda a perícope e faz uma nova aplicação. Os cristãos devem viver baseando sua conduta no Espirito.59 Por ter anulado a carne, eles passaram a ter um viver determinado pelo Espírito de Deus; devem, pois, agora, reger sua conduta pelo Espírito. A palavra “vivemos” tem aqui um sentido profundo.60 A expressão “pelo

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Espírito” traz o sentido de “na força do Espírito”: o fundamento íntimo, a força motora que move o viver cristão. Eles agora vivem “no Espírito” e “pelo Espírito”, isso porque o Espírito de Deus vive em cada um (Rm 8.9). São, pois, indivíduos (1 Co 6.19), e no conjunto são o templo de Deus (1 Co 3.16; cf. 2 Co 6.16). Andar de acordo com o Espírito é a conseqüência dos cristãos estarem fundados e cimentados espiritualmente.

Agora não se diz, “vivam pelo Espírito”, como foi dito no versículo 16, nem “são guiados pelo Espírito”, versícluo 18, mas “andemos pelo Espírito”. A palavra stoichein (andar), originalmente era um termo militar. Significa “marchar em ordem”, “formar fila”.61 No Novo Testamento apresenta um duplo sentido. Por um lado, tem o sentido de “caminhar”, por outro, significa “ajustar-se a”. Se essa palavra, nas referências onde é usada, apresenta uma diferença pequena, ela tem aqui quase um duplo sentido. A vida dos cristãos se realiza através de um caminho ajustado ao Espírito e regido segundo este Espírito.

sp V. 26 - Não sejamos presunçosos, provocando uns aos outros. Este novo princípio fundamental é explicado agora por Paulo com uma série de exemplos não muito unidos entre si. Em primeiro lugar ele adverte contra a presunção. A palavra grega kenodoxos (presunçoso) aparece no Novo Testamento somente aqui. 0 seu significado básico é “vaidade”, “ansioso pela fama”, “presunçoso”. A vida regida pelo Espírito exclui qualquer tipo de presunção. Com a palavra kenodoxia (inveja), está relacionada a conduta, na qual uma pessoa mostra a outra suas vantagens, e dessa maneira o provoca. No vão afã de prestígio, a pessoa dominada por esse sentimento tem a necessidade de apresentar suas “conquistas perante às outras”. Desse modo, é uma tentação para que a outra pessoa passe a viver, por sua vez, pela sua própria glória. O verbo parakaleisthai (pro- vocar), significa não só requerer, mas também provocar com intensidade, “chamar para fora". A pessoa ansiosa por aparecer provoca aos demais homens a mesma vaidade com sua superioridade suposta ou real.

E tendo inveja uns dos outros. O desejo da fama se mostra também através do ato de invejar. Essa atitude é de quem crê ser inferior ao outro.

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Na inveja se manifesta com freqüência o afã reprimido de aparecer. Viver pelo Espírito não provoca nem ao outro nem a si mesmo na ordem a realizar, mas a cada um se deixa a fama própria e se está contente com a que se tem. A forma de vida do cristão é, se assim se pode dizer, uma vida “objetiva”, ou seja, neste caso, uma vida em que a recebida se reconhece como dom e se realiza em todos os sentidos.

b) 6.1-6: Levar as cargas mutuamentePara o apóstolo, esse viver pelo Espírito implica em ser compassivo

para com o seu irmão, não o acusando ou desprezando por alguma falha que por acaso venha cometer, pelo contrário, deve estar preocupado em ajudá-lo nessas situações, pois ninguém é perfeito e todos estão propensos a cair no mesmo erro. Por isso é importante que cada um ajude o seu próximo a levar suas próprias cargas, pois assim estarão cumprido a lei de Cristo.

# V. 1 - Irmãos, se alguém for surpreendido em alguma transgressão. Neste versículo é apresentado um novo exemplo do “andar pelo Espírito”, cuja importância está no fato de Paulo chamar os membros da comunidade de “irmãos”. O andar pelo Espírito torna essencial também o tratamento de doçura com respeito ao pecador. Porém, Paulo não formula um exemplo, mas coloca uma situação concreta. Supõe o caso em que um membro da comunidade seja surpreendido em uma falta. A palavra grega paraptoma é aqui uma falta concreta, um delito. Tem, sem dúvida, uma origem helenística, e é usado na LXX para traduzir diversos conceitos de pecado ou culpa.62

Provavelmente a palavra grega plolambanesthai(s>mpKendido) tenha aqui um sentido de ser surpreendido ou coagido (por outro).63 Incluído em um caso de certa gravidade, e precisamente nele, se caso algum irmão for surpreendido em pecado, aqueles que andam pelo espírito tem de mostrar amor para com eles. Isso quer dizer que devem ajudá-los, devem encaminhá-los (de novo) (2 Co 13.11), eles e todos os cristãos dali — talvez Paulo tenha ironizado a denominação que se dão — e não só um

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determinado grupo. A conduta dos membros da comunidade está determinada não pela mútua indiferença, mas pela preocupação pastoral.

Vocês que são espirituais deverão restaurá-lo com mansidão. Esse cuidado para com aqueles que erram é o que manifesta que anda realmente pelo Espírito. A palavra mansidão fora apresentada como Fruto do Espírito em 5.23. A Igreja atua maternalmente também com respeito aos pecadores, porém eles têm de estar alertas sobre si mesmos, posto que se encontram expostos à tentação. Se eles mantêm tal comportamento, farão valer mais ainda o Espírito de mansidão.

“Cuide-se, porém, cada um para que também não seja tentado. "A Igreja sabe da fragilidade moral de seus membros. Também a expressão “cuide-se, porém”, provavelmente, deverá ser entendida como Fruto do Espírito. Essa expressão significa olhar, contemplar com os sentidos ou o Espírito. E usada freqüentemente no sentido de “atender a” com interesse e de “preocupar-se de” (Rm 16.17; 2 Co 4.18; Fp 3.17; 2.4). O Espírito ensina aos cristãos a conhecerem suas próprias fraquezas diante da tentação, medindo-a coerentemente e buscando uma forma de prevenir ante a severidade de juiz, a quem tenta passar uma imagem de justo.

O pedido do apóstolo para que eles se cuidem a fim de que não sejam tentados, e por conseguinte, caírem, talvez tenha uma relação especial com a situação no contexto. Para a pessoa que esteja vivendo no Espírito, ao ver seu irmão cair em pecado, desate a ira injusta da soberba e se converta em juiz do acusado. O cristão que vive pelo Espírito sempre terá uma palavra de mansidão com o pecador.

# V. 2 - Levem os fardos pesados uns dos outros. A partir desse versículo Paulo apresenta um novo modo de vida baseado no Espírito.64 Esse versículo tem por sua vez uma certa relação interna com a idéia do versículo anterior, ainda mais quando se refere, ao mesmo tempo, a uma conduta geral. O que Paulo expõe no versículo 1 é a mesma idéia deste versículo. Tratá-los com mansidão é o mesmo que ajudar os irmãos na fé a suportar seus fardos, e, portanto, uns dos outros. Segundo o contexto, Paulo pensa em primeiro lugar nos fardos que escravizam a nós mesmos

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e a outros: os pecados; e que são seus pressupostos, a debilidade e a maldade. O termo baros (fardos) indica somente o peso destes fardos.65

E, desta forma, cumpram a le i de Cristo. Apesar de toda a polêmica contra a lei — contra a judaica principalmente — , e de igual modo contra a lei do “mundo” — que é igual àquela no que se refere ao seu caráter formal de lei — , Paulo fala da “lei de Cristo”.66 O conceito “lei de Cristo” talvez tenha sido forjado como imitação do hebraico torato sei masiah. E verdade que esse conceito só se encontra uma vez na literatura rabínica, que diz que a Torá que um homem aprende neste mundo é nada em comparação com a Torá do Messias.67 Porém, a idéia está aí, porquanto a tradição rabínica e os pseudepígrafos apresentam o Messias como mestre da Torá, como quem traz uma “nova Torá”, ou seja, uma Torá explicada de novo por Ele.68

A “lei de Cristo” não é só uma nova exegese da Torá, mas se trata de uma lei radicalmente renovada por Cristo, pois esta é a lei que Cristo mesmo cumpriu para o nosso bem, e como tal tem a ver com os homens renovados radicalmente por esse cumprimento. A lei que se cumpre somente no Espírito (Rm 8.2; 2 Co 3.6). Essa lei é a que produz o “Fruto do Espírito” na vida dominada e determinada pelo Espírito. Trata-se, portanto, da lei que desenvolve a existência renovada partindo de “dentro” e não de “fora”, baseada em um amor generoso,69 não por vaidade.

Conseqüentemente a lei de Cristo é um modo novo de ver a lei original que é “santa” e “espiritual”. Longe, pois de que com Cristo tenha ocorrido o “fim” da lei de Deus, no sentido de que ela tenha perdido o seu valor e, naturalmente, a exigência de Deus e seu cumprimento em obras; o “fim” ocorre no sentido de que a lei dos judeus e dos gentios — a lei do mundo, tem seu fim em Cristo, posto que Ele mesmo implanta agora a sua lei.70 A Torá do Messias é de fato uma “interpretação” da lei mosaica. Certamente que esta interpretação o é com exousia e não a dos escribas. Pode-se dizer também que é uma “interpretação” pela cruz do Messias, cruz que suscita a fé no evangelho e libera assim a exigência e o cumprimento da lei. Esta exousia apresenta a lei na sua palavra essencial como mensagem original, que produz vida naquele que a cumpriu.71

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sje V. 3 - Se alguém pensa ser alguma coisa, não sendo nada, engana-se a si mesmo. Continua a exortação sobre corrigir mansamente, chamando a atenção sobre o próprio perigo; para isso é necessário examinar-se a si mesmo. E mais fácil suportar o fardo do outro — isso se houver conscientização de que sozinho não é nada, e de que se ganha o que verdadeiramente é ser algo só olhando criticamente a si mesmo, e não com a comparação com os demais, posto que o decisivo não é o pensar, que se pode medir, mas a graça — se alguém se convence de que cada um é, em último termo, responsável ante Deus pelo seu “fardo”. Parece que Paulo coloca uma graduação entre “alguma coisa” e “nada”. Ninguém tem o direito de considerar-se algo mais do que nada, ou seja, nos seus próprios méritos. Paulo dá a entender que quem faz isso está enchendo sua mente de fantasias.

# V. 4 - Cada um examine os próprios atos, e então poderá orgulhar- se de si mesmo, não às custas de outros. E ensinado que esse natural auto-engano se supera, se cada um se prova ou examina os seus próprios atos. A palavra “ato” é o grego ergon, geralmente traduzido como obras, é aqui a atividade total do homem em cada caso (1 Pe 1.17; Ap 2.2). A exortação a examinar os seus próprios atos é no sentido de um exame crítico de seus atos, indica uma análise da consciência, que é uma exigência de Paulo. Se alguém examina os seus atos, então poderá orgulhar-se só com vistas a si mesmo e não aos outros, pois o fato de olhar o comportamento do outro inclui uma comparação. Enquanto aquele que examina seus próprios atos foge a qualquer tipo de comparação.

Um exame profundo de si mesmo, leva o homem a reconhecer o bem que se fez nele por meio da graça de Deus; leva-o a gloriar-se somente em Deus e a fugir de qualquer comparação com outros, porque sabe que suas boas obras são, em última análise, efeitos da graça divina.

A expressão traduzida como “poderá orgulhar-se” é kauchema, uma expressão caracteristicamente paulina, é aqui o título de glória e sua razão também.72 Não se trata de uma permissão para o orgulho, mas sim um enfoque sobre a responsabilidade individual, ou seja, cada pessoa é responsável por si mesma.

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# V. 5 - "Pois cada um deverá levara própria carga ”. O sentido deste versículo é dar fundamentação ao anterior. A palavra traduzida por “carga” é phortíorP e tem um sentido de algo que se espera que alguém suporte. Era usado como um termo militar para a mochila de um soldado. Tem como finalidade ressaltar o fato da responsabilidade perante Deus. Há certas responsabilidades que não podem ser impostas sobre os outros. Cada um deve examinar sua própria “carga”, pois só assim terá a “honra” que merece, e que será ganha não pela comparação com outro, mas por esforço próprio. Entretanto, essa honra é a graça de Cristo.

E claro que isso não contradiz o fato de que um deve levar o fardo (barose lortin são apenas distinguível conceitualmente, pelo menos no sentido de que barosimpkca “uma carga oprimente” e fortin “uma mais leve”) do outro, pois, ainda que o outro se responsabilize pela minha carga ou, mais exatamente, com a conseqüência de minha ação, não pode livrar-me de minha responsabilidade perante Deus por essa ação. Responde, portanto, ao ambiente ideológico judaico que fala do juízo final conforme as obras,74 que acompanha a cada indivíduo, que o precedeu ou o segue (Ap 14.13; 4 Esd 7.35). Aqui se fala concretamente do perigo de se confiar nas obras (2 Co 4.17).

# V. 6 - O que está sendo instruído. A idéia diz respeito ao ensino oral, e reflete o uso generalizado da catequese feito na igreja das origens. Essa declaração vem um pouco abrupta. Paulo, sem nenhuma transição, expõe uma exortação independente das outras, e cuja matéria é totalmente diferente, levantando a dúvida se é uma continuação da anterior ou se está introduzindo uma nova seção.

Na palavra partilhe todas as coisas boas com quem o instrui. A expressão “na palavra” refere-se ao conteúdo da catequese e deve, portanto, referir-se ao conteúdo inteiro da mensagem cristã que consistiria principalmente dos aspectos positivos da doutrina cristã, expostos aos gálatas por Paulo. O verbo traduzido por “partilhes” é koinonéo, que significa “compartilhar com alguém”; o que sugere uma co-participação entre o professor e os alunos. O restante da frase provavelmente trate do sustento financeiro do professor, visto que os gálatas vieram do ambiente pagão e não estavam acostumados a sustentar seus líderes religiosos.

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c) 6.7-10: O resultado do princípio fundamentalO resultado desse andar no Espírito, ajudando cada irmão nas suas

dificuldades é o fato de que aquilo que qúalquer membro da comunidade semear, isso colherá. Se a sua atitude foi dirigida pelas obras da carne, essa será a sua recompensa, mas se for pelo amor, a recompensa será a vida eterna em Cristo.75 Por isso é importante que a comunidade esteja preocupada com o que acontece em seu seio.

# V 7 - Não se deixem enganar, de Deus não se zomba. Paulo começa com uma advertência para que não se enganem. Essa advertência serve para preparar a idéia seguinte, que parece dar a impressão de um adágio (cf. 1 Co 15.33). A palavra grega murterizein tem um sentido de “torcer o nariz”, “tratar despercebidamente”, “ridicularizar” (Pv 12.8; 15.20). A idéia é tornar Deus ridículo mediante a defraudação e o não cumprimento da sua vontade. A ausência do artigo no termo grego usado para Deus demonstra que deve ser entendido qualitativamente. Deus não é do tipo suscetível à zombaria. Torna-se extremamente fútil tentar zombar dEle.

Pois o que alguém semear, isto também colherá. 0 homem colherá o que semeou. Deus deixa que o homem lavre sua sorte com as próprias mãos. Ele concede liberdade ao homem para semear onde queira, e, portanto, para colher o qué queira. Nisto consiste seu domínio sobre o homem: em atender a lei da semeadura e da colheita. Assim é como a vontade castigadora de Deus recebe o caráter de sua sorte, e contém um exemplo bastante conhecido: o que semear, isso precisamente colherá.

# V. 8 - Quem semeia para a sua carne, da carne colherá destruição. Paulo utiliza uma metáfora identificando dois tipos de solo: a carne e o Espírito. Embora a metáfora tenha ficado levemente confusa, o princípio é indubitavelmente é o mesmo de 5.16,17. A carne não pode produzir resultados espirituais,76 e o Espírito sempre produzira resultados em harmonia com sua própria natureza. No primeiro caso é integrante ao homem: “colherá destruição”. A metáfora é vivida aqui, porque ninguém de bom senso pensaria em ceifar um campo de materiais em deterioração, mas a

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própria incongruência da idéia serve para chamar atenção para a loucura daqueles que semeiam para a carne.

Mas quem semeiapara o Espirito, do Espírito colherá vida eterna. Se o primeiro é inerente ao homem o segundo é dom de Deus. Visto tratar-se de um contraste direito com a frase “para a sua carne”, deve referir-se a um homem cujas intenções são dirigidas na direção da vida dominada pelo espírito.

# V. 9 - E não nos cansemos de fazer o bem. Paulo inclui a si mesmo na sua exortação de fazer o bem, pois sabe que não está imune ao desen- corajamento. O perigo de semear em solo errado é uma realidade na vida de qualquer cristão, mas o perigo de estragar um bom trabalho por causa do desânimo é mais perigoso ainda. O apóstolo talvez queira dizer que se alguém cansa quando está fazendo coisas excelentes, significa que perdeu temporariamente seu senso correto de valores.

Pois no tempo próprio colheremos, se não desanimarmos. Para o cristão não basta simplesmente haver seguido alguma vez o Espírito; há uma necessidade constante de obedecer ao seu mandamento, estando pronto para a luta a qualquer momento, nunca desanimado. A palavra “desanimar” traz uma idéia de fatiga. A figura provavelmente está relacionada a ceifeiros num campo de trigo, talvez sob o calor de um sol escaldante, que não podem desanimar. Aqueles que enfraquecem nunca cumprirão o seu propósito. A existência cristã (vida espiritual) é um incansável dedicar à vontade do Espírito e para o Espírito.77

# V. 10 - Portanto, enquanto temos oportunidade. Paulo recapitula o dito em relação com a última idéia exposta, de que a seu tempo colheremos, Paulo introduz seu último chamamento a caminhar no Espírito. A expressão toma por certo que a oportunidade está presente. Para Paulo, enquanto há oportunidade, deve-se aproveitar. A palavra traduzida como “oportunidade” (kairon), indica o período apropriado da semeadura que corresponde ao período próprio para a ceifa já referida. A implicação é que durante a vida presente as oportunidades para fazer o bem são constantes.

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Façamos o bem a todos, especialm ente aos da família da fé. Essa exortação tem como base a prática do bem.78 Para o cristão não há restrição alguma, pois qualquer pessoa pode ser seu próximo, independente de raça, posição social, cultura ou sexo. Entretanto, a responsabilidade para com outros cristãos é maior do que aquela para com outras pessoas em geral. 0 apóstolo está tocando aqui em um princípio importante do comportamento cristão. Se os cristãos negligenciarem uns aos outros, terão pouca consideração pelas necessidades dos não- cristãos. Sem dúvida, o apóstolo está pensando aqui na ação individual mais do que na coletiva, visto que um grupo de pessoas nunca poderá agir comunitariamente num plano superior àquele dos seus membros individuais.

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Capítulo V - 6.11-18 CONCLUSÃO DA CARTA

Após traçar os pontos principais da forma correta de se utilizar a liberdade que Cristo outorgou a cada membro da comunidade, o apóstolo chama a atenção, nesse final da carta, sobre os seus adversários que estão infiltrados no meio dos gálatas, tentando destruir sua obra na comunidade ao implantar seu legalismo. Entretanto, para Paulo nada disso importa, mas somente o fato de ser nova criatura em Cristo.

sfê V. 11 - Vejam com que letras grandes estou lhes escrevendo de próprio punho! Começa aqui o final da carta. Caracteriza-se não pelas saudações que Paulo encarregue ou transmita, mas porque ressalta, que a partir deste versículo, ele, do seu próprio punho, escreve à comunidade.1 O ergapsa deve-se entender aqui como um pretérito epistolar,2 porque quem escreve se coloca no lugar do leitor e se transporta ao momento do recebimento e leitura da carta. Isso corresponde a um antigo costume epistolar. Paulo escreve agora de seu próprio punho,3 utilizando letras grandes para ressaltar a importância do que está dizendo. O fato estranho deste final é que contém um novo “doutrinamento” dos gálatas.

Letras grandes não significam letras “sem forma”, próprias de uma escrita titubeante, nem tampouco letras muito cuidadosas, indicadoras do amor de Paulo para com os gálatas, mas letras de tamanho maior, com finalidade de lembrar e ressaltar o conteúdo de suas palavras.

# V 12 - Os que desejam causar boa impressão exteriormente, tentando obrigar vocês a se circuncidarem. Primeiramente, Paulo fala dos adversários, tentando com isso chamar a atenção dos gálatas sobre o perigo que estão correndo.4 Refere-se aos que tentam induzi-los à circuncisão. Em relação a estes, os gálatas devem adotar uma posição de seriedade. A palavra “exteriormente” indica o meio pelo qual querem sair vitoriosos. Paulo pensa na “carne” circuncidada dos gálatas, a qual seus adversários pretendem apresentar como vitória.

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Porém, a expressão talvez seja usada intencionalmente com duplo sentido, tendo um sentido geral, cujo oposto seria “no Espirito”.5

Agem desse modo apenas para não serem perseguidos por causa da cruz de Cristo. Com anagkazousin, Paulo quer demonstrar que os gálatas agem conscientes: assim, há outro motivo: o medo da perseguição que lhes traria a cruz (Rm 11.20,30,31), ou seja, em seu caso, a pregação da cruz. A pregação da circuncisão os livraria, pelo contrário, da perseguição dos judeus, pois, por essa pregação se manifestam como judeus, ainda que tenham pregado justamente Cristo, o crucificado, como Messias. Os adversários, a exemplo dos judeus, estão em oposição estrita ao apóstolo,6 pode ser deduzida precisamente da perseguição que sofre como prova de que já não prega a circuncisão.

# V 13 - Nem mesmo os que são circuncidados cumprem a lei. A expressão “os que são circuncidados”, corresponde àqueles que se encontram no estado da circuncisão ou os que exercem a circuncisão.7 São os adversários de Paulo, sem dizer se eles estavam já circuncidados. De acordo com o contexto, Paulo não se importa se eles pessoalmente já estão circuncidados, mas sim, que estão lutando pela circuncisão.

Querem, no entanto, que vocês sejam circuncidados a hm de se gloriarem no corpo de vocês. Se os adversários praticam só a circuncisão, não estão cumprindo a lei, pois ela contém outros mandamentos e ordenanças; pelo que se vê, então, que a razão da insistência de que os gálatas sejam circuncidados é só questão de querer gloriar-se neles. O objeto e fundamento, portanto, dos adversários de Paulo é o “coipo” dos gálatas, sua carne circuncidada. Não são cumpridores da lei, mas apenas, desejosos de gloriar-se nas obias praticadas por outras pessoas.

Esse versículo recorda a crítica de Paulo a Pedro em Gálatas 2.14 e provavelmente reflete o dilema de muitos judeus cristãos. Queriam manter plena comunhão com os gentios convertidos e por isso, às vezes, não observavam a lei com todo o rigor, embora ainda pensassem que os gentios deviam ser incentivados à plena observância da lei. Em outras palavras, para se relacionarem com os gentios convertidos e debaterem o caso deles, correriam o risco de miná-la.8

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♦ V. 14 - Quanto a mim, que eu jamais me glorie, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio da qual o mundo foi crucificado para mim, e eu para o mundo. O apóstolo está em oposição aos seus adversários não somente por eles exigirem a circuncisão, mas também no que se refere ao gloriar-se. Paulo conhece unicamente uma razão para gloriar-se: a cruz de Cristo; que é capaz de destruir qualquer tentativa de glória “carnal”. A palavra stauros (cruz) é aqui o ideograma do acontecimento salvífico. Para Paulo, a ação da cháris divina consiste em que Deus entregou Cristo para morrer na cruz. E este fato é para o homem natural um escândalo (5.11) ou loucura (1 Co 1.23). Desta forma, seus inimigos são inimigos da cruz de Cristo (Fp 3.8; cf. 1 Co 1.17; G16.12).

Assim, é somente na cruz de Cristo que ele encontra a fonte de onde pode tirar seu prestígio perante Deus, e não nas obras da lei, ou na própria carne. E somente pela cruz; pela qual o mundo foi crucificado para ele e ele para o mundo. Através da cruz o mundo como um todo está morto para ele, e juntamente, qualquer forma das possibilidades terrenas e existências humanas (1 Co 7.29,30) com todos os seus dons e exigências que se transformam em deveres. O mundo, impotente pela cruz de Cristo, não pressupõe nenhuma ameaça ou atrativo; não tem nenhum poder sobre ele. Abolido pela cruz de Cristo, o mundo não oferece nada que possa servir como segurança.

# V. 15 - Pois o que importa não é ser circuncidado ou não, mas sim ser uma nova criação. Este versículo fundamenta o anterior, chamando a atenção para a expressão “nova criação”, a única que agora existe e a única que realmente tem valor.9 O mundo não é nada e Paulo também não é nada. Pela cruz de Cristo, Paulo acredita que o mundo não tem nada para oferecer como fundamento para que ele possa sustentar-se, pois agora existe algo totalmente distinto.10 Agora o que interessa é a “nova criação”. Seja qual for a origem do conceito judaico ktisis=berixah hadasah, a idéia de uma nova criação pertence ao ambiente das múltiplas discussões escatológicas sobre a renovação messiânica do mundo (Is 43.19; 65.17; 66.22; Jr 32.22 etc), é muito comum tanto na tradição rabínica como nos escritos apocalípticos.

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Ktisis não significa o ato da criação, como em (Rm 1.20), mas a criação como resultado e estado, a exemplo do que acontece em (Rm 8.22).

O gloriar-se de Paulo unicamente na cruz de Cristo não é um exagero pessoal da realidade ou uma altivez individual da existência, mas algo que está absolutamente em conformidade com a sua situação de apóstolo de Cristo, pois sua vida, agora, é caracterizada pela cruz de Cristo, pela qual se tomou “nova criação”.11 Para Paulo, o movimento ao qual pertencia, sonhava com a “nova criação”. Não seria meramente um grupo entre outros, mas transcenderia e substituiria a humanidade inteira e consistiria de circuncisos e incircuncisos, escravos e livres, homens e mulheres (3.28; 6.15; 1 Co 12.13; 2 Co 5.17).

Portanto, já não se trata mais da disputa circuncisão ou incircuncisão, judeu ou gentio, lei ou graça. Tal disputa está superada. A dialética da história está ultrapassada; está superada pela nova forma de viver, baseada unicamente na cruz de Cristo. A idéia constante é que, em razão da nova criação, a disputa entre circuncisão e incircuncisão perdeu todo o seu valor; carecem, pois, de todo valor, tanto no que diz respeito à nova criação, como também, e conseqüentemente, na nova criação, que é melhor considerada a partir da fé e do amor (5.6).

♦ V 16 - Paz e misericórdia estejam sobre todos os que andam conforme esta regra, e também sobre o Israel de Deus. A palavra kanon (regra) é o guia, a regra normativa no sentido amplo (Fp 3.16). Guia é o princípio que acaba de ser assentado no versículo 15, o qual resume em certo sentidoo conteúdo da carta aos gálatas e da mensagem paulina, enquanto que esta se desenvolve na disputa com os adversários. Quem caminha segundo a regra paulina é bem-aventurado.

“Paz” significa a totalidade da salvação presente; e “misericórdia” o amor no juízo. Esta bênção descansa sobre todos os cristãos (o Israel de Deus), e não só sobre os provenientes do judaísmo, que posteriormente se distinguiriam dos demais cristãos.12 O apóstolo contrapõe o Israel de Deus ao Israel segundo a carne (1 Co 10.18; cf. Rm 9.6; Fp 3.3; G13.29; 4.23,29).15

Com paz e misericórdia da parte de Deus são benditos os gálatas, nos quais Paulo pensa em primeiro lugar, quando fala dos que seguem sua

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regra, e também sobre todo o “Israel de Deus”, a Igreja onde quer que ela se encontre.14 Provavelmente, Paulo pensa na bênção n° 19 da oração chamada “As dezoito”,15cuja redação pode ser assim formulada: “Coloque paz, [salvação] e benção [favor, amor e misericórdia] sobre nós e sobre todo Israel, teu povo”.

♦ V 17 - Sem mais, que ninguém me perturbe, pois trago em meu corpo as marcas de fesus. A benção encontrada no versículo anterior não é ainda a última palavra da carta. Segue uma estranha sentença que ilumina como um relâmpago a difícil tarefa do apóstolo. Paulo pede aos gálatas para que não seja mais perturbado com coisas que só lhe tragam desgosto. Ele leva em seu corpo as marcas de Jesus, que o marcam corporalmente.16 Paulo dá a entender com essas marcas os ataques de seus adversários e as cargas que lhe supõe a debilidade dos gálatas. A razão desta existência é o levar em seu corpo “as marcas de Jesus”.

A palavra “marcas” pode significar úlcera, cicatriz, tatuagens, marca, sinal etc. Aqui está relacionada, sem dúvida, especialmente com a estigmatiza- ção dos cristãos com o sinal de seu deus, estigmatização (marca) que tem como finalidade assinalar que eles são propriedades e obrigados a venerar seu Deus (3 Mac 2.29; Sab 15.6,9; Ap 13.16,17; 14.9,10; 16.2; 19.20; 20.4).

De acordo com a expressão “as marcas de Jesus”, Paulo pretende apresentar-se como seu escravo, que é a causa de tais marcas.17 Só a Ele pertence e está debaixo de seu amparo. As marcas de Paulo estão, por um lado, “no seu corpo”, e por outro, se apresentam como “marcas de Jesus”. São, portanto, sinais corporais como os de Jesus. Não há dúvida, pois, de que Paulo pensa nas enfermidades, dores, feridas e cicatrizes que sofreu em seu ministério apostólico (2 Co 4.7,8; 6.4-6; 11.23,24; Rm 8.17; Fp 3.10).18 É um escravo de Jesus, e em quem as perseguições e as enfermidades sofridas em nome de seu Senhor, foram gravadas no seu corpo. Possuir tal compreensão quando está tomado por dores não significa outra coisa senão levar em seu próprio corpo o morrer de Cristo a fim de que se manifeste também a vida de Cristo no próprio corpo (2 Co 4.10,11). O encontro com o evangelho imprime “marcas”19 e de que esta estigmatização pelo seu Senhor seja respeitada.

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♦ V 18 - Irmãos, que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja como Espírito de vocês. Amém. Tomando como base essa advertência, Paulo volta a bendizer, pela última vez, aos gálatas. Paulo não termina sua carta com uma ameaça, nem tampouco com saudações, como é seu costume. Ele denota uma relação pessoal com alguns membros da comunidade para qual escreve, mas simplesmente com a bênção apostólica,20 pois utiliza a expressão: “seja com o Espírito de vocês”.

A palavra final “irmãos” não aparece em outra parte na saudação da bênção. Esta palavra antes do amém (no original grego) é como uma recordação do apóstolo a si mesmo e à comunidade a relação fraternal, que não desapareceu apesar de toda debilidade deles e de toda a dificuldade e contratempo que causaram ao apóstolo. A carta, que em grande parte foi redigida de forma tão rígida, termina com uma saudação que transmite o amor do apóstolo pelos gálatas.

A última palavra é “amém”, que nas demais cartas, exceto (Rm 15.33; 16.27), aparece só em parte dos manuscritos, corresponde ao fmal das orações, doxologia e bênção (1.5; Rm 1.25; 9.5; 11.36; 15.33; 16.27; Fp 4 .20). É uma característica de seu uso litúrgico nas cartas apostólicas.21O amém reconhece e reafirma assim a bênção que descansa da parte de Deus sobre os gálatas, por mediação de Paulo. No “amém” Paulo expressa, ao mesmo tempo, sua certeza e da igreja com respeito à graça “de nosso senhor Jesus Cristo”.

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NOTAS

Introdução

1 Gálatas é uma forma variada de Kéltaiou Keltoi.2 W. G. Kümmel, Introdução ao Novo Testamento, 2a Ed. Trad. Isabel E L. Ferreira e João P. Neto. São Paulo: Paulus, 1982, pp. 382,383.3 Para maiores informações, veja ainda: E. Haechen, Die Apostelgschichte.15a ed. Gottingen: Dandenhoed & Reprecht, 1968, pp. 423,424. Segundo B. Reicke, História do Tempo do Novo Testamento. Trad. João Aníbal. São Paulo: Paulinas, 1966, p. 255,4 W.G. Kümmel, Op. dt, pp. 380-395.5 Além dos comentários e obras especializadas em introdução, veja sobre esta questão: F M. Crownfield, “The Singular Problem of the Dual Galatians”; In: Journal o f Biblical Literature (A, 1645, pp. 491-500 e A. Greine, “The Nourth-Soulth Galatic Theory Controversy”; In: Biblioteca Sacra'll, 1933, pp. 478-485.6 Veja: Hans Conzelmann, Acts oh the Apostles. Trad. J. Limburg; A. T. Krabel eD. H. Juel. Filadélfia: Fortress Press, 1987, p. 156.7 Para uma lista dos defensores desta posição, veja: W G. Kümmel, Op. dt, p. 384.8 Além dos comentários, essa posição é apresentada de forma bem resumida por M. C. Tenney, Gálatas: escritura da liberdade cristã. Trad. João Bentes. 3a ed. São Paulo: Vida Nova, 1983.9 Alguns, sem nenhuma base histórica ou exegética, erroneamente dizem que o artigo definido não é repetido, sugerindo que a Irase significa “o distrito frígio-gálatas”, onde frígio é um adjetivo. Nesse caso, isso se refere ao distrito que é ao mesmo tempo frígio e gálata, isto é, a parte da Frígia que pertencia à província da Galácia.10 Cf., E. Haechen, Op. cit., pág. 423, que mostra que Paulo em vez de usar o nome da província, utilizava o nome do território.111 Ts 2.14; G11.21; Rm 15.31; 2 Co 1.16.12 G. Bornkamm, “El Comportamiento Missionero de Pablo Segun 1 Co 9.19-23 y los hechos de los Apostoles”; In: Estúdios sobre el Nuevo Testamento. Trad. F M. Goni e E. Saura. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1983, pp. 393-407.

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13 Um ponto de vista que tenta apresentar uma equilibrada transigência entre os dois pontos de vista é advogado por Thiessen, que sugere que a Carta foi endereçada às igrejas da Galácia do sul, visto que Paulo uniformemente emprega o termo Galácia como uma designação provincial, mas que a narrativa do escritor de Atos se refere às visitas feitas à região noroeste da Galácia, das quais o escritor não participou e sobre as quais pouco havia para ser relatado. H. C. Thiessen, Introduction to the New Testament, 4a ed. Mihigan: Eerdmans, 1948, pp. 214-216.14 É importante ter em mente que o fato de determinar para qual localidade Paulo enviou sua Carta não compromete a sua interpretação e sua mensagem.15 G. Bornkmamm, Paulo: vida e obra. Trad. B. Brod. Petrópolis: Vozes, 1992, pp. 59-72. Veja ainda: Hans Conzelmann. History o f Primitive Christianity. Trad. John E. Steely. Nashville: Abingdon Press, 1973, pp. 82-90.16 Para uma lista dos defensores desta posição, veja: W G. Kiimmel, Op. cit., p. 386.17 W. Marxsen, lntroduccion aINuevo Testamento. Trad. M. L. López.Salamanca: Ediciones Sigueme, 1983, p. 56.18 «A expressão “assembléia dos apóstolos” é mais apropriada do que “concílio dos apóstolos”, porque esta, “no concernente à convocação e direção do encontro, bem como no que tange o anúncio das suas decisões, conota inadvertidamente falsas concepções jurídico-eclesiásticas próprias de uma época posterior”. G. Bornkmamm, Paulo: vida e obra, p. 64.

19 J. H. Ropes, “The Singular Problem of the Epistle to the Galatians”: In: Harvard Theological Studies, 14.1929.20 H. Lietzmann e E. Hirsch, “Zwei Fragen zu Gal 6”; In: Zeitschrift fur die neutestamentiiche Wissenschaft, 29.1930, pp. 192-197. In: Zeitschrift fur dieneutestamentiiche Wissenschaft, 30.1931, pp. 83-93.21

W. Lutgert, “Gessetz und Geist. Eine Untersuchung zur Vorgeschichte dês Gal”; In: Beitr.agezur F:orderung christlicher TheologieXYNl, 6.1919.22 De maneira parecida pensa Marxsen, que supõe que Paulo não havia tido informação exata sobre os hereges, e que, portanto, havia acentuado com demasiada ênfase e unilateralmente os rasgos judeu-nomísticos desse movimento. Para uma exposição mais detalhada de sua posição, veja: W. Marxsen, Op. cit., pp. 59-67.23 W. Shmithals, “Die H:aretiker in Galatien”; In: Zeitschrift fur die neutestamentiiche Wissenschaft, 47.1956, pp. 25-67.24 Ibid p. 30 ss. Na sua interpretação dos adversários de Paulo há um ponto muito difícil: o feto de que o investigador deixe precisamente em segundo plano a questão da lei.25 Ibid, p. 32 ss.

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NOTAS

26 Veja a lista dos defensores desta posição em: W G. Kümmel, Op dt, pp. 388,389.27 Para um estudo de como funciona o judaísmo como religião, veja: E. P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism, Filadélfia: Fortress Pressm, 1977.

Capitulo 1

1 Quando comparamos a introdução desta Carta com outras, ficamos surpresos com a diferença de humor. Geralmente em suas cartas, Paulo inclui nas primeiras frases uma formulação de ação de graças, mas na introdução de Gálatas não há ação de graças pelos destinatários.2 Para maiores detalhes, veja a importante exposição de K. H. Rengstorfs, In: Theological Didionary o f the New Testament, I, pp. 413-4203 Para uma exposição coerente da importância do apostolado na literatura do Novo Testamento, veja: H. N. Ridderbos, História de la Salvación e Santa Escritura: A Autoridad dei Nuevo Testamento. Trad. J. L. Van der Veld. Buenos Aires: Editorial Escaton, 1973, pp. 31-35.4 cf. 1 Co 1.1:2 Co 1.1; Fp 1.1; Fm 1.1.5 Para maiores detalhes sobre a problemática envolvendo a palavra “Gálatas”, veja a Introdução.6 H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud utidMidrasch, III, p. 257 Para maiores detalhes, veja: H. J. Schoeps, Paul: The Theology o f the Apostle in the Light o f Jewish Religious History. Filadélfia: Westminster Press, 1961.8 Veja E. Kaesemann, Perspectivaspaulinas. Trad. Benoni Lemos. São Paulo: Paulinas, 1980, pp. 43-71, para um estudo do valor salvifico da morte de Jesus em Paulo.9 O querigma primitivo está baseado na constante afirmação de que Cristo veio ao mundo, morreu e ressuscitou, cumprindo as profecias. Para isso veja: C. H. Dodd, The Apostolic Preaching and its Developmnts. Londres: Hodder & Soutghton, 1936. Veja também: Id, Segundo as Escrituras: estrutura fundamental do Novo testament. Trad. J. R. Vidigal. São Paulo: Paulinas, 1979;E. E. Ellis, Paul’s Use o f the Old Testamento. Michigan: Erdmans, 1957.10 H. Sasse, In: TheologicL Dictionary o f the New Testament, I, pp. 197-209." Embora Paulo tenha utilizado o conceito judaico dos dois aion, sem dúvida quis usá-los escrevendo aos gálatas porque tinha sentido na experiência religiosa helenista deles. Para eles, aion era um poder (já que os homens precisavam ser libertos). D. Patte, Paulo: Sua fé e força do evangelho. Trad. José R. Vidigal. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 89.

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12 Para um estudo detalhado da doutrina das duas eras no período do Novo Testamento, veja: H.L.Strack e R Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, IV p. 799ss.

Capítulo 2

1 D. Patte, Op. cit., p. 71.2 «N. J. McEeleny, “Conversion, Circuncision and the Law”, In: New Testament Studies20,1974, pp. 319-341; E. P. Sanders, Paulo, a iei e o povojudeu. Trad. José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulinas, 1990, pp. 27-44.31.15; 5.8; Rm 4.17; 8.30; 9.12,24; 1 Co 1.9; 7.15,17; 1 Ts 2.12; 4.7; 5.24.

4 Para Paulo, não existem dois evangelhos: o seu e o proclamado pelos adversários; mas somente aquele que se baseia na graça divina, que é o evangelho pregado por ele. Um “outro evangelho” não existe.5 O. Cullmann, Salvation in History. Trad. S. G. Sowers. Londres: SCM Press, 1967.6 Rm 15.19; 1 Co 9.12; 2 Co 2.12; 9.13; 10.14; Fp 1.17; 1 Ts 3.2.7 cf. 1 Co 1.23; 15.12; 2 Co 1.19; 4.4,5; 11.4; Fp 1.15,17; Cl 1.28.8 Neste versículo, Paulo não pensa em um determinado anjo.9 J. Behm, In: Theological Dictionary o f the New Testament, I, pp. 353-356.10 C. FI. Dodd, New Testament Studies. Manchester: The University Press, 1954, p.129.Veja ainda: Hans Conzelmann, Act o f the Apostles, p. 156.11W. Bauer, Op cit., pp. 299-302 12R. Bultmann, In: Theological Dictionary o f The New Testament, VI, p. lss.13 Esse tipo de acusação, Paulo rechaça também em 1 Ts 2.4,6; cf. 2 Co 3.1; 4.2; 5.11; 10.1,10.14 Esse tipo de acusação Paulo rechaça também em I Ts 2.4,6; cf. 2 Co 3.1; 4.2; 5.11; 10.1,10.15 J. A. Fitzmyer, Linhas fundamentais da teologia paulina. Trad. José W Andrade. São Paulo: Paulinas, 1970, pp. 21-35, mostra que além de sua formação rabínica, mais outros fatores influenciaram a formação de Paulo: o helenismo; a revelação a Paulo, no caminho de Damasco; a tradição primitiva; e a experiência apostólica.16 Ibid, pp. 40-48.17 cf. o significado distinto em 3.15; Rm 3.5; 1 Co 9.8.18Neste sentido o apóstolo ensina a cada participante da igreja em Cl 1.28; 2 Ts 2.15.19 O verbo pode se referir ao logos akoes (1 Ts 2.3) que aparece como “evangelho” às vezes numa fórmula constante, como demonstra claramente

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N o t a s

(1 Co 15.1-3; cf. Rm 6.17). Pode também sc tratar de tradições dogmáticas (Litúrgicas e éticas que se transmitem em parte oralmente, em parte por escrito (1 Co 11.23; 11.2; lTs 4.1; 2 Ts 3.6).20 Ganha importância a partir da LXX. A. Oepke, In: Theological Dictionary ofthe New Testament, JJI, pp. 565-597.21 Ibid, pp. 572,573.99 Deve-se interpretar este modo como antecipação do acontecimento escatológico.23 Para um estudo sobre Paulo e a fé farisaica, veja: D.Patte, Op. cit., pp. 133,134.24 Tob 4.14; 2 Mac 6.23; Fp 4.22; 1 Tm 4.12; Hb 13.7; Tg 3.13; 1 Pe 1.15,18; 2.12; 3:1,2,16,17; 2 Pe 2.7; 3.11.25 cf. 2 Mac 2.21; 8.1; 14.38; 4 Mac 4.26, onde se pensa na contraposição à conduta gentílica.26 Para uma idéia do individualismo e a comunidade em Israel, veja: H.H.Howley, La Fé de Israel. Trad. Juan Sowell. El Passo: Casa Bautista de Publicaciones, 1973, pp.95-112.27 Em At 26.16ss. a atividade de Paulo é descrita em consonância com a do Servo de Deus (Is 42.7,16; 61.1 LXX).28 Por exemplo, Rm 8.30; 9.24; 1 Co 1.9; 7.15,17-20; G11.6; 5.8,13.29 Segundo G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 53, o núcleo central da mensagem concernente ao episódio de Damasco, tanto em Atos quanto em Gálatas, consiste no seguinte: “O Senhor elevado ao céu, em sua soberana onipotência, transforma o seu perseguidor em seu testemunho”.50 Rm 8.18; 1 Co 3.14; 2 Ts 2.3,8.31 Rm 1.17,18; 1 Co 2.10; G13.23; Fp 3.15.321 Co 9.1; 15.8 mostram em geral que se trata de uma visão, isto é, o que descreve no estilo antigo a exposição de At 9.22,26.33 A passagem é da mais alta relevância, não só como autotestemunho do apóstolo a respeito da sua vocação, mas, sobretudo, porque fornece um relato autêntico e preciso, juntamente com todo o seu contexto de 1-2, texto único em sua modalidade, a respeito de um grande período da história da sua vidae atividade, na verdade o período imediatamente subseqüente à sua vocação, estendendo-se o mesmo por longos anos, e a respeito dos quais Atos não conserva praticamente nenhuma lembrança. G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 46.34 E. Haenchen, Op. cit, p. 281.

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35 r 'E um equívoco imaginar que a estadia de Paulo nesta paragem, pelo espaço de três anos, tenha sido um tempo de solidão monacal, durante o qual, entregue à meditação, ele se teria preparado para o seu futuro apostolado. Tal reconstrução imaginária foi inventada com uma finalidade edificante, segundoo modelo de vida dos anacoretas da Igreja antiga, mas que não encontra nenhum fundamento nas assertivas de Paulo e contradiz, por outro lado, expressamente a missão evangelizadora que ele afirma, clara e enfaticamente, ter recebido. G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 55. Veja também: Hans Conzelmann, History ofPrimitive Christianity, pp. 82-90.56 Nesta região existem cidades helenísticas, tais como Petra, a residência do rei dos nabateu, Arestas IV (que reinou do ano 9 a.C. ao 4 0 d.C.), assim como Gerasa e Filadélfia.57 W. Marxsen, Op. cit, p. 26.-70

O. Cullmann, Pedro: discípulo, apóstolo, mártir. Trad. Nelson Kirst. São Paulo: ASTE, 1964, pp. 42-44.39 cf. At 15.23,41, contra Mt 4.4.24; Lc 2.2; At 18.18; 20.3; 21.3, onde se pensa na província da Síria.40 E. Haenchen, Op. c/Y., p. 423, mostra que Paulo não usava os nomes oficiais das procuradorias romanas, mas os nomes dos territórios.41 Hans Conzelmann, History o f Primitive Christianity, pp. 78-82.49 G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 55.43 É possível que ocorresse como êxtase (At 27.17; 2 Co 12.1ss.), ou como indicação do Espírito Santo em plena consciência. Não deve ser excluído que se deveria à intervenção de um profeta, como acontece em Atos 11.28; 21.4,10,11, especialmente se Paulo tivesse ido a Jerusalém, da mesma forma que Barnabé, como representante da igreja de Antioquia.44 G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 60, para maiores informações.45 L. Cerfaux, La Théologie de Téglise suivane saintPaul. 2a ed. Paris: Les Éditions duDerf, 1948, p. 149.46 Cf. C. E D. Moule, Op.cit., p. 65.47 Sobre o incidente em Antioquia, veja: W. Schmithals, Paul andJames. Londres: SCM Press, 1965, pp. 63-78.48 G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 62.49 R. Bultmann, In: TheologicalDictionary ofthe New Testament, I, pp. 238-247, sobre o sentido da palavra alethéia50 D. W B. Robinson, “The Circuncision of Titus, and Pauis Liberty”, Australian BiblicalRevieu\2,1964, pp. 24-42.

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NOTAS

51 Veja: Hans Conzelmann, Acts oíthe Apostles, pp. 121,122, Excuso: “O Concílio Apostólico”.52 K. Aland, “Wann Staib Pctrus?”; In: New TèstmientStudesZ^ fjSh, pp-167-175.53 G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 28.54 Os termos incircuncisão e circuncisão têm como objetivo provável que a divisão de trabalho era mais etnográfica do que geográfica.55 Paulo certamente se mostraria contrário ao estabelecimento de duas igrejas, uma judaica e outra gentílica, lado a lado. Ambos os grupos deviam ser membros do mesmo grupo. E. P. Sanders, Paulo, a lei e o povo judeu, p. 206.56 Segundo O. Cullmann, Pedro: discípulo, apóstolo, mártir, pp. 46,47, Pedro era o cabeça da missão judaico-cristã, subordinada a Jerusalém. Por isso, Paulo menciona só a Pedro.57 cf. 1 Co 12.6; Fp 2.13; Cl 1.29. Veja também 1 Co 12.11; G13.5; Ef 1.11,20.58 W Schmithals, Paul and James, pp. 50,51. E. Haechen, Op. cit, p. 356.59 Segundo G. Bornkamm, “El Comportamiento Missionero de Pablo Segun1 Co 9.19-23 y los Hechos de los Apostoles”; In: Estúdios sobre elNuevo Testamento, pp. 400-402, historicamente é impossível que Paulo tivesse contado com uma missão aos judeus a ser realizada por outros nos próprios lugares e cidades onde ele estava emprenhado na missão aos gentios.60 Paulo dá um xeque-mate definitivo em seus opositores ao declarar que os primeiros apóstolos reconheciam a importância de seu evangelho aos gentios.G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 48.61 Na seqüência, na qual são enumeradas “as colunas”, que por ocasião do acontecimento aqui mencionado, não era mais Pedro, mas, sim, Tiago, o qual ocupava a direção da igreja em Jerusalém. O. Cullmann, Pedro: discípulo, apóstolo, mártir, p. 46, nota 3.62 G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 67.63 K. H. Schelkle, Palabla y Escritura. Trad. J. J. Ferrero. Madri: Ediciones FAX, 1972, p. 177. Veja ainda: H. J. Schoeps, Op. cit., p. 69.64 Esta coleta é “uma ação pneumática que atesta na prática a unidade da igreja e reconhece a preeminência espiritual da igreja mãe”. H. D. Wendland, “Geist, Recht und Amt in der Urkirche”; In: ArchEvKirchenrechtNFl. 1938, p. 299.65 Segundo D. Patte, Op. cit, p. 67,68, a descrição feita por Paulo a respeito desse incidente mostra a fragilidade do relacionamento entre os cristãos de origem judaica e de origem gentílica, que não podiam estar juntos em refeição alguma, e por conseguinte não podiam celebrar a Ceia do Senhor juntos, já que esta incluía uma refeição normal, pois os cristãos de origem gentílica não observavam as leis

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GÂLATAS CO M EN TÁRIO

de pureza e prescrição alimentares seguidas pelos cristãos de origem judaica.66 J. H. Moulton e G. Milligan, Op. cit., p. 326.67 E. Haechen, Op. cit, p. 315.68 Sobre a proibição de comer com os gentios veja Tob 1.10,11; Dn 1.8; Et (LXX) 28; Jub 12.1ss.; 22.16; Lc 15.2; Jo 4.9; 18.28, etc.69 Veja ICo 11 sobre a polêmica da comida em Corinto, onde os cristãos estavam se reunindo para promover festas.7D D. R. Catchpol, “Paul, James and the Apostolic Decrete”; In: New Testament StudyT), 1976-1977, pp. 428-444.71 Sobre a hermenêutica da Igreja Primitiva, veja: E. E. Ellis, Prophecy andHermeneutics in the Early Church. Michigan: Eerdmans, 1978.72 0 . Cullmann, Pedro: discípulo, apóstolo, mártir, p. 57, salienta que aqui Pedro é tomado pelo mesmo zelo impulsivo que o levou a garantir fidelidade ao Senhor, negando-o, contudo, na hora do perigo.73 Sobre dikaioun (justificado) como o equivalente do hebraico siddeq, hiseddiq e zikkah, veja H. L. Strack e P. Billerbeck, KommentarZum Neuen Testament aus TalmudundMidrasch, III, p. 134.74 Para uma exposição deste assunto veja: D. Patte, Op. cit., pp. 122-126.75 Em Paulo, a fé não é um tema isolado. Dela não se fala como se fosse um sentimento religioso ou uma atitude piedosa. A fé é a natureza a partir do objeto ao qual ela se dirige, ou seja, a graça divina. G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 167.76 “Naquele tempo (nos dias de Abraão, Isaque e Jacó) lhe era geralmente conhecida a lei não escrita, e as obras dos mandamentos (...) e apareceu entãoa crença no juízo futuro (...)” (Syr Bar 57.2).77 A parte mais importante da primitiva literatura rabínica, e certamente a parte que tem mais autoridade, é constituída de leis e mandamentos. Esta é geralmente conhecia como Mixná, que se apresenta como um código de leis, abrangendo todos os aspectos da vida humana. H. L. Strack, Introdution to the Talmud and Midrash. Nova York, Atehneum, 1969.78 cf. Rm 3.7; 7.17ss., 14ss.; 1 Co 6.12.15; 10.29,30; 13.1ss.; 14.11,14,15. Lugares em que mais ou menos se utiliza a primeira pessoa do singular com valor impessoal.7Q

J. Schneider, In: Theological Dictionary olthe New Testament, Y p. 741.80 É um crescer junto com a morte de Cristo e, com ela, uma destruição real ainda que oculta do homem até agora existente e de sua base vital dominada pelo pecado.o\

Para um estudo do misticismo paulino, veja: Albert Schweitzer. The Mysticism c Paul the Apostle. Trad. William Montgomery. 2. ed. Londres.Adam and Charh Black, p. 3.

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N O TA S

OpPartindo do batismo é como se deve entender o “velho homem” em 2 Co 4.16.

A “proximidade” a Cristo, inclusive sua identidade com o “Cristo em nós”, é clara em 3.16,17.07

A isso corresponde o fato de que Cristo se apoderou de nossos membros, colocando-os a seu serviço, e nos insere, como membros, em seu corpo.Desta forma, não somos mais donos de nós mesmos, mas que Cristo é a nossa vida. E. Kaesemann, Op. cit, pp. 37,49.84 cf. SI 88.35; 1 Mac 11.36; 2 Mac 13.25 etc.; Mt 7.9; Lc 7.30; G13.15; Hb 10.28; cf. 1 Co 1.19a “destruir”).85 Conforme pode ser visto no seguinte texto: “(...) os que fizeram seus depósitos de sabedoria, e em quem se encontram tesouros de saber; que não se apartam da graça e têm observado a verdade da lei” (grifo nosso) (Syr Bar 44.14).

Capítulo 3

1É certo que uma saudação nominal aos leitores é rara nas cartas de Paulo, exceção encontrada em 2 Coríntios 6.11; Fp 4.15.2 Pv 15.21; 17.28; Ec 42.8; 4 Mac 5.9; 8.17; Lc 24.25; Rm 1.14; 1 Tm 6.9; Tt 3.3.“7

G. Delling, In: Theological Dictionary o f the New Testament, I, pp. 594,595.4 Rm 15.4; EÍ3.3.5 J. Jeremias, A mensagem central do Novo Testamento. 3. ed. Trad. João Costa. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 47.6 Rm 8.23; 2 Co 1.22; 5.5; At 11.17; 15.8.7 cf. Rm 15.28; 2 Co 7.1; 8.6; Fp 1.6; Hb 8.5; 9.5.8 O verbo usado aqui é encontrado em 2 Co 9.10; Cl 2.19, e o subjuntivo correspondente em Ef 4.16; Fp 1.19. Em todos esses exemplos existe a idéia de suprimento abundante.9 Ti. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud undMidrasch, I, p. 116 ss.10 H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, III, p. 186 ss, 204 ss.11 cf. Rm 4.4,6; 2 Co 5.19.12 E. E. Ellis, Paul’s Use ofthe Old Testament, pp. 20-37.IT

H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch III, p-186 ss.14 Qid 4.14; Jub 23.10; Syr Bar 57.12.

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15 H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, III, p. 538.16 Segundo C. H. Dodd, Segundo as escrituras: estrutura fundamental do Novo Testamento, p. 42; as palavras citadas por Paulo provém de Gênesis 12.3 e o restante de Gênesis 22.18.17 Gn 12.1,2,7; 13.14,15; 15.5,5,18; 17.4,5,16,17; 18.18; 22.17.18 Sab 10.5; Ecl 44.20-23; 1 Mac 2.52; Jub 11-12; 16.19 ss etc.19 Desde os tempos do judaísmo, Abraão foi considerado como o protótipo por excelência do verdadeiro fiel, não somente enquanto exemplo de vida moral, mas também como pai de Israel.20 E. E. EUis, Paul’s Use olthe Old Testament, p. 93.21 Para a forma de utilização por Paulo e pelo escritor de Hebreus, veja: C. H.Dodd, Segundo as esc A.22 Deissmann, Ligth from the Ancient Eart. Trad. L. R. M. Strachan. Londres: Harper e Brothers, 1927, p. 275. Veja ainda: F. Buchsel, In: Theological Dictionary o f the New testament, I, p. 126.

A. Deissmann, Op. cit., pp. 274-276. Escrituras: estrutura fundamental do Novo Testamento, pp. 49,50.24 Para Paulo não se pode separar a morte de cruz, que destrói a lei com a morte expiatória. H. J. Schoeps, Op. cit., p. 187,188.nr

G. Bornkmamm, Paulo: vida e obra, p. 169.26 Os gentios são naturalmente os mencionados no (v.8).27 Para o viver na fé segundo Paulo, G. Bomkmamm, Thulo: vida e obra, pp. 177-180.28 C. H. Dodd, New Testament Studies, p. 141.29 Trata-se de uma fórmula neutra (distingue-se de 1.11; 1 Co 9.8; 15.32).30 H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, III, p. 136 ss.31 As promessas são as mencionadas em (Gn 12.2,3; 7.13,15,16; 15.4,5; 17.1,2; 22.16,17; 27.4,5), e constituem a bênção que Abraão recebeu. Sobre tudointeressa (Gn 17.1-11).32 Com a idéia mencionada em primeiro lugar, Paulo segue a tradição judaica, bem como alguns escritos rabínicos (Sab 12.21; Test 12, José 20; Rm 9.4; 15.8).H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, III, p. 207 ss.33 E. E. Ellis, Paul's Use o f the Old Testamento, p. 70.34 H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, III, p. 553.

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n o t a s

35 cf. Apc Bar 57.2: “Naquele tempo (o de Abraão) era conhecida por todos a lei não escrita, e foram cumpridas então (por Abraão) as obras dos mandamentos. E então surgiu a fé no juízo futuro, e a esperança de que o mundo seria renovado foi, então, fundamentada e a promessa da vida futura foi fundamentada". Jub 24.11: “em tua descendência (a de Isaque) serão benditos todos os povos da terra. Porque teu pai escutou a minha voz e observou minha indicação, meus mandamentos, minhas leis, minha ordenação, meu pacto”. Qid 4.14: “(...) vemos que nosso pai Abraão observou toda a Torá antes de ser promulgada, pois se diz: como prêmio pelo fato de Abraão ter escutado a minha voz e guardado o que devia observar referente a mim, meus mandamentos, meus estatutos e minhas leis’, (Gn 26.5)”.36 H. L. Strack e R Billerbeck, KommentarZum Nenen Testament aus Talmud undMidrasch, III, pp. 205, 206.37 C. E. B. Cranfield, Op. cit., p. 46.38 Para um estudo sobre o objetivo da lei em Paulo, veja: C. H. Dodd, New Testament Studies, pp. 129-142; E, P. Sanders, Paulo, a lei e o povo judeu, pp. 75-103. Segundo J. C. Beker, Paulthe Aposlle. Filadélfia: Fortress Press, 1980, p. 243; (G13.19; 4.24) é, ao lado de (Rm 7.13; 5.20; 11.32), um dos textos bíblicos em que a função da história da salvação é estudada.39 Ao fazer a pergunta ti oun nómos (qual o propósito da lei), o raciocínio de Paulo é em si mesmo uma elipsis. A. Debrunner e F. Blass, Op. cit., § 480.

40 Bar Pes 54a: “Sete coisas foram criadas antes da criação do mundo: a Tora, a penitência, o paraíso, o inferno, o trono da glória, o santuário (celestial) e o messias. Na Tora, pois está escrito: Provérbios 8.22: Javé me (sabedoriaíJTorá) criou como princípio de seu caminho, como primeira de suas obras, muito antes de (...)”. Cf. Também Gn 1 (2b, 14):' “seis coisas precederam à criação, algumas delas foram (verdadeiramente) criadas e outras subiram nos pensamentos (de Deus), para (alguma vez) ser criada. A Torá e o trono da glória foram (verdadeiramente) criados (...)”.41 C. E. B. Cran&eld, Op. cit., p. 46.42 L. Baick, “The Faith of Paul”; In: Journalo/Jewish Studies 3,1952, p. 106. H. J. Schoeps, Op. cit., pp. 171-173.43 O judeu fala da lei como sendo eterna, cf. Bar 4.1: “Ela é o livro dos mandamentos de Deus, a lei decretada para sempre: os que a guardam viverão, os que a abandonam morrerão”; Apc Bar 77.15: “Ainda que nós (os guias e mestres de ísraei) também nós marchamos (morremos), permanece,

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entretanto, a lei”; 4 Esd 9.37: “A lei não sucumbe, mas permanece em seu esplendor” etc.44 A. Oepke, In: Theological Dictionary o f the New Testament, IV, pp. 615,618.45 Pesiq R. 21(104a): “R. Yudan (II), o patriarca (h. 250) disse: quando Deus desceu no monte Sinai para dar a Israel a Torá, desceram com ele Miguel e sua bandeira, Gabriel e sua bandeira. (..). Também Shab 88b: “R. Yehoshua b. Levi (c. 250) disse: quando Moisés subiu a altura (para receber a lei), disseram os anjos do serviço perante Deus: Senhor do mundo, que faz em nosso meio o nascido de mulher?” etc.46 Como ilustração, Pesiq R. 21 (103b): “Em uma tradição que chegou do exílio em suas mãos (com os que voltaram) se encontrou escrito: dos miríades dos alepe ’ sineanòn entre os anjos baixaram com Deus ao monte Sinai para dar a Israel a Torá”.47 Midr. HL 1,2 (82a): “Um anjo secou a voz de Deus em cada mandamento e a fez circular e a apresentou a cada israelita para ver se aceitava”. Segundo Jub1.27,28, o anjo da presença escreveu ou ditou a Moisés a lei e outras tradições. Apc Moisés: “Esta é a história e a vida dos que foram criados primeiramente, Adão e Eva. Foi revelada por Deus a seu servo Moisés, quando recebeu as tábuas da lei da mão do Senhor. Pelo Arcanjo Miguel lhe foi transmitida”.48 Dt R. 3 (201a: “R. Yiçjaq (c. 300): nossos mestres ensinam que se o barril se rompeu, não serve para o negociador. Deus disse a Moisés: tu tens sido o negociador (o mediador) entre mim e meus filhos; tu quebraste (as tábuas), tu tens que romper”.49 M. A. Halévy, Moisedaus Vhistoire et dons la legende. Paris: Delachaux, 1927; A. Meyer, Legendes juives apocryphes surla viedeMoise. Paris: Delachaux, 1925.50 W. H. Isaacs, “Galatians iii.20”; In: Expositor Times35,1924-1925, p. 567.51 A. Oepke, In: Theological Dictionary o f the New Testament, IV p. 619.52 Nunca foi intenção de Deus fazer da lei a condição de vida; E. P. Sanders, Paulo: a lei e o povo judeu, p. 222.55 cf. 3.6,7; Rm 4.54 G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 154.55 Para o ponto de vista da integração do batismo na mensagem da justificação e na teologia da cruz, segundo Paulo, veja: G. Barth, El Batismo eni el Tiempo dei Cristianismo Primitivo. Trad. C. Ruiz-Garrido. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1986, p. 104-120.56 Para Paulo, batizados em Cristo é numa doação que se fundamenta precisamente a nova vida em Cristo (Rm 6.3,4). Veja também Albert Schweitzer, Op. cit., pp. 121,122.

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NOTAS

57 G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 215.58 Ibid, p. 68.59 Grego designa a outra categoria da humanidade, aqueles que não são judeus (Rm 1.16; 2.9,10; 3.9; 10.12; 1 Co 1.24; 10.32; 12.13; Cl 3.11).60 Não encontramos em fontes judaicas, exemplos sobre tal questão.61 Sobre esta questão de uma relação especial e estreita entre os astros e os elementos, o texto mais claro é este: “Então um outro anjo falou-me, o que iria comigo e me mostrava o que estava oculto, o primeiro e o último, no céu, na altura, debaixo da terra, na profundidade, nos confins dos céus, no fundamento do céu e nos depósitos dos ares; e como se repartem os espíritos, como se pesam e se contam a força do espírito e os ventos, cada um segundo a força do espírito, a força do poder da lua (...) e as divisões das estrelas segundo seu nome e todas as divisões que se fazem entre relâmpagos para que relampejem” (Hen Et 60.11-13).62 “Antes de se convocar as potências do movimento, antes de se reunir os inumeráveis exércitos de anjos” (4 Esd 6.3). “Outra vez vi relâmpagos e estrelas do céu, e vi como as chamava a todas por seu nome e os escutavam.E vi (...) suas rotações segundo o número dos anjos e guardavam fidelidade entre si” (Hen Et 43.1,2). “E vi seis portas, pelas quais sai o sol (...) tambéma lua sai por essas portas (...) os guias das estrelas junto com aqueles que as guiam” (72.3). Ainda no livro de Hen Et 6-8, fala-se dos anjos caídos como dominadores dos elementos, das constelações e dos planetas. Já em seus nomes e propriedades há uma combinação de elementos.63 “Muitos dos chefes das estrelas se tornaram rebeldes a seu mandato, e mudaram seus caminhos e ofícios e não apareceram nos tempos que foram designados. Toda a ordem das estrelas estará fechada ante os pecadores, e erraram por causa dos pensamentos dos habitantes da terra; tornaram rebeldes em todos seus caminhos, erraram os que os teriam por deuses” (Hen Et 80.6,7).64 Para Paulo, o acontecimento salvífico é o acontecimento escatológico que põe fim ao velho “aion”. Sim Paulo esperava um fim do mundo antigo como acontecimento cósmico que teria lugar com a iminente parusia de Cristo (1 Ts 4.16; 1 Co 15.23,51,52), este drama pode ser unicamente conclusão e confirmação do acontecimento escatológico que já começou, R. Bultmann, Teologia dei Nuevo Testamento, p. 365. Para um estudo da escatologia paulina, veja: G. Vos. The Pauline Eschatology. Grande Rapids: Baker Book House, 1979.

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GÁLATAS CO M EN TÁ RIO

65 H. N. Ridderbos, When the Time had Fully Come. Michigan: Eerdamns,1957, pp. 48,68,69.66 Cf. Bar Syr 48.2; “Oh! Senhor tu chamas a chegada dos tempos, e estão perante ti, fazes aparecer o domínio dos mundos, nada se ti opõem, ordenas o curso das estações, e ti obedecem”.67 Cf. 4 Esd 36.37: “Pois pesou o aion na balança. Mediu as horas com medidas e contando o número dos tempos. Não os interrompe nem os desperta, até que se complete a medida anunciada”.68 Cf. Test 12, Dã 11.35; também 14.5; 4 Esd 95: “Então vi o altíssimo, seus tempos haviam acabado e seus aions estavam cheios”.69 E. Schweizer, In: Theological Dictionary o f the New Testament, VIII, pp. 374,376.70 Aqui, a exemplo de 1.15,16, Paulo emprega o mesmo termo cristológico que expressa soberania, a saber, filho de Deus. Em Paulo, é justamente esse termo que vence todas as barreiras de uma fé judaico-messiânica, de cunho particular ou exclusivista e que, fundamentalmente diz respeito ao âmbito das idéias referentes à salvação, abertas a todos, judeus e gentios.71J. Jeremias, Op. cit, pp. 11-3572 Cf. Od Sal 4.1,2: “Louvemos ao Senhor todos seus filhos, e proclamemos a verdade de sua fé, seus filhos são conhecidos por ele, por isso cantemos em seu amor”.73 As religiões pagãs eram ricas e miseráveis, como mendigos, porque não ofereciam nenhuma participação nas ricas bênçãos espirituais.74 B. Reiche, 'The Law and his World According to Paul: Some Thoughts Concerning G14:1-11", In: Journal of Biblical Literature, 1951, pp. 159-276.7c

Os textos que tratam da observância de dias especiais, meses, tempos definidos e anos, são: 75.3,4: “Pois, os sinais e tempos, os anos e dias, ensinou- me no céu e na terra o anjo Uriel, o qual o eterno Senhor colocou sobre todas as luzes do céu, para que apareçam sobre o mundo e sejam guias do dia e da noite, sol, lua, estrelas e todas as criaturas que servem, as que fazem suas viagens pelos carros do céu”. 79.2: “ “Ensinou-me todas as suas leis para cada dia, para cada tempo de domínio, para cada ano e sua saída segundo o prescrito para cada mês e cada semana”. 82.7,8: “Pois, Uriel me ensinou e descobriu as luzes, meses, festas, anos e dias (...) Esta é a lei das estrelas que se ocultam em seus lugares, a seus tempos, festas e meses. Estes são os nomes dos guias (...) cuidam de que apareçam a seus tempos determinados, que as guiam a seus lugares, segundo suas ordens, tempos, meses, períodos de domínio e suas estações”.

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NOTAS

76 Jub 1.14: “E esqueceram toda minha lei, todos meus preceitos e todo meu direito; aboliram a lua nova, o sábado, as festas, os jubileus e a ordem”. De maior importância são os seguintes textos. 6.32: “E tu ordena aos filhos de Israel que observem os anos com este número: 364 dias, e (isto) é um ano inteiro e não devem violar o tempo de seus dias e de suas festas (...) e não prescindir de nenhum dia nem de nenhuma festa”. 6.34,37: “E todos os filhos de Israel esqueceram a lua nova e o tempo e o sábado, e erraram (em) toda a ordem dos anos (...) e aboliram meses, sábados, festas e jubileus”. Etc.77 A. Debrunner e F. Blass, Op. cit., § 188.781 Co 4.16; 11.1; Fp 3.17; 2 Ts 3.9. Veja também a nota em Elizabeth A. Castelli. Imitating fhui:A Discourse ofPower. Louisville: Westminster/[ohn Knox Press, 1991, p. 115.7Q Isto implica um aumento da força de todo o argumento.80 Aqui contém o conceito da transitoriedade da sarx, que pode levar o homem à uma doença física, que ele não tem controle; G. Bomkamm, íòuh: vida e obra, p. 159.cu

Essa expressão não é utilizada por Paulo em nenhum outro lugar.Qp

Essa prática era comum na literatura grega. Na literatura bíblica encontramos em (Dt 10.32; SI 16.8; Pv 7.2; Zc 2.12).

85 R. Bultmann, In: Theoiogical Dictionary ofthe New Testament, I, pp. 238-247, sobre o sentido da palavra alethéia.84 Paulo pensa aqui na sua pregação do evangelho desde o primeiro encontro com eles.85 Paulo se autodenomina não só como pai dos cristãos em geral (cf. 1 Co 4.15;2 Co 6.13; 1 Ts 2.11), mas também das comunidades (1 Ts 2.7).86 E. E. Ellis, PauVs Use ofthe Old Testamento, p. 52.07

O versículo 21a é lei, a instituição da lei, versículo 21b a Torá.88 Paulo, na sua argumentação, está pensando em (Gn 16.15; 21.29).90 Na história, tal como Paulo a concebe, a única continuidade existente é o próprio Deus, a sua promessa e a fé que confia na sua palavra. Qualquer outra continuidade é aqui rompida, porque este Deus não é o fiador de uma história terrena, e sim aquEle que “faz viver os mortos e chama à existência as coisas que não existem” (Rm 4.17). Paulo, porém, se refere à história, a história real. Deveras, entre Abraão e o fiel de hoje se estende um sólido arco, cujo pilar é a graça ocorrida em Abraão, e o último é, ainda na vez, somente a graça de Deus da qual todos participam pela fé. G. Bomkamm, Paulo: vida e obra, p. 74.910 sentido é de caracterizar, A. Debrunner e F. Blass, Op. cit., pp. 293,293.

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99G. I. Davis, “Hagar, el-Hegra, andtheLocation ofMountSinai”, In: Vetus

Testamentum 22,1972, pp. 152-163.93 ustoincherin fugiu um pouco do seu significado concreto e preciso e quer dizer simplesmente “pertencer”, “representar”, veja: W. Bauer, Op. cit., p. 1574.94 O farisaísmo tinha sobrecarregado a lei de tamanha massa de regulamentos minuciosos que sua observância se tornara um fardo.95 L. Cerfaux, Op. cit., pp. 269-275.96 Is 54.10,11; 60-61; Tob 13.9,10,20,21; 14.7. Esta tradição pode ser encontrada ainda em Jub 4.26; Bar Syr 4.1 ss; 32.2 ss etc.97 “(...) vêm dias, quando se realizarem os sinais que foram dito antes, então aparecerá a cidade invisível e se mostrará o país oculto; e todos os que forem salvos das pragas preditas, verão minha maravilha” (4 Esd 7.26,27; Hen Et 53.6; 90.28,29).98 Para a idéia da criação e recriação na literatura judaica, veja: D. S. Russel, The MethodandMessage of Jewish Apocalyptic. Filadélfia: Westminster Press, 1964, pp. 280-284.99 Targum HL 8.5: “Naquela hora (no tempo da ressurreição dos mortos) alumiará Sião, que é a mais de Israel, a seus filhos e Jerusalém receberá os desterrados”. Especialmente interessante é Targum Is 54.1: “Dei graças, Jerusalém, que era como uma mulher estéril, que não dava a luz. Entoou um cântico de graças e alegra-te, tu que és como uma mulher que não ficou grávida, pois os filhos de Jerusalém destruída serão mais numerosos que os da cidade habitada, disse Javé”.100 Para uma discussão desta alegoria, em relação a argumento de Gálatas, veja, C. K. Barret, “The Allegory of Abraham, Sarah and Hagar in the Argument of Galatians"; In: J. Freiedrich, W. Pohlmann e P. Stuhlmacher (eds), Rechtfertigung: Festschrift fiiur Ernest Kaesemann. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1976.101J. A. Fitzmyer, Op. cit., p. 138.109 Utilizado por Paulo na maioria das vezes no imperativo, A. Debrunner e F. Blass, Op. cit., §73.

E. P. Sanders, Paulo: a lei e o povo judeu, pp. 44-46.104 £ p Sanders, Paul andPalestinian Judaism, p. 291.105A palavra ekpíto (cair de) era usado originalmente para a queda de uma flor, depois “ser separado de alguma coisa”, “perder sua parte em”.106 E. Kaesemann, E. Ensayos exegeticos. Trad. R. Femández. Salamanca: Edicione Sígueme, 1977, pp. 265,273.

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NOTAS

107 cf. 5.14; Rm 13.8,9.108 cf. A. Debrunncr e F. Blass, Op. cit., § 488,1 b.109 Aquele que chama é obviamente Deus.110 Para o mesmo sentido veja (G13.1).111G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 110. Isto quer dizer, certamenteo seguinte: se ele tivesse continuado com semelhante tipo de pregação missionária, como os judaizantes de modo renovado propagavam, então teria sido poupado de perseguição por parte dos judeus, mas isso às custas da mensagem da cruz.112 Ibid, p. 201.113 W. Marxsen, Op. cit., p. 59.

Capítulo 4

10 Problema da imoralidade e outros maus comportamentos está relacionado diretamente com a liberdade excessiva. D. Patte, Op. cit, p. 446.2 Paulo sintetiza toda a lei no mandamento do amor ao próximo (Rm 13.8,9; G1 5.14).3 Para uma exposição mais detalhada de 5.1315, vela: G. Bornkamm, “A liberdade Cristã: meditação sobre (G15.13-15)”; In: Estúdios sobre Elnuevo Testamento, pp. 81-86.4 B. Reiche, “The Law and his World According to Paul: Some Thoughts Concemin G14.1-4; In: JournalóíBiblical Uterature, 1951, pp. 1HYPERLINK “file:///59-276”59-276. Veja ainda comentário de C. E. B. Cranfield, Op. cit, p. 46.5 W. Barclay, Obras da carne e o fruto do Espírito. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 1985, pp. 25-27.6 H .}. Schoeps, Op. cit, p. 208.7 7G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 241, acredita que neste caso, o apóstolo se situa no sulco de uma tradição preexistem, que não se pode fazer remontar diretamente até a Torá do Antigo Testamento, mas com certeza ao judaísmo helenista que havia estendido a todos os homens o conceitos de “próximo”, que o antigo Israel restringia aos compatriotas.8 E. P. Sanders, PaulandPalestinian fudaism, pp. 112-114.9 “O amor ultrapassa a pessoa singular e inclui o próximo. Este processo e este movimento fazem parte da própria essência do amor e fazem com que ele seja o âmbito no qual vive e age a fé”. G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, p. 242.

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GÄLATAS C O M EN TÁ RIO

10 H. Seesemann, In: Theological Dictionary o f the New Testament, V, pp. 940-946.11 R. Bultmann, Teologia dei Nuevo Testamento, p. 278.12 E. Schweizer, In: TheologcalDictionary o fée New Testament VI, pp. 425-430.13 Rm 6.19; 2 Co 4.11; 7.5; Gl 4.14; 6.8; Ef 2.3,14; 5.29; CI 1.22,24; 2.18.14 Rm 7.5; 8.8; 2 Co 10.3; Gl 2.20; Fp 1.22.15 Rm 8.4,5,12,13; 13.14; 2 Co 5.16; 10.2,3; Ef 2.3; Fp 3.3.16 cf. Rm 5.5; 8.9,10; 1 Co 12.13; Gl 3.1,2.17 cf. W. Barclay, Op. eit, pp. 25-59. Para uma exposição das obras da carne e o fruto do Espírito, segundo os escritos do mar Morto, veja: W. D. Davis. Christian Origins andJudaism. Londres: LongmannSt Todd, 1962, pp. 145-177.

G. Bomkamm, Paulo: vida e obra, p. 228.19 A lista de vícios apresentada por Paulo revelam principalmente os pecados mais característicos dos gentios conforme os judeus os viam. E. P. Sanders, Paulo: a lei e o povo judeu, p. 106.90

K, R Donfried, “Justification and Last Judgment in Paul”; In: Zeitschrift für die Neutestamentliche Wissenschaft67,1976, p. 107.21VOGTLE, A, “Die Tugend und Lasterkataloge in NT”; In: NT1. Abh, XVI. 1936, pp. 15,16.22 cf. Rm 1.29-31; 1 Co 5.10,11; 2Co 12.20,21; Ef 4.31; 5.3-5; Cl 3.5-8; 1 Tm 1.9,10;2 Tm 3.2-7.23 Na realidade, todos esses vícios (com exceção da idolatria) são também denunciados nas filosofias helenísticas e em muitas religiões helenísticas. São o que é comumente considerado como atitudes más na cultura helénica da época.24 At 15.20,29; 21.25; Rm 1.29; 1 Co 5.1; 6.13,18; 7.2; 1 Ts 4.3.25 W. Barclay, Op. cit, p. 26.26 Ez 9.9; Pv 6.16; 24.9; Sab 2.16; 3 Mac 2.17; Ed 1.40.27 cf. Rm 13.13; 2 Co 12.21; cf. Sab 14.26; 3 Mac 2.26.po

Trás a idéia daquilo que é maculado e sujo, tendo uma qualidade repulsiva, que desperta nojo em qualquer pessoa decente que olha para tal pessoa.29 “Porneia indica o pecado dentro de uma área específica da vida, a área das relações sexuais; akatharsia indica uma contaminação geral da pessoa inteira, maculando todas as esferas da vida; aselgeia indica um amor ao pecado tão desenfreado e tão audaz que o homem deixou de importar-se com aquilo que Deus ou os homens pensam a respeito das suas ações.” W. Barclay, Op. cit, p. 31.30 Test 12, Jud 19.1; 1 Co 5.10,11; 6.9; Ef 5.5; 1 Pe 4.3; Ap 21.8; 22.15.

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NOTAS

31 Seus derivados aparecem no sentido de “magia” no grego profano, na LXX (Êx 7.11,22; 8.3,14; Dt 18.10; Is 47.9,12; Sab 12.4; 18.33), na literatura judia apócrifa (Test 12, Jud 23; Hen Et 7.1) e no Novo Testamento (Ap 9.21; 18.23; cf. 21.8; 22.15).52 “No Novo Testamento ocorre somente duas vezes. Em Romanos 8.7, Paulo escreve que a morte que se fixa na carne é hostil a Deus, e em Efésios 2.14,16, é usada para a parede divisória de hostilidade que faz separação entre judeu e gentio até que ambos se tornam um em Cristo.35 Rm 1.29; 1 Co 1.11; 3.3; 2 Co 12.20; Fp 1.15; 1 Tm 6.4; Tt 3.9.34 Rm 13.13; 1 Co 3.3; 2 Co 12.20.35 W. Barclay, Op. cL, p. 41, salienta que echthraz eristêm uma ligação muito grande uma com a outra. Echthraz um estado e atitude da mente para com outras pessoas; e erísé o resultado na vida real desse estado mental.36 E Büchsel, In: Theological Dictionary o f the New Testament, III, pp. 167,168.37 Ibid, pp. 660,661.38 Romanos 2.8 faz pensar sobretudo, no “espírito de contradição” ou também na rebeldia; em Filipenses 1.17; 2.3 no “espírito de partidos”. Em Tiago 3.14,16 aparece junto com zelo e pode significar “propensão aos partidos” e também “propensão à rixa, e talvez “egoísmo”.39 Na LXX ocorre somente em I Mac 3.29, onde descreve a dissensão e inquietude nacionais que se seguiram após novas legislações incabíveis que formaram um rompimento violento com o passado.40 H. Schlier, In: Theological Dictionary o f the New Testament I, pp. 180-183.41W. Barclay, Op. cit, p. 46.42 Só ocorre novamente no Novo Testamento em (Rm 13.13), onde aparece junto com methe43 cf. 1 Co 6.9,10; Ef 5.5,6; Cl 3.6; 1 Ts 4.6; também (Rm 1.32; Hb 13.4; Ap 21.8;22.15).44 cf. W. Barclay, Op. cit., pp. 60-118.45 cf. Rm 6.21; Fp 1.11; especialmente Ef 5.9,11.46 Todas essas virtudes (com exceção do amor) são enaltecidas pelos filósofos gregos e são com freqüência afirmadas nas religiões helenísticas. São o que comumente é considerado como boas atitudes na cultura helenística. Para maiores informações, veja: O .). F. Seitz, “Lists Ethical”; In: The Interpreter’s Dicionary o f Bible, III, editado por G. A. Buttrick e K. Crim. Nashville: Abingdon Press, 1962. pp. 137-139; C. K. Barret, New Testament Background: Selected Documents. Nova York: Harper & Row, 1961, p. 68; D. Patte, Op. cit., p. 112.

47 G. Bornkamm, Paulo: vida e obra, pp. 241-144.

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GÁLATAS C o m e n t á r i o

4S cf. Ef 4.2 ss; Cl 3.12 ss; 2 Co 6.6; 2 Pe 1.7.

49 Em Paulo trata-se do amor a Deus (Rm 5.8; 2 Co 13.13; 2 Ts 3.5; Ef 1.4; 2.4;Cl 3.12; 1 Ts 1.4; 2 Ts 2.13,16), do amor de Cristo (Rm 835,37; 2 Co 5.14; G12.20; Ef 3.19; 5.2,25), e, portanto, o amor de Deus em Cristo Jesus, amor do Espirito.

501 Co 16.24; 2 Co 8.8,24; Fp 1.9; 1 Ts 1.3; 3.6; 5.8; 2 Ts 1.3.

51 Rm 16.19; 1 Co 16.17; 2 Co 2.3; 7.4,7,9,13,16; 13.9; Fp 1.4; 2.2,28; 4.1,10; Cl 2.5; 1 Ts 2.2.19; 3.9.

52 2 Co 6.10; 7.4; 8.2; 1 T s 1.6.

53 Rm 15.33; 16.20; 1 Co 14.33; 2 Co 13.11; Fp 4.9; 1 Ts 5.23.

54 De acordo com 1 Co 7.15, os cristãos foram chamados à paz.

55 F Hauch e S. Schulz, In: Theological Dictionary o f he New Testament VI, p. 645.

56 Em 1 Co 7.9, é usado sobre o controle dos desejos sexuais.

57 W Michaelis, In: Theological Dictionary o f the New Testament V pp. 930-934.

58 R. Bultmann, Teologia dei Nuevo Testamento, pp. 294-297.

59 J. A. Fitzmyer, Op. cit., pp. 137-143. Espírito é o oposto à carne (cf. 5.16;6.8; Rm 8.4,5). Como carne é a essência do mundano, do visível, daquilo que é corruptível que se apodera do homem, o Espírito é a essência do não-mundano, do invisível, do incorruptível; é a força do futuro, que dirige o homem. R. Bultmann, Teologia deiNuevo Testamento, p. 396.

60 2.20; Rm 6.10; 7.9; 2 Co 13.4; 1 Ts 3.8.

61W Bauer, Op. cit., p. 1525.

62 cf. SI 18.13; 21.2, Sab 10.1; Ez 3.20; 14.11 etc.

63 J. H. Moulton e G. Milligan, Op. cit., p. 572.

64 E. Kaesemann, Perspectivaspaulinas, p. 68.

65 G. Schrenk, In: Theological Dictionary o f the New Testament, I, pp. 553-556.

66 Veja, C. H. Dodd, New Testament Studies, p. 59.

67 A expressão “lei do Messias” e encontrada em Midr. Ec 11.8 (52a); veja H. Strack e P Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, III, p. 577.

68 H. Strack e P. Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, IV, p. 1 ss.

69 E. P. Sanders, Paulo: a lei e o povo judeu, p. 110.

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N o t a s

70 Sobre a “lei de Cristo” significando a tradição de Jesus, veja: W. D. Davies, PaulandRabinic fudaism. 4a ed. Filadélfia: Westminster Press, 1980, p. 144.

71W Gutbrod, In: Theoiogical Dictionary ofthe New Testament, IV, pp. 1068-1077.

72 Rm 4.2;1 Co 5.6; 9.15 etc.

Sobre isto, veja, C. H. Dodd, New Testament Studies, p. 64, que salienta que a lei de Cristo demanda levara a própria phortion.74 H. Strack e P. Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, III, p. 817.

75 A expressão “em Cristo” é de grande importância para Paulo; designa o modo singular de falar, de pensar, de agir, de sofrer e também de se conduzir em relação ao próximo, que corresponde ao fato de ser cristão. Em muitas oportunidades, ela sintetiza aquilo que, por meio de Cristo, ocorreu aos fiéis e sobre o que está fundamentada a salvação. Em Cristo e por meio de Cristo, Deus manifestou o seu amor (Rm 8.39). Nele e por meio dEle, os fiéis são chamados, justificados, reconciliados, libertados e santificados (Fp 3.14; 1 Co 1.2; 6.11; 2Co 5.21, G1 2.4). Desta forma, a expressão “em Cristo” pode expressar plenamente a realidade nova, basilar e global, na qual estão colocados os fiéis, após terem sido libertados da esfera das obras da carne, e passaram a viver segundo o Espírito.

76 N. J. McEeleny, “Conversion, Circuncision and the Law”, In: New TestamentStudies20,1974, pp. 319-341.

77 cf. 1 Co 9.24,25; 10.12; Fp 3.12,13.70 ,

A exortação é geral e deve ser característica de todos os homens (Rm 12.17,18; 14.18; lTs 5.15).

Capítulo 5

1 É costume de Paulo colocar em suas cartas um final escrito com o seu próprio punho, quando se trata de uma saudação final (1 Co 16.21; 2 Ts 3.17), enquanto dita o restante (Rm 16.32).o

A palavra ergapsa como autêntico pretérito em relação com uma carta anterior, (1 Co 5.9; 2 Co 3.3,9; 7.12); sobre uma carta acabada recentemente, (Rm 15.15), sobre a parte anterior da carta, (1 Co 9.15; F121).■z

Era muito comum na época o escritor lançar mão de um secretário para

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GÁLATAS C O M EN TÁ RIO

redigir sua correspondência, somente ao final é que ele escrevia com seu próprio punho. A. Deissmann, Op. cit., p. 166.

4 cf. C. F. D. Moule, Op. cit., p. 31.

5 Veja: W. D. Davis. Op. cit, p. 187.

6 E. P. Sanders, Paulo, a iei e o povo judeu, pp. 209,210.

7 H. j. Schoeps, Op. cit., p. 208, sobre a expressão hoi peritemnómenoi.8 E. P. Sanders, Pauio, a lei e opovo judeu, p. 38.

9 Assim, “desapareceu os uniformes religiosos, e a comunidade eclesial só existe como representação recíproca, no lugar próprio de cada um, no serviço próprio de cada um, com a bênção própria de cada um”; E. Kaesemann, Perspectivaspaulinas, p. 40.

10 cf. C. H. Dodd, New Testament Studies, p. 120.

11 Para a idéia de uma nova criação segundo a literatura apocalíptica, veja: D. S. Russel, Op. cit., pp. 280-284.

12 E. P. Sanders, Paulo, a lei e o povo judeu, pp. 186-188; para uma discussão do assunto. Veja ainda: P. Richardson, Israelin the Apostolic Church. Nova York: Cambridge: University Press, 1969, pp. 74-84.

15 R. Bultmann, Teologia dei Nuevo Testamento, p. 191.

14 Paulo pode descrever a comunidade como escatológica empregando conceitos da história da salvação como quando a descreve como comunidade da “nova aliança” (2 Co 3.6,7; 1 Co 11.25) ou “Israel de Deus”, como acontece aqui.

15 H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar Zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, IV, p. 214, recessão babilónica.

16 Quando fciulo diz que leva em seu corpo “as marcas de Jesus”, a palavra usada para corpo, soma, tem o mesmo sentido de quando fala da “debilidade da carne” (4.13) ou do “espinho na carne” (2 Co 12.7). Aqui somaz .sa/xsignificam a mesma coisa.

17 Segundo E. Kaesemann, Perspectivaspaulinas, p. 49, não se pode separar a fé de tais marcas. W Klassen, “Galatians 6.17”; In: Expositor Times81,1969-1970, p. 378.

18 R. Bultmann, Teologia dei Nuevo Testamento, p. 248.

19 E. Kaesemann, Perspectivas paulinas, p. 65.

20 Diferente de outras cartas paulinas (Rm 16.20; 1 Co 16.23; Cl 4.18; 1 Ts 5.28;2 Co 13.13; 2 Ts 3.8).

21H. Schilier, In: Theological Dictionary o f the New Testament I, pp. 336-338.

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GERMANO SOARES, PASTOR

♦ Pr. Presidente de honra da Igreja Evangélica da Assembléia de Deus em Vila Piam♦ Presidente do Conselho de Educação da CEADER♦ Coordenador do Curso de Teologia da FAECAD + Diretor geral do Instituto Bíblico das Assembléias de Deus (IBADERJ)♦ Membro da Academia Evangélica de Letras do Brasil

FAM ÍLIAAna Maria Lino da Silva (esposa)

FILH O S:Eduardo Soares Silva Germano Soares Silva Júnior Hudson Soares Silva

N ETA :Maria Eduarda Gil Soares