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Sumário Estudos de História da Igreja: do ano 0 ao ano 1517 I. Introdução .................................................................................................................................. 5 1. Lições da história. ................................................................................................................. 5 2. A contribuição dos romanos, dos gregos e dos judeus para o advento do cristianismo. ....... 5 II. Jesus Cristo: Historicidade e Ministério Terreno ..................................................................... 7 1. A Historicidade de Jesus Cristo. ........................................................................................... 7 2. A Cronologia da Vida de Jesus Cristo................................................................................... 8 3. A Vida de Jesus Cristo. ......................................................................................................... 9 III. Os Avanços da Igreja até 313 d.C. ........................................................................................ 11 1. O primeiro século. ............................................................................................................... 11 2. Os séculos II e III. ............................................................................................................... 13 IV. As Dificuldades Externas da Igreja até 313: ......................................................................... 15 1. A perseguição. ..................................................................................................................... 15 1.1) A perseguição no Primeiro Século. ......................................................................... 15 1.2) A Perseguição até Meados do Terceiro Século. ...................................................... 16 1.3) A Perseguição até o Edito de Milão. ....................................................................... 19 2. As Acusações. ..................................................................................................................... 20 V. As Dificuldades Internas da Igreja até 313: ........................................................................... 22 1. As Heresias.......................................................................................................................... 22 1.1) O Ebionismo............................................................................................................ 22 1.2) Os Elquesaítas. ........................................................................................................ 22 1.3) O Gnosticismo. ........................................................................................................ 23 1.4) O Montanismo. ........................................................................................................ 24 1.5) O Monarquianismo. ................................................................................................. 24 1.6) O maniqueísmo. ...................................................................................................... 25 2. As Divisões Internas............................................................................................................ 26 VI. As Reações da Igreja: A Literatura dos Séculos II e III ........................................................ 27 1. Introdução. .......................................................................................................................... 27 2. A Literatura dos Pais Apostólicos. ...................................................................................... 27 2.1) Clemente de Roma (30-100 d.C.) ................................................................................ 27 2.2) Inácio de Antioquia ...................................................................................................... 27 2.3) Policarpo (c. 70-155), .................................................................................................. 28

Estudos de história da igreja do ano 0 a 1517

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Sumário

Estudos de História da Igreja: do ano 0 ao ano 1517

I. Introdução .................................................................................................................................. 5

1. Lições da história. ................................................................................................................. 5

2. A contribuição dos romanos, dos gregos e dos judeus para o advento do cristianismo. ....... 5

II. Jesus Cristo: Historicidade e Ministério Terreno ..................................................................... 7

1. A Historicidade de Jesus Cristo. ........................................................................................... 7

2. A Cronologia da Vida de Jesus Cristo................................................................................... 8

3. A Vida de Jesus Cristo. ......................................................................................................... 9

III. Os Avanços da Igreja até 313 d.C. ........................................................................................ 11

1. O primeiro século. ............................................................................................................... 11

2. Os séculos II e III. ............................................................................................................... 13

IV. As Dificuldades Externas da Igreja até 313: ......................................................................... 15

1. A perseguição. ..................................................................................................................... 15

1.1) A perseguição no Primeiro Século. ......................................................................... 15

1.2) A Perseguição até Meados do Terceiro Século. ...................................................... 16

1.3) A Perseguição até o Edito de Milão. ....................................................................... 19

2. As Acusações. ..................................................................................................................... 20

V. As Dificuldades Internas da Igreja até 313: ........................................................................... 22

1. As Heresias. ......................................................................................................................... 22

1.1) O Ebionismo. ........................................................................................................... 22

1.2) Os Elquesaítas. ........................................................................................................ 22

1.3) O Gnosticismo. ........................................................................................................ 23

1.4) O Montanismo. ........................................................................................................ 24

1.5) O Monarquianismo. ................................................................................................. 24

1.6) O maniqueísmo. ...................................................................................................... 25

2. As Divisões Internas............................................................................................................ 26

VI. As Reações da Igreja: A Literatura dos Séculos II e III ........................................................ 27

1. Introdução. .......................................................................................................................... 27

2. A Literatura dos Pais Apostólicos. ...................................................................................... 27

2.1) Clemente de Roma (30-100 d.C.) ................................................................................ 27

2.2) Inácio de Antioquia ...................................................................................................... 27

2.3) Policarpo (c. 70-155), .................................................................................................. 28

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2.4) Papias, .......................................................................................................................... 28

3. A Literatura dos Apologetas e dos Defensores da Ortodoxia. ............................................ 29

3.1) Os apologetas. .............................................................................................................. 29

3.2) Os Defensores da fé. .................................................................................................... 31

VII. As Reações da Igreja: O Bispo, o Credo e o Cânon ............................................................ 33

1. Introdução. .......................................................................................................................... 33

2. O Bispo Monárquico. .......................................................................................................... 33

3. O Credo dos Apóstolos. ...................................................................................................... 35

3.1) A História do Credo. .................................................................................................... 35

3.2) A importância do Credo. .............................................................................................. 37

3.3) As raízes hebraico-cristãs dos credos e confissões. ..................................................... 37

4. O Cânon do Novo Testamento. ........................................................................................... 38

VIII. Fé Cristã, de Perseguida a Religião Oficial ........................................................................ 41

1. O período compreendido entre 313 e 590. .......................................................................... 41

2. A ascensão de Constantino. ................................................................................................. 41

3. O impacto de Constantino. .................................................................................................. 42

4. A união da Igreja com o Estado. ......................................................................................... 43

IX. Os Concílios e Credos Ecumênicos ...................................................................................... 46

1. A Controvérsia Ariana e o Concílio de Niceia (325). ......................................................... 46

2. O Debate Pneumatológico e o I Concílio de Constantinopla (381). ................................... 49

3. A Dupla Natureza de Cristo, o I Concílio de Éfeso (431) e o Concílio de Calcedônia (451).

................................................................................................................................................. 51

4. As Controvérsias Antropológica e Soteriológica. ............................................................... 54

X. O Surgimento da Vida Monástica .......................................................................................... 59

1. O novo estado da Igreja. ...................................................................................................... 59

2. As razões e a evolução da vida monástica. ......................................................................... 60

3. Uma breve avaliação da vida monástica. ............................................................................ 62

XI. O Fortalecimento do Bispo de Roma .................................................................................... 64

1. Raízes do fortalecimento do Bispo de Roma. ..................................................................... 64

2. Contribuições políticas e teológicas ao fortalecimento do Bispo de Roma. ....................... 65

3. Gregório, o Grande (540-604). ............................................................................................ 66

XII. O Fim da Antiga Igreja Católica .......................................................................................... 69

1. O papado e a supremacia da Igreja de Roma. ..................................................................... 69

2. A importância da tradição. .................................................................................................. 70

3. O desenvolvimento da liturgia. ........................................................................................... 71

4. Veneração a Maria. ............................................................................................................. 71

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XIII. A Ameaça Muçulmana ....................................................................................................... 73

1. Introdução. .......................................................................................................................... 73

2. Maomé (570-632). ............................................................................................................... 73

3. Os sucessores de Maomé, a expansão do Islã e as perdas da Igreja. ................................... 74

4. A doutrina islã. .................................................................................................................... 75

XIV. O Império Romano Redivivo ............................................................................................. 77

1. Introdução. .......................................................................................................................... 77

2. Os reis francos. .................................................................................................................... 77

2.1) A dinastia merovíngia. ................................................................................................. 77

2.2) Os primórdios da dinastia carolíngia e a Doação de Constantino. .............................. 77

2.3) Carlos Magno (742-814). ............................................................................................. 79

3. O feudalismo e uma nova restauração do Império Romano no Ocidente. .......................... 80

XV. O Apogeu do Poder Papal e o Primeiro Grande Cisma do Cristianismo ............................ 82

1. Introdução: a condição da igreja nos séculos X e XI. ......................................................... 82

2. A reforma cluniacense. ........................................................................................................ 83

3. O apogeu do papado. ........................................................................................................... 84

4. O cisma de 1054. ................................................................................................................. 85

XVI. As cruzadas ........................................................................................................................ 88

1. As causas das cruzadas. ....................................................................................................... 88

2. As principais cruzadas. ........................................................................................................ 90

2.1) A Primeira Cruzada. ..................................................................................................... 90

2.2) A Segunda Cruzada. ..................................................................................................... 90

2.3) A Terceira Cruzada. ..................................................................................................... 91

2.4) A Quarta Cruzada. ....................................................................................................... 92

2.5) A Cruzada das Crianças. .............................................................................................. 92

2.6) As demais Cruzadas. .................................................................................................... 92

3. Avaliação das Cruzadas. ..................................................................................................... 93

XVII. Pretensões Reformistas e o Declínio do Papado ............................................................... 94

1. O auge do poder papal: Inocêncio III e o IV Concílio de Latrão. ....................................... 94

2. As pretensões reformistas.................................................................................................... 96

2.1) As ordens monásticas. .................................................................................................. 97

2.2) Os movimentos reformistas leigos. .............................................................................. 98

3. O declínio do papado (1309-1439). ..................................................................................... 98

3.1) O Cativeiro Babilônico. ............................................................................................... 99

3.2) O Grande Cisma. .......................................................................................................... 99

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XVIII. Novos Tempos e Pré-Reformadores .............................................................................. 101

1. O anúncio de novos tempos. ............................................................................................. 101

1.1) O surgimento das nações-estados. ......................................................................... 101

1.2) A ascensão da burguesia. ...................................................................................... 101

1.3) A renascença e o humanismo. ............................................................................... 102

1.4) A expansão geográfica e a imprensa. .................................................................... 102

2. Reformas religiosas. .......................................................................................................... 103

2.1) John Wycliffe (c. 1320-1384). ................................................................................... 103

2.2) John Huss (c. 1369-1415). ......................................................................................... 104

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Estudo de História da Igreja: do ano 0 ao ano 1517

Jesus Cristo, a Igreja Primitiva e a Antiga Igreja Católica

I. Introdução

1. Lições da história.

Diversas e valiosas são as lições auferidas pelo estudo cuidadoso

da história da Igreja. A história, sobretudo, nos dá a percepção clara de que

somos parte de um processo que não iniciou conosco. Isso, por si só, já nos

indicaria que somente a história explica o presente (facilmente observamos as

razões de nossos erros e acertos, à luz da história), que necessitamos

urgentemente reforçar nosso senso de humildade e tolerância (porque a

história revelar-nos-á tão somente como parte de um cristianismo que

transcende nossa igreja e denominação), tanto quanto saberemos que rumos

tomar quanto ao futuro, que erros evitar e que acertos estimular (I Co 10:6, 11).

Ademais, não perderemos de vista, no curso desses estudos, as

lições práticas e aplicáveis à vida cristã pessoal. Nesse quadrante, a história

nos proverá inspiração poderosa para prosseguir, mormente nos momentos de

perseguição e dificuldade (impossível não aprender com os gigantes Inácio de

Antioquia e Policarpo de Esmirna em seu modo de enfrentar o martírio), e ser-

nos-á luz para compreendermos o desenvolvimento do estabelecimento da

teologia cristã ao longo dos séculos (impossível não aprender teologia com as

controvérsias cristológicas e teontológicas que envolveram nomes como

Gregório de Nissa, Basílio e Gregório de Nazianzo).

Não nutrimos quaisquer dúvidas de que “a ignorância da Bíblia e

da história da igreja é a razão principal por que muitos se enveredam por falsas

teologias e por práticas erradas” (Cairns).

2. A contribuição dos romanos, dos gregos e dos judeus para o advento do

cristianismo.

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Nos séculos que antecederam o cristianismo, o Rei das nações

não inspirou profetas nem produziu Escrituras Sagradas, mas usou

soberanamente as nações para preparar o mundo para o advento da primeira

vinda de Cristo. Deus conduziu a história até a “plenitude dos tempos” (Gl 4:4;

cf. Mc 1:15).

Os romanos deram sua contribuição política ao cristianismo,

produzindo um mundo onde a locomoção poderia se dar de modo pacífico e

eficiente (o que muito contribuiu para as viagens missionárias), através de um

sistema viário composto de estradas calçadas que interligava as cidades

estrategicamente.

Os gregos contribuíram, sobretudo, com o aspecto intelectual,

concedendo ao mundo de então uma língua universal (o grego koine, do

homem comum, espalhado poucos séculos antes por Alexandre e seus

soldados) e uma filosofia que tornava obsoletas as religiões antigas.

Entretanto, muito maior foi a contribuição dos judeus para o

cristianismo. Pode-se mesmo dizer que “o judaísmo pode ser considerado

como o botão do qual a rosa do cristianismo abriu-se em flor” (Cairns). Jesus

foi incisivo quando afirmou que a salvação vem dos judeus (Jo 4:22) e Paulo,

que aos judeus foram confiados os oráculos de Deus (Rm 3:2; 9:4, 5). Portanto,

o Antigo Testamento, com o seu monoteísmo e sua ética absolutamente

distintivas no mundo de então, a esperança messiânica e a instituição da

sinagoga, foram pontos de contato com os judeus que o cristianismo não iria

prescindir.

Portanto, Deus densificou os séculos que antecederam o

cristianismo para que tudo convergisse para o mundo que receberia o Messias,

vindo na “plenitude do tempo” (Gl 4:4).

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II. Jesus Cristo: Historicidade e Ministério Terreno

1. A Historicidade de Jesus Cristo.

A historicidade de Cristo não representa qualquer dificuldade para

um historiador desprovido de preconceitos. Além dos vinte e sete livros/cartas

do Novo Testamento e dos escritos dos pais da igreja (escritores cristãos dos

primeiros séculos do cristianismo), diversos inimigos da fé e críticos severos do

cristianismo mencionaram o Senhor em suas obras.

Tácito (c. 54 d.C. - c. 120 d.C.), historiador romano e governador

da Ásia em 112 d.C., ao escrever sobre o reinado de Nero, disse: "... Chistus, o

que deu origem ao nome cristão, foi condenado à morte por Pôncio Pilatos,

durante o reinado de Tibério ...".

Plínio, que foi governador da Bitínia em 112 d.C., escreveu ao

imperador Trajano, solicitando orientações sobre como deveria tratar os

cristãos. Nessa carta, Plínio afirmou que fez os cristãos "amaldiçoarem a

Cristo, o que não se consegue obrigar um cristão verdadeiro a fazer". Em sua

defesa, os cristãos respondiam, segundo Plínio, que sua única culpa era se

reunir antes do amanhecer e cantar hinos responsivos a Cristo, "tratando-o

como Deus".

Luciano (c. 125 d.C - c. 190 d.C.) foi outro escritor satírico do

segundo século. Ele zombou de Cristo e dos cristãos. Referiu-se a Cristo como

"o homem que foi crucificado na Palestina por que introduziu uma nova seita no

mundo" e como o "sofista crucificado", a quem os cristãos adoravam.

Outro historiador romano a mencionar Cristo em sua obra foi

Suetônio (c. 120 d.C.). Ele era um oficial da corte do imperador Adriano e

escritor das crônicas reais. Ele disse: "Como os judeus, por instigação de

Chrestus (Christus), estivessem constantemente provocando distúrbios, ele os

expulsou de Roma".

Josh MacDowell (citando F. F. Bruce) faz menção à carta de um

sírio de nome Mara Bar-Serapião, escrita por volta de 73 d.C., a seu filho

Serapião, na qual estimula este na busca da sabedoria, "ressaltando que os

que perseguiram homens sábios foram alcançados pela desgraça". Depois de

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dar exemplos de Sócrates e Pitágoras, Mara Bar-Separião diz: "Que vantagem

os judeus obtiveram com a execução de seu sábio Rei? Foi logo após esse

acontecimento que o reino dos judeus foi aniquilado".

Outro testemunho valioso da historicidade do Senhor está nos

escritos do historiador judeu Flávio Josefo (37d.C. - 100 d.C.). Josefo faz uma

alusão a Tiago, "o irmão de Jesus, assim chamado Cristo", a quem o então

sumo-sacerdote Anano, após reunir um conselho de juízes, acusou-o e o

entregou para ser apedrejado.

2. A Cronologia da Vida de Jesus Cristo.

O abade cita chamado Dionísio Exiguus (que morreu por volta de

550 d.C.) escolheu a data de 754 da fundação de Roma para o nascimento de

Cristo (ano 0 da era cristã), ao invés do ano 749 (ano 5 a.C. da era cristã, data

mais provável).

Sabe-se por Josefo que ocorreu um eclipse no ano 750 (4 a.C.) da

fundação de Roma, antes da morte de Herodes. Desse modo, na data

escolhida por Dionísio para o nascimento de Cristo, Herodes já estaria morto

há cerca de 4 anos, e não teríamos como encaixar os eventos das crianças em

Belém e a fuga para o Egito (Mt 2). A ordem da matança dos bebês de dois

anos para baixo (Mt 2:16) e a morte de Herodes em torno de abril do ano 4

a.C., portanto, impõem uma data para o nascimento do Senhor entre os anos 6

e 5 a.C.

O início do ministério do Senhor pode também ser razoavelmente

identificado. Tibério César começou a governar com César Augusto por volta

de 11 ou 12 d.C., e governaram juntos por dois anos. O ministério de João

Batista teve início no 15º ano de Tibério César, o que corresponde a 26 ou 27

d.C. (cf. Lc 3:1-3).

Ademais, quando Jesus tinha cerca de 30 anos (Lc 3:23), fez sua

primeira visita a Jerusalém, momento em que os judeus disseram que o templo

levou 46 anos para ser edificado (Jo 2:13, 20). Como sabemos que Herodes

começou a reinar em 37 a.C., e, segundo Josefo, a reforma do templo iniciou

no ano 18 do seu reinado (ou seja, em 19 a.C.), se somarmos 46 anos a partir

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de 19 a.C. teremos o ano 27 d.C. para esta primeira visita do Senhor a

Jerusalém. Ora, se nosso Senhor iniciou Seu ministério e fez a primeira visita a

Jerusalém após o batismo com cerca de 30, e isso se deu em 26 ou 27 d.C., é

óbvio que precisamos retroagir Seu nascimento em pelo menos 4 anos.

A duração do ministério do Senhor é geralmente demarcada a

partir das festas judaicas da páscoa, conforme mencionadas por João. Três

páscoas são expressamente referidas (Jo 2:13; 6:4; 12:1), além da

possibilidade de uma quarta em Jo 5:1, consoante concluem diversos

estudiosos. Destarte, o ministério do Senhor teria começado em 26 d.C., antes

da primeira páscoa, a do ano 27 d.C. (Jo 2:13), e terminado na páscoa do ano

30 d.C. (na quinta-feira da paixão, 7 de abril ou 14 de nisã).

3. A Vida de Jesus Cristo.

Temos quatro evangelhos aceitos desde cedo pela Igreja como

inspirados: Mateus, Marcos, Lucas e João. Mateus concentrou-se em falar aos

judeus que Cristo era o Rei-Messias esperado. Marcos, em apresentar o

aspecto prático do ministério do Senhor aos romanos. Lucas debruçou-se

sobre a humanidade do Senhor, enquanto João o apresentou como o Filho de

Deus, que salva os que creem - aqueles que o Pai Lhe deu, aos quais chamou

de "minhas ovelhas".

Das narrativas evangélicas, depreende-se que além dos fatos da

natividade, nada se falou sobre a infância do Senhor à exceção de Lc 2:41-50,

sendo certo que o Senhor recebeu formação na sinagoga e aprendeu o ofício

de Seu pai legal, José (cf. Mc 6:3). A concentração das narrativas está no

ministério público do Senhor e, sobretudo, na semana da paixão.

O ministério público do Senhor teve início em seu batismo por João

Batista, que precedeu Sua tentação no deserto e a escolha dos primeiros

discípulos que seriam Suas testemunhas e que continuariam Sua obra sob a

liderança do outro Consolador, o Espírito Santo.

Após o primeiro "sinal", em Caná da Galileia, o Senhor fez breve

visita a Jerusalém, momento em que fez a primeira purificação do templo (Jo 2)

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e teve uma audiência noturna com Nicodemus (Jo 3). Partindo para a Galileia

através de Samaria, teve um encontro com a mulher samaritana (Jo 4).

Rejeitado em Nazaré (Lc 4:16ss), o Senhor fez em Cafarnaum o

centro do Seu ministério, que foi sempre orientado pela convicção de que havia

sido enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel (cf. Mt 15:24). De

Cafarnaum, o Senhor fez três viagens: na primeira, fez muitos milagres, dentre

os quais a ressurreição do filho da viúva de Naim, concluiu o chamado dos

discípulos e pregou o sermão do monte; na segunda, decidiu pelo ensino por

parábolas (Mt 13) e fez outros milagres, como a cura do endemoninhado de

Gadara e da filha de Lázaro; na terceira viagem, nosso Senhor deu

continuidade ao ministério de pregação, sempre acompanhado de curas.

Nesse período, fez visitas breves a Jerusalém, nas datas das festas da páscoa.

Após esse grande ministério galileu, o Senhor fez um pequeno

ministério em Jerusalém, ao tempo da Festa dos Tabernáculos, quando a

animosidade dos fariseus e saduceus acirrou-se contra Ele. Com o

recrudescimento da oposição dos líderes judaicos, o Senhor foi à Peréia, onde

fez breve ministério, e retornou para a última semana em Jerusalém, que

culminou com a crucificação.

Ressurreto, o Senhor só apareceu aos Seus discípulos e por

espaço de quarenta dias. Em Sua última aparição, ratificou a promessa quanto

à vinda do Espírito Santo e à Grande Comissão, ambas relacionadas ao

testemunho que deveriam dar a respeito dEle até aos confins da terra.

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III. Os Avanços da Igreja até 313 d.C.

1. O primeiro século.

Os ‘Atos’ de Lucas é a fonte de informação inspirada dos primeiros

anos da Igreja Primitiva. Os sete primeiros capítulos se ocupam com a igreja

em Jerusalém, que manteve-se como principal centro do cristianismo entre os

anos 30 e 45. A chegada do evangelho na Judéia e em Samaria é descrita nos

capítulos 8 a 12. A partir do capítulo 13, Lucas relata como o cristianismo foi

levado a outros povos, concentrando-se nas missões paulinas.

1.1) A Igreja em Jerusalém. Tudo começou no dia de

Pentecostes, quando judeus e prosélitos de todas as partes do mundo

conhecido encontravam-se em Jerusalém. A igreja formava uma pequena

reunião de cento e vinte pessoas na ocasião em que Judas foi substituído (At

1:15), e seu número total não era muito superior a quinhentos cristãos (I Co

15:6).

Após as evidências visíveis da descida do Espírito Santo, Pedro

pregou um “sermão de abertura”, no qual anunciou que Jesus de Nazaré é o

Cristo e conclamou o povo ao arrependimento, momento em que se

converteram três mil pessoas (At 2:41). A partir de então, o crescimento foi

rápido e ininterrupto (At 5:14). O número dos convertidos logo chegou a cinco

mil (At 4:4), incluindo conversões entre judeus helenistas (At 6:1) e até de

“muitos sacerdotes” (At 6:7).

Lucas nos informa que o modelo de vida da igreja em Jerusalém

era impressionantemente comunitário, tanto em seu espírito fraternal quanto na

comunhão de bens (At 2:44-45; 4:32-35).

Não havia templos. As reuniões ocorriam nas casas e a Ceia do

Senhor era partilhada no ambiente de uma refeição comunal. A vida da igreja

conquistou a simpatia do povo, trazendo como resultado evangelização

eficiente (At 2:47b).

Analisando essa "forma primitiva de comunismo", Robinson

Cavalcanti concluiu: que "o modelo de vida da Igreja em Jerusalém não era

normativo [para o mundo] (...)"; que "o modelo era uma opção da igreja", não

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obrigatoriamente seguido pelas demais; que "viver o modelo era uma opção

livre" de cada cristão; que o modelo está baseado em um equívoco

escatológico: "a crença de que o Senhor voltaria logo, não valendo a pena

gastar tempo com outras coisas"; e, que "o modelo fracassou, porque era um

comunismo de bens e consumo, e não de bens e produção". Observando por

outro ângulo, Russell Shedd atribui a comunhão vivida entre os irmãos

primitivos ao poder do Espírito no seio da igreja recém-nascida. Shedd afirmou:

“Um avivamento genuíno transforma esses meros ajuntamentos em comunhão

de verdade, em linguagem do Novo Testamento, ou seja, koinonia”.

1.2) A Igreja na Judeia e Samaria. A visita de Filipe a Samaria (At

8) foi a primeira investida cristã a um povo que não era judeu puro, trabalho

que veio a ser apoiado por Pedro e João. Pedro foi também o primeiro a levar o

Evangelho aos completamente gentios, na ocasião em que, após uma

revelação que pretendia dissipar seus preconceitos raciais e teológicos, pregou

na casa de Cornélio (At 10-11).

Percebe-se que nesses primeiros momentos, os adeptos do

cristianismo se sentiam tão somente uma parte do judaísmo. A maneira como

tentavam conciliar a nova piedade com o templo de Jerusalém demonstra isso

(At 2:46), tanto quanto a resistência em divulgar as boas novas a não judeus

(At 10:9-16; 11:19).

Foi somente em Antioquia que um grupo “mais aberto”, formado

pelos que eram de Chipre e de Cirene, começou a pregar entre os gentios (At

11:20). Lucas deve ter registrado com muito prazer que “a mão do Senhor

estava com eles, e muitos, crendo, se converteram ao Senhor” (At 11:21). Foi

assim que nasceu a igreja que logo se tornaria o novo grande centro do

cristianismo.

Com os resultados do trabalho em Antioquia, a igreja em

Jerusalém enviou Barnabé para reforçá-lo (At 11:22), o homem que integrou

Paulo no ambiente cristão de Jerusalém (At 9:27) e que agora o buscaria para

auxiliá-lo no serviço daquela igreja (At 11:25, 26).

1.3) O cristianismo para todos os povos. Cairns observa que

“como nenhum outro na Igreja Primitiva, Paulo entendeu o caráter universal do

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cristianismo e entregou-se à sua pregação aos confins do Império Romano

(Rm 11:13; 15:16)”.

É para Paulo que se voltarão as atenções de Lucas a partir do

capítulo 13 de Atos, quando, à exceção do capítulo 15, que dedica à

Assembleia de Jerusalém, narra três viagens missionárias (At 13:1-21:16), a

prisão do apóstolo aos gentios em Jerusalém (At 21:17-23:22), em Cesaréia (At

23:23-26:32) e sua viagem a Roma (At 27:1-28:15), onde permaneceu preso

por dois anos (At 28:16-31).

Uma tradição que remonta Clemente de Roma (c. de 95 a.D.)

informa que Paulo fez ministério profícuo após a soltura dessa prisão em

Roma, visitou igrejas, escreveu cartas e voltou a ser preso na onda de

perseguição levantada por Nero, sob quem foi martirizado em cerca de 65 ou

66.

Entretanto, certamente que as missões cristãs do primeiro século

não se resumiam ao ministério paulino. Tiago, o filho de Zebedeu e irmão de

João, o primeiro dentre os apóstolos a sofrer o martírio, foi decapitado em 44,

sob a ordem de Herodes Agripa I. Tiago, meio-irmão do Senhor, tornou-se líder

proeminente da igreja em Jerusalém (Gl 1:19), foi jogado do pináculo do templo

e morto a pauladas.

André, irmão de Pedro, pregou no Oriente Antigo. Judas Tadeu

exerceu ministério na Pérsia, onde foi martirizado. Matias, o substituto de

Judas, pregou na Etiópia, onde sofreu martírio. O nome de Mateus também é

associado à Etiópia e há tradição que relaciona os nomes de Tomé e

Bartolomeu com a Índia.

João, o outro filho de Zebedeu, é associado a Pedro no relato de

Lucas. Longa tradição afirma que após o exílio em Patmos, sob Domiciano,

João exerceu ministério em Éfeso e nas igrejas da Ásia até morrer. Foi,

provavelmente, o único dos doze a não passar pelo martírio.

2. Os séculos II e III.

O cristianismo, que começou com uma maioria esmagadora de

judeus e concentrado na parte oriental do Império Romano, no segundo século

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já era composto predominantemente por gentios, alcançando regiões da Ásia,

Europa e África em torno do mediterrâneo. A carta de Plínio a Trajano (sobre a

qual voltaremos a falar) dá-nos conta de forte presença cristã na Ásia Menor:

"Esta superstição contagiou não apenas as cidades, mas as aldeias e até as

estâncias rurais".

Por volta do ano 200, “os cristãos se encontravam em todas as

partes do Império”. O cristianismo floresceu no norte da África, e Cartago e

Alexandria tiveram igrejas fortes. “Estimativas sobre a população da igreja, por

volta de 250, variam entre 4 e 15 por cento da população do Império, que

girava em torno de 50 a 75 milhões” (Cairns).

Relevante, nesse ponto, é inquirirmos sobre como a igreja primitiva

cresceu de maneira tão perceptível. Justo González afirma que depois do Novo

Testamento são escassos os dados históricos de missionários como Paulo ou

Barnabé. Para ele, a difusão geográfica do cristianismo se deveu,

principalmente, ao trabalho de "cristãos anônimos" que, em viagens "por

diversas zonas", levavam sua fé e faziam conversos.

As reuniões permaneceram concentradas nos lares e, em algumas

ocasiões, com o crescimento das congregações, casas eram utilizadas

exclusivamente para o culto. Os templos cristãos mais antigos, pelo que se tem

notícia, datam de meados do terceiro século.

Por outro lado, o crescimento da igreja nesse período não se deu

sem dificuldades externas (perseguições e acusações) e internas (heresias e

dissensões), conforme veremos.

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IV. As Dificuldades Externas da Igreja até 313:

As Perseguições e as Acusações

1. A perseguição.

1.1) A perseguição no Primeiro Século.

As primeiras perseguições sofridas pelos cristãos foram movidas pelos

judeus, por intermédio do Sinédrio. Os apóstolos sofreram prisões, açoites e

ameaças a fim de pararem de ensinar a nova doutrina que desafiava a

estabilidade da religião judaica institucionalizada. Pedro e João foram os

primeiros a enfrentar a pressão político-religiosa, e o fizeram de modo a não

abrir mão da vocação a que tinham sido incumbidos: “Julgai se é justo diante

de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus; pois não podemos deixar

de falar das coisas que vimos e ouvimos” (At 4:19, 20). Em nova prisão, os

apóstolos foram açoitados (At 5:40) e novamente ameaçados, mas reagiram

com alegria por Deus lhes haver concedido a honra de sofrer pelo nome de

Jesus (At 5:41).

Foi a perseguição judaica que deu ao cristianismo seu primeiro

mártir, Estevão (At 7). O apóstolo Paulo, que consentiu na morte de Estevão

(At 8:1) e promoveu perseguição em Jerusalém e cercanias (At 8:3; 9:1; 22:4,

5; 26:9-11), também padeceria tanto nas mãos dos seus compatriotas, pelos

motivos que perseguiu, sobretudo em Tessalônica, Beréia e Jerusalém, quanto

por gentios, insuflados ou não por judeus.

A perseguição assumiu caráter mais político nos dias em que

Herodes Agripa I mandou matar a Tiago e prender a Pedro, que só não morreu

na ocasião em face da intervenção divina (At 12).

O primeiro imperador romano a perseguir a igreja cristã foi Nero.

Os rumores de que o próprio Nero havia sido o responsável pelo grande

incêndio em Roma, em julho de 64, o levou a achar nos cristãos os “culpados

ideais”. A perseguição neroniana se circunscreveu a Roma e arredores, e nela

foram martirizados os apóstolos Paulo e Pedro.

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É o historiador Tácito que nos dá conta da barbárie a que foram os

cristãos submetidos por Nero: "(...) Acrescente-se que, uma vez condenados à

morte, eles [os cristãos] se tornavam objetos de diversão. Alguns, costurados

em peles de animais, expiravam despedaçados por cachorros. Outros morriam

crucificados. Outros ainda eram transformados em tochas vivas para iluminar a

noite. Para esses festejos, Nero abriu de par em par seus jardins, organizando

espetáculos circenses em que ele mesmo aparecia misturado com o populacho

ou, vestido de cocheiro, conduzia sua carruagem" (in Documentos da Igreja

Cristã).

A segunda perseguição movida por um imperador romano eclodiu

em 95 a.D., sob a batuta de Domiciano, provavelmente por causa da recusa

dos judeus em financiar, mediante um imposto imperial, o culto a Capitolinus

Jupiter. Por ainda serem identificados como judeus, os cristãos foram

perseguidos. Nessa perseguição, João foi exilado na ilha de Patmos, onde

registrou suas visões de Apocalipse: “Eu, João, irmão vosso e companheiro na

tribulação, no reino e na perseverança, em Jesus, achei-me na ilha chamada

Patmos, por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus” (Ap 1:9).

1.2) A Perseguição até Meados do Terceiro Século.

Entre os anos 100 e 250 as perseguições foram locais e

esporádicas. Uma delas ocorreu na Bitínia, quando Plínio a administrava. Plínio

Segundo, o Jovem, foi nomeado governador da Bitínia (a costa norte do que

hoje é a Turquia) em 111 d.C. A conversão ao cristianismo estava

empobrecendo o comércio em torno das religiões pagãs, fato que preocupava

Plínio.

Este, por sua vez, escreve ao imperador Trajano (98-117) sobre

como estava lidando com os cristãos, ou acusados de o serem, e pedindo

conselhos a respeito: "Tenho muitas dúvidas a respeito de certas questões, tais

como: estabelecem-se diferenças e distinções de acordo com a idade? Cabe o

mesmo tratamento a enfermos e robustos? Aqueles que se retratam devem ser

perdoados? A quem sempre foi cristão deve gratificá-lo quando deixa de sê-lo?

Há de punir-se o simples fato de alguém ser cristão, mesmo que inocente de

qualquer crime, ou exclusivamente delitos praticados sob esse nome?".

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Plínio também diz a Trajano como estava lidando com a questão

do cristianismo: "eis o procedimento que adotei nos casos que me foram

submetidos sob acusação de cristianismo. Aos incriminados pergunto se são

cristãos. Na afirmativa, repito a pergunta segunda e terceira vez, ameaçando

condená-los à pena capital. Se persistem, condeno-os à morte (...) tratando-se

de cidadãos romanos, separo-os para enviá-los a Roma".

Plínio ainda informa a Trajano que recebeu uma lista anônima com

muitos nomes. Após a pressão do governador, alguns negaram ser cristãos,

mas todos foram unânimes em confessar que sua culpa consistia de que "em

determinados dias, costumavam comer antes da alvorada e rezar

responsivamente hinos a Cristo, como a um deus; obrigavam-se por juramento

não [cometerem] algum crime, mas à abstenção de roubos, rapinas, adultérios,

perjúrios e sonegação de depósitos reclamados pelos donos. Concluído este

rito, costumavam distribuir e comer seu alimento".

O imperador Trajano respondeu a Plínio que os cristãos "não

devem ser perseguidos. Mas, se surgirem denúncias procedentes, aplique-se o

castigo", devendo ser perdoado aquele que se retrata e retorna à adoração dos

deuses (citações extraídas de Bettenson, in Documentos da Igreja Cristã).

A política de Plínio ocorreu como recomendada pelo imperador, no

sentido de não caçar cristãos, mas se alguém fosse acusado de negar a

adoração aos deuses e se recusasse a negar a fé, deveria ser castigado.

Nessa perseguição, Inácio, o Bispo de Antioquia, por volta de 107, foi

martirizado.

Outra perseguição explodiu no tempo do imperador Antonino, o Pio

(138-161), na cidade de Esmirna em meados do segundo século, ocasião em

que Policarpo foi martirizado. Na presença do procônsul, Policarpo foi

admoestado a "jurar pelo gênio de César", a gritar "abaixo os ateus" e a

"insultar a Cristo". A isso Policarpo respondeu: "Oitenta e seis anos há que

sirvo a Cristo. Cristo nunca me fez mal. Como blasfemaria contra meu Rei e

Salvador?"

As últimas palavras da oração final de Policarpo foram estas:

"Possa eu, hoje, ser recebido na Tua presença como uma oblação preciosa e

aceitável, preparada e formada para ti. Tu és fiel às tuas promessas, Deus fiel

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e verdadeiro. Por esta graça e por todas as coisas, eu te louvo, bendigo e

glorifico, em nome de Jesus Cristo, eterno e sumo sacerdote, teu Filho amado.

Por Ele, que está comigo, e o Espírito Santo, glória te seja dada agora e nos

séculos vindouros. Amém! (in Documentos da Igreja Cristã)". Depois da oração,

os algozes acenderam a fogueira, que não queimava o corpo de Policarpo,

razão pela qual foi morto com a espada.

Digna de nota também foi a perseguição movida pelo imperador

Marco Aurélio (161-180), por creditar as calamidades que ocorreram em seu

reinado (invasões, inundações, epidemias etc.) ao crescimento do cristianismo.

Justo González propõe que, “talvez, como Plínio anos antes, Marco Aurélio

Pensasse que era necessário castigar os cristãos, senão por seus crimes, pelo

menos por sua obstinação”. Nessa perseguição, Justino Mártir e Blandina

foram martirizados.

Ainda nos dias de Marco Aurélio, as igrejas de Viena e Lyon, na

Gália, em carta enviada às Igrejas da Frígia e Ásia Menor, em 177 d.C.,

comunicaram que a perseguição lhes alcançou “como um relâmpago”: "O

adversário caiu sobre nós com todo o ímpeto de suas forças... Não somente

fomos expulsos das casas, das termas e do foro, mas, inclusive, fomos

proibidos de aparecer em público. Mas a glória de Deus pelejou conosco contra

o diabo...". Algumas pessoas não suportaram a tortura e renegaram a fé, mas

os demais suportaram firmemente. “O cárcere estava tão cheio de prisioneiros,

que muitos morreram asfixiados, antes que os verdugos pudessem aplicar-lhes

a pena de morte. Alguns dos que antes haviam negado a sua fé, ao verem

seus irmãos tão valorosos em meio a tantas provas, voltaram à sua antiga

confissão e morreram também como mártires” (González).

Blandina foi a mais destacada desses mártires da Gália. "Depois de

ter suportado açoites, a dilaceração das feras e a cadeira de ferro, ela foi presa

numa rede e atirada a um touro. Depois de ser jogada para o alto por algum

tempo pelo animal, mostrando-se muito superior aos seus sofrimentos pela

influência da esperança, pela visão consciente dos objetos de sua fé e pela sua

associação com Cristo, ela finalmente entregou o seu espírito" (John Foxe).

Nova perseguição ocorreu com o imperador Sétimo Severo (193-

211), sobretudo no Egito e em Cartago, entre 202 e 206. Nesse período, um

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decreto imperial proibia a conversão ao cristianismo e ao judaísmo, e foram

martirizados Irineu de Lyon (202 d.C.), Perpétua e Felicidade (203 d.C.).

1.3) A Perseguição até o Edito de Milão.

Décio (249-251) promulgou um edito em 250 d.C. que exigia oferta

anual de sacrifício aos deuses e ao imperador. Foi esse imperador que

promoveu a primeira perseguição em todo o império romano. Nesse período,

Orígenes sofreu torturas que mais tarde lhe causariam a morte e Fabiano de

Roma foi martirizado (250 d.C.).

Entretanto, a mais dura perseguição oficial aos cristãos ocorreu

sob os reinados de Diocleciano (284-305) e Galério (305-311). Numa série de

editos promulgados a partir de 303, Diocleciano proibiu as reuniões cristãs e

ordenou a destituição dos oficiais da igreja, a perseguição aos que

perseverassem na fé e a destruição das Escrituras. Os cristãos foram punidos

com o confisco de bens, prisões, exílios e execuções à espada ou por animais

ferozes. As prisões ficaram tão cheias de líderes cristãos e crentes comuns que

não havia lugar suficiente para criminosos, segundo Eusébio. Essa feroz

perseguição perdurou até 305 d.C., ano em que Diocleciano abdicou.

Após outros breves períodos de perseguição, o imperador Galério

promulgou um edito, em 311, que estabelecia a tolerância ao cristianismo, sob

a condição de que os cristãos não perturbassem a paz do império. Mas a

perseguição só acabaria totalmente em 313, com o edito de Milão, promulgado

por Constantino e Licínio (312-337), que garantia a liberdade de culto a todas

as religiões.

Por sua importância, vale anotar ao menos um breve extrato do

Edito de Milão: "(...) Pareceu-nos [a Constantino e Licínio] justo que todos,

cristãos inclusive, gozem da liberdade de seguir o culto e a religião de sua

preferência. Desta forma o Deus, que mora no céu, ser-nos-á propício a nós e

a todos os nossos súditos. Decretamos, portanto, que, não obstante a

existência de instruções anteriores relativas aos cristãos, aos que optarem pela

religião de Cristo estão autorizados a abraçá-la sem estorvo ou empecilho, e

que ninguém absolutamente os impeça ou moleste (...)" (com grifo nosso).

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2. As Acusações.

O cristianismo sofreu uma série de acusações por parte do

populacho e de escritores pagãos, dentre os quais Celso (de quem sabemos

pela obra de Orígenes) e Cornélio Fronton (que foi mestre de Marco Aurélio).

A carta das igrejas da Gália dá-nos conta de diversas acusações

lançadas sobre as igrejas de Lyon e Viena: "(...) Também foram presos alguns

de nossos escravos que eram pagãos, porquanto o governador havia

decretado que se nos procurasse a todos. Eles, temendo os tormentos que

viam padecer os santos, impulsionados pelos demônios e instigados pelos

soldados, acusaram-nos de comermos os nossos filhos, de termos relações

sexuais com nossas próprias mães e de outras coisas das quais não é possível

falar ou nelas pensar, pois não podemos acreditar que jamais tenham

acontecido entre os seres humanos. Espalhadas estas coisas entre o vulgo, de

tal modo enfureceram-se contra nós que, se alguns até então guardavam

moderação com respeito a nós por motivos de parentesco, agora se iraram

violentamente contra nós, agitados por grande indignação" (in Documentos da

Igreja Cristã).

O populacho acusava os cristãos de ateísmo (visto que se

recusavam a adorar os deuses e ao imperador), de canibalismo (imaginavam

que os cristãos punham meninos recém-nascidos dentro de um pão e quando

ordenava-se que fosse cortado, lhe devoravam o corpo), de praticar orgias

incestuosas (porque celebravam em secreto uma “festa do amor”, entre

“irmãos” e “irmãs”) e práticas antissociais (porque os cristãos se recusavam a

participar de cerimônias civis que culminavam em sacrifício aos deuses). Outra

opinião corrente era a de que os cristãos adoravam um asno crucificado.

Os pagãos cultos iam além dos boatos espalhados pela plebe e

questionavam o cerne das doutrinas cristãs, acusando o cristianismo de

religião de bárbaros. O Deus dos cristãos era ridículo, segundo a

argumentação pagã, posto que onipotente e ao mesmo tempo imiscuído no

cotidiano dos homens. Jesus era tão somente um malfeitor, crucificado pelas

autoridades romanas. Celso chega a dizer que foi um filho ilegítimo de Maria

com um soldado romano e, finalmente, se era Deus, por que se deixou

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crucificar? Por fim, a crença na ressurreição era um grande escândalo para os

pagãos.

Como veremos, homens cristãos desenvolveram uma farta

literatura em defesa da fé, com base no Novo Testamento, demonstrando que,

ao revés do que se divulgava, o culto e a moral cristãos eram superiores e que

os seguidores de Cristo mereciam melhor tratamento.

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V. As Dificuldades Internas da Igreja até 313:

As heresias e as Divisões

1. As Heresias.

Não sem razão, Louis Berkhof anotou que "por grandes que

fossem essas ameaças vindas de fora [referindo-se às perseguições e às

acusações], havia perigos ainda maiores, que ameaçavam internamente a

Igreja. Essas últimas consistiam de diferentes modalidades de perversão do

evangelho".

1.1) O Ebionismo.

O ebionismo manteve-se aceso até o segundo quartel do segundo

século. Sua doutrina era legalista e sua teontologia, unitariana. Não havia

salvação fora da lei de Moisés e da circuncisão. Seus adeptos não aceitavam o

apostolado de Paulo, a quem tinham como apóstata da lei, exigiam a

circuncisão dos gentios convertidos e negavam a divindade e o nascimento

virginal do Senhor Jesus. Segundo os ebionitas, o homem Jesus tornou-se o

Messias por haver cumprido a lei cabalmente. Jesus "ter-se-ia tornado cônscio

de tal coisa por ocasião de seu batismo, quando recebeu o Espírito, o que o

capacitou a realizar sua tarefa, isto é, a obra de um profeta e mestre" (Louis

Berkhof). Aceitavam o Evangelho de Mateus e rejeitavam as cartas paulinas.

Após a destruição de Jerusalém, em 135, os ebionitas perderam sua influência.

1.2) Os Elquesaítas.

Ensinavam um tipo sincrético de cristianismo, associado com

judaísmo e magia. Quanto à Cristo, rejeitavam seu nascimento virginal,

afirmando que Ele nasceu como quaisquer dos homens, embora O tivessem na

conta de um espírito ou anjo superior, o mais elevado arcanjo ou a encarnação

do Adão ideal. Sua prática era caracterizada pelo estrito ascetismo, por grande

consideração ao sábado e à circuncisão, pelo exercício da magia e da

astrologia e pelas lavagens rituais, às quais atribuíam poderes mágicos.

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Segundo Berkhof, "com toda a probabilidade se referem a essas heresias a

Epístola aos Colossenses e I Tm".

1.3) O Gnosticismo.

Paulo em Colossos, em Éfeso e em Creta, e João na Ásia,

enfrentaram um gnosticismo ainda incipiente, com ênfase em anjos e forte

dualismo, que redundava em ascetismo, por um lado, ou em libertinagem, por

outro, além da espiritualização quanto à ressurreição (cf. Cl 2:18ss; I Tm 1:3-7;

II Tm 2:14-18; Tt 1:10-16).

Em algumas manifestações desse gnosticismo iniciante, fazia-se

distinção entre o Jesus humano e o Cristo. Cristo seria um espírito superior que

havia descido sobre o Jesus humano no batismo e o abandonado antes da

crucificação, como queria Cerinto (cf. Jo 1:14; I Jo 2:22; 4:2, 15; 5:1, 5-6; II Jo

7).

O pensamento gnóstico chegou ao apogeu somente em meados

do segundo século. Era uma espécie de sincretismo de cristianismo e

neoplatonismo, tendo Walther argutamente dito tratar-se de "um furto de alguns

trapos cristãos para cobrir a nudez do paganismo" (citado por Berkhof).

Existem vários sistemas gnósticos, como os de Cerinto (c. 100),

Basílides (130-150) e Valentino (140-160), de modo que só se pode apontar as

principais doutrinas desse movimento pulverizado, quais sejam: (1) separação

entre os mundos material (produto de um deus inferior) e espiritual, estando a

matéria sempre identificada com o mal e o espírito com o bem; (2) a distância

entre Deus e o mundo da matéria era mediada por emanações do bem

supremo do gnosticismo, "seres intermediários, emanações do divino, que em

seu conjunto constituem a 'pleroma', sendo obra de uma divindade

subordinada, talvez hostil" (Berkhof); (3) a salvação era apenas para a alma e

se dava através da fé junto com a aquisição da gnoses (conhecimento) que

Cristo comunicava somente à elite espiritual. Os homens eram divididos em

três classes: os "pneumatikos" (a elite espiritual): os que são capazes de

adquirir um conhecimento superior e uma bem-aventurança mais elevada; os

"psíquicos" (membros comuns da igreja): que podem salvar-se pela fé e pelas

obras, só podendo obter uma bem-aventurança menor; e os "hílicos" (os

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gentios): irremediavelmente perdidos; (4) como a matéria é má, Cristo não

poderia ter se encarnado, daí a cristologia gnóstica conhecida por “docetismo”

(do grego ‘dokeo’, que significa ‘parecer’), segundo a qual o homem Jesus

tinha apenas uma aparência de corpo material.

Um dos gnósticos mais destacados foi Márcion (c. 85-160), que

formou seu próprio cânon - que incluía o Evangelho de Lucas, Atos e dez

cartas paulinas -, e sua própria igreja. Ensinava que havia dois deuses, o Deus

criador do Antigo Testamento, que era mal, e o Deus redentor do Novo

Testamento, que era bom. Não cria na divindade do Cristo humano. Seu

gnosticismo como um todo fomentou o antissemitismo, o orgulho espiritual e

“seu ascetismo foi um dos fatores formativos do movimento ascético medieval

conhecido como monasticismo” (Cairns).

1.4) O Montanismo.

Surgido na Frígia, entre 134 e 177, com Montano, o montanismo foi

uma reação ao formalismo e à excessiva institucionalização da Igreja. Ele e

duas mulheres, Prisca e Maximila, se anunciaram profetas. Montano e seus

colaboradores tinham-se como os últimos profetas e puseram ênfase nas

doutrinas do Espírito Santo e da segunda vinda de Cristo, que consideravam

iminente. Montano era, para a seita, como um profeta através de quem o

Espírito Santo falava à igreja, do modo como havia feito através dos apóstolos.

Berkhof resume os ensinos de Montano da seguinte forma:

salientavam a proximidade do fim do mundo; insistiam no celibato - permitindo,

quando muito, um único casamento -, no jejum e na rígida disciplina moral;

exaltavam indevidamente o martírio e os carismas.

Diversas facetas do anabatismo do século XVI e do

pentecostalismo contemporâneo são reproduções fidedignas do montanismo.

O movimento foi condenado pelo Concílio de Constantinopla, em 381, apesar

de Tertuliano, um dos maiores pais da igreja, haver se tornado montanista.

1.5) O Monarquianismo.

Os monarquianos se concentraram no monoteísmo, mas afirmando

somente a unidade de Deus. No terceiro século, Paulo de Samósata, o mais

notável expoente do monarquianismo, homem inescrupuloso e demagogo que

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chegou ao bispado da Igreja em Antioquia, ensinou que Cristo era apenas

humano, mas que tinha se tornado o salvador por sua justiça e por haver sido

penetrado pelo “Logos” divino, doutrina que ficou conhecida como

“monarquianismo dinâmico”, uma forma primitiva de unitarianismo e alinhada

com o ebionismo. Segundo essa heresia, o homem Jesus foi sendo deificado

na medida em que o Logos penetrava sua humanidade, por isso ele se tornou

digno de honra.

Outra forma de monarquianismo (o “monarquianismo modalista”)

foi proposta por Sabélio, consistente na negação da distinção das Pessoas da

Trindade, com vistas a evitar o triteísmo. Ele ensinou uma trindade de

manifestações e não de pessoas na divindade. Deus teria se manifestado

como Pai no Antigo Testamento, como Filho para redimir o homem e como

Espírito após a ressurreição de Cristo. "As designações Pai, Filho e Espírito

Santo seriam apenas nomes dados a três fases diferentes em que a una

essência divina se manifestaria" (Berkhof). No Oriente, a doutrina de Sabélio foi

chamada de "sabelianismo"; no Ocidente, de "patripassianismo", por afirmar

que Deus o Pai sofrera na cruz.

1.6) O maniqueísmo.

O nome desse movimento herético se deve àquele que foi seu

principal mestre, Mani (216-277). Segundo Mani, Deus havia falado de forma

fragmentada através de Moisés, Buda, Platão e Jesus, mas que a revelação

completa se daria por meio dele. Ele almejava uma religião contendo

elementos do budismo, zoroastrismo e cristianismo e alegava que os apóstolos

haviam corrompido os ensinos de Jesus.

Conforme lição de Flanklin Ferreira, “os maniqueístas defendiam

uma visão dualista da criação, acentuando a tensão entre luz e trevas. Nesse

caso, Cristo seria o representante da luz, procedente de Deus, e Satanás das

trevas, identificado com a matéria. Eram extremamente ascetas e sua

compreensão da salvação era muito parecida com a ensinada pelo

gnosticismo, no que diz respeito à vinculação da salvação ao conhecimento

secreto dos passos necessários para escapar das trevas em direção à luz”.

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2. As Divisões Internas.

Além das perseguições e acusações vindas de fora, a igreja cristã

antiga enfrentou as heresias (a exemplo das destacadas acima) e as divisões

internas. Logo no início, surgiram cismas em torno da disciplina e da liturgia.

No segundo século, em torno de 160, as igrejas no Oriente e no

Ocidente contenderam acerca do dia em a páscoa deveria ser celebrada. A

Igreja Oriental propôs o dia 15 de nisã, independentemente do dia da semana

em que caísse. A Igreja Ocidental, através do Bispo de Roma Aniceto,

defendeu que a data seria o domingo seguinte ao 14 de nisã.

Outra grande controvérsia na igreja ocorreu no início do século

quarto, conhecida como “donatismo”. Em 311, um cristão chamado Donato, do

norte da África, solicitou a deposição do Bispo Ceciliano, por haver sido

consagrado por Félix, que fora “traditor” no tempo da perseguição sob

Diocleciano. Vale lembrar que Diocleciano ordenou a queima de Escrituras.

Nessas torturas, alguns não resistiam e entregavam cópias das Escrituras aos

carrascos, os “traditores” (i.é., os traidores). Portanto, a controvérsia donatista

gerou em tornou de como os “traditores” deveriam ser tratados, passada a

perseguição, e se atos litúrgicos por eles praticados eram válidos.

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VI. As Reações da Igreja: A Literatura dos Séculos II e III

1. Introdução.

A Igreja, para fazer frente às dificuldades que a desafiaram nos

primeiros séculos, desenvolveu uma literatura epistolar, apologética e em

defesa da ortodoxia. Ademais, para resistir às tantas heresias que lhe

assediaram, fez crescer o poder do bispo monárquico, desenvolveu sua

declaração de fé (O Credo dos Apóstolos) e reconheceu oficialmente os livros

divinamente inspirados, que deveriam compor o cânon do Novo Testamento.

Analisemos, nesse passo, a literatura dos Pais Apostólicos e dos

Pais da Igreja dos séculos II e III.

2. A Literatura dos Pais Apostólicos.

Os Pais Apostólicos foram os primeiros líderes da Igreja cristã, que

mantiveram algum contato com os apóstolos, a desenvolverem uma literatura

cristã pós-apostólica. Eles escreveram apenas para cristãos durante o período

compreendido entre 95 e 150 d.C. e sua preocupação era tão somente edificar

as igrejas. Os principais nomes deste período são Clemente de Roma, Inácio,

Policarpo e Papias.

2.1) Clemente de Roma (30-100 d.C.)

Escreveu aos coríntios em cerca de 95 d.C., carta que tem recebido

atenção especial por ser o escrito cristão mais antigo após o Novo Testamento.

A carta foi motivada por problemas entre os cristãos coríntios, revoltosos contra

seus líderes, razão dos capítulos 42 a 44 da epístola, nos quais Clemente pede

obediência aos líderes. Nos capítulos 24 a 26, o pai apostólico trata da

ressurreição dos corpos, ilustrando-a com a lenda de Fênix. Em 5:5-7,

Clemente mencionou o ministério de Paulo, de onde exsurge a tese de duas

prisões de Paulo e uma frutífera obra missionária entre elas.

2.2) Inácio de Antioquia

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Foi preso pelo seu testemunho cristão e levado a Roma para ser

devorado pelas feras. Ao longo da viagem, foi-lhe permitido ser visitado pelas

igrejas, às quais escrevia como forma de gratidão e para dar-lhes instrução. O

bispo de Antioquia escreveu suas sete cartas (às igrejas de Éfeso, Magnésia,

Trália, Roma, Filadélfia, Esmirna e a seu amigo Policarpo) por volta de 110

d.C., sendo ele o primeiro a hierarquizar as funções de bispo, presbítero e

diácono no âmbito da igreja local. Nesse sentido, escreveu aos filadelfos:

"Apegai-vos ao Bispo, ao Presbítero e aos diáconos".

Escrevendo aos romanos, Inácio suplicou que não intervissem com

a finalidade de livrá-lo do martírio: "Suplico-vos, não vos transformeis em

benevolência inoportuna para mim. Deixai-me ser comida para as feras, pelas

quais me é possível encontrar Deus. Sou trigo de Deus e sou moído pelos

dentes das feras, para encontrar-me como pão puro de Cristo. Acariciai antes

as feras, para que se tornem meu túmulo e não deixem sobrar nada de meu

corpo, para que na minha morte não me torne peso para ninguém".

2.3) Policarpo (c. 70-155),

O bispo de Esmirna, foi discípulo do apóstolo João. Em 110 d.C.,

escreveu uma epístola aos filipenses com o propósito de fortalecer a vida cristã

dos irmãos de Filipos. Nessa epístola, fez 60 citações do Novo Testamento,

sendo 34 paulinas, demonstrando profundo conhecimento das epístolas de

Paulo. Sobre a carta que Paulo escreveu aos filipenses, ele afirmou: "Ele

[Paulo], estando entre vocês, comunicou com exatidão e força a palavra da

verdade na presença daqueles que estão vivos ainda. E quando vos deixou,

escreveu-lhes uma carta, que, se a estudarem com cuidado, encontrarão o

sentido de terem sido erguidos na fé que lhes foi dada, e que, sendo seguida

da esperança e precedida pelo amor para com Deus e Cristo, assim como para

nosso próximo, é mãe de todos nós" (tradução de Luiz Fernando Karps

Pasquoto).

2.4) Papias,

Bispo de Hierápolis, na Frígia, pode ter sido discípulo do apóstolo

João. Em meados do segundo século, escreveu "As Interpretações dos Ditos

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do Senhor", cujos fragmentos foram preservados nos escritos de Irineu e

Eusébio. Segundo Eusébio, Papias afirmou que Marcos foi o intérprete de

Pedro e que o evangelho de Mateus foi escrito em hebraico. Segundo Irineu,

Papias defendia ideias pré-milenistas.

3. A Literatura dos Apologetas e dos Defensores da Ortodoxia.

Nos séculos II e III da era cristã, surgiu uma literatura cristã voltada

para resistir a desafios vindos de fora, tanto quanto para enfrentar os surgidos

no seio da própria igreja. Earle E. Cairns percebeu que "os apologistas,

recentemente convertidos do paganismo, estiveram preocupados com a

ameaça à segurança da Igreja, especialmente com a perseguição; os

polemistas que tinham uma formação cultural cristã, preocuparam-se com a

heresia, a ameaça interna à paz e à pureza da Igreja".

3.1) Os apologetas.

A literatura voltada aos inimigos da fé e ao império romano pretendia

refutar as falsas acusações e demonstrar que a razão e o bom senso

pertenciam aos cristãos, que eram superiores aos seus vizinhos pagãos.

Defensivamente, os apologetas demonstravam que as acusações feitas contra

os cristãos eram incoerentes tanto com a mensagem do evangelho quanto com

o caráter dos professantes da fé cristã. Positivamente, teciam argumentos no

sentido de demonstrar o absurdo da religião pagã, com seu panteão de deuses

devassos.

A seguir, transcrevemos algumas linhas do "Discurso a Diagneto",

uma das mais antigas apologias, de autor anônimo: "Os cristãos não se

diferenciam dos demais por sua nacionalidade, por sua linhagem nem por seus

costumes... Vivem em seus próprios lugares, mas como transeuntes,

peregrinos. Cumprem todos os seus deveres de cidadãos, mas sofrem como

estrangeiros. Onde quer que estejam encontram sua pátria, mas sua pátria não

está em nenhum lugar... Se encontram na carne, mas não vivem segundo a

carne. Vivem na terra, mas são cidadãos dos céus. Obedecem todas as leis,

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mas vivem acima daquilo que as leis requerem. Amam a todos, mas todos os

perseguem" (5:1-11, citado por Justo L. González).

No Oriente, os grandes nomes que se destacaram na defesa da fé

cristã foram Aristides (c. 140), Justino Mártir (100-165), Taciano (século II),

Antenágoras (escreveu em 177 a "Súplica pelos Cristãos") e Teófilo de

Antioquia (escreveu em c. de 180 a "Apologia a Autólico"). No Ocidente,

destacaram-se Minúcio Félix (escreveu "Otávio" em c. de 200) e,

principalmente, Tertuliano (c.160 a c. 230).

É verdade que nem todos os apologistas defenderam o cristianismo

sob a mesma perspectiva, sobretudo quanto à relação da fé cristã com a

cultura grega. Justino Mártir dedicou-se em demonstrar as relações entre o

cristianismo e a filosofia clássica, abordando os vários pontos de contato e

explicando-os em termos da influência do "Logos". Para Justino, o "Logos", que

para os gregos era a fonte de todo o saber, se fez carne através do homem

Jesus, sendo Jesus Cristo a fonte de todo o conhecimento verdadeiro.

Portanto, em certo sentido, os sábios da antiguidade clássica (Sócrates,

Platão), ainda que só conhecessem o verbo parcialmente, eram cristãos.

Em outro extremo, estava Taciano, o mais famoso discípulo de

Justino, para quem havia uma oposição radical entre a fé cristã e a cultura

pagã. Para Taciano, se há alguma coincidência entre a cultura grega e a

religião cristã, deve-se ao fato de que os gregos aprenderam sua sabedoria

dos "bárbaros" (cristãos). Sobre os deuses gregos, Taciano questiona o direito

que exigem dos cristãos que sejam tais deuses honrados, vez que Homero e

os demais poetas gregos contam coisas a seu respeito que são dignas de

vergonha, tais como adultério, incesto e infanticídio.

Em geral, a grande dificuldade que se tem contra os apologetas

deste período é a sua apresentação do cristianismo em termos de filosofia, o

que se pode observar, sobretudo, na doutrina do "Logos". Sua doutrina incluía

a ressurreição dos corpos, sendo inconsistentes em sua soteriologia que, às

vezes, punham ênfase demasiada no livre-arbítrio, e, em outras, faziam a

salvação depender inteiramente da livre-graça.

Mais problemática era a doutrina dos apologetas quanto ao "Logos".

Para eles, o "Logos" existia em Deus, eternamente, sem existência pessoal, ao

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que Deus concedeu existência separada e pessoal. Embora essencialmente

igual a Deus, o "Logos" nem sempre existiu como autonomamente existente,

pelo que se poderia dizer ser Ele uma criatura.

3.2) Os Defensores da fé.

Outros escritores cristãos dos séculos II e III, por sua vez,

desenvolveram uma literatura para combater as heresias que desafiavam a

pureza doutrinária da Igreja. Irineu é o maior pai anti-gnóstico do Oriente. No

Ocidente, destacaram-se em Alexandria Clemente (155-225) e Orígenes (185-

254) e, em Cartago, Tertuliano e Cipriano.

Irineu (130-200) nasceu no Oriente, onde tornou-se discípulo de

Policarpo. Mai tarde tornou-se presbítero em Lyon. De cristologia ortodoxa,

afirmava contra os gnósticos que o "Logos" existiu desde toda a eternidade,

tornou-se o Jesus histórico na encarnação, sendo, daí em diante, verdadeiro

Deus e verdadeiro homem. Negava peremptoriamente a heresia gnóstica de

que o Jesus humano se separou do Cristo divino, quando dos seus sofrimentos

e morte.

Tertuliano, o mais famoso pai anti-gnóstico, foi advogado e

presbítero da Igreja em Cartago. Escreveu tanto em defesa da fé, em sua obra

"Apologeticum", quanto como teólogo, na obra "Adversus Praxeas". Foi o

primeiro a ensinar a tripersonalidade de Deus usando o termo "Trindade". Em

Tertuliano também se vê um indício da doutrina do pecado original.

Louis Berkhof analisa que nem Irineu nem Tertuliano chegaram a

uma plena declaração da Trindade, porque em ambos estava presente a ideia

de subordinação do Filho em relação ao Pai. Em ambos, também percebe-se a

relação entre o batismo e a regeneração. O homem seria regenerado pelo

batismo, segundo Irineu. Para Tertuliano, o pecador, pelo arrependimento,

obtém salvação mediante o batismo, e os pecados cometidos após o batismo

requerem satisfação mediante penitência.

Irineu e Tertuliano também não compreenderam a doutrina paulina

da justificação pela fé. Segundo Irineu, "A fé necessariamente levaria à

observância dos mandamentos de Cristo, sendo ela suficiente para tornar o

homem justo diante de Deus" (Berkhof). Sua escatologia era pré-milenista. Os

seis primeiros mil anos seriam sucedidos pelo milênio literal, o milênio sabático,

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inaugurado pela reaparição de Cristo, quando os crentes gozarão as riquezas

da terra na Palestina. Após o milênio, surgirão os novos céus e a nova terra.

Clemente e seu discípulo, Orígenes, foram os grandes

representantes da escola alexandrina, ainda menos ortodoxos que Irineu e

Tertuliano. Eram extremamente alegóricos na interpretação da Bíblia e

favoreciam a uma espécie extravagante de síntese entre neoplatonismo e

cristianismo. Ambos mantiveram a ideia de subordinação do Filho em relação

ao Pai e, sobre o Espírito Santo, Orígenes afirmou que é uma criatura criada

pelo Pai através do Filho, tendo o Espírito uma relação menos íntima com o Pai

do que o Filho.

Ambos defendiam a ideia de livre-arbítrio, que o batismo é o começo

da nova vida na igreja e que fora da igreja - a congregação dos crentes -, não

há salvação. Para ambos, o processo de purificação continua após a morte.

Segundo Clemente, os pagãos teriam oportunidade de arrepender-se no

hades. Para Orígenes, a obra redentora não estaria terminada enquanto todas

as coisas não fossem restauradas à sua beleza original, incluindo Satanás e

seus demônios. Ambos, Clemente e Orígenes, rejeitaram o milenarismo.

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VII. As Reações da Igreja: O Bispo, o Credo e o Cânon

1. Introdução.

Como dissemos em ocasiões anteriores, a Igreja, para combater as

dificuldades que a desafiaram nos primeiros séculos, desenvolveu uma

literatura epistolar, apologética e em defesa da ortodoxia (temas sobre os quais

já nos debruçamos brevemente). Mas, não só. Nesse ponto de nossos estudos,

voltar-nos-emos ao bispo monárquico, ao Credo e ao cânon. Se não, vejamos.

2. O Bispo Monárquico.

Em um primeiro momento, líderes cristãos como Inácio de Antioquia

reconheceram a proeminência (não encontrada no Novo Testamento) do Bispo

sobre o Presbítero e o Diácono no âmbito da igreja local, ao argumento de ser

esta uma forma de proteção da unidade. Outra razão invocada para a projeção

do poder do bispo monárquico foi a necessidade de uma liderança para lidar

com a perseguição e com a heresia.

Em um segundo momento, conforme Nichols observou, no "2º

século o bispo era o pastor de uma igreja numa cidade. À proporção que

crescia o número de crentes outros grupos se formavam na mesma cidade e

adjacências. Todos esses grupos ficavam sob o governo do bispo da igreja-

mãe (=matriz). Cada uma das outras igrejas era dirigida por um presbítero, e o

bispo exercia superintendência sobre todo o distrito ou diocese" (Robert

Hasting Nichols).

Posteriormente, tendeu-se à conclusão de que bispos de

determinadas igrejas, como os de Roma, Jerusalém, Éfeso, Antioquia e

Alexandria, eram superiores aos de outras e não demorou até que o bispo de

Roma viesse a ser objeto de uma honra especial, pelas seguintes razões: a

uma, Roma era a capital do império e talvez possuísse a igreja mais rica e

influente; a duas, uma forte tradição ligava Roma aos apóstolos Paulo e Pedro,

considerados os principais líderes da igreja primitiva; a três, acreditou-se que

Pedro teria sido o primeiro Bispo de Roma e que Cristo havia dado a ele a

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primazia dentre os apóstolos, com base em Mt 16:18, 19 e Jo 21:15-19; a

quatro, a doutrina da sucessão apostólica pretendia fazer todos os bispos

retornarem aos apóstolos e o bispo de Roma, a Pedro. Como, a partir dessa

reflexão, Pedro teria a primazia no colégio apostólico, todos os bispos estariam

para o bispo de Roma como os apóstolos para Pedro.

Deve-se anotar, todavia, quanto à alegada primazia de Pedro dentre

os apóstolos e sua suposta liderança em Roma, as seguintes considerações:

Primeiro, a prerrogativa do "poder das chaves", dada a Pedro em Mt

16:19, foi igualmente concedida aos demais apóstolos em Jo 20:23 e a toda a

igreja em Mt 18:15-18. Isso se dá por que tal poder não está adstrito a

quaisquer dos apóstolos, mas ao evangelho de Cristo.

Segundo, por mais de uma vez houve debate entre os apóstolos

com vistas a uma primazia entre eles, como se pode verificar em Lc 9:46 e

22:24-30, e na presença de Cristo. Se uma espécie de primado já houvesse

sido conferida a Pedro em Mt 16:18, 19, não se teria travado tal discussão na

época da prisão do Senhor Jesus ou nosso Senhor teria uma base sólida para

corrigir o desvio. Muito ao contrário, o ensino de nosso Senhor foi no sentido de

não haver domínio hierárquico entre os apóstolos, como se pode verificar em

passagens como Mt 19:28 e Ap 20:14.

Terceiro, Paulo não se via como inferior a Pedro nem em nada

dependente dele, como se pode deduzir de Gl 1:15-19, tampouco se conteve

quando a necessidade exigiu que lhe resistisse "face a face" (Gl 2:11-14).

Quarto, Pedro é visto nas páginas do Novo Testamento como mais

um entre seus pares (Gl 2:9). Em At 8:14, ele é um delegado, juntamente com

João, da igreja em Jerusalém para supervisionar o trabalho em Samaria. Em At

15, naquela grande Assembleia em Jerusalém, não vemos Pedro exercer o

primado alegado pelos romanistas. Com efeito, o decreto desta Assembleia foi

promulgado pela ampla participação dos "apóstolos", "presbíteros" e por "toda

a igreja" (15:22, 23). Mais ainda, ele mesmo, pelo que lemos dos seus

pronunciamentos e das suas epístolas, não reconhecia-se portador de

nenhuma primazia, como se há de concluir pelo modo como tratou da

substituição de Judas, em At 1:25, 26.

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Quinto, tampouco pode prosperar a interpretação de Mt 16:18 que

faz de Pedro o fundamento sobre o qual Cristo iria construir Sua Igreja. Há

divergência sobre a interpretação de quem ou do que seria a "rocha" no texto

em comento, se o próprio Cristo, se a confissão de Pedro, como parte da

doutrina apostólica ou mesmo se Pedro, referido por Jesus como aquele que

abriria as portas do reino com a pregação aos judeus, em At 2, e aos gentios,

em At 10. Entretanto, o Novo Testamento é tão claro sobre quem é a rocha

fundamental da Igreja que a única interpretação inaceitável é a que dá a Pedro

o lugar de ser o fundamento sustentáculo dela, como se pode conferir nas

palavras de Cristo mesmo (Mt 7:24-27; 21:42), do próprio Pedro (At 4:11, 12, I

Pe 2:4-6) e de Paulo (I Co 3:11; 10:4; Ef 2:19-22).

Pois bem, como afirmou E. Carlos Pereira, em sua obra "O

Problema Religioso da América Latina", por ele prefaciada em 1920, "diremos

com distincto escriptor: - a ausencia do sol ao meio-dia não é mais notável do

que a ausencia da supremacia official de S. Pedro nas paginas do Novo

Testamento" (mantemos a ortografia da época).

Nada obstante, o fato é que esse período da história da igreja já

encerra com uma forte doutrina da sucessão apostólica, com um bispo em

cada igreja elevado a posição hirarquicamente superior ao presbítero e com

uma certa proeminência reconhecida, sobretudo na obra de Cipriano, do bispo

de Roma sobre os demais.

3. O Credo dos Apóstolos.

Aliado ao papel do bispo como elemento unificador da igreja,

desenvolveu-se uma declaração de fé que ficou amplamente conhecida como

'Credo dos Apóstolos', além de ter sido chamada também de 'a regra de fé', 'a

regra da verdade', 'a tradição apostólica' e, mais tarde, 'o símbolo de fé'.

3.1) A História do Credo.

Diz-se que no exército romano, quando havia necessidade de dois

comandantes se separarem, eles quebravam um artefato de barro e cada um

ficava com um pedaço. Quando, no campo de batalha, um emissário de um

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dos comandantes precisasse levar uma mensagem para outro, ele deveria

levar também o pedaço do artefato que pertencia ao seu comandante. O

comandante destinatário da mensagem, então, para verificar a autenticidade da

mensagem, veria se o pedaço de barro do emissário se encaixava

perfeitamente ao seu. Tais pedaços eram chamados “simbolum”. Destarte, 'a

regra dos apóstolos' foi chamada de 'simbolum' porque serviu como forma de

autenticar um cristão genuíno. Cristão era o que aceitava o “símbolo de fé”.

Até metade do século XVII, era corrente a crença de que o Credo

havia sido composto pelos apóstolos em Jerusalém, pela época do

Pentecostes, antes de se separarem, havendo cada um contribuído com uma

cláusula. Essa lenda é vista pela primeira vez na Exposição do Credo

(Expositio Symboli) de Rufino de Aquiléia, no fim do século IV, no que foi

seguido, com modificações, por Ambrósio de Milão (c. 400), João Cassiano (c.

424) e por toda a tradição católica romana. Entre os protestantes, a lenda

encontrou defensores, foi questionada por Calvino e em seguida desmentida

definitivamente por diversos estudiosos.

Portanto, do Credo se pode afirmar que não foi escrito pelos

apóstolos, mas que trata-se da mais antiga declaração de fé da igreja cristã

que chegou até nós, cuja origem, segundo Justo L. González, "se acha nas

lutas contra as heresias que tiveram lugar nos meados do segundo século".

Earle E. Cairns afirma que "Irineu e Tertuliano desenvolveram Regras de Fé

para serem usadas na distinção entre Cristianismo e Gnosticismo" e

funcionavam como sumários das principais doutrinas da Bíblia. Portanto, no

segundo século, homens como Irineu, Tertuliano e Hipólito já ofereciam

confissões de fé semelhantes ao Credo.

Todavia, a formulação original parece ter surgido em Roma por volta

de 340 d.C. e Ambrósio foi o primeiro a dar ao documento o título de Credo dos

Apóstolos. Nos séculos VII e VIII, o Credo já era usado amplamente pelas

igrejas da Gália (atual França) e Espanha, de onde advém-nos a versão final.

Abaixo, transcreveremos a declaração usada no batismo por Rufino

de Aquiléia, em c. de 400 d.C., e a versão recebida. Se não, veja-se:

"Creio em Deus Pai onipotente e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que nasceu do Espírito Santo e da virgem Maria, que foi crucificado sob o poder de Pôncio Pilatos e sepultado, e ao terceiro dia ressurgiu da morte, que subiu ao céu e assentou à direita

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do Pai, de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo, na santa Igreja, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna [omitido por Rufino]" (in Documentos da Igreja Cristã, H. Bettenson). "Eu creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador dos céus e da terra; E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu ao inferno e ao terceiro dia levantou-se dos mortos, ascendeu aos céus e sentou à mão direita de Deus Pai todo-poderoso, de onde virá para julgar os vivos e os mortos; E no Espírito Santo, na Santa Igreja católica, na comunhão dos santos, no perdão dos pecados, na ressurreição do corpo e na vida eterna".

3.2) A importância do Credo.

Trata-se, como se pode verificar, de uma confissão essencial. É uma

declaração que todos precisamos conhecer e aceitar para sermos cristãos.

Os reformadores deram grande valor ao Credo dos Apóstolos.

Calvino o comentou, afirmando que cada uma de suas cláusulas se origina nas

Escrituras, e Lutero o fez parte dos seus Catecismos, aduzindo que o Credo

"apresenta tudo o que devemos esperar e receber de Deus, e nos ensina, em

suma, a conhecê-lo por completo".

Assiste razão a Franklin Ferreira, quando em sua exposição do

Credo dos Apóstolos no Congresso para Pastores e Líderes da Editora Fiel, em

2012, afirmou ser a Regra uma espécie de "credo essencial", que "esta

exposição do Credo dos Apóstolos é uma apresentação do ensino bíblico,

ortodoxo e consensual, 'que foi crido em todo o lugar, em todo o tempo e por

todos' (Vicente de Lérins) os cristãos".

Segundo Phillip Schaff, o Credo dos Apóstolos "é de longe o melhor

resumo popular da fé cristã jamais feita em tão pouco espaço (...)", ao mesmo

tempo em que deve ser admitido "que a grande simplicidade e brevidade deste

Credo, que tão admiravelmente o adapta para todas as classes de cristãos e

adoração pública, o faz insuficiente como um regulador de doutrina bíblica para

um estágio mais avançado do conhecimento teológico".

3.3) As raízes hebraico-cristãs dos credos e confissões.

A tradição religiosa hebraico-cristã é puramente confessional. A fé

dos hebreus e dos cristãos é uma fé professante, por assim dizer. Isso se dá

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porque a revelação divina é proposicional. Deus revela-se proposicionalmente,

isto é, comunicando máximas, assertivas, através de expressões verbais, que

devem ser conhecidas e cridas. As confissões são, lado outro, respostas de fé

da igreja, destinatária por excelência da Revelação. Deus revela-se através das

Escrituras e a Igreja responde com uma afirmação de fé, com uma confissão,

com um “eu creio”.

No Antigo Testamento, já encontramos diversas confissões de fé do

povo hebreu, nas quais se professa que há um só Deus, que Ele é singular,

além da confissão quanto aos Seus poderosos feitos (Ex 15:1-18; Dt 6:20-24;

26:5-9; Js 24:2-13) e dos Seus atributos (Sl 136; Sl 40:9-10; 96:1-10; 147:1-7).

No Novo Testamento, a palavra "homologia" (confissão) ocorre seis

vezes (II Co 9:13; I Tm 6:12, 13; Hb 3:1; 4:14; 10:23) e os verbos correlatos

outras tantas, com o mesmo sentido. Às vezes, essa confissão dá-se de forma

pública (Tt 1:16; Mt 10:32, 33; Rm 10:9, 10) e, às vezes, de forma comunitária

(II Co 9:13), sem olvidar para o fato de que há um preço na confissão (Jo 9:22;

12:42).

Diversas são as confissões encontradas nas páginas do Novo

Testamento. Algumas põem ênfase em Cristo (I Co 15:3, 4; Fp 2:5-11; I Tm

3:16; II Tm 2:8; I Pe 3:18-22; I Jo 4:2, 15); outras, no Pai e no Filho (I Co 8:6; Gl

1:1-5; I Tm 2:5, 6; 6:13-16; II Tm 4:1); e outras ainda enfatizam a Trindade (Mt

28:19; Rm 9:1-4; II Co 1:21, 22; 13:13; I Pe 1:2; Jd 20, 21).

4. O Cânon do Novo Testamento.

Além da força do bispo monárquico e do desenvolvimento de uma

declaração de fé, a Igreja foi gradativamente sendo levada pelas circunstâncias

providenciais a reconhecer oficialmente os livros inspirados que comporiam o

Novo Testamento – o Cânon.

Diversos fatores conduziram a igreja ao reconhecimento dos seus

livros inspirados, dos quais destacaremos dois: hereges como Márcion

estavam formando seu próprio cânon e as perseguições levaram os cristãos a

desejarem saber quais os livros pelos quais valeria a pena morrer.

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Deve-se pontuar com Flanklin Ferreira que os desafios das seitas e

a perseguição apenas aguçaram o interesse da igreja em fixar oficialmente o

número exato de livros do Novo Testamento. “O primeiro Pai da Igreja a falar

de forma inequívoca de um ‘Novo’ Testamento em paralelo com o Antigo

Testamento foi Irineu de Lião. Entretanto, Clemente, Inácio, Policarpo, Justino,

Tertuliano, Orígenes, entre outros, já usavam o Novo Testamento, tratando-o

como inspirado do mesmo modo que o Antigo Testamento” (Flanklin Ferreira).

O processo de reconhecimento do cânon, todavia, não se deu de

uma vez nem sem disputas. Norman Geisler e William Nix observam que

"havendo tão grande diversidade geográfica de origens e destinatários, é

compreensível que nem todas as igrejas haveriam de possuir, de imediato,

cópias de todos os livros inspirados do Novo Testamento. Acrescentem-se os

problemas de comunicação e de transporte, e fica mais fácil ver que seria

preciso algum tempo até que houvesse um reconhecimento geral de todos os

27 livros do cânon do Novo Testamento".

No processo de reconhecimento, por outro lado, os testes de

canonicidade utilizados foram os da apostolicidade, pelo qual se buscava a

autenticidade da autoria e se tinha sido escrito por apóstolo ou sob sua

influência, e da concordância doutrinária com a regra de fé já consolidada.

De plano, deve ser anotado que enquanto viviam os apóstolos, já

havia circulando entre as igrejas escritos espúrios, o que se pode depreender

dos seguintes textos: Lc 1:1-4; II Ts 2:2; 3:17; Jo 21:23, 24. Lado outro, pode-

se verificar igualmente a prática da leitura pública nas reuniões das igrejas das

cartas apostólicas (I Ts 5:27; Cl 4:16; Ap 1:3).

Do exposto, no mínimo, se pode argumentar em favor de uma

seletividade já em processo no período neo-testamentário, vez que somente as

cartas autorizadas deveriam ter força cogente aos cristãos, em matéria de

religião, e ouvidas no culto público como a Palavra autoritativa de Deus.

Ademais, é mesmo possível que Pedro já tivesse uma coleção das cartas de

Paulo (cf. II Pe 3:15, 16), do modo como Paulo conhecia o evangelho de Lucas

(cf. I Tm 5:18; Lc 10:7).

Já no começo do segundo século, circulavam juntos os quatro

evangelhos, Atos e as epístolas de Paulo. Tiago, II Pedro, II e III João, Judas,

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Hebreus e Apocalipse tiveram sua inclusão no cânon discutida por mais tempo,

sobretudo pela incerteza quanto à autoria.

Foi em 367 d.C. que Atanásio, então Bispo de Alexandria, escreve

uma carta às igrejas sob sua supervisão (“Carta de Páscoa”) incluindo uma

lista dos 27 livros do Novo Testamento, tal qual o conhecemos. Jerônimo e

Agostinho, para citar outras vozes individuais, confirmaram essa lista e, ainda

no século IV, os concílios de Hipona (em 393 d.C.), Cartago (em 397 d.C.) e

Calcedônia (em 451 d.C.) fizeram o mesmo. Na prática, “apenas aprovaram e

deram expressão uniforme àquilo que já era aceito como fato pelas igrejas

havia um bom tempo”.

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A Antiga Igreja Católica: Continuação

VIII. Fé Cristã, de Perseguida a Religião Oficial

1. O período compreendido entre 313 e 590.

Nesse período, a Igreja viveu a transição de deixar de ser uma

religião perseguida a ser a religião oficial do império romano e passou do que

tem sido chamada de Antiga Igreja Católica para o que conhecemos como

Igreja Católica Romana.

A união com o Estado foi avaliada pela Igreja de diferentes modos.

Uma das maneiras de ver a nova situação foi com entusiasmo, entendendo que

a Igreja estava sendo abençoada por Deus em receber tamanho privilégio.

Mas, por outro lado, a nova posição trouxe reações contrárias, que, dentre

elas, contribuíram ao surgimento da vida monástica.

O período foi também de efervescência intelectual e debates

teológicos. Homens como Eusébio de Cesaréia, Atanásio e João Crisóstomo,

dentre os gregos, os capadócios Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa e

Gregório de Nazianzo, e, dentre os latinos, Ambrósio, Agostinho e Jerônimo,

produziram, em consequência das disputas doutrinárias, escritos que

influenciam toda a cristandade até hoje.

2. A ascensão de Constantino.

O império vivia um quadro de instabilidade decorrente de crise

econômica e da ameaça de invasões bárbaras, quando Diocleciano (244-311)

o assumiu e o reorganizou, dividindo-o em dois imperadores (ele, no Oriente, e

Maximiano, no Ocidente) e quatro partes: Diocleciano reinou a parte da

Nicomédia, na Bitínia; Maximiano, de Milão, na Itália; Galério (sob Diocleciano),

de Sirmio, na Panônia; e Constâncio Cloro (sob Maximiano) teve sede em

Trier, na Gália.

Com a morte de Constâncio, seu filho Constantino (c. 274-337) foi

proclamado césar por suas tropas. De modo surpreendente, Constantino

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reorganizou o império após vencer seus rivais, um a um, até derrotar Maxêncio

(278-312), filho de Maximiano, na batalha da Ponte Mílvia sobre o rio Tibre, em

312.

Antes, porém, dessa batalha, teve uma visão (segundo Eusébio) ou

um sonho (segundo Lactâncio), em que viu uma cruz e uma inscrição no céu

(“vence nisto”), ocasião em que entendeu que se se convertesse ao

cristianismo derrotaria seu inimigo Maxêncio. No dia seguinte, ordenou que

seus estandartes fossem marcados com a superposição das duas primeiras

letras do nome Cristo (o), “”e“” (o ‘labarum’).

Com a vitória sobre Maxêncio, Constantino tornou-se o único dono

do império ocidental, enquanto o Oriente ainda estava dividido entre Licínio e

Maximino Daza.

Em Milão, fez um acordo com Licínio e, juntos, proclamaram o

“edito de Milão”, em 313, e decidiram que Licínio investiria, somente com seus

próprios recursos, contra as tropas de Maximino. O resultado foi o confronto

que promoveu a derrota deste, que não mais conseguiu reorganizar seu

exército. Com a nova situação política, Constantino continuou a governar o

Ocidente, enquanto Licínio, a leste da Itália.

Como ambos, Constantino e Licínio, ambicionavam o domínio

exclusivo de todo o império, uma série de intrigas pessoais redundou em dois

confrontos, em 314, seguidos por uma trégua que perdurou até 322, ano em

que a guerra civil foi retomada. Constantino venceu Licínio em três batalhas

(Andrianópolis, Helesponto e Crisópolis) e, em 324, o império já estava

reunificado e sobre o qual reinou até sua morte, em 337.

3. O impacto de Constantino.

Muito se discute sobre os motivos do envolvimento de Constantino

com o cristianismo. Para alguns historiadores, ele teria sido um político

habilidoso que soube usar a religião cristã a serviço de sua ambição pelo

império; para outros, ele foi realmente um supersticioso sincero, que acreditava

no poder de Jesus Cristo e que seria ajudado pelo Deus dos cristãos se

beneficiasse a estes.

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A princípio, Constantino garantiu que a Igreja tivesse paz e lhe

devolveu as propriedades confiscadas durante a perseguição. Em um segundo

momento, passou a subsidiá-la mais abertamente, construindo templos e

isentando o clero dos serviços públicos e das tarifas nos transportes do

império.

Em 324, um edito ordenou que todos os soldados adorassem o

Deus dos cristãos no primeiro dia da semana, dia em que estes celebravam a

ressurreição de Cristo. Também se envolveu em controvérsias teológicas e, em

325, convocou e presidiu o Concílio de Nicéia, permitindo que os bispos

viajassem às custas dos cofres públicos.

O impacto do envolvimento de Constantino sobre a Igreja cristã foi

incalculável. A consequência imediata foi o fim da perseguição. Mas, não parou

por aí. O culto cristão sofreu uma influência alarmante. A princípio, as reuniões

dos cristãos ocorriam em casas particulares e eram marcadas pela

simplicidade e participação. Após a “conversão” de Constantino, “o culto cristão

começou a sentir a influência do protocolo imperial” (Justo L. Gonzalez). O

incenso, usado no culto ao imperador, adentrou à prática da Igreja; os ministros

começaram a usar vestimentas ornamentadas; começou-se a iniciar os cultos

com uma procissão; templos suntuosos foram construídos em vários lugares.

Gonzalez observa ainda que para dar maior destaque às procissões, “surgiram

coros, com o resultado a longo prazo de que a congregação participava cada

vez menos do culto”.

Além do impacto sobre o culto, observa Bruce L. Shelley,

“Constantino submeteu os bispos cristãos enquanto eram seus funcionários

civis e exigiu obediência incondicional aos pronunciamentos oficiais, mesmo

quando eles interferiam nas questões puramente religiosas”. Ademais, Shelley

continua, “Havia também as massas que então afluíam para a igreja

oficialmente favorecida. Antes da conversão de Constantino, a igreja consistia

de crentes convictos. Depois, chegaram aqueles que eram politicamente

ambiciosos, sem interesse religioso e ainda meio enraizados no paganismo”.

4. A união da Igreja com o Estado.

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Essa atitude para com a Igreja permaneceu com os sucessores de

Constantino, e templos pomposos continuaram a ser construídos, financiados

pelos cofres imperiais, até que houve uma reação pagã com o imperador

Juliano, em 361.

Juliano, o Apóstata (331-363), sobrinho de Constantino, se tornou

seguidor do neoplatonismo, a partir dos estudos que fez em Atenas. Ele

restaurou a liberdade de culto e retirou os privilégios da Igreja cristã. Sob seu

governo, as facilidades estavam agora a serviço da filosofia e da religião pagã.

Mas, o processo de retorno ao paganismo foi interrompido por sua morte, na

batalha contra os persas sassânidas.

Os sucessores de Juliano reverteram a sua política, até que

Teodósio I (347-395) e Graciano (359-383) proclamaram um edito, em 380, que

tornou o cristianismo a religião exclusiva do Estado e estabeleceu uma punição

para seguidores de quaisquer outros cultos. Dada à importância do edito,

transcrevemos infra à apreciação do leitor.

“Queremos que as diversas nações sujeitas à nossa clemência e Moderação continuem professando a religião legada aos romanos pelo apóstolo Pedro, tal como a preservou a tradição fiel e tal como é presentemente observada pelo Pontífice Dâmaso e por Pedro, bispo de Alexandria e varão de santidade apostólica. De conformidade com a doutrina apostólica e o ensino dos Evangelhos, creiamos, pois, na única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em igual majestade e em Trindade santa. Autorizamos os seguidores desta lei a tomarem o título de Cristãos Católicos. Referentemente aos outros, que julgamos loucos e cheios de tolice, queremos que sejam estigmatizados com o nome ignominioso de hereges, e que não se atrevam a dar a seus conventículos o nome de igrejas. Estes sofrerão, em primeiro lugar, o castigo da divina condenação e, em segundo lugar, a punição que nossa autoridade, de acordo com a vontade do céu, decida infligir-lhes” (Bettenson, in Documentos da Igreja Cristã).

Em 392, o Edito de Constantinopla proibiu o paganismo e, em 529,

o imperador Justiniano determinou o fechamento da escola de filosofia de

Atenas.

As consequências da promoção da fé cristã à religião imperial

foram inúmeras: a riqueza passou a ser sinal do favor divino, e a Igreja se

tornou dos ricos e poderosos; com uma aristocracia próxima à do império,

surgiu a divisão entre o clero e laicato; a igreja começou a imitar os costumes

do império tanto em liturgia quanto em forma de governo, tornando-se cada vez

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mais episcopal e monárquica; a igreja relegou o retorno de Cristo e do reino a

segundo plano. Para Eusébio, representante de um pensamento difundido e

amplamente aceito nessa época, embora não o diga “explicitamente”, segundo

salienta Gonzalez, “ao lermos as suas obras temos a impressão de que com

Constantino e seus sucessores o plano de Deus se cumpriu”.

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IX. Os Concílios e Credos Ecumênicos

Nos séculos IV e V da era cristã, surgiram, a partir dos chamados

concílios ecumênicos, os credos aceitos por praticamente todos os ramos do

cristianismo. Foram ao todo sete grandes concílios ecumênicos, quais sejam: I

Concílio de Niceia (325), I Concílio de Constantinopla (381), I Concílio de Éfeso

(431), Concílio de Calcedônia (451), II Concílio de Constantinopla (553), III

Concílio de Constantinopla (680) e II Concílio de Niceia (787).

Quando se pergunta por que os debates teológicos ocorreram tão

tardiamente, Cairns responde que “nos tempos de perseguição, a submissão a

Cristo e à Bíblia era mais importante do que o significado de certas doutrinas”.

A partir de Constantino, um homem ávido pela reunificação do império, era

preciso que na nova conjuntura a Igreja se unisse em torno de uma única

doutrina, afinal, “um cristianismo em discórdia e dividido não podia unir o

Império fragmentado” (Shelley).

Mas, isso não responde toda a questão. Principalmente no Oriente,

surgiu uma intensa inquietação por parte dos cristãos quanto às crenças

afirmadas há séculos. Desejava-se entender e formular com mais clareza

principalmente acerca a Trindade e do relacionamento entre o Pai e o Filho,

sobretudo em um período em que heresias propunham soluções ao mistério

trinitário.

Trataremos, nesse passo, das principais controvérsias que

culminaram nos concílios mais importantes.

1. A Controvérsia Ariana e o Concílio de Niceia (325).

Um dos protagonistas dos debates teológicos que redundaram no

Concílio em apreço foi Ário, presbítero da igreja em Alexandria, no Egito. Foi

Ário que discutiu com o seu bispo, Alexandre, quando este tencionou ensinar

sobre a “Unidade da Trindade”. Para Ário, havia apenas um Deus eterno em

uma única pessoa, o Pai. Cristo, embora tendo sido criado fora do tempo e ser

a primeira criatura, não era Deus eterno e onipotente, mas um ser menor,

intermediário, que se situava entre Deus e a criação.

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Ário retirou suas conclusões cristológicas a partir de seu raciocínio

sobre a unidade indivisível de Deus. Para ele, se Deus era portador de uma

unidade indivisível, a crença na Trindade de pessoas, na prática, acabaria por

dividi-lO em partes. Em consequência, o Filho, embora sendo uma criatura

exaltada, era apenas uma criatura. Os títulos divinos dados a Cristo pelas

Escrituras eram, para Ário, “metafóricos, na melhor da hipótese: honras

apontando para a sua maravilhosa posição como a criação mais alta de Deus,

mas tudo mal interpretado, se tomado literalmente”. Como Ário expressou, o

Filho ‘é chamado Deus não verdadeiramente, mas somente no nome’”

(Chistopher A. Hall).

Para sustentar sua posição, Ário demonstrou que Jesus Cristo

sentiu angústia e medo (Mt 26:38), não conhecia todas as coisas (Mt 15:34;

27:46; Mc 13:4, 32) e argumentou que “Se o Filho fosse, de acordo com sua

interpretação, eternamente existente com Deus, Ele não teria sido ignorante do

Dia, mas o teria conhecido como [sendo a] Palavra; nem teria Ele sido

abandonado, se coexistente [com o Pai]... nem teria orado de modo algum. ...

Sendo a Palavra, Ele nada teria necessitado” (citado por Chistopher A. Hall).

A desavença foi tal que Constantino precisou intervir, e o fez

convocando, em 325, o Concílio de Niceia. Bruce L. Shelley pinta-nos uma

cena quase inacreditável:

“Mais de trezentos bispos ainda se lembravam bem dos dias de perseguição. Muitos podiam mostrar as cicatrizes do sofrimento e da prisão. Um deles tinha perdido um olho durante a perseguição. Outro, sob tortura, perdera os movimentos das mãos. Mas os dias de sofrimento pareciam distantes naquele momento. Os bispos não partiram secretamente para Nicéia, como costumavam fazer, temendo ser detidos. Eles não viajaram todas aquelas milhas penosamente como o fizeram antes. Partiram para o concílio tranquilamente, com todas as despesas pagas, convidados do imperador”.

Três teses foram levadas ao debate em Niceia. Além da posição

ariana, que via Cristo como criado do nada, subordinado ao Pai e de natureza

essencial diferente do Pai, Eusébio de Nicomédia (que não pode ser

confundindo com Eusébio de Cesaréia) postulou uma posição intermediária, no

sentido de que Cristo pode ser considerado divino por Sua obediência à

vontade de Deus.

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Entretanto, o principal defensor da posição que viria a ser aceita

por toda a cristandade como ortodoxa foi Atanásio. Ele chegou ao Concílio sem

direito a voto, como secretário do bispo Alexandre, com vinte e oito anos, e

surpreendeu a todos “pelo talento nas discussões teológicas e por seu

conhecimento profundo da Escritura” (Flanklin Ferreira). Chistopher Hall afirma

que “Seus amigos teriam desejado dar prontamente sua vida por ele. Seus

inimigos anelavam vê-lo e sua lembrança alijados da terra. Alguns zombavam

dele, tratando-o como ‘anão negro’”.

Sua defesa da divindade de Cristo repousou numa base dupla:

primeiro, que somente Deus pode salvar e, se o Novo Testamento chama

Jesus Cristo de Salvador, Ele deve ser Deus. É dizer, considerando que a obra

da salvação não é menor que a obra da criação, somente aquele que pode

criar pode salvar. Daí que, como somente Deus pode criar, somente Deus pode

salvar.

Em segundo lugar, Atanásio defendeu que os cristãos adoram a

Jesus e oram a Ele. Portanto, se Jesus Cristo não é Deus, os cristãos de todos

os tempos são idólatras e blasfemos. “Em resumo, as duas razões

fundamentais pelas quais Atanásio rejeitou o pensamento ariano foram, em

primeiro lugar, porque uma implicação do arianismo era que a salvação

provinha de uma criatura; e, em segundo, porque se aproximava do politeísmo”

(Flanklin Ferreira).

Em resposta a Ário, Atanásio desejava que as Escrituras fossem

acreditadas em tudo quanto afirmam a respeito do Filho de Deus e insistia em

que elas contêm “um duplo relato do Salvador”. Assim, todas as “propriedades

da carne” são verdadeiramente atributos do Filho, em decorrência da

encarnação, assim como são Seus todos os atributos da divindade. Alertou que

o equívoco ariano foi que “olhando para o lado humano do Salvador, julgaram-

no uma criatura”.

O Credo resultante do Concílio de Niceia consiste da seguinte

redação:

“Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, unigênito, isto é, da substância (homo ousion) do Pai, Deus de Deus, Luz e Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão

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na terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem, e sofreu e ressuscitou no terceiro dia, subiu ao céu, e novamente deve vir para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo” (in Documentos da Igreja Cristã, Bettenson).

2. O Debate Pneumatológico e o I Concílio de Constantinopla (381).

Não obstante, a heresia ariana não foi erradicada em 325, com

Niceia. As décadas seguintes viram o recrudescimento do arianismo, sobretudo

face ao apoio de imperadores arianos. Assim, nos próximos cinquenta anos o

debate continuou acirrado. Atanásio foi exilado cinco vezes, saindo de

Alexandria e retornando a ela a depender da mudança no governo do império.

Um grupo semiariano apartou-se do arianismo radical defendendo

a relação de Cristo com o Pai a partir do termo “homoiousios”, expressão que

quer dizer “similar” ou “semelhante”. Enquanto o grupo liderado por Atanásio

insistia no uso do vocábulo “homoousios”, para asseverar que Cristo é da

substância do Pai.

Shelley observa que “embora apenas um ‘i’ dividisse os grupos

após o encontro de Nicéia, as questões envolvidas representavam duas

interpretações diametralmente diferentes da fé cristã. Estavam em jogo a

divindade de Jesus Cristo e a essência da doutrina da Trindade”. Esse autor

vaticina, em conclusão: “Na luta ariana, a precisão era tudo”.

Atanásio faleceu em 2 de maio de 373, sem ver o triunfo de sua

causa. Entretanto, outros homens importantes entraram em cena, sobretudo os

chamados “pais capadócios”: Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa e

Basílio, o Grande.

Gregório de Nazianzo envolveu-se na controvérsia ariana e

pneumatológica do período, sobretudo quando assumiu o bispado de

Constantinopla por dois curtos e intensos anos, até 381. Em resposta aos

“eunomianos”, um grupo ariano radical que reduziu o estudo teológico a um

exercício puramente racional, Gregório persistia em afirmar o mistério da fé

cristã, “e deleitava-se ao colocar lado a lado os maravilhosos paradoxos da

indescritível união da deidade e humanidade de Cristo” (Christopher A. Hall):

Ele foi batizado como homem – mas remiu os pecados como Deus. ... Ele foi tentado como homem, mas venceu como Deus. ... Ele teve fome – mas alimentou milhares. ... Ele estava fatigado, mas é o

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descanso daqueles que estão cansados e oprimidos. Ele teve um sono pesado, mas caminhou levemente sobre o mar. ... Ele pagou tributo, mas foi tirado de um peixe; sim, Ele é o rei daqueles que o requereram dele. ... Ele ora, mas também ouve orações. Ele chorou, mas faz as lágrimas secarem. Ele perguntou onde puseram Lázaro, porque era homem; mas o ressuscitou porque era Deus. Ele foi vendido, e muito barato, pois foram somente trina peças de prata; mas redimiu o mundo, pagando alto preço, pois o preço foi seu sangue. Como ovelha foi levado ao matadouro, mas Ele é o pastor de Israel e agora também de todo o mundo. ... Ele foi traspassado e moído, mas cura toda enfermidade. Ele foi levantado e pregado no madeiro, mas, pela árvore da vida, Ele nos restaura. Ele morre, mas dá vida, e por sua morte destrói a morte (citado por Hall).

Devemos lembrar, por oportuno, que o Concílio de Nicéia não

tratou sobre a natureza do Espírito Santo, limitando-se a tão somente afirmar a

fé “no Espírito Santo”. Nesse vácuo, surge Macedônio, bispo de Constantinopla

entre 341 e 360, de confissão semiariana, ensinando que o Espírito Santo era

subordinado ao Pai e ao Filho e que era um ser do mesmo nível dos anjos.

O teólogo que principalmente tomou a si a responsabilidade de

responder aos “pneumatômacos” (opositores do Espírito) foi o capadócio

Basílio de Cesaréia. Em seu “Tratado sobre o Espírito Santo”, escrito em 374,

afirmou que o Espírito Santo deve receber a mesma glória e louvor que o Pai e

o Filho: “O Senhor nos entregou como doutrina necessária e salvífica que o

Espírito Santo deve ser colocado na mesma categoria com o Pai. [(...) Nós]

glorificamos o Espírito Santo com o Pai e o Filho porque cremos que ele não é

estranho à natureza divina” (citado por Flanklin Ferreira).

Basílio defendeu a divindade do Espírito Santo, demonstrando com

base nas Escrituras que a Ele pertence a mesma glória do Pai e do Filho.

Também argumentou a partir da experiência cristã da salvação, afirmando que

o Espírito só pode operar a nossa salvação porque é uma pessoa divina.

Basílio trabalhou arduamente para que um novo Concílio fosse

convocado a fim de ratificar o Credo de Nicéia, por fim à controvérsia ariana e

solucionar a questão pneumatológica. Como Atanásio, também não viveu para

ver a vitória da ortodoxia, porque faleceu em 1 de janeiro de 379, pouco antes

do imperador Teodósio I convocar o I Concílio de Constantinopla, em 381.

Nesse Concílio, onde a igreja cristã foi representada por cento e

cinquenta bispos, condenou-se o arianismo, ratificou-se e revisou-se o Credo

de Niceia, afirmando a divindade do Espírito Santo. O Credo de

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Constantinopla, também chamado “niceno” e “niceno-constantinoplano” (por

ser também uma ratificação de Nicéia), tem a seguinte dicção:

“Cremos em um Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, gerado pelo pai antes de todos os séculos, Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne do Espírito Santo e da Virgem Maria, e tornou-se homem, e foi crucificado por nós sob o poder de Pôncio Pilatos, e padeceu, e foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus, assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim; e no Espírito Santo, Senhor e vivificador, que procede do Pai, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e glorificado, que falou através dos profetas, e na Igreja uma, santa, católica e apostólica; confessamos um só batismo para remissão dos pecados. Esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do século vindouro” (grifo nosso).

3. A Dupla Natureza de Cristo, o I Concílio de Éfeso (431) e o Concílio de

Calcedônia (451).

Com as questões ariana e pneumatológica resolvidas, os debates

teológicos voltaram-se à compreensão da dupla natureza de Cristo. Na

tentativa de definição do tema, a ortodoxia enfrentou três heresias que se

originaram das ideias de Apolinário, Nestório e Êutiques.

Nestório, bispo de Constantinopla entre 428 e 431, foi acusado de

ensinar que as duas naturezas de Cristo, a divina e a humana, coexistiam não

em uma verdadeira “união”, mas tão só em uma “conjunção” (“sunápheia”).

Bettenson anotou que “aparentemente, Nestório aprendeu sua doutrina com

Teodoro de Mopsuéstia [lugar próximo de Antioquia], que ilustrava a união das

duas naturezas em Cristo com a união conjugal de marido e mulher, tornados

uma só carne sem deixarem de ser duas pessoas e duas naturezas”.

Por essa razão, segundo Nestório, não seria adequado chamar

Maria de “mãe de Deus”, visto ter ela gerado apenas a natureza humana de

Jesus. Entretanto, “theotókos” (“mãe de Deus”) é termo que realça mais a

divindade do Filho que o privilégio da mãe, razão pela qual os reformadores

entenderam, segundo González, “que o que foi discutido no século quinto não

era que lugar a devoção a Maria deveria ter na vida cristã, mas a relação entre

a humanidade e a divindade de Jesus Cristo”.

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O opositor de Nestório foi Cirilo, o patriarca de Alexandria (412-

444), que em 428 disparou contra aquele uma série de doze anátemas. No

segundo anátema, proclamou: “Se alguém não confessar que o Verbo de Deus

Pai estava unido pessoalmente [kath’hypóstasin] à carne, sendo com ela

propriamente um só Cristo, ou seja, um só e mesmo Deus e homem ao mesmo

tempo, seja anátema” (in Documentos da Igreja Cristã, Bettenson).

Na segunda carta a Nestório, escrita em 430, que foi aprovada nos

Concílios de Éfeso e Calcedônia, Cirilo asseverou:

“(...) As duas naturezas, que foram unidas a fim de formarem a verdadeira unidade, eram diferentes, mas de ambas houve um só Cristo e um só Filho. Não professamos que a diferença das naturezas foi destruída em virtude da união, mas que, integrados inconcebivelmente na unidade, divindade e humanidade produziram para nós um único Senhor e Filho, Jesus Cristo”.

No I Concílio de Éfeso, convocado pelo imperador Teodósio II e

realizado em 431, com uma presença em torno de duzentos a duzentos e

cinquenta bispos, Nestório foi deposto do bispado, o nestorianismo foi

condenado e a expressão “theotókos” (mãe de Deus), mantida, para revelar-se

inadequada somente nos séculos seguintes.

A heresia de Apolinário, bispo de Laodicéia (falecido em 392), por

sua vez, consistia em afirmar que o Logos divino substituía a alma humana no

corpo humano de Jesus, criando uma espécie de “unidade de natureza” entre o

Logos e seu corpo. Na prática, Jesus não seria completamente humano, visto

que da humanidade Ele só teria o corpo.

Finalmente, Êutiques, sucessor de Cirilo no bispado de Roma,

começou a ensinar que a natureza divina de Cristo absorveu a natureza

humana, e que após a encarnação, Cristo teria somente natureza divina

revestida de carne humana. Em reação ao ensino de Êutiques, Flaviano, o

bispo de Constantinopla, baniu aquele da cidade de Roma.

Em apoio a Êutiques, Dióscoro organizou um Concílio em Éfeso,

em 449 (mais tarde chamado por Leão de “Sínodo dos Ladrões”), e tomou

providências para depor Flaviano, que, por sua vez, pediu socorro a Leão, o

então bispo de Roma.

A Carta XXVIII, conhecida como Tomo a Flaviano e escrita em 13

de junho de 449, foi uma resposta de Leão ao citado “Sínodo dos Ladrões”, e

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apresentava a doutrina ortodoxa da encarnação e da dupla natureza de Cristo.

Berkhof resume os cinco pontos mencionados no Tomo a Flaviano da seguinte

forma:

“1. Existem duas naturezas em Cristo, que são permanentemente distintas. 2. Essas duas naturezas são unidas em uma só Pessoa, cada uma das quais realizou sua própria função apropriada na vida encarnada. 3. Da unidade da Pessoa segue-se a comunicação de atributos (communicatio idiomatum). O Senhor é, portanto, “visível” e “invisível”, “compreensível” e “incompreensível”, “passível” e “impassível”. 4. A obra da redenção requeria um Mediador ao mesmo tempo humano e divino, temporal e intertemporal, mortal e imortal. (...). 5. A humanidade de Cristo é permanente, e sua negação implica a negação docética da realidade dos sofrimentos de Cristo” (citado por Flanklin Ferreira).

O Concílio de Calcedônia reuniu-se a partir de 8 de outubro de 451,

convocado pelo imperador Marciano, com a presença de mais de quinhentos

bispos. Nele, Êutiques e Dióscoro foram condenados e depostos, os Credos de

Niceia e Constantinopla foram ratificados e as Cartas de Cirilo e o Tomo a

Flaviano foram aprovados.

Segundo J. N. D. Kelly, “a maioria dos bispos presentes objetava à

formulação de um novo credo; eles consideravam suficiente confirmar a fé

nicena e reconhecer o valor obrigatório das Cartas Dogmáticas de Cirilo e o

Tomo de Leão. No entanto, os comissários imperiais sabiam que, para que o

concílio tivesse resultados, era necessário elaborar uma fórmula assinada por

todos, e eles deixaram claras suas intenções”. Assim, uma confissão formal de

fé foi apresentada - a definição de Calcedônia – cujo teor é o que segue:

“Fieis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade e perfeito quanto à humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo; consubstancial [homoousios] ao Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; ‘em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado’, gerado, segundo a divindade, antes dos séculos pelos Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da Virgem Maria, mãe de Deus [theotókos]. Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, conseparáveis e indivisíveis. A distinção de natureza de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência (hipóstasis); não dividido ou separado em duas pessoas, mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor, conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu”.

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Em síntese, “lado a lado com a unidade, a definição declara que,

enquanto encarnada, a Palavra existe ‘em duas naturezas’, cada uma completa

e cada uma retendo intatas, na união, suas propriedades e operações

distintivas” (J. N. D. Kelly).

O eutiquianismo, mais tarde conhecido como monofisismo, apesar

de condenado em Calcedônia (em 451) e no II Concílio de Constantinopla (em

553), permaneceu exercendo grande influência sobre os cristãos do Egito,

Etiópia, Síria, Armênia e em outras partes, e travando batalha renhida contra a

definição.

Bruce L. Shelley resume bem os debates teológicos e as

formulações ortodoxas que deles exsurgiram: “Portanto, contra Ário, a igreja

afirmou que Jesus era verdadeiramente Deus, e contra Apolinário afirmou que

era verdadeiramente homem. Contra Êutiques, professou que a humanidade e

divindade de Jesus não podiam se transformar em qualquer outra coisa, e

contra Nestório, a igreja professou que Jesus não era dividido, mas sim uma só

pessoa”.

4. As Controvérsias Antropológica e Soteriológica.

No século quinto todos os debates acerca da Trindade e da dupla

natureza do Redentor ocorreram principalmente no Oriente. No Ocidente, as

controvérsias se concentraram em questões tão práticas quanto os efeitos da

Queda e o modo como os homens são salvos. Como Earle E. Cairns observa,

a “mente grega deixou sua contribuição no campo do pensamento; a mente

prática romana, por sua vez, preocupou-se mais com assuntos da vida prática

da Igreja”. Nessa última esfera de debates, os principais pensadores

envolvidos nas contendas doutrinários foram Agostinho (354-430), Pelágio (c.

360-420) e João Cassiano (c. 360-435).

Pelágio foi um monge britânico que se tornou um popular professor

em Roma. Ele e seu discípulo Celéstio deixaram a capital ocidental em 409,

face à invasão de Alarico, e rumaram à África. Celéstio se estabeleceu em

Cartago e foi com ele que os debates ficaram acalorados. Agostinho, por sua

vez, era natural de Tagaste (hoje Souk-Ahras, na Argélia, no norte da África),

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nasceu em 13 de novembro de 354, converteu-se em 15 de agosto de 386 e se

tornou bispo de Hipona em 396, aos 42 anos.

Pelágio e Agostinho tinham pensamentos diametralmente opostos

e que foram construídos independentemente. Quando o encontro de ambos

ocorreu na África, em 410, o choque de ideias foi inevitável. Pelágio se sentiu

especialmente ofendido com as seguintes palavras de Agostinho: “Não tenho a

mínima esperança, a não ser em tua misericórdia. Concedes o que exiges e

mandas o que for do teu agrado...” (Confissões, citado por Bettenson).

Para Pelágio, o homem não foi criado portador de santidade

positiva, mas neutro, com capacidade para fazer o bem e o mal. Adão foi criado

mortal, de modo que quer tivesse pecado quer não, morreria de qualquer

modo. Quando Adão livremente escolheu pecar, tal decisão não afetou sua

natureza em nada, tampouco sua descendência. Portanto, cada filho de Adão

nasce como o pai da raça foi criado, sem culpa e sem natureza depravada, isto

é, sem tal coisa conhecida como “pecado original”, e sem a inevitabilidade de

pecar. Na prática, a única diferença entre Adão e seus descendentes - e, para

Pelágio, é isso que explica a universalidade do pecado -, é que contra todos os

filhos de Adão pesam a educação errada, o mau exemplo e o hábito de pecar.

Entretanto, os homens, como Adão, estão inteiramente livres para escolher, a

qualquer momento, o bem e o mal.

Assim, o homem não depende da graça de Deus para fazer a Sua

vontade, se isso significa algum tipo de operação prévia divina que capacita a

criatura racional a obedecer-Lhe. Conforme lição de J. N. D. Kelly, a palavra

graça para Pelágio compreende:

“(a) o próprio livre-arbítrio ou a possibilidade de não pecar com que Deus nos dotou no momento de nossa criação; (b) a revelação da lei de Deus, por intermédio da razão, que nos instrui naquilo que devemos fazer e nos apresenta as sanções eternas; e (c) desde que isso ficou obscurecido devido a costumes errados, a lei de Moisés e o ensino e exemplo de Cristo”.

As consequências inevitáveis de todo esse raciocínio foi defendida

por Pelágio: que o homem pode observar todos os mandamentos de Deus,

sem pecar; que a “graça” é oferecida a todos, indistintamente; e, que a

predestinação é realizada na medida em que Deus prevê a obediência das

pessoas.

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Agostinho, a seu turno, nutria compreensão oposta, e bem antes

do surgimento da controvérsia. Para ele, Adão foi dotado de retidão e

perfeições positivas e com acesso permanente à imortalidade pelo alimentar-se

da árvore da vida. Adão possuía liberdade no sentido de posse non peccare

(capacidade para não pecar). Mas, quando caiu, de tão grave seu pecado, toda

a raça foi atingida, tornando-se ela mesma pecadora (massa damnata).

O elo entre o pecado de Adão e a atual condição da humanidade,

para o bispo de Hipona, está em sua doutrina do “pecado original”, que

consiste em que todos os homens participaram da decisão de Adão realmente

e, por isso, são corresponsáveis por ela. Em razão dessa solidariedade, a

consequência da Queda é que toda a raça humana está escravizada à

ignorância, concupiscência e morte, e não desfruta mais do posse non peccare.

Após a Queda, o homem permanece portador de livre-arbítrio

(liberum arbitrium), no sentido de poder escolher o caminho pelo qual andará.

Entretanto, como a vontade não opera independentemente de motivos, e esses

estejam infectados pela natureza corrompida, “ainda que teoricamente esteja

livre, o homem caído, respirando a atmosfera da concupiscência, na verdade

só escolhe objetivos pecaminosos” (J. N. D. Kelly). Eis a razão pela qual sem a

graça de Deus, que para Agostinho é “um poder interno e secreto, maravilhoso

e inefável”, o livre-arbítrio serve apenas para conduzir ao pecado. Assim, a

graça é o poder – na realidade, a presença do Espírito Santo - que opera no

coração dos homens e que os ajuda em sua fraqueza.

Como decorrência necessária, para Agostinho, a graça eficiente

(adiuntorium quo) é irresistível e concedida somente àqueles que foram livre e

incondicionalmente predestinados à salvação. Presciência é Deus conhecer

previamente aquilo que Ele mesmo fará, como escreveu em sua De Dono

Perseverantiae:

“Ousará alguém afirmar que Deus não conheceu antecipadamente aqueles a quem concederia a fé? Se antecipadamente os conheceu, também previu certamente sua própria benevolência mediante a qual se digna a nos resgatar. Isso, e não outra coisa, é predestinação dos santos, a presciência de Deus e a determinação de sua condescendência através da qual certamente são salvos todos os predestinados” (citado por Bettenson).

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Assim, aos que conheceu de antemão e os predestinou

soberanamente à salvação, Deus concede a graça da perseverança para que

verdadeira e certamente sejam salvos:

“No caso dos santos predestinados ao Reino de Deus pela graça divina, a ajuda concedida para que perseverassem não foi aquela dada a Adão, mas uma ajuda especial, comportando forçosamente a perseverança de fato, (...) sendo de tal maneira forte e eficaz que os santos não podiam fazer outra coisa senão perseverar de fato” (citação de Flanklin Ferreira).

Para Agostinho, a salvação é uma operação de Deus, do início ao

fim, da eternidade passada à eternidade futura.

Apesar de o pelagianismo ter sido condenado no Concílio

ecumênico de Éfeso, em 431 (o mesmo que condenou o nestorianismo), e no

Concílio local em Cartago, em 418, as ideias agostinianas sofreram oposição

de um pensamento que mais tarde veio a ser conhecido como

“semipalagianismo”.

O pensador mais destacado do semipalagianismo foi João

Cassiano, o famoso monge de Marselha. Contra a posição de Agostinho, João

Cassiano cria que os efeitos da Queda não foram tão graves a ponto de

podermos dizer que a vontade humana está morta; ela está apenas doente, e a

função da graça é restaurá-la, cooperando com ela. Portanto, “a natureza

humana caída retém certo elemento de liberdade, em virtude do que pode

cooperar com a graça divina” (Berkhof). Para o monge de Marselha, Deus

deseja que todos os homens sejam salvos. Em consequência, a predestinação

ocorre a partir do conhecimento prévio que Deus possui quanto à qualidade do

comportamento dos homens.

Louis Berkhof avalia o semipelagianismo da seguinte forma:

“Para dizer a verdade, essa posição intermediária serviu para frisar claramente – como nenhuma outra coisa poderia ter feito – que somente um sistema como o de Agostinho, com sua forte coerência lógica, poderia manter-se firme contra os assaltos de Pelágio. O semi-pelagianismo fez a fútil tentativa de evitar todas as dificuldades dando lugar tanto à graça divina quanto ao livre-arbítrio humano como fatores coordenados da renovação do homem, e alicerçando a predestinação sobre a fé e obediência previstas”.

O semipelagianismo foi condenado no Concílio de Orange, em 529,

que também não adotou inteiramente as ideias de Agostinho. A posição de

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Orange foi chamada por Berkhof de “agostinianismo moderado”, cujas

proposições estabelecidas foram as seguintes:

“(a) como resultado da transgressão de Adão, tanto a morte como o pecado passaram a todos seus descendentes; (b) por conseguinte, o livre-arbítrio do homem ficou tão distorcido e enfraquecido que ele é incapaz de crer em Deus e muito menos de amá-lO, a menos que para isso seja despertado e ajudado pela graça; (c) os santos do Antigo Testamento deviam seus méritos exclusivamente à graça e não à posse de algum bem natural; (d) a graça do batismo capacita todos os cristãos a cumprir, com a ajuda e a cooperação de Cristo, os deveres necessários para a salvação, contanto que façam os devidos esforços; (e) deve-se anatemizar com repulsa a predestinação para o mal; e (f) em toda boa ação, o primeiro impulso provém de Deus, e é esse impulso que nos instiga a buscar o batismo e, ainda com a ajuda dEle, a cumprir nossos deveres” (J. N. D. Kelly).

Apesar de condenados o pelagianismo e o semipelagianismo, “a

doutrina [agostiniana] da graça irresistível da predestinação foi suplantada pela

ideia da graça sacramental do batismo... Gradualmente, o declínio geral que

houve na igreja católica romana a conduziu na direção descendente do

semipelagianismo, que desde há muito garantira base segura no Oriente”

(Berkhof).

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X. O Surgimento da Vida Monástica

1. O novo estado da Igreja.

O período em comento é caracterizado pela migração de povos

bárbaros. Os vândalos, sob a liderança de Genserico, em 349, tomaram

Cartago, no Norte da África. Genserico era ariano, razão pela qual perseguiu

os cristãos das tradições católica e donatista. Seu sucessor, Unerico (falecido

em 484), recrudesceu ainda mais a perseguição, proibindo o culto católico e

torturando e cortando a língua daqueles que não obedecessem a essas

ordens. O reino vândalo foi destruído em 533, pelo General Belisário, enviado

pelo imperador Justiniano.

O reino visigodo, no início do século VI, se estabeleceu na

Espanha, tendo Toledo como capital, e existiu até 711, ocasião em que for

derrotado pelos árabes.

Os francos, a seu turno, já detinham a Gália (atual França), antes

do ano 400, embora sob domínio romano. Somente em 486, o rei franco Clóvis

derrotou o último governador romano, Syagrius. Convertido ao cristianismo,

Clóvis foi batizado em 498, momento em que foram batizados três mil soldados

do seu exército. Nesse período, Martin N. Dreher nos informa que “a Igreja

enriqueceu sob o domínio franco, a tal ponto que os reis tentaram, algumas

vezes, apossar-se de seus bens”.

Os povos bárbaros, entretanto, eram um a um conduzidos ao

cristianismo através de uma forte movimentação missionária, impulsionada

pelo monasticismo. Patrício (c. 387-c. 460) foi o “apóstolo da Irlanda”; Columba

(521-597) evangelizou a Escócia. Agostinho de Cantuária (falecido em 604) foi

enviado por Gregório, o Grande, em 597, para converter a Inglaterra; e

Bonifácio (680-754) foi o “apóstolo aos germanos”.

Para muitos cristãos, a ascensão e suposta conversão de

Constantino foram grandes bênçãos. Eruditos cristãos - como Eusébio de

Cesaréia, talvez representante da maioria dos crentes -, realmente acreditaram

que Deus estava levando a termo Seus planos através da viravolta histórica

que fez a crença perseguida do império tornar-se sua religião oficial.

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Por outro lado, a facilidade de se tornar cristão conduziu para

dentro da Igreja uma multidão bárbara semi-paganizada, que adentrou

formalmente ao cristianismo sem abandonar as antigas práticas de suas

religiões de origem. Cains comenta que “massas de pagãos que tenham sido

convertidos à religião cristã entraram logo para a Igreja sem serem doutrinados

e sem passarem por um período de prova. Muitos deles trouxeram para a

Igreja os seus velhos padrões de vida e de costumes. O antigo culto aos heróis

foi substituído pelo culto dos santos. Muitas práticas ritualistas retiradas do

paganismo encontraram uma porta aberta na Igreja Cristã...”.

Dreher, por sua vez, narra que a “fé do povo estava baseada, em

grande parte, no culto de relíquias, através das quais se julgava que o próprio

Cristo estava agindo. A pregação era realizada em língua latina, impedindo

assim que o povo tivesse participação real nos ensinamentos do evangelho”. A

cristandade formal crescia enormemente, enquanto a piedade cristã e a pureza

doutrinária se esvaíam.

2. As razões e a evolução da vida monástica.

Frente a esse estado de coisas, muitos cristãos não quiseram

romper com a Igreja, mas decidiram separar-se da vida comum e se retiraram

para o deserto. Surge o monasticismo oriental, no século IV, caracterizado pela

vida solitária.

Nos primórdios, o movimento foi motivado pelo anseio por uma

vida mais santa possível. Homens como Tertuliano, Orígenes, Cipriano e

Jerônimo já argumentavam acerca da superioridade da vida celibatária,

apelando para textos bíblicos e para a necessidade da imitação da vida simples

de Cristo.

Paralelamente a essa ideia, não devemos esquecer que os tempos

de perseguição ficaram para trás, e muitos que viram a necessidade de uma fé

heroica como encontrada nos mártires desaparecer, perceberam na vida dos

eremitas um substituto equivalente.

Antônio (c. 250-356) é considerado o fundador do monasticismo.

Motivado pelas palavras de Jesus (“Vai, vende tudo que tens, dá-o aos pobres,

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e terás um tesouro no céu”), aos 20 anos, distribuiu seus bens e passou a

habitar em uma sepultura. Sua vida atraiu muitos seguidores, que passaram a

viver próximo a ele, em cavernas.

Tipos mais excêntricos de eremitas surgiram às centenas. Simeão

Estilita (c. 390-459), depois de viver enterrado até o pescoço por vários meses,

passou mais de trinta anos morando em uma casa construída sobre um pilar de

dezoito metros. Segundo Cairns, “um certo Amon conseguiu alguma fama de

santidade por jamais se ter despido ou tomado banho depois que se tornou

eremita”. Esse historiador ainda nos conta de “um outro”, que “andou nu nas

proximidades do Monte Sinais por 50 anos”.

No Egito, com Pacômio (290-346), foi estabelecida uma

comunidade monástica em Tabennisi, à margem do Nilo (“monasticismo

cenobítico”, das palavras gregas koinos e bios, “vida comunitária”), na qual os

monges mantinham uma vida simples e regada a trabalho e devoção. Pacômio

chegou a ter sete mil monges no Egito e na Síria.

Basílio de Cesaréia, o autor do Tratado sobre o Espírito Santo,

escreveu duas obras para a regulamentação da vida no mosteiro, de onde

deriva toda a legislação da Igreja Oriental para a vida monástica, razão pela

qual tem sido considerado o fundador do monasticismo oriental.

Diz-se que no Ocidente, Atanásio, com o livro Vida e Obra de

Santo Antônio, introduziu a vida monástica, que foi posteriormente

popularizada por homens como Jerônimo, Ambrósio e Agostinho. Entretanto, o

líder mais influente do movimento nesta banda do mundo foi sem dúvida Bento

de Núrsia (c. 480-542).

Núrsia (atual Nórcia), localidade italiana, foi a terra natal de Bento.

Ele chegou a estudar em Roma, mas desistiu dos estudos para dedicar-se à

vida monástica. Passou três anos morando sozinho em uma caverna nas

proximidades de uma localidade chamada Subiaco, momento após o qual

dedicou-se à evangelização entre os pastores da região. Convidado a ser

abade do convento de Vicovaro, Bento impôs orientações tão severas aos

monges que estes chegaram a tentar envenená-lo, o que provocou seu retorno

à antiga caverna em Subiaco.

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Nesse período, foi procurado por jovens que desejavam ser

iniciados na vida monástica e, saindo da caverna, fundou doze conventos, nos

quais residiam doze monges, na região do vale do rio Anio. A vida conventual

dirigida por Bento centrava-se na devoção e no trabalho.

O pároco da localidade, movido por inveja, introduziu prostitutas

nos conventos de Bento e, este, sem polemizar, dirigiu-se ao Monte Cassino

(230 km a sudeste de Roma), onde fundou com seus discípulos, em 529, uma

comunidade monástica. O monastério do Monte Cassino é o mais famoso da

Europa e a sede da ordem beneditina, onde também Bento escreveu sua

influente Regra – a base de todo o monasticismo ocidental.

3. Uma breve avaliação da vida monástica.

Foi nos mosteiros que grande parte da cultura antiga foi preservada

na idade média, após a tomada do império romano pelos bárbaros. De lá

provinha a única possibilidade de educação e foi nesse ambiente que os

monges se ocuparam em copiar importantes manuscritos cristãos e do velho

mundo.

Também, a partir dos mosteiros, o cristianismo viu revigorada sua

força missionária. A obra de monges como Columba se deu a partir dos

conventos por eles fundados. Ademais, os mosteiros eram lugares onde

doentes e viajantes cansados encontravam cuidados e repouso.

Entretanto, por outro lado, a vida monástica equivoca-se a partir

dos seus pilares, uma vez que está enraizada na ideia dualística da separação

entre o corpo e a alma. Para um monge, o corpo é a prisão da alma e o

ascetismo é a forma de libertá-la, a única maneira de viver acima da

mediocridade que é própria da vida comum.

Por isso, a vida monástica, com seus rigores e apego ao celibato,

passou a ser vista como o caminho para quem queria uma vida em comunhão

com Deus, e criou, em consequência, um suposto tipo superior de cristianismo

e duas classes de cristãos (os monges e os comuns).

O resultado prático é que o mundo perdeu os melhores homens e

mulheres da igreja para a clausura dos mosteiros, tanto quanto a possibilidade

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de sofrer a influência positiva de famílias modelos e filhos cristãos criados em

um ambiente piedoso.

Finalmente, o monasticismo e o celibato demonstraram cabalmente

que a maneira de santificar-se não é deixando a vida comum. Com o passar do

tempo, o aumento da riqueza do monastério conduzia ao afrouxamento do rigor

inicial e a extravagantes excessos, e o homem enclausurado logo se revelava

em mais um horrendo pecador enclausurado.

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XI. O Fortalecimento do Bispo de Roma

1. Raízes do fortalecimento do Bispo de Roma.

A liderança das igrejas neotestamentárias era composta por

presbíteros (ou bispos ou pastores) e diáconos. No início do segundo século,

um bispo é destacado como tendo autoridade superior à dos presbíteros, no

âmbito da igreja local, como se pode observar nas cartas de Inácio de

Antioquia.

Nos embates doutrinários contra o gnosticismo, surgiu a doutrina

da “sucessão apostólica”, segundo a qual uma igreja só era realmente

apostólica se sua liderança pudesse estar comprovadamente na linha de

sucessão histórica que remontava aos apóstolos.

A palavra “sucessão” ocorre como termo técnico pela primeira vez

em Hegésipo (c. 175), conforme nos informa Eusébio, mas foi Irineu de Lyon o

primeiro a enfatizar a sucessão apostólica como argumento contra o

gnosticismo. Ele escreveu:

“Mas quando, contra eles, apelamos para esta mesma tradição vinda dos apóstolos e conservada nas igrejas mediante a sucessão de presbíteros, eles se tornam adversários dela pretendendo serem não somente mais sábios do que os presbíteros, mas ainda mais do que os próprios apóstolos, e serem os descobridores da verdade inviolada... (...) Quem quiser discernir a verdade, observe a tradição apostólica conservada em todas as igrejas do mundo. É-nos possível enumerar aqueles que os apóstolos deixaram como bispos nas igrejas e seus sucessores até hoje: eles nunca acreditaram nem ensinaram coisas absurdas como as imaginadas por essa gente. Se os apóstolos tivessem conhecido mistérios ocultos que, privada e secretamente, quisessem confiar aos perfeitos, eles os teriam transmitido preferencialmente àqueles que deixaram no governo das igrejas (...)”.

Nesse mesmo sentido, Tertuliano argumentou:

“Mas se, porventura, alguma heresia ousar inserir-se na idade apostólica para se beneficiar da tradição apostólica podemos dizer: Mostrem-nos as origens de suas igrejas; apresentem a lista de seus bispos, provando sua sucessão a partir do princípio, estabelecendo uma sucessão ininterrupta desde o princípio, de modo que o primeiro bispo tenha como precursor a fonte de autoridade algum dos apóstolos ou, pelo menos, algum dos homens apostólicos que tenham convivido com os apóstolos. Este é o modo como as igrejas apostólicas apresentam suas origens...”.

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Cipriano de Cartago tanto falou a favor da unidade da Igreja como

defendeu que todas deveriam estar submissas à Sé romana. Seu raciocínio

partiu da ideia do primado de Pedro sobre os demais apóstolos, como se pode

observar nesse excerto da sua Epístola XXXIII:

“Nosso Senhor, cujos preceitos e exortações nos cumpre observar, estabeleceu o excelso ministério episcopal e toda a ordem de sua Igreja quando, no Evangelho, disse a Pedro: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja’ etc. (Mt 16:18s)... Daí em diante, gerações sucederam a gerações, bispos a bispos, e o ministério episcopal com toda a ordem eclesiástica transmitiu-se de tal modo que a Igreja está edificada sobre os bispos e todo ato da Igreja é dirigida por estes ministros que a presidem...”.

No I Concílio de Niceia (325), três bispados receberam a

preeminência, quais sejam, os de Alexandria, Antioquia e Roma. No Concilio

de Calcedônia (451), o cânone 28 conferiu ao patriarca de Constantinopla

primazia frente aos demais bispados. Mas, em face do esfacelamento do

império no Ocidente, sobretudo devido às invasões bárbaras, os bispos de

Roma vieram a gozar de uma crescente autoridade.

2. Contribuições políticas e teológicas ao fortalecimento do Bispo de Roma.

Um dos nomes mais importantes ao surgimento do papado

universal foi Leão Magno, o Leão I (bispo de Roma em 440-461). Referimo-nos

a ele quando tratamos do Concílio de Calcedônia (451), e ao seu famoso Tomo

a Flaviano, que estabeleceu a ortodoxia no tocante à dupla natureza de Cristo.

Leão foi contundente em afirmar a primazia de Pedro na liderança

da Igreja e em ensinar que aos sucessores de Pedro cabia o cuidado por toda

a Igreja. Com base na autoridade petrina, ele manteve-se contrário ao cânone

28 do Concílio de Calcedônia e o declarou nulo, por razões mais do que

óbvias. Com efeito, Leão escreveu:

“Assim como perdura aquilo que Pedro acreditou haver em Cristo, mantém-se igualmente o que Cristo instituiu em Pedro (...). São Pedro, mantendo a fortaleza recebida, não larga o leme da Igreja, o qual lhe foi entregue. Instituído antes dos demais, é denominado Pedra, declarado fundamento, constituído porteiro do reino dos céus, preposto como árbitro do que há de ser ligado e desligado por meio de juízos e decisões que hão de permanecer até mesmo nos céus, para que, pelos próprios mistérios destas denominações, cheguemos a conhecer qual é a sua união com Cristo”.

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Além dos debates envolvendo o poder eclesiástico, os feitos de

Leão em salvar Roma das mãos de Átila (em 452) e de atenuar o que poderia

ter sido uma tragédia muito maior sob o comando do vândalo Genserico (em

455), demonstraram a completa decadência do poder civil e fizeram do bispo

de Roma uma espécie de protetor da população.

Hilário (461-468), Simplício (468-483) e Felix II (483-492)

sucederam Leão. No bispado de Simplício, Rômulo Augústulo foi deposto (em

476). Gelásio I (492-496) sucedeu Felix, manifestou-se contrariamente ao

primado do patriarca de Constantinopla e deu início à teoria dos dois poderes,

amplamente usada e desenvolvida na Idade Média.

Segundo Gelásio, tanto o poder temporal quanto o espiritual

provém de Deus, mas o poder espiritual goza de certa primazia, uma vez que

este tem a responsabilidade pela salvação das almas. Gelásio escreveu que

“destes ministérios o dos sacerdotes é de tanto maior importância, porque eles

também terão que prestar contas pelos reis dos seres humanos no juízo

divino”.

3. Gregório, o Grande (540-604).

Não obstante, o personagem mais marcante para o

estabelecimento do papado universal de Roma foi, sem dúvida, Gregório, o

Grande (590-604). Gregório era filho de família nobre e em 573, aos 33 anos,

foi nomeado prefeito de Roma pelo imperador Justino.

Logo depois, utilizou a herança deixada pelo pai na construção de

sete mosteiros e tornou-se monge. Entre os anos 579 e 585, foi embaixador do

bispo de Roma em Constantinopla e, de volta a Roma, tornou-se abade em um

dos monastérios construídos por ele, o de Santo André. Em 590, com a morte

do bispo de Roma Pelágio, Gregório foi escolhido para substituí-lo.

Seu maior feito foi ampliar o poder do bispado de Roma. Quando

João, o Jejuador, reivindicou o título de bispo “universal”, Gregório disparou

contra ele, acusando o título de “absurdo, arrogante, profano, perverso,

pernicioso, blasfemo e usurpação diabólica, e comparou as pessoas que o

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usavam a Lúcifer” (Shelley). Preferia tomar para si o título “servo dos servos de

Deus”.

Entretanto, enquanto lutava contra a pretensão do patriarca

oriental e usava título humilde, administrou a Igreja usando os poderes e as

prerrogativas dos papas posteriores. Cairns observou que Gregório “fez isso

para afirmar a superioridade espiritual do bispo de Roma” e que “cuidou

episcopalmente das igrejas da Gália, Espanha, Bretanha, África e Itália”.

Em 602, uma revolução elevou Focas ao trono de Constantinopla.

Embora este fosse homem iníquo, tendo inclusive assassinado a família do

antigo imperador, Gregório fez as pazes com ele. Em contrapartida, Focas

reconheceu o bispo de Roma como “chefe de todas as igrejas”. Gregório não

quis o título, mas exerceu de fato o papado.

Apesar de nos séculos seguintes haver sido contado entre os

doutores da igreja ocidental, ao lado de Agostinho, Jerônimo e Ambrósio,

Gregório não era homem de grande erudição e sua crença incluía as

superstições do homem comum de sua época. Entretanto, sua teologia foi

normativa para a Igreja medieval e perdura influente nos círculos católicos

romanos.

Para ele, o pecado de Adão afetou sua descendência, mas o

homem permanece livre em sua vontade e não herda a culpa, somente a

doença do pecado. Por isso, o homem pode cooperar com a graça e conquistar

méritos por suas boas obras.

Através do batismo, Deus concede a graça independentemente

de méritos e os pecados cometidos após o batismo podem ser reparados por

meio de penitências. Os pecadores também podem ser ajudados pelos santos,

face à influência que estes têm junto a Cristo, e pelo poder das relíquias

sagradas. Caso a penitência, a ajuda dos santos e o poder das relíquias não

fossem suficientes, os pecados ainda poderiam ser reparados no purgatório, o

lugar de purificação para aqueles que possuem pecados intermediários.

Mas, para Gregório, nada se compara ao sacrifício da missa. A

eucaristia consiste em um verdadeiro sacrifício oferecido pelos sacerdotes para

os pecados dos participantes. A eucaristia tem o mesmo sentido da penitência,

visto que toma o lugar de uma certa quantidade de sofrimento merecida por

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pecados mais leves, e pode beneficiar tanto os vivos quanto os mortos do

purgatório (e não do inferno), caso em que o tempo do purgatório poderá ser

abreviado. Para Cairns, Gregório “sistematizou a doutrina e fez a igreja uma

potência na área política”.

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XII. O Fim da Antiga Igreja Católica

Uma das verdades históricas que desejamos salientar é que nem

sempre a Igreja Católica Romana, como a conhecemos hoje, existiu. Como tal,

ela é produto de desenvolvimentos doutrinários, cúlticos e litúrgicos e de

costumes, que se deram através dos séculos. De fato, uma simples e

superficial leitura da história já provaria que o sistema romano era

desconhecido da Antiga Igreja Católica e, muito mais, do cristianismo

apostólico, conforme pretendemos narrar brevemente.

1. O papado e a supremacia da Igreja de Roma.

O Primeiro Concílio do vaticano (1870) afirmou que Jesus Cristo

estabeleceu o papado ao determinar o primado de Pedro sobre os demais

apóstolos e, consequentemente, a supremacia do bispo de Roma, sucessor de

Pedro, sobre os demais. Entretanto, como observou Shelley, “a história indica

que o conceito de reinado papal foi estabelecido em estágios penosos e lentos.

Nesse processo, Leão é a figura principal por fornecer pela primeira vez as

bases bíblicas e teológicas da reivindicação papal. Por isso, é um engano falar

de papado antes dessa época”.

Shelley relembra ainda que nem a palavra “papa” surgiu vinculada

à ideia de primazia papal. Sobre isso, ele assevera: “Originalmente, o título

‘papa’ expressava o cuidado paternal de todos os bispos do rebanho. Começou

a ser reservado para o bispo de Roma apenas no século VI, muito depois da

reivindicação de primazia”.

A honra especial conferida à Igreja de Roma e o exercício de sua

jurisdição sobre outras Igrejas também ocorreram como resultado de um lento

desenvolvimento histórico, fatos relacionados à junção da Igreja cristã com o

império. À medida que a Igreja se imiscuía aos interesses do Estado, ela foi

adotando a estrutura político-administrativa do império. Daí que o bispo da

capital passou a ser para os bispos das cidades menores aquilo que a

metrópole representava à província.

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Paralelamente, os concílios gerais, surgidos a partir da conversão

de Constantino (312), foram prestigiando a influência de certos bispados,

dando azo à ascensão em importância do bispo de Roma. Em 325, por

exemplo, o Concílio de Nicéia reconheceu os bispos de Alexandria, Antioquia e

Roma como autoridades em sua própria área.

2. A importância da tradição.

Na época que estamos a analisar, já está sendo enfatizado que

contra os hereges se invoca tanto as Escrituras quanto o peso da tradição e

das decisões conciliares.

Na obra de Vicente de Lérins (em 434), a ortodoxia é definida a

partir da regra ubique, semper, ab omnibus (“em toda a parte, sempre e por

todos”). Conforme Jaroslav Pelikan, a regra de Vicente “afirmava de fato o

entendimento da ortodoxia que os teólogos e os concílios da igreja dos séculos

V e VI iriam canonizar para os séculos que se seguiram”.

Boécio (falecido em 524) afirmou em sua obra Sobre a Fé

Católica: “Então essa igreja católica espalhada por todo o mundo é conhecida

por três marcas particulares: tudo que é crido e ensinado nela tem a autoridade

das Escrituras, da tradição universal ou pelo menos de sua própria e

apropriada convenção”.

A universalidade da igreja repousava sua marca distintiva também

nos concílios ecumênicos. O II Concílio de Constantinopla (em 553)

reconheceu a autoridade dos quatro concílios ecumênicos (Niceia, I

Constantinopla, Éfeso e Calcedônia), razão pela qual jurou obediência “às

coisas que recebemos da santa Escritura, do ensino dos santos pais e das

definições da uma e mesma fé por meio dos quatro concílios sagrados”.

Gregório, o Grande, fez um paralelo entre os quatro concílios e os

quatro evangelhos: “Recebemos os quatro sínodos da santa igreja universal da

mesma maneira como recebemos os quatros livros dos santos evangelhos”.

Para Pelikan,

“Embora esse paralelo possa ser interpretado como nada mais que uma sugestão agradável, há fundamento para ler nele a convicção de Gregório de que a única e a mesma verdade da revelação divina, concedida à igreja universal, estava presente tanto nos quatro

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evangelhos quanto nos quatro concílios, da mesma maneira que a arca da aliança no Antigo Testamento simbolizava a santa igreja, ‘sendo estendida às quatro partes do mundo, é declarada estar equipada com os quatro livros do evangelho’”.

3. O desenvolvimento da liturgia.

A união com o Estado e a entrada indiscriminada dos pagãos na

Igreja conduziram-na a adaptar sua liturgia à nova realidade. Os bárbaros,

acostumados à adoração de imagens, careciam de uma materialização da fé,

necessidade com a qual muitos líderes cristãos transigiram. O resultado foi a

veneração de anjos, santos, relíquias e imagens.

A festa do Natal tornou-se prática regular em meados do século

IV, época em que se adotou a data usualmente empregada na adoração de

Mitra. Os dias santos foram entrando às dezenas no calendário religioso e o

número de cerimônias com valor sacramental aumentou.

Segundo Loraine Boettner, por volta do ano 300, começou-se a

fazer orações pelos mortos e a incluir o uso de velas. A veneração de anjos e

santos falecidos e o uso de imagem iniciou por volta de 375 e a missa como

celebração diária, em torno de 394. Em cerca de 550 os sacerdotes

começaram a se vestir de maneira diferente e o uso do latim em orações e na

celebração da Missa foi imposto por Gregório por volta do ano 600. Cairns

anota que “ações de graças ou procissões de penitência tornaram-se parte do

culto a partir de 313. Peregrinações, primeiro à Palestina e depois às tumbas

de santos famosos, tornaram-se comuns”.

4. Veneração a Maria.

A Igreja não fez qualquer menção à honra especial a Maria por

pelo menos 150 anos, até que uma série de lendas atribuídas a ela nos

evangelhos apócrifos e a interpretação equivocada da Bíblia foi-lhe

concedendo importância crescente.

Irineu “diz que a desobediência da ‘virgem Eva’ foi expiada pela

obediência da ‘virgem Maria’” (Loraine Boettner). Segundo Cairns, Clemente,

Jerônimo e Tertuliano creditaram virgindade eterna a Maria e Agostinho cria

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que ela nunca cometeu pecado. Entretanto, Boettner afirma que Tertuliano

“levantou a sua voz contra a lenda sobre o nascimento de Maria. Ele também

defendia que, após o nascimento de Jesus, Maria e José viveram um

relacionamento conjugal normal”.

O surgimento do monasticismo, com forte ênfase no celibato e na

virgindade, fortaleceu a veneração a Maria. Ao mesmo tempo, os milhares de

pagãos que adentraram à Igreja trouxeram consigo as antigas devoções que

dedicavam a Ísis, Diana, Afrodite, Atenas e outras, achando apenas natural o

culto a Maria.

Destarte, Cairns salienta que “aquilo que de início era apenas um

reconhecimento de sua posição elevada como mãe de Cristo logo transformou-

se numa crença em seus poderes intercessórios, por se pensar que o Filho

ficaria alegre por ouvir os pedidos de Sua mãe”.

Paulatinamente, o culto a Maria foi se generalizando, até que no

quinto século tornou-se comum. “O famoso pregador Crisóstomo, que morreu

em 407, resistiu ao movimento com toda sinceridade, mas sua oposição foi de

pouco efeito para estancá-lo” (Boettner).

Cairns sumaria o processo de estabelecimento da mariolatria

com as seguintes palavras:

“A oração de Efraim Sírio (c. 306-c. 373) é o primeiro momento de uma invocação formal a Maria. Em meados do século V, ela foi colocada como a principal de todos os santos. Festas ligadas ao seu nome brotaram no século V. As principais eram a Festa da Anunciação (em 25 de março), que comemorava o anúncio dos anjos ao nascimento de um filho a ela; a Candelária (2 de fevereiro), que celebrava a sua purificação após o nascimento de Cristo, e a Assunção (15 de agosto), que a assumia como tendo ascendido aos céus sem morrer. No século VI, Justiniano pediu sua intercessão em favor do seu império. Em 590, ocupava ela uma posição singular no culto da Igreja Romana”.

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A Igreja Medieval

XIII. A Ameaça Muçulmana

1. Introdução.

Quando a Igreja parecia cristianizar os povos bárbaros que

invadiam o império e o período de migração parecia ter chegado ao fim, uma

nova realidade despontou, desta vez religiosa, propulsora de movimentos

migratórios dentre os árabes e extremamente desafiadora a cristandade: o

islamismo, a última das três grandes religiões monoteístas do mundo.

2. Maomé (570-632).

O islamismo originou-se na península árabe, numa época em que

“tribos beduínas semitas peregrinavam de oásis a oásis com seus camelos e

seus rebanhos, para comerciar com os moradores de Meca e Medina” (Cairns).

Um desses árabes chamava-se Maomé, que nasceu em Meca por

volta de 570. Como ficou órfão em tenra idade, foi criado por um tio chamado

Abu Talib, pai de Ali, por quem sempre nutriu grande afeição.

Maomé passou por grandes privações, até casar-se com uma viúva

rica de nome Kadidja, em 595, passando a ocupar-se com questões de ordem

religiosa. Em viagem a Síria como mercador, entrou em contato com o

cristianismo e com o judaísmo, tendo sido influenciado pelo monoteísmo de

ambas.

Em 610, Maomé alegou ter tido visões e revelações nas quais

ouviu a voz de Deus e viu o arcanjo Miguel, ocasião em que se sentiu

vocacionado por Deus para ser um profeta ao seu povo e proclamador do

monoteísmo. Martin N. Dreher escreveu: “Convicto de ter sido vocacionado

para ser o profeta de seu povo, Maomé conclamava seus compatriotas a

abandonarem a vida ‘sem Deus’ e descrevia-lhes em cores vivas o fim do

mundo, os castigos do inferno e as alegrias do paraíso”.

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Ao fim de três anos, Maomé conseguiu fazer apenas 12

convertidos, dentre eles Kadidja, Ali e seu ex-escravo Zaid, segundo Cairns.

Por essa época, Abu Bequer e Omar, que mais arde tornaram-se califas,

também aderiram à sua pregação.

Em 24 de setembro de 622, Maomé teve que fugir de Meca para

Medina, por conflitos de ordem econômica, segundo Dreher, e por se opor à

pregação da idolatria, conforme Cairns. Essa é a data conhecida como Hégira,

que dá início ao calendário muçulmano.

Maomé considerava-se o renovador da religião de Abraão e o

aperfeiçoador do cristianismo e do judaísmo, julgando corrigir as distorções de

ambas. Para ele, Abraão e Cristo eram seus precursores. Com isso em mente,

adotou como centro de sua religião a Caaba, em Meca, local para onde as

orações deveriam ser dirigidas, instituiu a sexta-feira como feriado e o Ramadã

como mês de jejum.

Em Medina, Maomé alcançou um sucesso inesperado, fez mais

aliados e em 630 conquistou Meca. Quando o profeta do islã morreu, em 632,

foi sepultado em Medina, deixando sua doutrina infiltrada em boa parte da

Arábia.

3. Os sucessores de Maomé, a expansão do Islã e as perdas da Igreja.

Com a morte de Maomé, o islamismo passou a ser liderado pelos

“califas”, que quer dizer sucessores. O primeiro deles foi Abu Bequer, falecido

em 634, seguido por Omar (634-644), Otoman (644-656) e Ali ibn Abi Talib

(656-661). Dreher informa-nos que “o período desses quatros califas é tido

como a época áurea na tradição islâmica”.

O período compreendido entre 632 e 732 é de grandes avanços à

fé muçulmana. Damasco é conquistada em 635 pelo exército árabe; o Egito,

entre 639 e 641; a Pérsia, em 640 a 644. Nesse período, a Síria e a Palestina

já haviam tornado-se muçulmana e Omar construiu sua mesquita em

Jerusalém. Cartago foi tomada em 695. Quase toda a Espanha, a exceção da

Astúria e da Gasconha, sucumbiu sob o domínio árabe.

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A expansão no Oriente sofreu a oposição de Leão, o Isáurico, em

717 e 718, e, no Ocidente, o avanço muçulmano foi contido por Carlos Martelo

em Tours, em 732. Segundo Cairns, “em 750, a era da conquista acabou e os

muçulmanos, influenciados pela cultura grega, puseram-se a construir uma

esplêndida civilização centralizada em Bagdá”.

O resultado da expansão árabe à Igreja foi catastrófico. Dreher

narra a nova situação com as seguintes palavras: “O Egito e o norte da África

perderam-se para a fé cristã. Monofisistas, nestorianos e coptas foram

protegidos; muitos deles tornaram-se secretários e conselheiros dos califas e

transmissores da cultura grega. Muitos desses cristãos passaram para o islã, o

que raras vezes aconteceu com os ortodoxos. Judeus jamais passaram para o

islã. Especialmente os lugares de peregrinação foram atingidos. Eles agora se

encontravam nas mãos dos ‘infieis’, como eram denominados os árabes”.

4. A doutrina islã.

O Corão, o livro do conjunto de leis islâmicas, começou a ser

escrito no governo de Otoman (644-656). Cairns o descreve da seguinte forma:

“Esta obra, dois terços maior que o Novo Testamento, tem 114 capítulos, dos

quais o maior fica no começo; os capítulos vão diminuindo em extensão até o

último que tem apenas três versículos. O livro é repetitivo e desorganizado”.

A alegação de Maomé quanto a ter recebido revelações através de

anjo merecem questionamento. Flanklin Ferreira e Alan Myatt anotaram: “ele

recebeu as revelações num estado de consciência alterada, semelhante a um

episódio de epilepsia. Nenhuma testemunha pode confirmar a presença de um

anjo que lhe deu o conteúdo do Alcorão”. De todo modo, ainda que tenha

havido presença angélica nas experiências místicas de Maomé, certamente

seria uma aparição de demônios, “porque um anjo eleito nunca daria um

evangelho diferente daquele que a Bíblia ensina” (dos mesmos autores; cf. Gl

1:8).

Alá é o único Deus, que revela sua vontade através de vários

profetas, dentre os quais Abraão, Moisés e Cristo, sendo Maomé o último e

maior de todos eles. Como Alá é o único Deus, todos os homens lhe devem

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submissão (o significado da palavra “islã”), razão pela qual todos os seguidores

de Alá devem foçar todos os homens, inclusive com o auxílio da espada, a se

submeterem-lhe.

O islã prega um monoteísmo não trinitário, como no judaísmo.

Assim, Deus, segundo essa perspectiva, não experimenta como parte de sua

essência a realidade de relacionamentos e de reciprocidade de amor. A

consequência disso é ampla, que passo a destacar: (1) nem o amor nem os

relacionamentos teriam raízes no ser eterno da divindade; (2) Deus só se

realiza como pessoa quando cria outros seres com quem pode se relacionar;

(3) antes da criação, não houve qualquer expressão de comunicação e

reciprocidade e o amor em Deus seria apenas latente; (4) a salvação seria uma

impossibilidade, visto que Deus não poderia castigar a si mesmo em favor do

perdão ao pecador.

Os atributos de Deus sofreram muitíssimo no ensino islâmico. Deus

ficou reduzido a um ser vingativo e estranho, que nada sente por sua criação e

que não inspira completa confiança e dependência em seu amor. “Deve ficar

claro que tal divindade não é adequada para suprir as necessidades de

homens e mulheres que habitam este mundo” (Ferreira e Myatt).

À doutrina muçulmana, Jesus não foi o que o Novo Testamento

afirmou que Ele era. Essa parte das Escrituras teria sido corrompida e Jesus

jamais alegou que Ele e o Pai são um (cf. Jo 10:30). Isso porque para os

seguidores de Maomé Jesus era apenas um do profetas, mas subordinado a

Maomé, a quem julgam ser o final e maior.

Para o islã haverá um julgamento, após o qual os homens irão ou

ao Paraíso sensual ou ao inferno. Os homens mais piedosos irão ao Paraíso,

onde serão servidos por virgens com quem poderão se casar e com quantas

quiserem. Os mártires – os que morrem matando os infiéis na jihad -, vão ao

Paraíso tão logo morrem. A grande parte passa algum tempo no inferno antes

de ir ao Paraíso e outros sofrem no inferno para sempre.

O bom muçulmano ora cinco vezes ao dia, recita seu credo voltado

para Meca, faz jejum e obras de caridade e deve fazer uma peregrinação a

Meca pelo menos uma vez na vida.

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XIV. O Império Romano Redivivo

1. Introdução.

Séculos depois do desmantelamento do império romano sob os

ataques bárbaros, a ideia de um império mundial unificado permanecia nas

aspirações dos homens medievais. “Os bárbaros tinham muitos reinos e

estavam constantemente em guerra. Mas as pessoas ainda sonhavam com a

unidade que um dia foi a marca do Império, e esperavam pelo dia em que o

Império Romano ressurgisse” (B. L. Shelley). Por outro lado, o papa precisava

de um aliado frente às reivindicações dos imperadores de Constantinopla e aos

ataques dos arianos lombardos.

Nesse quadro, os reis francos surgiram como aqueles que fariam

alianças importantes com o papado, cujas influências foram formativas na vida

política e eclesiástica medieval, tanto quanto pareceram estar destinados a

restaurar o imperialismo romano. É o que analisaremos em nosso presente

estudo.

2. Os reis francos.

2.1) A dinastia merovíngia.

O primeiro rei a unificar os francos foi Clovis (c. 466-511). Ele

aceitou o cristianismo e batizou-se em 486, juntamente com três mil soldados

do seu exército. Como os filhos de Clovis eram inábeis à administração estatal,

as funções administrativas passaram a funcionários conhecidos como “prefeito

do palácio”, homens vindos dentre poderosos proprietários de terras. Foram

estes prefeitos do palácio que puseram fim à dinastia merovíngia e

inauguraram a dinastia carolíngia.

2.2) Os primórdios da dinastia carolíngia e a Doação de Constantino.

Pepino de Heristal fez a façanha de reunir as posses de Clovis,

então divididas, conduzir os negócios para os incapazes descendentes de

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Clovis, entre os anos 687 a 714, e tornar o cargo de prefeito do palácio

hereditário, repassado aos descendentes.

Em 714, Carlos Martel (689-741), filho ilegítimo de Pepino, ocupou

as funções de prefeito do palácio e em 732 derrotou os muçulmanos, na

famosa batalha de Tours. Essa batalha representa o fim da ameaça islã à

Europa central e o obstáculo aos avanços muçulmanos no Ocidente.

Carlos Martel foi sucedido por Pepino, o Breve (714-758), o

primeiro da dinastia carolíngia a tomar para si o título de rei (em 751), além de

continuar exercendo as funções de prefeito do palácio.

Quando, em 751, os lombardos conquistaram o território de

Ravenna e a sede do império bizantino na Itália e exigiram tributos, sob a

ameaça de invadir Roma, surgiu a oportunidade para a expansão do poder de

Pepino, o Breve. O papa Zacarias pediu ajuda contra a ameaça invasora e

Pepino enviou expedições contra os lombardos em 754 e 756. Além disso, em

754, prometeu também terras ao papa na região central da Itália, de Roma e

Ravenna. Esta concessão ficou conhecida como Doação de Pepino. Em 751, o

papa Bonifácio, o missionário inglês entre os germânicos, coroou Pepino rei

dos francos.

Bruce L. Shelley percebeu a importância dessa aliança entre os

reis francos e o papado, afirmando que ela afetou o curso da política europeia

e do cristianismo durante séculos. Esse historiador sumaria o ponto da

seguinte forma:

“Ela acelerou a separação entre a igreja latina e a grega ao prover o papado de um aliado ocidental digno de confiança no lugar dos bizantinos, até então seus únicos protetores contra os lombardos; criou os Estados papais, que desempenharam um importante papel na política italiana até o final do século XIX; e, pelo ritual da sagração, deu à realeza ocidental uma sanção religiosa que, à época, contribuiria para a rivalidade entre papa e imperador”.

Ao tempo da Doação de Pepino, circulava um documento

conhecido como Doação de Constantino. Tratava-se de um relato forjado,

dando conta que Constantino havia sido curado de lepra e batizado por

Silvestre, o bispo de Roma, e, por gratidão, dava a Igreja vastas porções de

terra, o Palácio de Latrão, a vestimenta e a dignidade imperiais a Silvestre e

afirmava que a Igreja de Roma deveria ter proeminência sobre todas as outras,

sendo o seu bispo o bispo supremo da Igreja. Segundo esse relato espúrio,

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Constantino teria se mudado para Constantinopla com o propósito de não

interferir nos direitos imperiais do papa.

Esse documento (forjado séculos depois de Constantino, talvez em

meados do século VIII), foi sobejamente usado pelos papas medievais para

legitimar as posses e o poder exercidos por eles, o que fez Cairns afirmar que

“poucos documentos espúrios têm exercido tanta influência sobre a história

como este”.

2.3) Carlos Magno (742-814).

Pepino o Breve foi sucedido por Carlos Magno. Ele ascendeu ao

trono em 768. Em 774, derrotou os lombardos. Numa primeira incursão pela

Itália, fortaleceu a aliança com a Igreja de Roma, ao ratificar a Doação de

Pepino. Carlos desejava a sanção divina; o papa, proteção. Suas vitórias

militares na Saxônia, ao norte e a leste, na Península Ibérica, a oeste, e na

Lombardia, ao sul, deram-lhe um domínio sobre um território tão vasto

comparado somente a Teodósio, no final do quarto século.

No natal do ano 800, Carlos Magno foi coroado na basílica de São

Pedro pelo papa Leão III (c. 750-816) como Imperator Romanorum (Imperador

dos Romanos), coroação que inaugurou uma luta - que perduraria por toda a

idade média - pela supremacia entre o poder temporal (o império redivido) e o

poder espiritual (o papado). Foi, na prática, nessa ocasião que o antigo império

romano reviveu uma espécie de nova Roma, desta vez governada por um

teutão.

Carlos Magno foi um cristão nominal, dedicado à religião, aos

esportes e à cultura. Em 789, decretou que todos os monastérios deveriam ser

uma escola para a educação formal em “canto, aritmética e gramática”. Como

estadista, criou uma forma de administração eficiente, dividindo os territórios

em condados, dirigidos por duques. As contas eram inspecionadas e a

administração dos condados verificada pelos missi dominici (enviados do rei).

“Nem mesmo o papa podia escapar dos olhos vigilantes de Carlos Magno”

(Shelley).

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Foi assim, portanto, que um novo mundo teve surgimento, através

de uma lenta fusão do mundo romano com o mundo bárbaro, dando corpo à

Idade Média no Ocidente.

3. O feudalismo e uma nova restauração do Império Romano no Ocidente.

Os fracos sucessores de Carlos Magno e suas disputas entre si

foram a causa principal da desintegração do império e da consequente

formação do feudalismo, sistema que perdurou na Idade Média até que

surgissem as nações-Estados da era moderna.

O feudalismo foi um sistema econômico e político baseado na

posse da terra, cujo poder era exercido localmente. Nesse sistema, um nobre

mais forte (o suserano) exercia o senhorio sobre um nobre mais fraco (o

vassalo). O vassalo recebia o feudo (a terra) de seu senhor, diante de quem se

obrigava na administração, enquanto o suserano se obrigava a dar proteção e

tratamento justo ao vassalo. “A principal obrigação dos nobres feudais era

fornecer certo número de cavaleiros que constituiriam o exército real, quando

houvesse necessidade. Esses cavaleiros, que desde cedo aprendiam a

cavalgar e a manejar escudo, lança, espada e arco e flecha, juravam lealdade

e obediência aos seus senhores feudais e ao rei” (Flanklin Ferreira).

O clero não escapou da influência do feudalismo. Face às invasões

dos vikings do norte e dos magiares da Ásia, bispos e abades se tornaram

vassalos, em contratos nos quais se comprometiam a executar obrigações

feudais, em troca de proteção dos suseranos. As terras eclesiásticas também

entraram nas relações feudais. Cairns pontuou que a “feudalização da

propriedade eclesiástica acabou por secularizar a Igreja e por desviar sua

atenção de interesses espirituais para mundanos”. Nessa época, homens

mundanos disputavam cargos na Igreja e o ofício eclesiástico entrou em

declínio, porque passou a ser uma espécie de prêmio buscado por nobres nada

interessados em assuntos espirituais.

Apesar do desaparecimento do império comandado pela dinastia

carolíngia, permaneceu o ideal de um império político unificado na Europa, o

que voltou a concretizar-se não mais através dos francos, mas dos germanos.

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Os duques tribais da Germânia uniram-se na defesa contra os

húngaros e elegeram como seu rei Henrique o Passarinheiro, em 919, então

duque da Saxônia. Foi ele que conseguiu fazer retroceder os invasores

eslavos. No entanto, foi seu filho Otto (912-973) - coroado imperador do Sacro

Império Romano-Germânico pelo papa João XII (955-964), um dos piores

papas a história - que tornou os duques seus vassalos e assumiu a supervisão

dos negócios da Igreja. Sua coroação, em 962, ocorreu quando foi à Itália lutar

contra um rei que desafiava o poder papal.

O surgimento do novo império fez reviver a antiga rivalidade entre

Igreja e Estado. Os papas dos séculos VIII a XI eram fracos e em geral

controlados pelos senhores feudais. Isso forneceu o pano de fundo para um

movimento de reforma surgido a partir do mosteiro de Cluny, na França, que,

por sua vez, proveu as bases para o apogeu do papado, temas que serão

objeto do nosso próximo estudo.

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XV. O Apogeu do Poder Papal e o Primeiro Grande Cisma do

Cristianismo

1. Introdução: a condição da igreja nos séculos X e XI.

Entre os papas do período de 800 a 1054, quase todos eram

incompetentes e corruptos. O único que escapou à regra foi o papa Nicolau I

(858-867), cuja obra dedicou-se a demonstrar que ao sucessor de Pedro os

poderes espiritual e temporal deviam submissão.

Roma, nessa época, era uma cidade de vícios e crimes. Na Itália,

reinava a anarquia. A Igreja passava por crises. O papa João VIII (872-882) foi

assassinado com o crânio esfacelado a marteladas, porque não morreu

imediatamente com o veneno que lhe deram. “Dos noves papas que

governaram nos dozes anos seguintes quase nenhum morreu de morte natural”

(Martin N. Dreher).

Dreher narra ainda, como exemplo da condição deplorável do alto

clero da época, o “caso macabro” envolvendo Estêvão VI e seu antecessor

Formoso (891-896). Após a morte de Formoso, desejando ainda vingar-se do

morto, o papa Estêvão mandou que o cadáver de Formoso fosse desenterrado,

vestido de vestes pontificais e colocado na cadeira da Igreja de São Pedro.

Deixarei que Dreher nos conte a história:

“O corpo de Formoso, que já estava em franca decomposição, foi processado e, após três dias, condenado. Por haver jurado não mais ser clérigo e por haver jurado nunca mais pôr os pés em Roma, assim argumentaram seus adversários, teve amputado o dedo indicador. Seu cadáver foi despido e jogado no Tibre. Logo os adeptos de Formoso se vingaram. Estêvão foi deposto, enfiado em um convento e ali estrangulado”.

Quando o rei germânico Otto I (936-973) governou, tudo fez para

submeter o episcopado ao poder imperial. Otávio (denominado João XII) foi

eleito aos 18 anos e, como precisou do auxílio de Otto I face às hostilidades

que enfrentava, este atendeu a solicitação, contanto que fosse coroado em

Roma, o que realmente ocorreu em 2 de fevereiro de 962. Em Roma, Otto I

renovou as antigas alianças com a Igreja, mas impôs que todo papa eleito

deveria jurar fidelidade ao imperador, o que, na prática, transformaria o papa

em seu vassalo.

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Foi nessa época que surgiu o costume dos papas mudarem de

nome ao serem eleitos. Também por esse tempo, por ocasião da coroação de

Otto I, se inaugurou a prática a ser seguida doravante na Idade Média: a

coroação de imperadores por papas. Ainda no século X, a Boêmia, a Polônia e

a Hungria se cristianizaram, seguindo a tradição romana, e, a Rússia, ligando-

se à Igreja Oriental.

A Igreja estava totalmente sob o controle do império. “A igreja

germana era, na essência, uma igreja estatal” (Bruce L. Shelley). O neto de

Otto I, Otto III (falecido em 1002), fixou residência em Roma, tentando

submeter os reis da Polônia, Hungria e Boêmia.

Sob as ordens de Henrique III, no Sínodo de Sutri (1046), foram

depostos três papas que governavam simultaneamente. Bento IX era um papa

terrível. Ele foi expulso de Roma e Silvestre III assumiu o papado. Bento voltou

a Roma e vendeu a cadeira de São Pedro por uma grande soma de dinheiro,

em 1045, a um homem que se tornou Gregório VI. Como Bento recusou-se a

renunciar o papado, houve três papas alegando o poder ao mesmo tempo,

Bento, Silvestre e Gregório. Henrique III depôs Bento e Silvestre e obrigou

Gregório a renunciar. O imperador, em seguida, indicou seu primo, Bruno, que

veio a chamar-se Leão IX. “O sínodo de Sutri marcou, então, o momento mais

baixo do poder do papado na Idade Média” (Cairns)

Foi nesse estado de coisas que eclodiu uma reforma nos

conventos que ensejaria a escalada do poder papal ao seu apogeu.

2. A reforma cluniacense.

Nessa época, a quase total inexistência de piedade tinha

alcançado os conventos. Segundo Cairns, “No século X, os mosteiros tinham

se tornado ricos e corruptos e necessitavam urgente de Reforma”.

Tal reforma foi iniciada entre os beneditinos de Cluny, mosteiro

fundado em 910, em Borgonha, na região oriental da França. O programa

ansiava por libertar a Igreja da interferência imperial e submetê-la ao controle

do papa, mas reconhecia que, para tanto, havia necessidade de uma reforma

interna.

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A partir do competente trabalho dos abades Berno (910-927),

fundador de Cluny, e Odo (927-942), diversos mosteiros foram reorganizados à

semelhança do de Cluny, inclusive o de Monte Cassino. O governo cluniacense

inovou, no sentido de indicar os abades para os mosteiros criados a partir do

governo central e mantê-los sob a chefia do abade de Cluny. “Em meados do

século X, havia perto de 70 mosteiros sob a liderança do abade de Cluny”

(Cairns).

Dentre as propostas de reforma dos líderes cluniacenses, dever-

se-ia exterminar com a simonia (venda e compra de cargos eclesiásticos) e

com o nepotismo (indicação de parentes para cargos eclesiásticos) e o

celibato, imposto a todos os clérigos. Foi o movimento cluniacense que deu à

Sé Romana líderes capazes que batalharam ao fortalecimento do poder papal

e pavimentou as Cruzadas contra os infiéis muçulmanos.

3. O apogeu do papado.

O movimento reformista de Cluny chegou ao alto clero romano

através do papa Leão IX (1048-1054), comprometido em atacar a simonia e o

matrimônio dos sacerdotes.

Em 1059, com o papa Nicolau II e através dos esforços dos líderes

reformistas Humberto e Hildebrando (1021-1085) - este veio a tornar-se o papa

Gregório VII -, a eleição do papa libertou-se da interferência secular e tornou-se

da competência do Colégio de Cardeais, que desde então passou a eleger os

papas.

Entretanto, o homem que faria o poder papal alçar o seu mais alto

voo foi sem dúvida Hildebrando. Ele simpatizava com o programa de Cluny,

opunha-se a simonia e ao casamento dos sacerdotes. Foi o papa Leão IX que

deu as primeiras oportunidades administrativas na cúria romana a Hildebrando,

que, por sua vez, influenciou a política papal de cinco papas, até que ele

mesmo se tornou um deles.

Hildebrando foi eleito papa em 1073, passando a chamar-se

Gregório VII. Em 1074, Gregório impôs a obrigatoriedade do celibato clerical.

Cairns informa-nos que foi Hildebrando

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“que fez as reivindicações mais radicais de supremacia de que se tem notícia. Para ele, a Igreja Romana devia seus fundamentos a ‘Deus somente’, só seu pontífice ‘seria chamado universal’, o papa tinha plena autoridade sobre todos os bispos, somente seus pés seriam beijados por ‘todos os príncipes, ele poderia ‘depor imperadores’ e poderia livrar pessoas de ‘obediência’ aos governantes temporais ruins. O máximo de pretensão papal de supremacia se alcança no artigo 22 do Dictatus em que se afirma que jamais houve erro na Igreja Romana e que, segundo a Bíblia, ela jamais erraria”.

O auge do poder exercido por Gregório VII ocorreu em sua luta

contra Henrique IV (1056-1106). Porque o imperador teve cinco dos seus

conselheiros excomungados por Gregório, por simonia, em 1075, aquele

convocou um concílio para Worms em 1076. Nesse concílio, Gregório foi

excomungado, ao argumento de que o papa eleito pelos cardeais só pode ser

consagrado com autorização imperial.

Em retaliação, na quaresma daquele mesmo ano, Gregório

excomungou Henrique, liberou todos os súditos de obedecê-lo e o proibiu de

governar, por haver se voltado contra a Igreja. “Estava ocorrendo algo nunca

visto! O papa havia demitido o rei” (Dreher).

Como os saxões e outros inimigos de Henrique declararam que

realmente o deporiam se ele não se livrasse da excomunhão do papa, o

imperador, acompanhado da esposa Bertha e de um filho de dois anos, foi ao

encontro de Gregório em janeiro de 1077, em Canossa, um castelo situado nas

montanhas da Itália. Sobre o episódio, Cairns escreveu:

“Foi difícil a jornada e quando chegou a Canossa, Gregório obrigou a Henrique a ficar descalço na neve fora dos portões do palácio durante três dias sucessivos antes de ser admitido à sua presença. Só assim se livrou da sentença de excomunhão”.

Bruce L. Shelley faz anotações importantes nesse ponto:

“(...) Essa humilhação dramática do imperador não resolveu a pendência, nem as considerações modernas agregam muita importância ao incidente – naquela época, a penitência pública não era incomum nem mesmo para os reis. Mesmo assim, o papa fizera progressos quanto a libertar a igreja da interferência dos leigos e a aumentar o poder e o prestígio do papado”.

4. O cisma de 1054.

Em meados do segundo século, um conflito envolvendo a data da

celebração da páscoa prejudicou a relação entre as Igrejas no Ocidente e no

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Oriente. No entanto, o primeiro fato histórico que ensejou a separação da Igreja

em duas porções foi a transferência, por Constantino, da sua capital para

Constantinopla. Em seguida, Teodósio também deu sua contribuição ao dar a

diferentes chefes a liderança das porções ocidental e oriental do império.

Com o fim do império romano no Ocidente, em fins do século V, a

Igreja Oriental permaneceu sob a jurisdição do imperador, enquanto em Roma

o bispo assumiu a liderança dos poderes espirituais e temporais nos tempos de

crise.

Nos séculos VIII e IX, ocorreu a controvérsia iconoclasta,

provocando sentimentos hostis entre as Igrejas Oriental e Ocidental. O

imperador do Oriente, Leão III, em 726, proibiu a genuflexão diante das

imagens e, em 739, ordenou que elas fossem removidas dos templos. No

Ocidente, tanto o papa quanto o imperador Carlos Magno apoiaram o uso de

símbolos visíveis da divindade. Assim, enquanto a Igreja no ocidente continuou

a usar imagens e esculturas no culto, a Igreja no Oriente eliminou as

esculturas, mas conservou os ícones, geralmente gravuras de Cristo, que

poderiam ser reverenciadas, mas não cultuadas, atitude que se deve somente

a Deus.

No século IX, um incidente envolvendo o papa Nicolau I (858-867)

e o patriarca Fócio recrudesceu a animosidade das relações. Nicolau desejava

submeter à sua autoridade tanto o patriarca quando o imperador oriental,

Miguel. Miguel depôs o patriarca Inácio, por este haver se recusado a ministrar

a Ceia a Bardas, tio do imperador, e em seu lugar indicou Fócio.

Inácio, a seu turno, pediu socorro a Nicolau e este declarou Fócio

deposto. Entretanto, um sínodo dirigido por Fócio acusou Nicolau e a Igreja

Ocidental de heresia pelo acréscimo ao credo niceno-constantinoplano (de

381) da cláusula “filioque” (e do Filho), que implica dizer que o Espírito procede

tanto do Pai quanto do Filho.

No século XI, todas essas diferenças afloraram e apenas uma gota

d’água fez dividir o cristianismo em duas grandes porções. Miguel Cerulário, o

patriarca de Constantinopla (1043-1058), condenou a Igreja do Ocidente pelo

uso do pão não-levedado na Eucaristia, prática usual a partir do século IX.

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O papa Leão IX, na tentativa de pôs fim à polêmica, enviou

Humberto e dois outros legados ao Oriente. O resultado dos debates é que no

dia 16 de julho de 1054, os legados do papa, na Catedral de Santa Sofia,

excomungaram o patriarca e seus seguidores. Em resposta, no dia 21 de julho,

Miguel Cerulário excomungou o papa e seus seguidores. Estava consumado o

primeiro grande cisma da cristandade. Ainda hoje persiste o cisma, embora a

mútua excomunhão tenha sido removida em 7 de dezembro de 1965, por

acordo entre o papa Paulo VI e o patriarca Atenágoras.

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XVI. As cruzadas

A palavra “cruzada” significa “tomar a cruz”. Entretanto, não nos

enganemos, entre os séculos XI a XIII, época das cruzadas, isso nada tinha a

ver com os termos da ordem do Senhor Jesus de tomar a cruz a segui-lO (Lc

9:23; 14:27). Na verdade, em nome de Cristo, os cruzados cometeram as

barbaridades mais inimagináveis, conforme poderemos verificar em nosso

estudo.

1. As causas das cruzadas.

Desde meados do séc. XI, os turcos seljúcidas ameaçavam

marchar contra o Ocidente. Foram eles que devastaram o Oriente e tomaram

Jerusalém dos seus companheiros muçulmanos árabes, menos fanáticos que

eles.

Em 1071, o exército grego foi derrotado pelo exército seljúcida na

batalha de Manzikert. Nesse confronto, o imperador do império Romano

Oriental foi capturado e o seu exército, disperso. Foi nessa ocasião que a

Armênia foi perdida. Nos anos seguintes, os seljúcidas conquistaram Damasco,

Antioquia, Jerusalém e Egito.

O imperador do Oriente, Alexius Comnenus, veio ao encontro do

papa Urbano II (1088-1099) pedir auxílio para fazer frente à ameaça seljúcida

ao seu reino. Em resposta, o papa reuniu um Sínodo em Clemont, na França,

em 1095, onde descreveu os sofrimentos a que estavam submetidos os

cristãos orientais sob o jugo turco e convocou entusiasticamente uma cruzada.

Em seu empolgante discurso, Urbano II motivou os ouvintes com

recompensas materiais e espirituais. Acerca das primeiras, disse:

“Pois esta terra em que vivem (...) é muito pequena para sua grande população; nem é abundante em riquezas; e mal consegue fornecer alimento suficiente para quem o cultiva. Portanto, vocês vão se matar e se devorar (...) peguem a estrada para o Santo Sepulcro, arrebatem a terra daquela raça perversa e dominem-na” (citado por Bruce L. Shelley).

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Além das recompensas materiais, as espirituais consistiam sem

dúvida em forte motivo para o homem medieval. Segundo o papa Urbano II,

conta-nos Martin N. Dreher,

“Todos deveriam deixar de lado suas rixas e contendas e lutar na guerra justa. Quem perdesse a vida nesta guerra receberia a salvação e o perdão de pecados. As alegrias da vida eterna estariam esperando por ele. Nas palavras de Urbano II temos a prefiguração das indulgências (...). Na situação religiosa da época, a promessa de perdão e de admissão imediata ao reino dos céus era, sem dúvida, muito atraente (...)”.

A repercussão do discurso do papa foi impressionante. Em

resposta, a multidão gritava “Deus volt” (Deus o quer), e não demorou até

aparecer os primeiros voluntários e ter início à desastrosa Cruzada dos

Mendigos (em 1096). Essa cruzada foi uma marcha espontânea, também

motivada pela pregação de Pedro o Eremita (c. 1050-1115) e Walter O-Sem-

Dinheiro (f. em 1096), na qual cerca de 20.000 homens e mulheres fanáticos,

vindos da França, rumaram a Jerusalém. Com muitas dificuldades chegaram

até Constantinopla e de lá, encaminhados pelo imperador Alexius, chegaram a

Ásia Menor, onde foram dizimados pelos turcos.

Um segundo grupo desse tipo sequer chegou a Constantinopla. Em

viagem, porém, perpetrou verdadeiro massacre contra as comunidades

judaicas de Colônia, Mogúncia, Tréveres, Worms e Espira. Somente em

Mogúncia foram mortos mais de mil judeus. Em resposta, a posição dos líderes

cristãos nada teve a recomendar. O arcebispo de Tréveres respondeu o

seguinte aos judeus que pediram auxílio: “(...) agora vos sobrevêm vossos

pecados, (...) convertei-vos e assim vos darei paz, (...) se permanecerdes

empedernidos, então vossa alma perecerá com vosso corpo” (citado por

Dreher). Em Worms, ainda relata Dreher, o bispo admitiu os judeus

perseguidos em seu palácio, mas, quando pressionado pelos fanáticos, os

aconselhou a se deixarem batizar, obtendo como resposta o suicídio de todos

os judeus. “Apenas o bispo João de Espira protegeu os judeus e acossou seus

perseguidores”.

Percebe-se, portanto, um emaranhado de motivos subjacentes aos

esforços das cruzadas, podendo ser destacados pelo menos três deles: (1)

razão religiosa: retomar as terras cristãs sob o domínio dos turcos seljúcidas e

proteger os peregrinos europeus em suas jornadas à Terra Santa; (2) razão

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política: proteger o Império Romano Oriental, sob constante ameaça dos

seljúcidas; (3) razão econômica: ampliar o comércio italiano com o Oriente.

2. As principais cruzadas.

2.1) A Primeira Cruzada.

A desastrosa Cruzada dos Mendigos foi, segundo Cairns, um

prelúdio ao esforço organizado da Primeira Cruzada (1096-1099), dirigida por

nobres franceses, belgas e italianos.

A Primeira Cruzada, com seus trinta e cinco mil cavaleiros, obteve

êxito surpreendente. Em 1097, Niceia foi tomada; em 1098, Antioquia foi

conquistada após longo cerco; em 14 de julho de 1099, foi a vez de Jerusalém

ser dominada, não sem severa violência da parte dos cruzados contra

muçulmanos e judeus. Estes, refugiados em sua sinagoga, foram incendiados.

Estima-se que cerca de trinta mil pessoas, dentre muçulmanos e judeus, foram

assassinadas na tomada de Jerusalém. Assim foi estabelecido o Reino Latino

de Jerusalém.

Sobre a entrada dos cristãos em Jerusalém, Shelley transcreve o

seguinte relato da época:

“Alguns dos nossos homens (...) cortavam a cabeça de seus inimigos; outros os matavam com flechas para que caíssem das torres; outros os torturavam por muito tempo lançando-os às chamas (...). Era necessário avançar com cuidado sobre os corpos dos homens e cavalos. Mas essas são pequenas questões se comparadas com o que aconteceu no Templo de Salomão (onde) (...) homens completamente ensanguentados montavam os cavalos. Na verdade, era julgamento justo e esplêndido de Deus que esse lugar se enchesse com o sangue dos descrentes, já que ele sofreu tanto tempo por suas blasfêmias”.

2.2) A Segunda Cruzada.

A Segunda Cruzada (1147-1149) foi convocada pelo papa Eugênio

III (1110-1153) e contou com o apoio de Bernardo de Claraval, em face da

perda de Edessa para os turcos liderados por Zengi, em 1145, e da ameaça

destes ao Reino de Jerusalém.

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A retomada de Edessa deu aos muçulmanos a noção de

possibilidade de vitória da “Jihad”. Dois anos depois, Zengi foi assassinado

enquanto dormia, por um dos seus soldados, a quem tinha prometido matar na

manhã seguinte por causa de uma ofensa tola que este havia lhe feito.

Os cruzados deixaram Damasco fortemente abalada, razão pela

qual esta resolveu pedir apoio ao filho de Zengi, Nur al-Din, o que fez o exército

cruzado, liderado pelo Rei Luís da França, sabendo que seria derrotado, decidir

recuar. Em 1154, Nur-al-Din foi aclamado pela população damascena.

Portanto, a Segunda Cruzada deu em nada, além de fortalecer as convicções

dos muçulmanos, e em dois anos desvaneceu.

Após dominar a Síria, Nur al-Din resolveu dominar o Egito e o

Cairo. O Cairo não iria oferecer maiores resistências aos cruzados, mas

quando souberam que estes produziram um massacre aos muçulmanos xiitas,

seus príncipes decidiram pedir auxílio a Nur al-Din. Em resposta, este enviou

um jovem general do seu exército, chamado Saladino.

No Egito, a primeira medida tomada por Saladino foi tomar o país

dos xiitas. Por volta de 1169, ele já era o governante incontestável do Egito e

pronto para o seu próximo passo, tomar Alepo, fortaleza dominada por Nur al-

Din e, depois da morte deste, por seu filho Al Salim, o que de fato veio a

ocorrer.

2.3) A Terceira Cruzada.

Em 1183, a situação dos cristãos de Jerusalém estava em declínio.

Seu rei, o jovem Balduíno IV, era portador de lepra. Em 1187, Saladino viu

ocasião de retomar Jerusalém dos cristãos, na “Jihad”. A batalha sangrenta de

Hattin derrotou o exército cruzado em 4 de julho daquele ano. Ao final do

mesmo ano, Saladino já era o sultão do Egito e da Síria, e já havia habilmente

unificado os muçulmanos e reconquistado Jerusalém.

Em resposta às conquistas de Saladino, os cristãos responderam

com a Terceira Cruzada, em 1189, conclamada pelo papa Gregório VIII e

liderada por Frederico Barba Ruiva da Alemanha, Ricardo Coração de Leão, da

Inglaterra, e Felipe da França. Frederico afogou-se na Ásia Menor e Felipe, por

conflitos com Ricardo, retornou à França. Ricardo assumiu a empreitada

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sozinho e conseguir dar aos cristãos a cidade de Acre e alguma possibilidade

de retomar Jerusalém.

Chegada a hora de reconquistar Jerusalém, Ricardo partiu de Acre,

mas não sem intenso ataque militar do exército de Saladino, heroicamente

resistido por Ricardo, que chegou ileso em Jafa e um mês depois partiu para

Jerusalém. Entretanto, a meio caminho da cidade santa, o rei cruzado ordenou

que seu exército recuasse.

Batalhas constantes levaram os arqui-inimigos a um acordo, em

1192, no qual Tiro, Acre, Cesaréia e Jafa ficariam com Ricardo e Jerusalém,

com Saladino. Saladino ainda permitiria que os cristãos peregrinos tivessem

acesso a Jerusalém.

2.4) A Quarta Cruzada.

A Quarta Cruzada (1202-1204) foi estimulada pelo papa Inocêncio

III (1198-1216). Nessa cruzada, tropas europeias que, em 1203, deveriam ir ao

Egito, foram para Constantinopla, a saquearam violentamente e fundaram o

Reino Latino daquela cidade, em 1204, que perdurou até 1261. A conquista

tanto aumentou a cisão entre as Igrejas Oriental e Ocidental quanto facilitou a

queda da cidade em 1453, sob os turcos.

2.5) A Cruzada das Crianças.

Em 1212 ocorreu a Cruzada as Crianças, certamente o episódio

mais desolador envolvendo as cruzadas. Dois meninos, Estêvão e Nicolau,

dirigiram crianças da França e Alemanha numa marcha pelo sul da Europa até

a Itália, motivados pela ideia de que a sua pureza lhes daria o sucesso que o

pecado dos seus pais impediu. As crianças que não morreram no caminho

foram vendidas como escravos no Egito.

2.6) As demais Cruzadas.

Outras cruzadas ocorreram em 1217-1221 (a Quinta Cruzada), em

1228-1229 (a Sexta Cruzada), em 1248-1250 (a Sétima Cruzada), em 1270 (a

Oitava Cruzada) e em 1271-1272 (a Nona Cruzada). Finalmente, a era das

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Cruzadas terminou quando, em 1291, Acre, o último território sob o domínio

cristão na Terra Santa, foi tomado pelos turcos.

3. Avaliação das Cruzadas.

O equívoco básico que deu suporte às Cruzadas foi, segundo

Shelley, a dificuldade dos papas em considerar duas verdades: “as mais altas

satisfações do cristianismo não são garantidas pela posse de lugares

especiais, e a espada nunca foi a maneira que Deus usou para ampliar a igreja

de Cristo”.

Por isso, embora nesse período o poder papal tenha sido ampliado,

as Cruzadas nada conseguiram além de enfraquecer o feudalismo medieval e

ensejar a centralização de poder nas mãos dos reis, agora apoiados pela

burguesia emergente.

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XVII. Pretensões Reformistas e o Declínio do Papado

1. O auge do poder papal: Inocêncio III e o IV Concílio de Latrão.

O auge do poder do papado ocorreu com o papa Inocêncio III

(1198-1216). Inocêncio afirmava-se “Vigário de Cristo” e asseverava que Deus

dera ao sucessor de Pedro domínio sobre o mundo e sobre a Igreja e que o

papa estava acima dos homens e abaixo de Deus. No campo político, ele

enfrentou os soberanos da França, Inglaterra e do Santo Império Romano. No

religioso, instigou a Quarta Cruzada, que acabou por subjugar não os

muçulmanos, mas capturar Constantinopla, em 1204, ocasião em que o

império oriental permaneceu sob o controle da Igreja no Ocidente, até 1261.

Foi Inocêncio III que convocou o IV Concílio de Latrão, em 1215,

aberto dia 1 de novembro daquele ano. Além de decisões na área política, o

Concílio tomou decisões que influenciariam a Igreja romana doravante, que

passo a destacar:

1.1) A confissão auricular anual tornou-se obrigatória, cuja

finalidade era detectar, corrigir e punir concepções tidas como heréticas pela

Igreja romana. Os hereges passariam a ser punidos com o confisco de suas

propriedades. Ademais, por um lado, a excomunhão seria a recompensa para

aqueles que não agissem contra os hereges e, por outro, perdão completo de

pecados era dado àqueles que cooperassem com a Igreja na caça aos

hereges. Isso representava um avanço da famigerada Santa Inquisição.

A Inquisição teve início com o papa Lúcio III, quando este, em

1184, convocou os “bispos” para inquiri-los sobre suas concepções

doutrinárias. Esta “inquisição”, ou “inquérito”, pretendia detectar os hereges e

condená-los com a excomunhão.

As políticas inquisitoriais foram sistematizadas no Concílio de

Toulouse, em 1229, que, na prática, despiam os “hereges” de todos os direitos.

Determinou-se que o inquisidor só estava sujeito ao papa e nele se confundiam

as figuras de promotor e juiz. O julgamento era secreto e o acusado que

deveria provar, sem direito a advogado, sua inocência.

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Entretanto, foi o papa Inocêncio IV que, em 1252, conferiu à

Inquisição a sua faceta mais cruel, autorizando a tortura como meio de se

conseguir informações e confissões dos “hereges”. O clero só não podia

proceder com a execução, mas tinha a liberdade de conduzir o inquérito

usando os métodos que desejasse. Após a declaração condenatória, o

sentenciado era devolvido às autoridades civis, que geralmente executavam

com morte na fogueira.

1.2) Outra decisão importante tomada no IV Concílio de Latrão diz

respeito à doutrina romana da eucaristia. Martin N. Dreher fala a respeito:

“criou-se a base mágico-sacramental que permitiria a separação de cristãos ligados à Igreja dos que eram denominados de hereges. Quem negasse essa doutrina não só se encontrava em engano, mas tinha que ser visto como anarquista e tratado como tal...”.

O termo “missa” passou a ser utilizado exclusivamente no

Ocidente, e a partir do final do século IV. Há quem afirme que o termo deriva

das palavras finais do culto usadas para despedir a congregação: “ecclesia

dimissa est” (a igreja está demitida, enviada). Gregório o Grande ajudou nos

primórdios da formulação da doutrina da eucaristia, chegando a ensinar que o

sacrifício de Cristo na missa confere os méritos de Cristo tanto aos

comungantes quanto aos mortos do purgatório, nela mencionados.

No século IX, Pascásio Radbertus (c. 830) e Radramno (c. 845)

contribuíram ao debate do dogma eucarístico. O primeiro defendeu que Deus

opera um milagre, transformando a substância do pão e do vinho nos

verdadeiros corpo e sangue de Cristo. O segundo, a seu turno, acentuou o

elemento espiritual, afirmando que os comungantes comem o corpo e bebem o

sangue de Cristo apenas espiritualmente, não a carne que esteve na cruz nem

o sangue que foi ali derramado.

No século XI, o debate deu-se entre Berengário (f. em 1088) e

Lafranco (f. em 1089). Berengário negava a transformação da substância,

afirmando um comer meramente espiritual. Lafranco se insurgiu contra ele,

afirmando que em cada partícula da “hóstia” (palavra que significa “vítima”,

usada para referir-se aos animais sacrificados nos sacrifícios hebreus) “todo o

Cristo indiviso estava realmente presente” (Dreher). Parece-nos que

Berengário realmente nunca abriu mão de suas convicções, embora tenha sido

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obrigado a negá-las pelo papa Nicolau II (1058-1061), em 1059, e pelo papa

Gregório VII (1073-1085), em 1079.

Ainda no século XII, havia três possíveis compreensões quanto à

eucaristia, segundo Pedro Lombardo (f. em 1160): (1) a doutrina da

transformação, segundo a qual somente durante o ato sacramental surge do

pão o corpo de Cristo; (2) a doutrina da consubstanciação, para a qual a

substância do pão e do vinho permanece intactas, mas que após as palavras

de consagração tem agregada a si a presença de Cristo; (3) a doutrina da

transubstanciação, através da qual se ensina que a substância do pão e do

vinho é realmente transformada no corpo e no sangue de Cristo. Pedro

Lombardo negou a primeira possibilidade, doutrina aceita pela Igreja Ortodoxa,

mas não se definiu entre a consubstanciação e a transubstanciação.

A definição doutrinária de Latrão (1215) seguiu a confissão da

transubstanciação de Berengário - confissão que este fez por imposição do

papa Gregório VII -, e negou a tradição de Radramno (em 1215), ficando com o

seguinte teor:

“Há apenas uma Igreja universal dos fieis, fora da qual ninguém é salvo. Nela Jesus Cristo é, como sacerdote, também o sacrifício. Seu corpo e seu sangue estão verazmente contidos sob as espécies de pão e vinho no sacramento do altar, depois que o pão foi transubstanciado no corpo e o vinho no sangue pelo poder divino: a fim de que nós, para a perfeição do mistério da unidade, recebamos do seu o que ele recebeu do nosso. E este sacramento ninguém pode executar a não ser o sacerdote que foi regularmente ordenado, segundo o poder das chaves da Igreja, as quais o próprio Jesus Cristo concedeu aos apóstolos e a seus sucessores” (citado por Dreher).

A festa de “Corpus Christi” foi a consequência dessa decisão. Ela

foi iniciada em 1264, confirmada no Concílio de Vienne, em 1311, e em 1330

surgiu a procissão de “Corpus Christi”. Uma vez que concebeu-se que o corpo

e o sangue de Cristo não estavam presentes somente durante a comunhão do

fiel, mas que permaneciam constante e realmente no pão visível até que este

desaparecesse, seria fácil concluir que o próprio Cristo poderia ser levado

pelas ruas e cidades. Foi por conter todo o Cristo, segundo a definição de

Latrão, que o pão passou a ser designado de “hóstia”.

2. As pretensões reformistas.

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A Igreja realizava grandes façanhas. Liderava e inspirava as

cruzadas contra muçulmanos e hereges, construía grandes catedrais góticas e

dava impulso às universidades, representantes do vigor intelectual da época.

Grandes doutores da Igreja, homens como Pedro Abelardo (1079-1142) e

Tomás de Aquino (1124-1274), deram vida ao “escolasticismo” ou ao método

“escolástico”, uma tentativa de aplicar a razão e a filosofia às verdades da

revelação e ao conteúdo da fé.

Mas, por outro lado, não obstante a grandeza de sua força política

e intelectual, o ardor do movimento cluniacense do século X havia arrefecido e

a Igreja dava claros sinais de evaporação dos valores espirituais. Shelley cita o

bispo de Lincoln, Robert Grosseteste (1235-1253), que “censurou a cobiça, a

ganância e a imoralidade do clero”. O bispo inglês afirmou que “Como a vida

dos pastores é o livro da laicidade, está claro que eles são pregadores do erro

e da maldade”. A responsável de tudo isso é a corte romana, que, segundo

Grosseteste, “não nomeia homens, mas destruidores de homens”.

Em resposta a esse estado caótico, surgiram as ordens monásticas

franciscana e dominicana, dentre outras, e os movimentos reformistas leigos

dos valdenses e cátaros. Senão, vejamos:

2.1) As ordens monásticas.

Em Assis, a 140 km ao norte de Roma, Giovanni Bernardone, o

São Francisco de Assis (1182-1226), deu origem à ordem dos franciscanos.

Filho de comerciante rico que desejava que ele se tornasse um cavaleiro

cruzado, Francisco se converteu durante uma enfermidade e deixou a casa

paterna para dedicar-se ao serviço de Deus através da pobreza.

Após reunir alguns jovens com o mesmo ideal, deu à fraternidade

uma regra que exigia pobreza, castidade e obediência, sobretudo ao papa. A

ordem foi aprovada em 1210 por Inocêncio III, empreendeu movimentos

missionários eficazes e produziu grandes eruditos, tais como Duns Scotus e

Guilherme de Occam.

Outra importante ordem monástica surgiu com o espanhol Dominic

Guzman (1170-1221), os dominicanos. Eram mais dedicados à educação que

os franciscanos e pretendiam levar os hereges à conversão através da

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persuasão da pregação aliada ao exemplo da pobreza. A ordem foi aprovada

pelo papa em 1216 e dela saíram Alberto Magno e seu aluno Tomás de

Aquino.

2.2) Os movimentos reformistas leigos.

A par dos movimentos monásticos, produto de uma reação interna

à corrupção do alto clero, nasceram seitas que tentaram reformar a Igreja de

fora para dentro. Dentre elas, se destacam os valdenses e os cátaros ou

albigenses.

Pedro Valdo (c. 1140-1218) era um rico comerciante de Lyon, na

França. Impressionado com as palavras de Jesus ao jovem rico (cf. Mt 19:21),

Valdo decidiu abrir mão de sua fortuna, colocou sua família em segurança e

decidiu organizar um movimento de disseminação do ensino de Jesus através

de pregadores leigos. A seita logo recebeu a oposição do bispo de Lyon e, em

1184, Valdo foi excomungado da Igreja romana pelo papa Lúcio III.

Sobre a divergência entre os valdenses e Roma, Shelley disse o

seguinte:

“O conflito é compreensível. Os valdenses queriam purificar a igreja pelo retorno à vida simples dos apóstolos. Isso significava o abandono do poder do mundo... [por outro lado] O papado não podia renunciar a seus sacramentos ou sacerdócio, nem admitir que a fé em Deus poderia ser algo diferente dos mandatos de Roma. Os valdenses, por seu turno, sentiam cada vez mais que nenhum ensinamento, exceto o de Cristo, era gratificante. As Escrituras deviam governar...”.

Claramente, os valdenses se opuseram ao governo romano

centralizado no papa, em prol de um movimento de retorno à Bíblia. Isso

realmente soa como um movimento na linha dos reformadores, embora eles

não tivessem descoberto as doutrinas evangélicas da graça.

Os cátaros (“puros”), também chamados albigenses por terem sido

numerosos na cidade francesa de Albi, reavivaram a antiga heresia dualista

gnóstica, reafirmando a antiga cisão permanente entre matéria e espírito e

entre o Deus mal do Antigo Testamento e o Deus bom do Novo Testamento. A

concorrência da Inquisição e da cruzada contra os hereges, apoiada por

Inocêncio III, em 1208, causou a dizimação dos albigenses.

3. O declínio do papado (1309-1439).

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Após os papas Inocêncio III e Inocêncio IV, a Sé romana padeceu

sob o comando de papas de baixíssima envergadura política e teológica. A par

desse fato, a exigência de celibato, a luxúria, a ambição e a secularização do

clero levou a Igreja romana, entre 1309 e 1439, ao nível mais baixo. O próprio

papado foi atingido nos episódios que envolveram o Cativeiro Babilônico e o

Grande Cisma.

3.1) O Cativeiro Babilônico.

Bonifácio VIII (1294-1303) não teve suficiente influência e

habilidade para impor-se perante os soberanos da Inglaterra e da França.

Felipe IV, o Belo, rei da França, ignorando sua bula Unam Sanctam, o

aprisionou em Anagni, com o propósito de levá-lo a julgamento, o que só não

ocorreu porque Bonifácio conseguiu fugir e morreu um ano depois.

Clemente V (1305-1314) foi eleito pelo Colégio de Cardeais em

1305 e, influenciado por Felipe, em 1309, transferiu o papado de Roma para

Avignon. Com exceção do período compreendido entre 1367 e 1370, a

residência papal permaneceu em Avignon até 1377, razão pela qual esse

período é chamado de Cativeiro Babilônico. Foi o clamor popular que levou os

papas Urbano V (1362-1370) e Gregório XI (1370-1378) a retornarem a Roma.

3.2) O Grande Cisma.

Em 1378 houve o Grande Cisma, que não deve ser confundido

com o primeiro grande Cisma da cristandade, de 1054.

Com a morte de Gregório XI, os cardeais elegeram Urbano VI.

Como este teve pouca habilidade em lidar com os cardeais, estes indicaram

como papa Clemente VI e, ambos, Urbano e Clemente, passaram a reivindicar

a sucessão de Pedro para si, cisma que perdurou até que o Concílio de

Constança o resolvesse, conforme veremos.

O Colégio de Cardeais convocou um concílio para a cidade de

Pisa, em 1409. Nele, participaram Bento XIII, eleito em Avignon, e Gregório XII,

do partido romano. O Concílio depôs Bento e Gregório e elegeu Alexandre V

como o papa legítimo. Como os dois primeiros se recusaram a renunciar, ao

invés de dois, passou-se a ter três papas.

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Face à pressão do imperador do Santo Império Romano,

Sigismundo, o papa João XXIII (o Baltasar Cossa) convocou novo Concílio

para Constança (1414-1418), a fim de por fim ao Cisma. Nele, Gregório XII

abdicou, foram depostos Alexandre V e Bento XIII, e eleito o papa Martinho V.

Foi esse Concílio que, além de resolver o Grande Cisma, condenou as ideias

de John Wycliffe e conduziu John Huss à fogueira.

A era conciliar muito fez para retirar o poder absoluto do papado e

transferi-lo aos concílios. Caso essa situação tivesse sido mantida, o papado

teria se tornado uma espécie de monarquia constitucional. Entretanto, o

despotismo eclesiástico voltou a imperar, sobretudo com o Concílio de

Florença, que se reuniu até 1449.

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XVIII. Novos Tempos e Pré-Reformadores

1. O anúncio de novos tempos.

Após o período dos grandes concílios (1409-1449), o despotismo

papal foi retomado, mas não para alçar as alturas do poder experimentado por

Inocêncio III. Novos movimentos políticos, econômicos e sociais anunciavam o

surgimento da era moderna, conforme abaixo resumiremos, de modo que

podemos testemunhar o fim da Idade Média entre os anos 1300 e 1500.

1.1) O surgimento das nações-estados.

Durante a Idade Média, permaneceu dominante o conceito de

unidade política sob um único soberano, ideal que remontava as glórias do

império romano e que veio a se materializar no Santo Império Romano, embora

na prática fosse o sistema feudal a garantia da segurança e o elemento que

ditava os modelos econômico-sociais.

Entretanto, nos século XIV e XV, a Guerra dos Cem Anos (1337-

1453), travada entre a Inglaterra e a França, serviu para fomentar o orgulho

nacional dessas nações, de modo que as pessoas começaram a verem-se

como inglesas e francesas e a pensar em termos de interesses nacionais. Os

ingleses se orgulhavam dos seus arqueiros e a França se unificou em torno do

seu inimigo comum. Essa guerra deu à França uma heroína nacional, Joana

D’Arc (c. 1412-1431). A outra nação a logo formar-se enquanto nação-estado

foi a Espanha, sobretudo com o casamento de Fernando de Aragão com Isabel

de Castela, em 1479.

Enquanto a Inglaterra tem uma longa história de monarquia

constitucional, em que a soberania do rei é dividida com o Parlamento, na

França e na Espanha desenvolveram-se monarquias absolutistas, nas quais o

soberano governava absoluto, concentrando todas as esferas do poder nas

mãos. Sobretudo na Espanha, o absolutismo político encontrou paralelo no

absolutismo católico romano, expresso na bárbara Inquisição Espanhola,

liderada por Torquemada e Ximenes.

1.2) A ascensão da burguesia.

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Na sociedade feudal, a economia baseava-se na agricultura e o

nobre feudal constituía numa classe social proeminente. No entanto, ao fim da

Idade Média, a retomada do crescimento urbano e a ascensão do comércio

deu azo ao surgimento de uma nova classe social poderosa, a burguesia. A

posse da terra tendeu a perder valor e o mundo começou a monetarizar-se.

Portanto, é fácil perceber que um governo direto do papa sobre os

negócios internos das nações nem interessava aos soberanos das nações, que

opuseram-se a um governo religioso universal, nem à emergente burguesia.

Ambos se mostraram insatisfeitos com o envio de riquezas ao tesouro papal

em Roma.

1.3) A renascença e o humanismo.

A renascença foi um movimento intelectual que floresceu na Itália,

no século XV, como uma oposição vigorosa aos séculos anteriores, período

que passou a ser chamado de “idade média”, por ser considerado um “período

intermediário” entre a antiguidade clássica e novo impulso das artes, então em

surgimento. A renascença buscou opor-se ao “período intermediário”

redescobrindo as obras da antiguidade. Enfatizou o ser humano, sua

autonomia e liberdade.

No final do século XV, a renascença italiana foi experimentada pela

França, Inglaterra, Países Baixos e Alemanha, onde o movimento, dotado de

novas características, foi denominado de “humanismo”. No humanismo, “o

principal acento esteve na alegria com a qual se fazem descobertas de ordem

filológica. Surgiu todo um estudo em torno dos livros dos antigos autores”

(Dreher).

A renascença e o humanismo contribuíram basicamente de duas

formas para o advento da Reforma Protestante: primeiro, sua ênfase no

indivíduo ensejou o pano de fundo do ensino protestante da salvação como

questão pessoal; segundo, o interesse nas obras da antiguidade fez os

humanistas cristãos devotarem-se ao estudo da Bíblia nas línguas originais, de

modo que as divergências entre a Igreja neo-testamentária e a Católica

Romana tornaram-se óbvias.

1.4) A expansão geográfica e a imprensa.

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Outros dois acontecimentos selariam definitivamente o rompimento

com o mundo homogêneo criado pelo ideal de um único governo, fomentado

no período medieval: a expansão geográfica do mundo europeu, sobretudo a

partir da Península Ibérica, e a invenção da imprensa, por volta de 1450, por

João Gutenberg. “Chegava ao fim a possibilidade do controle e da

homogeneidade” (Dreher).

2. Reformas religiosas.

Paralelamente à ascensão dos movimentos revolucionários nos

campos político, social, econômico, intelectual e geográfico, homens

começaram a divulgar ideias religiosas que se insurgiam contra os dogmas

católico-romanos. Dois deles merecem atenção especial, ante o alcance de sua

mensagem e à extensão de suas propostas reformistas, são eles: John Wycliffe

e John Huss.

2.1) John Wycliffe (c. 1320-1384).

Wycliffe viveu durante grande parte do Cativeiro Babilônico e do

Grande Cisma. Pouco se sabe sobre sua infância, salvo que nasceu por volta

de 1320, numa família rica, na vila de Hipswell, no condado de Yorkshire,

Inglaterra. Em Oxford, onde estudou e ensinou a maior parte da sua vida,

obteve o diploma de doutor em 1372. Sob a proteção de João de Gaunt, o

duque de Lancester, Wycliffe defendeu a coroa inglesa quando esta contendia

com o papado em questões de impostos. Em 1377, o papa Gregório XI

condenou Wycliffe por seus ensinamentos e pediu sua demissão de Oxford,

onde foi condenado em 1380.

A partir de 1378, ano do Grande Cisma do papado, Wycliffe tornou-

se mais contundente em suas acusações contra a Igreja romana. Segundo ele,

o papa deveria ser um pregador simples, sem envolvimentos com embates

políticos, mundanismo e luxúria. Em 1382, retirou-se para a igreja paroquial em

Lutterworth, onde completou a tradução da Bíblia, feita a partir da Vulgata de

Jerônimo, juntamente com alguns amigos. Nesse mesmo ano, escreveu que

Cristo e não o papa é o chefe da Igreja, afirmou que a Bíblia e não a Igreja era

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a autoridade única da Igreja e que a Igreja romana deveria voltar aos padrões

do Novo Testamento. Chegou mesmo a acreditar que o papa é o anticristo.

Apesar de manter sua crença no purgatório e não se opor à

extrema-unção, Wycliffe se insurgiu contra a confissão obrigatória e,

principalmente, contra o dogma da transubstanciação. Para Ele, Cristo estava

espiritualmente na Ceia e não havia qualquer transformação na substância dos

elementos. Somente o fato da ênfase posta por Wycliffe na autoridade das

Escrituras já poderia lhe render o título de “Estrela da Manhã da Reforma

Protestante”.

Finalmente, organizou os “pregadores pobres” para a difusão do

ensino do Novo Testamento na língua vernácula e os enviou aos campos e às

mais diversas regiões. Esses vieram a ser chamados de “lolardos”

(resmungões). Segundo a mensagem dos lolardos, a Escritura deveria ser

colocada à disposição do povo, a distinção entre clero e leigo é contrária à

Bíblia, o celibato dos sacerdotes eram uma abominação e o culto às imagens,

as peregrinações, a oração pelos mortos e a transubstanciação não passavam

de superstições.

Wycliffe continuou escrevendo até sofrer derrame cerebral em 28

de dezembro de 1384, enquanto conduzia o culto. Seus ensinos foram

condenados no Concílio de Constança (1414-1418) e destruídos. Nesse

mesmo Concílio, se ordenou que seus restos mortais fossem exumados,

queimados e lançados no rio Swift.

2.2) John Huss (c. 1369-1415).

Huss nasceu por volta de 1369, membro de uma família de

camponeses que vivia na aldeia de Husinec, ao sul da Boêmia, parte da atual

República Tcheca. Estudou na Universidade Carolina de Praga, onde colou

grau de bacharelado em artes em 1393 e de mestre, em 1396.

Huss tornou-se sacerdote em 1400 e em 1402 foi nomeado

pregador da Capela dos Santos Inocentes de Belém e empossado reitor da

Universidade Carolina, em Praga. Nesse tempo, passou por uma conversão

evangélica e iniciou severo ataque aos abusos, à luxúria e ao mundanismo do

clero. Nas paredes da Capela de Huss havia pinturas que contrastavam o

comportamento dos papas com o de Cristo. O papa montava em cavalo e

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Jesus andava descalço; o papa queria seus pés beijados, enquanto Jesus

lavava os pés dos discípulos.

Huss não pretendia ser um reformador em questões de doutrina,

como Wycliffe. Seu interesse era uma reforma na vida prática da Igreja.

Também não se pode dizer que houvesse se tornado um discípulo de Wycliffe,

mas defendia o direito à leitura das obras do reformador inglês.

Um golpe duro contra Huss foi dado pelo papa Alexandre V, que, a

pedido do arcebispo de Praga, Zbynek Zajic, proibiu pregações fora das

catedrais, dos mosteiros e das igrejas paroquiais. Isso equivalia a proibir a

pregação Huss, uma vez que a Capela dos Santos Inocentes de Belém não se

enquadrava nos limites estabelecidos pelo papa. Huss desobedeceu ao papa e

continuou pregando, sendo esta sua primeira desobediência.

Em 1411, Huss foi excomungado, porque não atendeu a

convocação de ir a Roma prestar contas de seu ensino e pregações. Em 1412,

nova excomunhão lhe alcançou e foi fixado prazo para que comparecesse

perante a corte papal, sob pena da cidade que lhe desse acolhida sofrer

interdito. Por essa razão, o pré-reformador tcheco refugiou-se no sul da

Boêmia, onde recebeu a notícia de que estava para se reunir um grande

Concílio em Constança.

Huss foi convidado a comparecer a esse Concílio. Para tanto, o

novo imperador do Santo Império Romano, Sigismundo, coroado em novembro

de 1414, ofereceu-lhe um salvo-conduto para garantir sua segurança pessoal.

Em Constança, porém, Huss foi logo tratado como condenado, esteve preso

por oito meses e o imperador viu que não valia à pena persistir no salvo-

conduto e ver-se aliado a um “herege”.

Finalmente, no dia 6 de julho de 1415, o dia da fogueira chegou. A

caminho do suplício, passou por uma pira onde seus livros eram queimados e o

marechal do império, Von Pappenheim, deu-lhe a última oportunidade de se

retratar, ao que Huss respondeu: “Deus é minha testemunha de que as

evidências contra mim são falsas. Eu nunca pensei ou preguei exceto com a

única intenção de ganhar os homens, se possível, dos seus pecados”. Por fim,

ele orou: “Senhor Jesus, por Ti sofro com paciência esta morte cruel. Rogo-te

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que tenhas misericórdia dos meus inimigos”. O fogo foi aceso e Huss morreu

cantando: “Cristo, Tu, Filho do Deus vivo, tem misericórdia de mim”.

Diz-se que dentre as últimas palavras de Huss constava seu dito

de que os algozes estavam matando um ganso (significado da palavra huss),

mas que daí a cem anos viria um “cisne” que eles não poderiam matar. De fato,

em 1515, cem anos depois, Lutero viria a conhecer na “experiência da torre” a

doutrina paulina da justificação pela graça mediante a fé somente e, em 31 de

outubro de 1517, afixar suas 95 teses contra a venda de indulgências, fatos

que mudariam não só a vida do monge alemão, como a história da cristandade.

Os discípulos mais radicais de Huss, que rejeitavam como

normativo à fé e à prática cristãs tudo que a Igreja romana ensinava que não

estivesse na Bíblia, chamavam-se “taboritas”. Foram alguns do grupo taborita

que formaram o que ficou conhecido como Irmãos Unidos (Unitas Fratrum), ou

Irmãos Morávios, grupo de onde saiu a Igreja Morávia, que existe até hoje e

que influenciou diretamente Martinho Lutero e John Wesley.

Em 1999, o papa João Paulo II expressou “profundo pesar pela

cruel morte infligida” a Huss (citado por Flaklin Ferreira).