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Desastre Ambiental e Desenvolvimento Insustentável (publicado no Jornal do Brasil em 27 de janeiro de 2000) Henri Acselrad Cecília Campello Constatado o tamanho do dano ambiental do vazamento de 1,3 milhões de litros de óleo na Baía de Guanabara, surgiram as primeiras medidas punitivas. Falou-se em multas. Exoneraram-se dois funcionários do Departamento de Meio Ambiente da Petrobras. Certamente nada que atacasse as causas reais de acidentes como este, de tal modo repetidos e previsíveis. A pergunta que se põe é: como se pôde chegar a tal ponto? Em primeiro lugar, registre-se a desconsideração dos riscos ambientais por parte de empresas dominadas pelos imperativos da lucratividade imediata. Em seguida, o adiamento sistemático de práticas preventivas custosas, substituídas por atividades de "marketing ambiental" que procuram apresentar os grandes produtores de risco como os melhores amigos da natureza. Tem seu papel também a desmontagem dos organismos responsáveis pela fiscalização ambiental, que faz do meio ambiente, juntamente com a saúde e a educação, uma vítima da crise das políticas públicas. Resta porém perguntar por que a própria sociedade não se mobilizou a tempo para proteger-se de riscos que afetam tão fortemente as condições de vida e de trabalho de tantos cidadãos? Aqui nos caberia destacar, em particular, o papel das práticas de cooptação da população circundante, promovidas justamente pelas empresas que mais poluem. Trata-se de procedimento comum. Uma indústria responsável por poluição mercurial no Rio de Janeiro tem-se valido desse tipo de estratégia para neutralizar a atuação das associações de moradores e desencorajar os movimentos organizados. O mesmo tem se dado com uma grande empresa química da Baixada Fluminense, principalmente após o acidente ampliado de 1992, assim como com grandes empresas siderúrgicas e petroquímicas. A lógica é simples: a empresa, por um lado, omite suas práticas poluidoras e, por outro, faz investimentos na construção de pequenas escolas, hortas comunitárias, melhorias em igrejas e em associação de moradores etc. Ganha assim o apoio dos moradores da área, que podem inclusive apresentar-se em audiências públicas, depondo em defesa da empresa. O mecanismo da cooptação é a estratégia pela qual as empresas se adiantam na ocupação do terreno onde se poderia supor que atores coletivos estivessem em ação, caracterizando as condições de risco ambiental e organizando as populações ameaçadas. Ironicamente é a própria empresa, e não o sindicato, que "tem ultrapassado os muros da

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Desastre Ambiental eDesenvolvimento Insustentável

(publicado no Jornal do Brasil em 27 de janeiro de 2000)Henri Acselrad

Cecília Campello

Constatado o tamanho do dano ambiental do vazamento de 1,3 milhões de litros de óleo na Baía de Guanabara, surgiram as primeiras medidas punitivas. Falou-se em multas. Exoneraram-se dois funcionários do Departamento de Meio Ambiente da Petrobras. Certamente nada que atacasse as causas reais de acidentes como este, de tal modo repetidos e previsíveis. A pergunta que se põe é: como se pôde chegar a tal ponto?

Em primeiro lugar, registre-se a desconsideração dos riscos ambientais por parte de empresas dominadas pelos imperativos da lucratividade imediata. Em seguida, o adiamento sistemático de práticas preventivas custosas, substituídas por atividades de "marketing ambiental" que procuram apresentar os grandes produtores de risco como os melhores amigos da natureza. Tem seu papel também a desmontagem dos organismos responsáveis pela fiscalização ambiental, que faz do meio ambiente, juntamente com a saúde e a educação, uma vítima da crise das políticas públicas. Resta porém perguntar por que a própria sociedade não se mobilizou a tempo para proteger-se de riscos que afetam tão fortemente as condições de vida e de trabalho de tantos cidadãos?

Aqui nos caberia destacar, em particular, o papel das práticas de cooptação da população circundante, promovidas justamente pelas empresas que mais poluem. Trata-se de procedimento comum. Uma indústria responsável por poluição mercurial no Rio de Janeiro tem-se valido desse tipo de estratégia para neutralizar a atuação das associações de moradores e desencorajar os movimentos organizados. O mesmo tem se dado com uma grande empresa química da Baixada Fluminense, principalmente após o acidente ampliado de 1992, assim como com grandes empresas siderúrgicas e petroquímicas. A lógica é simples: a empresa, por um lado, omite suas práticas poluidoras e, por outro, faz investimentos na construção de pequenas escolas, hortas comunitárias, melhorias em igrejas e em associação de moradores etc. Ganha assim o apoio dos moradores da área, que podem inclusive apresentar-se em audiências públicas, depondo em defesa da empresa.

O mecanismo da cooptação é a estratégia pela qual as empresas se adiantam na ocupação do terreno onde se poderia supor que atores coletivos estivessem em ação, caracterizando as condições de risco ambiental e organizando as populações ameaçadas. Ironicamente é a própria empresa, e não o sindicato, que "tem ultrapassado os muros da fábrica" ao encontro da sociedade circundante. Seu intuito é desenvolver laços de lealdade com a vizinhança, dissolver conflitos e, assim, alcançar uma disciplinarização mais efetiva – e ampliada para os moradores do entorno - da sua força de trabalho.

Por último, um tema que surge em meio às preocupações sociais com o risco ambiental é o processo de privatização, que, de modo geral, teria feito diminuir os investimentos das empresas na salubridade de seu ambiente interno e externo, redundando na precarização das condições de trabalho e no aumento dos impactos ambientais da atividade produtiva. É corrente a percepção de que as privatizações têm gerado um movimento acentuado de terceirização, com redução dos gastos com manutenção e queda da qualificação da mão-de-obra, tendo por conseqüência um aumento do número de acidentes, inclusive com impactos ambientais, tais como incêndios e vazamentos.

A preocupação das grandes empresas poluidoras em construir uma imagem favorável de si próprias mostra que seus responsáveis têm perfeita noção dos riscos ambientais que afetam os trabalhadores e os moradores das vizinhanças. A dificuldade de que uma percepção

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coletiva resulte, em contrapartida, em mobilização de atores sindicais e não-sindicais na denúncia e prevenção desses riscos exprime a fragilidade de sindicatos pressionados pelo desemprego e de organizações de moradores expostas ao persistente déficit de infra-estrutura urbana, de investimentos públicos em saúde e educação. É importante, portanto, atentarmos para as evidências de que o combate à insustentabilidade de um modelo de desenvolvimento de tal forma baseado na irresponsabilização para com o risco só se dará pelo fortalecimento dos mecanismos democráticos de controle social das práticas perigosas. Como conseqüência - também socialmente desejável - as empresas economizarão suas multas e os funcionários de seus departamentos de meio ambiente manterão seus empregos.

* Henri Acselrad é professor do IPPUR/UFRJ e membro da coordenação do projeto Brasil Sustentável e Democrático** Cecília Campello é socióloga e colaboradora do projeto Brasil Sustentável e Democrático