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Tradução e tradição clássica na América Latina v. 1 – estudos
BRASIL / RIO
Organizadoras Ana Cristina Fonseca dos Santos Tereza Virgínia
Ribeiro Barbosa
Sumário
Vice-Diretora Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet
Comissão editorial Eliana Lourenço de Lima Reis Elisa Amorim Vieira
Fábio Bonfim Duarte Lucia Castello Branco Maria Cândida Trindade
Costa de Seabra Maria Inês de Almeida Sônia Queiroz
Capa e projeto gráfico Glória Campos Mangá – Ilustração e Design
Gráfico
Preparação de originais e diagramação Tiago Garcias
Revisão de provas Priscila Justina Tiago Garcias
ISBN 978-85-7758-092-7
Endereço para correspondência Laboratório de Edição – FALE / UFMG
Av. Antônio Carlos, 6627 – sala 4081 31270-901 – Belo Horizonte /
MG Telefax: (31) 3409-6072 e-mail: revisores.fale@gmail.com
www.letras.ufmg.br/labed
Apresentação . 5
Tópicos da sátira na literatura brasileira . 9 Amós Coelho da
Silva
A mímesis astuciosa: paisagens míticas
na literatura brasileira contemporânea . 25 Carlinda Fragale Pate
Nuñez
Da gota suja ao fruto rubro de carne agonizante:
a humana falência nas obras de Paladas de
Alexandria e Augusto dos Anjos . 53 Fernanda Lemos de Lima
Uma elegia novilatina do Pe. Joseph de Anchieta,
SJ . 75 Leonardo Ferreira Kaltner
Os cadernos Viva Voz que aqui apresentamos, intitulados Tradução e
tradição clássica na América Latina v. 1: estudos – Brasil / Rio e
Tradução e tradição clássica na América Latina v. 2: Lima Barreto –
Brasil / Minas, são resultados de pesquisas desenvolvidas tanto na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) quanto na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Os autores dão a conhecer as reflexões advindas de discussões de um
grupo de cooperação internacional interuniversitária encabe- çada
pela Universidad Autónoma de Madrid (UAM) e composto por
investigadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pela Universidad
de La Habana (UH) e pela Universidad Nacional de La Plata (UNLP),
com financiamento do Banco Santander.
As investigações se desenvolveram sobre o grande tema: “Traducción
y tradición clásica en América Latina”. E o grupo teve como
coordenadores as professoras Helena Manquiera (UAM), Carlinda Nuñez
(UERJ), Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa (UFMG), Lía Margarita Galán
(UNLP) e María Elina Miranda Cancela (UH).
Trata-se de uma pesquisa de grande fôlego, incipiente ainda, com um
ano somente de investigação, mas que vem mostrando bons
resultados.
Acreditamos que foi de grande proveito para os docentes e dis-
centes envolvidos na experiência de trabalho com um grande projeto
sustentado por quatro grandes universidades sobre tema que a
cada
Apresentação
um diz respeito diretamente. Esperamos que os leitores se envolvam
também e reconheçam o diálogo que se dá através da literatura da
América Latina entre o Novo Mundo e o Mundo Antigo.
Registramos, por fim, nossa alegria em poder oferecer aos colegas
de Espanha, Argentina, Cuba e Brasil os frutos colhidos em nossa
terra,
as organizadoras.
Ânfora, tuas formas inúteis. (Serão inúteis – tão belas?)
Quedas a um canto, vazia de conteúdo, vazia de néctar, de água.
Jamais serviste. E exiges com ar de orgulho que te sirvam – há
séculos – o ambiente, a luz.
Mas ó donaire, caçoila rara, flor de lua, que segredo insuflou teu
assomo, que sonho nas tuas curvas paira, que invisível abraço
anelas, a que deus enigmático és fiel na tua contenção, que suspiro
de nuvens exalas, que aura de madrugada exorna teu sangue azul, que
estirpe fugidia restauras, que éter de nostalgia te transforma em
espírito, em música – para além da matéria –, ó infecunda, ó
eterna?
Contemplación Henriqueta Lisboa
Trad. Ana Araújo
Ánfora, tus formas inútiles. (¿Acaso inútiles – tan bellas?)
Quedas a un rincón, vacía de contenido, vacía de néctar, de agua.
Jamás serviste. Y exiges, aire de orgullo, que te sirvan – hay
siglos – el ambiente, la luz.
Pero ó donaire, olla exquisita, flor de luna, ¿qué secreto insufló
tu diseño, qué sueño vuela sobre tus vueltas, qué abrazo invisible
anhelas, a qué dios misterioso eres fiel en tu contención, y qué
suspiro de nubes exhalas, qué aura de madrugada exorna tu sangre
azul, qué estirpe huidiza restauras, qué éter de nostalgia te
transforma en espíritu, en música – más allá de la materia –, ó
infecunda, ó eterna?
Tópicos da sátira na literatura brasileira . 9
1. Introdução A quebra de fronteiras entre nações ocorreu no mundo
ou por hege- monia geopolítica ou por expansão de mercado. Os
gregos destruíram Troia pela segunda razão, mas, unificada sob o
domínio de Alexandre Magno, e mais tarde, pela dominação romana,
penetraram nas vidas dos romanos de tal modo que eles abandonaram
divindades suas e adotaram as do dominado. Enquanto os romanos
construíam, pela sua arte maior: a guerra, a paz e a civilização,
levando leis aos povos submetidos, as lições dos subjugados helenos
iam obstina- damente se imiscuindo e se fixando no Mos maiorum
(Costume dos antepassados).
Não há língua absolutamente pura, pois no contato com outros povos,
a língua teria de assimilar empréstimos para melhor realizar seus
atos diplomáticos e suas interlocuções comerciais, o que tam- bém
ocorre na arte literária. A tentativa de classificar por gêneros
épico, lírico e dramático é frustrante. Até mesmo Homero, em sua
narrativa épica, pode apresentar páginas líricas e outras gradações
de estilos literários, como ocorre, liricamente, no encontro,
reconhe- cimento e morte do cão Argos, ao saudar seu amigo e herói
Ulisses que, comovido, chora na Odisseia.1
Desse modo, a defesa do genuíno gênero satírico em
Quintiliano
1 Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Tópicos da sátira na literatura brasileira
Amós Coelho da Silva1
10 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos Tópicos da sátira na literatura
brasileira . 11
(1 d.C.) em sua afirmação “Satira quidem tota nostra est”,2 em que
atribui origem latina à sátira, parece-nos um empenho frustrante,
pois restou aí apenas um argumento etimológico. A sátira, uma
espécie de canto fescenino em verso satúrnio, que não está ligada à
divindade grega Sátiro, liga-se talvez por etimologia popular
(satur, -ra, -rum),3 ao sintagma Satura Lanx, que diz respeito a
uma festa em que se ofertava a bandeja das primícias à deusa Ceres,
cujo nome ocidentalizou-se: em português/espanhol, cereal; em
italiano, cereale; em francês, céréale, em inglês, cereal. Ceres é
a deusa da vegetação que faz crescer a seara. Entretanto, de acordo
com relato de Tito Lívio (século 1 a.C.), em 364 a.C. o Senado
havia impor- tado da Etrúria os ludiones, ou histriones, na
tentativa de apaziguar o ânimo divino a fim de arrefecer uma peste
que assolava, então, o povo romano. Deleitados com a dança e
gracejos indecorosos, adotaram a novidade. Tal sentimento rústico e
coletivo consagrou o valor mágico dessa festividade das colheitas.
Há quem conteste a informação de Tito Lívio, embora não se negue o
grotesco e ácido assinalado.4
Costuma-se ainda indicar uma curta vida para a sátira. Sobre isso,
Massaud Moisés observa que a sátira perderia
sentido e força à medida que o tempo passa. Raramente uma obra
satírica resiste ao desgaste dos anos: para tanto, é preciso que a
causa do ataque satírico persista ao longo de todas as
transformações sociais, ou que a diatribe surpreenda uma falha
inerente ao ser humano.5
Os autores de sátira que ultrapassam os séculos souberam tirar do
tema rotineiro da vida cotidiana dados que não se confun- diam com
subjetivismo ou preferência meramente pessoal.
Assim ocorre em Horácio, texto frequentemente em diatribe, como nos
diálogos platônicos e o tema dos defeitos humanos: a sua
inconstância, insatisfação com a sorte e a inveja da felicidade
alheia,
2 QUINTILIANO. De institutione oratoria, X, 1. 3 ERNOUT; MEILLET.
Dictionnaire ethymologique de la langue latine. 4 HUMBERT. Histoire
illustrée de la littérature latine, p. 10. 5 MOISÉS. Dicionário de
termos literários, p. 470.
as loucuras humanas como a avareza, a ambição insaciável etc. E em
forma de diatribe: “Quid rides? mutato nomine de te/ Fabula nar-
ratur.” (De que ris? Mudado o nome, a narrativa fala de ti.)6
Na trilha horaciana, temos Fedro, que introduz a fábula em latim,
mas ele mesmo ressalta quem foi o criador: o grego Esopo. Fedro só
veio a ser publicado na época de Tibério (14 a 27 d.C.) ou Calígula
(37 a 41 d.C.). Devido a suas censuras sociais, sofreu pro- cesso e
chegou a ser preso. Outros elos da corrente fabulista são La
Fontaine, na França e no Brasil, Monteiro Lobato, Millôr Fernandes
etc. Suas personagens se perpetuaram alegoricamente em forma de
lobo ou na forma de árvores e ludicamente ele pede permissão “quod
arbores loquantur” (porque as árvores falem), conforme se observa
no prólogo do seu Liber primus. Millôr Fernandes inspirou- se na
fábula Lupus et agnus e, ao invés do fecho “Haec propter illos
scripta est homines fabula,/ Qui fictis causis innocentes
opprimunt” (Esta fábula foi escrita para aqueles homens que oprimem
inocentes com causas fictícias), o jornalista brasileiro indagou,
na sua nova moral da história, se a zebra era um animal preto com
listas brancas ou, ao contrário, branca com listras pretas. Caso o
lobo não respon- desse, o cordeiro seria libertado de suas
garras.
Alinham-se ainda às diretrizes horacianas Pérsio (início do século
1 d.C.), Sátiras; Marcial (40 a 104 d.C.) em epigramas; Juvenal (1
d.C.), coetâneo de Marcial, sempre com hexâmetros datílicos: são 16
poemas sob o título de Sátiras, afinal “Quid Romae faciam? Mentiri
nescio” (Que hei de fazer em Roma? Não sei mentir). Conselheiro,
Juvenal tem muitos versos que se tornaram proverbiais. Imbuído de
justiça, adverte “Dat ueniam coruis, uexat censura columbas” (A
censura é indulgente com os corvos e se encarniça contra as pom-
bas); “Rara auis in terris” (Ave rara no mundo); “Panem et circen-
ses” (Pão e circo) – se tornou símbolo de contestação à política de
atitudes escamoteadas; “Orandum est ut sit mens sana in corpore
sano”7 (Deve-se rezar para se ter mente são em corpo são) – e
não
6 HORÁCIO. Satirae I, 1, 69-70. 7 JUVENAL. Satirae 3.41; 2.63;
6.165; 10.81; 10.356.
12 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos Tópicos da sátira na literatura
brasileira . 13
ir aos templos pedir aos deuses que lhes dê o dom da oratória ou o
poder de Júlio César. Para Spalding, “desenvolveu para pôr a nu os
vícios abomináveis que o cercavam; e teve êxito: de todos os
satíri- cos romanos, é o mais completo e perfeito”.8
1.1. A sátira menipeia
Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.) em sua Saturae Menippeae, que
nos chegou fragmentada, cunhou o neologismo menipeia pro- veniente
de Menipo, filósofo da escola dos cínicos, que desprezava as
convenções sociais e as riquezas, obedecendo exclusivamente às leis
da natureza. A etimologia de cínico se prende a kýon (cão), um
possível epíteto de Diógenes, integrante da escola cínica e conhe-
cido pelo comportamento extravagante. Menipo de Gadara viveu no
século 3 a.C. e escreveu muito, mas nada nos chegou. Entretanto
Varrão o assimilou e nos dá uma ideia dos escritos daquele filósofo
através de sua obra Saturae Menippeae. Concebe uma outra sátira,
como uma oposição mais radical, embora pareça apenas provocar o
riso, a partir da chalaça, da zombaria, da ambiguidade, através da
ironia e paródia. Mas promove a corrosão de tudo o que está por
trás da máscara e da aparência dos falsos valores, cultivados pela
hipocrisia... Observa-se o sério a partir do complexo simbolismo da
máscara: daí, a caricatura, a careta e a macaquice, ingredientes do
grotesco. Não raro o grotesco deriva em melancólico; é que a
expressão do humor destrutivo, quando presente no grotesco, nos
opõe à realidade do mundo circunscrito na esfera da perfeição tota-
litária e, nessa posição solitária, nos tornamos sombrios.
Há um retrato idealizado de Petrônio (m. 65 d.C.) bastante rea-
lista, que Henrique Sienkiewicz, detentor do Nobel em 1905, nos dá
em seu Quo vadis? Petrônio, no Satiricon, encena um mundo desa-
gregado em situações isoladas e nele o homem impotente frente a uma
sociedade consolidada em múltiplas injustiças. Comparemos os
personagens aventureiros da sátira menipeia petroniana com os
clerici vagantes da Idade Média, os chamados “goliardos”, nome
que
8 SPALDING. Pequeno dicionário de literatura latina, p. 114.
provém do francês guele, significando duplamente garganta e gula,
bem como as noções de fanfarrão e debochado. Os goliardos eram
sacerdotes que saíram da Igreja justamente por sua posição crítica
contra a mea maxima culpa, pregado pelo teocentrismo medieval, mas
em contradição com uma pletora de atitudes eclesiásticas. A
Antropologia já conceituou o arquétipo do trickster como aquele que
é sem limites, sem lei e que segue seus próprios desejos, mas
repre- sentando uma antítese em relação aos valores culturais
estabeleci- dos e integrados à consciência coletiva.
A narrativa de Petrônio, com paródias dos clássicos, é uma
estrutura formal prosimétrica, herdada das Sátiras Menipéias de
Varrão (116-127 a.C.) e da surpreendente Apokolokýntesis, cheia de
tom irônico e parodístico, de Sêneca (4-65 d.C.).
Notamos certa hesitação em outros passos dos estudiosos: “Poucos
críticos analisaram a Anatomia da melancolia (de Robert Burton)
como sátira menipeia.9 Anterior a Robert Burton, outros tiveram de
superar óbices em função do discurso satírico, como é o caso do
humanista Erasmo de Roterdão, que publicou, não sem difi- culdades,
Praise of Folly (Elogio da loucura) e dedicou ao seu amigo, também
humanista, Sir Thomas More, autor de Utopia, decapitado por não
reconhecer o valor espiritual do rei Henrique oitavo, cano- nizado
1935.
Mas, na Grécia, Gilbert Highet nos apresenta Luciano de Samósata
(século 2 d.C.) como autor especial de sátira menipeia de tudo o
que sobreviveu da literatura greco-romana. Seu trabalho forma uma
ponte entre os diálogos críticos de Platão, a fantasia de
Aristófanes e a acirrada crítica dos poetas satíricos.10 Ainda
destaca a preferência de Rabelais e Swift: “Ele era o autor grego
favorito de Rabelais. Swift possivelmente recordou seus fabulosos
contos de viagem ao escrever sobre Gulliver...”11
9 SÁ REGO. Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição
luciânica, p. 77. 10 “His work is unlike nearly everything else
that survives from Greco-Roman literature. It forms a bridge
between the dialogues of creative philosophers like Plato, the
fantasy of Aristophanes, and the negative criticism of satirists.”
HIGHET. The Classical Tradition, p. 304. [Tradução do editor] 11“He
was Rabelais’ favourite greek author. Swift may have recalled his
fabulous travel-tales when he wrote about Gulliver…” HIGHET. The
Classical Tradition, p. 304. [Tradução do editor]
14 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos Tópicos da sátira na literatura
brasileira . 15
Laurence Sterne, autor do romance A Vida e as opiniões do
cavalheiro Tristam Shandy, uma obra com linguagem parodística,
instigadora da participação do leitor na linguagem do discurso
literá- rio, a partir de múltiplos asteriscos, páginas em branco,
elementos que truncam a leitura associados à inconsistência de
enredo e à peculiar conclusão insatisfatória, fundamentos
contrários aos relatos literários da épica clássica. Sua obra
promoveu reações dissonantes em relação aos escritores da época e
da tradição. No entanto, a sua formulação de humor foi aceita pela
sociedade londrina e sua lingua- gem literária foi classificada
como precursora do fluxo de consciência.
2. A sátira na estética literária brasileira Destacamos, acima, uma
galeria de poetas satíricos, os dividimos em dois grupos e traçamos
características estilísticas em cada grupo. Levantamos, do tecido
de alguns textos satíricos, a manifestação poética do desconcerto
do mundo frente a uma estética da utopia, conforme Thomas More:
utopia, cujo sentido restrito é ‘nenhum lugar’, embora haja uso
amplo de significação e até ambíguo. A fonte de inspiração dele foi
A República de Platão, mas criou-se uma ale- goria; para uns,
trata-se de uma sátira em relação à Europa, para outros, uma
ilha-reino imaginária como contraponto à Inglaterra.
E o que há sobre as leituras que são feitas do mundo, senão uma
consciência imersa, o mais das vezes, em mundos deslocados de um
ponto iminente? Daí munirmo-nos de conceitos aristotélicos, cice-
ronianos, horacianos etc. Também de Mikhail Bakhtin e o dialogismo:
relação da pluralidade de significações anteriores e posteriores,
polifo- nia: multiplicidade de vozes, mas cada uma delas
polissêmica nos seus pontos de vista... Ou de Julia Kristeva –
intertextualidade: a escritura literária é uma pluralidade de
textos anteriores disseminados... Enfim, não compreenderemos a
sátira apenas pela simples etimologia latina, ou a partir do
espanhol: pícaro ou picaresco. Isso porque a sátira é, conforme
Umberto Eco, uma obra aberta. A sua estrutura semiológica está
ausente, por isso Horácio interpelou o leitor: “De que ris? Mudado
o nome, a narrativa fala de ti.”12
12 HORÁCIO, Satirae 1, 1, 69-70.
Gregório de Matos Guerra se inspirou na poesia lírica euro- peia,
com base na tradição renascentista, mas também criou uma lírica de
caráter sacro, de nítida tendência barroca. Dele nos interes- sará
em especial a sátira. A sua linguagem satírica reflete um des-
compasso com a dinâmica de sua época. Uma dinâmica mergulhada no
utilitarismo do interesse dos poderosos, que privam a liberdade
alheia, canalizando-a para os seus motivos particulares. A absorção
de uma época qualquer, como sobrevivência, pode ser dúctil para uns
e amarga para outros. O romano Juvenal, mencionado acima, não
absolveu Roma: “Quid Romae faciam? Mentiri nescio”13 (Que hei de
fazer em Roma? Não sei mentir.) A condição da veemência satí- rica
não exprime o lírico no sentido de Emil Staiger de ser tomado por
um “Stimmung”, inspiração ou “disposição anímica”,14 porque não
geram soluções ou prazer, mas um sentimento melancólico, um
pessimismo, um ceticismo, à moda machadiana, como se exporá mais
adiante.
Apresentemos alguns excertos de Obras completas, abreviado
OC:
Eu sou aquele que os passados anos Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos. E bem que os descantei
bastantemente, Canto segunda vez na mesma lira O mesmo assunto em
plectro diferente.15
Logo se vê o porquê do epíteto “Boca do Inferno”. Nesta peça
(dedicada à Thalia, a quem ele, poeta satírico, invoca como sua
pro- tetora), como em múltiplos poemas, o autor lamenta “o triste
estado da Bahia”.
Em OC, 1, 155, compara-se a Homero, Ovídio, Luciano, mas esvaziando
parodicamente o seu tema, pois aqueles clássicos “escreveram
matéria de mais peso”, portanto a linguagem dele é vazia, ou
melhor, “esmagada”, porque fala de um de governador da Bahia.
13 JUVENAL. Satirae 1, 3, 41. 14 STAIGER. Conceitos fundamentais de
poética. 15 GUERRA. Obras completas, 2, p. 469.
16 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos Tópicos da sátira na literatura
brasileira . 17
Da pulga acho que Ovídio tem já escrito Luciano do mosquito, Das
rãs Homero, e deste não desprezo, Que escreveram matéria de mais
peso De que eu, que canto cousa mais delgada, Mais chata, mais
sutil, mais esmagada.16
Em OC, 6, 1291, nos apresenta o lado oposto da dignidade feminina,
que exprime uma certa sobrevivência do extrovertido das festas
populares de tom carnavalesco:
As putas desta cidade, Ainda as que são mais belas, Não são nada
diante delas, São bazofia de beldade.17
Os padres também são denunciados como transgressores. O
comportamento de membro social é posto em questão em rela- ção à
atitude hipócrita de aproveitador de situação para levar a
melhor.
Manuel Antônio de Almeida publicou Memórias de um sar- gento de
milícias, sob o pseudônimo de “Um Brasileiro”, nos anos 1852 e
1853, em folhetim, no suplemento A pacotilha do Correio Mercantil.
Seu nome só apareceu em edição póstuma. O “herói desta história”18
é Leonardo, que é “filho de uma pisadela e de um beliscão”19 – o
que o caracteriza como anti-herói, pela sua “ati- mia”, é a perda
da honra, dele e do seu pai, conforme a mãe Maria – flagrada em
adultério com o comandante do navio com quem foge, revida:
“Honra!... honra de meirinho... ora!”20 Daí ter sido abandonado aos
cuidados do padrinho barbeiro que possuía bens, cuja origem está
num equivalente ao “jeitinho brasileiro” de um “arranjei-me”, que é
título do capítulo 9. Temos então uma repre- sentação satírica da
sociedade brasileira, como insinua o autor,
16 GUERRA. Obras completas, 1, p. 155. 17 GUERRA. Obras completas,
6, p. 1291. 18 ALMEIDA. Memórias de um sargento de milícias, p. 12.
19 ALMEIDA. Memórias de um sargento de milícias, p. 16. 20 ALMEIDA.
Memórias de um sargento de milícias, p. 17.
solicitando, ainda que discretamente, o auxílio de confirmação do
leitor à maneira machadiana.
No século 19, a nossa maior representação literária está cer-
tamente na genialidade de Machado de Assis. Soube insinuar o nar-
rador em muitas máscaras poéticas, como a do “defunto autor” de
Memórias póstumas de Brás Cubas, ou do conselheiro Aires, perso-
nagem de Esaú e Jacó e de Memorial de Aires. Em Quincas Borba,
primeiramente publicado em folhetim, com profundas diferenças em
relação ao texto que viria mais tarde a público na forma definitiva
de um único volume, o seu talento se refina para encenar o drama
tragicômico de Rubião. Sua obra maior, Dom Casmurro, assume pos-
sibilidades ímpares de narração em primeira pessoa.
2.1. Breve estudo sobre a Teoria do medalhão
Pirro de Élis (n. c. 360 a.C.) se tornou sinônimo de ceticismo
abso- luto, inclusive dicionarizando o termo pirronismo. O filósofo
negava que o homem pudesse chegar à verdade. Sua atitude era de se
reservar (a suspensão do julgamento = epoqué), e questionar qual-
quer assunto sempre in utramque partem (em ambas as partes). Há
vários ceticismos, como o de Carnéades (214-129 a.C.), o fundador
do probabilismo: o conhecimento do correto é impossível. A verdade
não existe, só graus de probabilidade. Nessa sua capacidade de
criar antíteses, negou os conceitos de direito e de justiça. Sexto
Empírico (médico grego do fim do século 2) associou a atitude
epoqué à ata- raxia (imperturbabilidade, indiferença). Nos
dicionários de filosofia, fala-se no ceticismo socrático,
baseando-se na sua frase: “tudo o que sei é que nada sei.” Mais
tarde viria o ceticismo metódico com Descartes.
Em 156 a.C., Carnéades (da Academia), Diógenes Estoico e, talvez, o
peripatético Critolau estiveram em Roma. Essa visita é tomada como
uma iniciação romana na filosofia. Todos os mencio- nados acima
foram grandes oradores. No primado da retórica, cada silêncio,
gesto ou até o ritmo de respiração é calculado. Pierre Grimal nos
dá esta notícia preciosa:
18 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos Tópicos da sátira na literatura
brasileira . 19
(Carnéades), um dia, tomou publicamente a palavra e proferiu o
elogio da Justiça – o que muito agradou aos Romanos, que se
consideravam o povo mais justo do mundo. Carnéades demonstrou que a
Justiça era a mais nobre e a mias útil de todas as virtudes, pois
só ela fundamentava os Estados e as leis. Todos aplaudiram. Mas, no
dia seguinte, o mesmo Carnéades retomou a palavra sobre o mesmo
tema e demonstrou o contrário do que defendera na véspera. Afirmou
que a Justiça, por excelente que fosse em si mesma, era na
realidade uma impossível quimera, pois, dizia, se os Romanos
quisessem ser perfeitamente justos, deveriam restituir as suas
conquistas. Não será a guerra uma forma de injustiça? Mas, se os
Romanos tivessem a ingenuidade de renunciar às suas conquistas, não
se conduziram como imbecis? A Justiça não seria, então, uma forma
de imbecilidade? E, nestas condições, como torná-la uma virtude?
Carnéades, ao defender este paradoxo, transportava para o Fórum
polêmicas de escola familiares aos Atenienses, habituados a ouvi-lo
atacar o dogmatismo dos estóicos. Mas é fácil imaginar o escândalo
que suscitaram em Roma estas afirmações pouco habituais e a
confusão dos senadores, que tomaram à letra a ironia do Acadêmico.
Apressaram-se a anular o despacho oficial que chamara à Itália os
três filósofos e estes foram expulsos.21
Um conto de Machado de Assis, inserido no volume Papéis avul- sos,
intitula-se “Teoria do medalhão”, subtítulo “Diálogo”. Assim, a
apresentação do conto ressoa como expressões irônicas: teoria e
diá- logo, um como título e outro como subtítulo. Ora, uma teoria,
como um conjunto de regras metodologicamente sistematizadas, requer
um objeto específico de estudo. O que lemos são atitudes ensaia-
das, preocupadas antes em parecer, aparentar ou ostentar atitudes,
como sufocar ímpetos emocionais, porque, “meu querido filho, [...]
és moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da
idade”.22 Cita aí La Rochefoucauld, que ensinaria, “a gravidade é
um mistério do corpo” para se comportar como digno medalhão. Para
preencher melhor o significado de gravidade, afirma que esta emana
do corpo, e não do espírito. Atinge-se tal compostura aos “quarenta
e cinco anos” que “é a data normal do fenômeno”.23 À medida que a
teoria é a da aparência e as características de austeridade são a
da banalização, a ironia se acirra, porque a primeira nos conduz a
uma posição de bufonaria e a segunda, a outra de descrédito.
21 GRIMAL. A civilização romana, p. 234. 22 ASSIS. Papéis avulsos,
p. 44. 23 ASSIS. Papéis avulsos, p. 44.
A segunda ironia, o subtítulo “Diálogo” surge vazio ou quase vazio,
porque, do filho, só vem assentimento, interrogações ou reti-
cências subalternas ou por breve interrupção. O pai assume um ar
professoral, cujas reticências, ao contrário, são eloquentemente
uma hipérbole: “Não trato de vocabulário, porque ele está
subentendido no uso das idéias; há de ser naturalmente simples,
tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, em cores de
clarim...”24
“O onomástico literário é tradicionalmente uma zona privile- giada
de pesquisas hermenêuticas.”25 O simbólico pode se expandir a
partir do nome Janjão, um hipocorístico. Dócil, Janjão ainda vive
na memória do pai, como um pintainho, a data em que nasceu e, ao
completar 21 anos, passa de menino a homem: “um pirralho de nada, a
homem, longos bigodes, alguns namoros.”
Frente ao pai, ele ainda diz: “Papai...” Ou seja, retruca de início
com “papai” e reticências, ou melhor, sente-se ainda na incomple-
tude da juventude, mas o pai, com sua autoridade senhorial, refuta
e convida a uma conversa “como dous amigos sérios”. O pai formula
uma função fática, fecha a porta, quer dizer, ninguém deve inter-
romper ou até ouvir o que vão conversar: “Senta-te e converse-
mos.” Enumera muitas possibilidades na vida e conclui: “Há
infinitas carreiras diante de ti.” Repete: “Vinte um anos, meu
rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino.” Cita
personalidades polí- ticas: William Pitt, inimigo de Napoleão, e
Napoleão Bonaparte que, aos vinte e um anos, “apesar de precoces,
não foram tudo...” Então, deseja que o filho seja grande, “acima da
obscuridade comum”. Concebe, nesse momento, que “a vida, Janjão, é
uma enorme lote- ria; os prêmios são poucos...”.26
Sobre a vida ser uma loteria: “[...] os prêmios são poucos, os
malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se
amassam as esperanças de outra”. Lembremos uma passagem de Memórias
Póstumas de Brás Cubas:
24 ASSIS. Papéis avulsos, p. 47. 25 MAINGUENEAU. Discurso
literário, p. 84. 26 ASSIS. Papéis avulsos, p. 43-44.
20 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos Tópicos da sátira na literatura
brasileira . 21
Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das
cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os
rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que
faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de
embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal
caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia,
que é um vício hediondo.27
Com o que o filho concorda absolutamente: “Sim, senhor.” E no “dia
da [...] maioridade” de Janjão, o pai aconselha o
seguinte ofício, que “nenhum me parece mais útil e cabido que o de
medalhão”. Isso após apontar inúmeras portas de entrada na socie-
dade como “entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na
lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes”. E
este é um iniciado “com apólices, um diploma” que tem um pai que
sonhou na mocidade em “ser um medalhão [...], faltaram-me, porém,
as ins- truções de um pai”. Mas agora, ele depositará tal esperança
no filho. Aqui, de novo enfatiza-se o pai, que herda da civilização
romana o “pater”, cujo valor é social. Em Roma, o pai consanguíneo
é o “geni- tor” ou “parens”. Lembremos que Nero fora acusado de
parricídio, mas ele matara, de fato, foi sua mãe Agripina, que
significava his- toricamente um “pater familias”. Note-se o
genitivo arcaico em –as.
Ideias próprias e para uso alheio. Bem, “o melhor será não as ter
absolutamente...” Ensina,
então, como se portaria um ator que não tivesse um braço. Aos olhos
da plateia, ele, “por um milagre de artifício”, conseguiria
dissimular. Ao esboçar uma reação, porque o pai estaria insinuando
que o filho não tem ideias próprias, novamente reticências
subalternas do filho e o pai continua: “Tu, meu filho, se me não
engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao
uso deste nobre ofício.” Protesta o pai que não é só pela repetição
vã de opiniões assimiladas na esquina ou em casa, mas pela
linguagem gestual e interjeicional como reflexo espontâneo das
antipatias e simpatias “acerca do corte de um colete, das dimensões
de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas”. O que significa
um completo imobilismo, uma conser- vação da tradição histórica –
ou antes, um ceticismo, às avessas.
27 ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, c. 24.
Enfim, coisas da moda masculina, por isso: “Eis aí um sintoma elo-
quente, eis aí a esperança.” Agora, se uma ideia se manifestar, o
jeito é “ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos,
etc.”
O filho se prostra e define a situação intransponível de se ter
ideias: “um tal obstáculo é invencível.” O pai afirma que não é:
“há um meio; é lançar mão de um regimen debilitante”. Aconselha
prá- tica de certos jogos e, em um deles “a vantagem do silêncio,
que é a forma mais acentuada da circunspecção”. O bilhar está entre
“as estatísticas mais escrupulosas”, pois propicia o hábito de
partilhar “as opiniões do mesmo taco”. Até passeios a pé seriam
aconselhá- veis, mas nunca só: “porque a solidão é oficina de
idéias”.
Dentre múltiplas ironias, é interessante notar a não lembrança de
razão para evitar as livrarias. Devem-se evitar
livrarias, ou por causa da atmosfera, ou por qualquer outra razão
que me escapa [...] e, não obstante, há grande conveniência em
entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às
escancaras. [...] vai ali falar do boato do dia, da anedota da
semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de
qualquer cousa, quando não prefiras interrogar diretamente os
leitores das belas crônicas de Mazade [Charles Mazade, crítico e
escritor francês]; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros
repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente
saudável.
Após uma intervenção do filho, reivindicando a possibilidade de
“adornar o estilo“, o pai enumera locuções em forma clichê e as
atribui ao uso de “românticos, clássicos e realistas”. Admoesta que
ele deve se munir de “sentenças latinas, ditos históricos, versos
célebres, brocardos jurídicos, máximas” porque seriam úteis para
após a “sobremesa”, ou momentos “de felicitação ou de agradeci-
mento”. Indica fechos de artigos políticos: “Caveant consules” ou
“Si vis pacem para bellum” e desaconselha contextualizá-las numa
inserção frasal, porque seria torná-las desnaturadas. Promete fazer
uma relação ampla de frases feitas e frases de efeito, pois o uso
delas poupa o ouvinte de esforços inúteis.
Benefícios da publicidade. Aconselho não um apelo à propaganda, mas
uma solicita-
ção através de “pequenos mimos, confeitos, almofadinhas,
cousas
22 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos Tópicos da sátira na literatura
brasileira . 23
miúdas [...]”; Dom Quixote exagerou na solicitação, pois o fez
atra- vés de “ações heróicas ou custosas, é um sestro próprio desse
ilustre lunático.“ O medalhão não criará um tratado científico
sobre algo, por exemplo, “criação de carneiros”. Ele o oferece num
jantar aos amigos, porque o efeito disso é uma notícia que atinge
todos os seus concidadãos. Na sucessão de notícias, o nome do
medalhão ficará “ante os olhos do mundo”. Assim, se tornará um
benemérito, com comissões surgirão para felicitar tão “singulares
merecimentos.”
Uma simples queda de um carro, mesmo que nada ocorra, a não ser
susto, “é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em
si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro
às afeições gerais. Percebeste? [...] Caso ocorra reconhecimento
por um feito seu, reúne os melhores amigos e se for um momento de
glória, deve-se ceder lugar “à mesa aos ‘reporters’ dos
jornais.”
Aconselha ao filho nenhuma imaginação. E quando este per- gunta se
nenhuma filosofia, ele retruca: “no papel e na língua alguma, na
realidade nada.” Aconselha também a não rir, quando o filho per-
gunta: “Ficar sério, muito sério...” O pai responde: “Conforme.
[...] podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer
melancó- lico.” Mais adiante: “Somente não deves empregar a ironia,
esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por
algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido por
Swift e Voltaire [...]”28
Ao fecho ficou reservado a sua conversa uma equivalência a uma
leitura de o Príncipe de Machiavelli, cujo sentido central da obra
sugere a famosa frase “os fins justificam os meios”. A expressão
“maquiavélico” nos dicionários ganha a denotação de astúcia, dupli-
cidade, má-fé, ardiloso, velhaco...
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28 ASSIS. Papéis avulsos, p. 44-52.
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São Paulo: Cultrix, 1968.
A mímesis astuciosa . 25
O panorama da literatura brasileira contemporânea de tema clássico
é amplo.12
Ao contrário do que acontecia até o século 19, acentua-se, no bojo
das enormes transformações que marcam a viragem do século 20, o
abandono de modelos em favor da exploração dos temas e do
imaginário greco-latinos. O encontro do mundo antigo com os valo-
res identitários e a prerrogativa de afirmação de autonomia
cultural torna a literatura brasileira de tema mítico um lugar da
cultura onde se realizam as já bem sucedidas experiências de
simbiose étnica e de sincretismo religioso verificadas ao longo dos
500 anos de história do país.
Vamos aqui assinalar alguns autores e obras que, indepen-
dentemente do status já consolidado pela crítica ou do consenso da
área, nem sempre são incluídos nesse nicho específico das paisagens
míticas revigoradas pela inventividade brasílica mais
recente.
1. A lira tropical Citações mitológicas, imagens decalcadas do
mundo clássico, refe- rências livres às personagens e obras
greco-latinas são frequentes no ambiente lírico. Menos comum é a
absorção de um pensar mítico, ou a adoção dos valores
antropológicos do imaginário arcaico, na urdi- dura do todo
poemático. Quando isso acontece, pode-se identificar
1 Esse título homenageia a José Guilherme Merquior, que continua
inspirando a crítica literária brasileira com seus estudos sagazes
e sempre atuais. 2 Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
A mímesis astuciosa:1
Carlinda Fragale Pate Nuñez2
26 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos A mímesis astuciosa . 27
uma estruturação lírica do discurso poético a partir do mito, ou de
qualquer outro signo da cultura clássica.
Destacaremos apenas dois poetas em que esse procedimento se observa
não de forma acidental ou ocasional, mas estruturante do
discurso.
O primeiro deles é João Cabral de Melo Neto, nosso maior poeta
pós-moderno, que produziu uma obra cerebral, arquitetada e
controlada a partir de uma incomum consciência dos recursos opera-
tórios da linguagem poética. No poema “Fábula de Anfíon”, a escrita
essencial de João Cabral se encontra com o tema circunspecto da
criação eventual de Tebas. São 171 versos divididos em três partes:
O deserto, O acaso e Anfíon em Tebas, correspondendo aos três
tempos narrados pela fábula: antes, durante e depois da criação de
Tebas. A cidade mítica funciona como par analógico da própria poe-
sia. O acaso que determina o nascimento de uma sugere o apareci-
mento fortuito da outra.
A fábula, que trata da poesia, ao traçar a gênese tebana, alcança
dimensão ontológica: dialetiza o acaso e exprime uma con- cepção do
ser suspenso nas ambiguidades do tempo (kairos ou áion, tempo
fugitivo/tempo criador). No dizer de Merquior,3 “Anfíon é o
moralismo da inspiração, a busca da autenticidade da existência
através de uma poética do dever: de uma poética”.
A “Fábula de Anfíon” representa muito bem o pensamento cabralino,
neste seu compromisso ético, que dá combate à ontologia moderna do
imediatismo e da superficialidade; que ignora a razão de “Cultivar
o deserto/ Como um pomar às avessas” e o “caráter frutífero da
ascese no deserto”.4
O segundo poeta que se destaca, no âmbito de uma poesia que
incorpora a tradição clássica, tanto pelo aspecto temático quanto
pela assimilação de uma visão mítico-teísta, é Murilo Mendes.
Conhecido por seu catolicismo a um só tempo cristológico e
3 MERQUIOR. A astúcia da mímese, p. 137. 4 MERQUIOR. A astúcia da
mímese, p. 142.
político,5 por uma estupenda cultura literária e por um trabalho
poético obsessivo, Murilo Mendes produz uma obra policentrada, no
sentido de conter alguns focos catalisadores de seu talento
poético. Na verdade, a poesia deste brasileiro de Minas Gerais se
foi aperfeiçoando a partir de um método muito próprio: mobilizado
pela tendência da geração modernista em que aparece, assume a
questão da identidade cultural (lusófona e brasílica) como eixo
central de sua reflexão, o que progressivamente se vai firmando
através da contínua e cada vez mais profunda e esteticamente
rentável intertexutalização com a tradição literária. Vale dizer
que a poesia muriliana encontrou, na articulação entre a tradição e
o novo, o local e o universal, seu motor propulsor. Interessa-nos
ressaltar “a trajetória órfica do poeta”, expressão cunhada pela
pesquisadora Francis Paulina da Silva6 que permite identificar a
dialética entre antigo/moderno, presente/ausente, visível/invi-
sível, realidade/mito, evidência/mistério gerenciando os versos
murilianos.
Murilo Mendes alcança a construção de uma poética genuina- mente
brasileira através da articulação de quatro aspectos funda- mentais
da própria brasilidade: 1) a identidade mestiça, antropó- faga e
arlequinal;7 2) a criatividade inerente ao hibridismo cultural e ao
caldo cultural que caracterizam o Brasil multirracial, irreverente
e sincrético, gestado na diversidade; 3) a “subterraneidade”8 pela
condição pós-colonial, que retarda o resgate da própria história e
o processo de autonomização social, econômica e política; e 4) a
dimensão prospectiva da cultura brasileira, vaticinadora da
irrupção de uma linguagem poética própria e inovadora.
5 As preocupações sociais do poeta o tornam simpatizante da
Teologia da Libertação, corrente teológica que declarava sua “opção
preferencial pelos pobres”, e constituiu uma força política, no
Brasil dos anos 1970-1990. O maior divulgador da TL, no Brasil, foi
Leonardo Boff, ex-franciscano, teólogo e professor universitário
que, junto a outras figuras públicas e intelectuais, exerceu papel
decisivo na resistência aos regimes de exceção na América Latina e
em outras regiões convulsas do planeta. A excomunhão de Boff
coincidiu com o fenecimento da importância da TL, no contexto
político brasileiro, já plenamente reintegrado à vida democrática,
na virada do século 21. 6 Cabe aqui a menção especial à
pesquisadora, que constitui uma das mais importantes referências
sobre poesia muriliana e não deixou de sê-lo também para nós, neste
artigo. 7 ANDRADE. Paulicéia desvairada. 8 SILVA. Murilo Mendes:
Orfeu transubstanciado, p. 27-42.
28 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos A mímesis astuciosa . 29
A energia que dinamiza esses fatores da poética muriliana é a
sólida formação cultural, religiosa e filosófica do poeta, capaz de
associá-lo não só à mitografia de Orfeu, como também a sua pró-
pria obra ao projeto órfico. Alguns elementos da biografia de
Murilo Mendes autorizam algumas conexões.
Nascido na pacata cidade de Juiz Fora, Minas Gerais, aos 9 anos diz
ter tido uma revelação poética ao assistir à passagem do cometa
Halley (como a Orfeu, algo do mistério e da noite urânica o atrai).
Outra revelação acontece em 1917: fugiu do colégio em Niterói para
ver, no Rio de Janeiro, o bailarino Nijinski (a música ou um certo
conhecimento musal torna o brasileiro, assim como tornara o grego,
musageta). Acometido pela tuberculose em 1934, empreende sua
catábase ao ser internado em sanatório na região de Petrópolis.
Este é o ano em que se converte ao catolicismo. Já casado, cumpre
missão cultural na Europa no início dos anos 1950: o desconhecido o
atrai. Passa a residir na Itália em 1957, onde se torna professor
de Cultura Brasileira na Universidade de Roma. Lecionou também em
Pisa. A despeito do reconhecimento (atra- vés da publicação de seus
livros por toda a Europa e pelos prê- mios que recebe), nele medra
uma falta que o energiza e mobiliza cada vez mais profundamente em
direção ao poético. Longe de suas raízes, no exterior, consolida-se
a produção poética. Morre distante da terra natal, em Lisboa, mas
sua voz continua a ecoar entre pesquisadores e amantes de sua
poesia transcendente.
Algo de peregrino, andarilho, errante, se projeta na experi-
mentação poética, do humor ao surrealismo, enquanto acompanha as
fases de afirmação da poesia modernista brasileira, assim como na
liberdade criadora e lírica com que transita pelo catolicismo, pelo
misticismo, pelo onírico e mesmo pelo insólito, sempre mantendo a
plasticidade e certo empuxo reminiscente de seus versos. Plasmar o
inefável parece ser o télos de sua poesia.
No livro As metamorfoses, o percurso órfico de Murilo é direta-
mente abordado, através do poema “Novíssimo Orfeu”:
Vou onde a poesia me chama
O amor é minha biografia, Texto de argila e fogo.
Aves contemporâneas Largam do meu peito Levando recado aos
homens.
O mundo alegórico se esvai, Fica esta substância de luta De onde se
descortina a eternidade.
A estrela azul familiar Vira as costas, foi-se embora! A poesia
sopra onde quer.
Aqui elementos da fábula grega vão sendo redimensionados, a ponto
de se converterem nas questões de um eu lírico que atende acima de
tudo a sua poesia; que se coloca como um demiurgo, arte- são capaz
de se integrar ao projeto da phýsis (‘natureza’) e com ela cooperar
(“aves largam de meu peito”);9 que tem na poesia o lugar onde o
mundo adquire sentido, beleza, cosmicidade, capacidade de elevação;
que tem de renunciar aos mapas conhecidos (a “estrela familiar”)
para ouvir o chamado da poesia, que “sopra onde quer”. O poema
restitui à consabida visibilidade órfica o que a plenifica: o
conhecimento acústico, o saber do ouvido e as leis da sonoridade.
Orfeu é mais pleno guiado por sons e norteado por uma poética rein-
vestida de musicalidade.10
Dispersos por toda a obra, as alusões e referências a Orfeu ora
remetem à eterna busca por Eurídice (“Espero-te desde o começo,/
[...] Céu e terra se tocaram,/ Com grande aplauso do fogo,/ Ondas
bravas se abraçavam/ No início do nosso idílio”), ora à penalidade
pela transgressão de querer ver o invisível,
9 No Timeu, a diferença entre a criação do demiurgo e a do pintor é
que a do primeiro é méthexis (‘participação’), ao passo que a do
segundo é mímesis (‘cópia’, ‘simulacro’, ‘falsificação’). 10
Francis Paulina da Silva propõe uma leitura diferente do poema, que
consideramos igualmente perfeita, já que valoriza o efeito
surrealista das imagens (SILVA. Murilo Mendes: Orfeu
transubstanciado, p. 53).
30 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos A mímesis astuciosa . 31
[...]
Há entre mim e ti zonas de sombra Contornada por anjos
divinatórios. Há entre mim e ti o mínimo necessário Para assegurar
tua invisibilidade.11
ora à descoberta da grandiosidade noturna, a riqueza da
subterraneidade.
Dos núcleos temáticos mais recorrentes na obra muriliana, grande
parte coincide com passagens da mítica de Orfeu, o que favorece as
constantes evocações da lenda órfica, mesmo onde a presença do mito
não é evidente: quando o poeta louva a imagem da amada (que se
esvai em sombra, sempre força invisível, distante e fonte de
poesia), ou explora a ideia de obscuridade que favorece tanto a
cumplicidade dos amantes quanto o momento fecundo da criação
poética; quando apresenta, em tom apocalíptico e surreal, suas
metamorfoses, seus murilogramas e grafitos,12 três fórmulas
poéticas que congraçam a busca do transcendente pelo poeta e suas
duas paixões mundanas, a amada e a poesia.
O tema das metamorfoses é uma constante em toda a obra de Murilo
Mendes. Nela repercutem não só as sugestivas metamorfoses de
Eurídice em sombra e do amor de Orfeu em poesia musical, mas a
capacidade que o poeta possui de se metamorfosear na arte e no
espí- rito de outrem, assim como de captar nos criadores aos quais
admira a enteléquia de seu processo artístico e de sua obra.
Metamorfosear-se, durante o processo criativo, constitui um talento
do poeta mineiro.
11 MENDES. Mundo enigma, p. 24-25. 12 O murilograma é uma forma
poética original, pessoal, espécie de telegrama com que Murilo
homenageia artistas vivos ou mortos que ele admira. Em conjunto,
encontram-se reunidos no livro Convergência, de 1970. Os “grafitos”
constituem uma espécie de libelo contra o autoritarismo da palavra
escrita, um código enxuto, mais eficiente, de comunicação. Neles,
Murilo assume uma dicção telegráfica, reduzindo ao máximo a
extensão do poema.
Nas metamorfoses, tradição e modernidade se fundem: a poé- tica
ovidiana é revigorada e alterada por sujeitos pós-antigos cuja
personalidade, valores e tendências são incorporados à voz poética
muriliana. É a tradição viva, como o poeta a concebe e
materializa.13 A tendência ontológica de seus versos atrai e
consolida os encontros metafísicos, as experiências poetológicas
com outros poetas, músi- cos e pintores.
De forma mais vertiginosa, os murilogramas trazem a expe- riência
inusitada a que se propõe esse eu lírico: transubstanciar-se
naqueles artistas ou na arte alheia em que são assimilados, sem
prejuízo da estilística do próprio Murilo. No “Murilograma a
Claudio Monteverdi”,14 um dos primeiros orquestradores a empregar
os ins- trumentos como promotores de expressão dramática e cuja
maior criação foi a ópera Orfeo, a música de Monteverdi é
pictoricamente configurada através de imagens que reproduzem as
cores e a movi- mentação cênica das bacantes:
Fanfarras azuis travestidas em fanfarras vermelhas Empunhando
estandartes verdes travestidos em estandartes brancos Aceleram os
músculos de jovens mulheres vermelhas Travestidas em jovens
mulheres azuis inclinadas à ocisão do homem.
O que os murilogramas realizam, a partir da mímesis acústica, os
grafitos alcançam através do olhar, com apoio no poder imagético de
signos verbais. O olhar de Orfeu aqui prevalece, afeito aos
mistérios do homem, adestrado nos subterrâneos da memória,
familiarizado às formas plásticas, mas buscando a luz e a voz
libertárias. Os ver- sos são fragmentários, recortes precisos de
conjuntos maiores que não se enfraquecem, ao contrário, ganham
sentido pelas sínteses que os constituem.15
13 Francis da Silva (Murilo Mendes: Orfeu transubstanciado, p. 99)
define As metamorfoses como “o trabalho muriliano de retomar o
canto alheio, descobrir-lhe a secreta música e acrescentar nova
corda, de interpretá-lo, agora sob a cadência e o colorido
próprios”. 14 MENDES. Convergência. 15 O “Grafito na escultura de
Santa Teresa de Bernini” joga com a exuberância barroca e a ideia
bíblica de vanidade, fugacidade de toda experiência, mesmo a
extrema: “Mármore vão petrificada espuma” (MENDES. Poesia completa
e prosa, p. 653).
32 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos A mímesis astuciosa . 33
O perfeccionismo do esteta aliado ao talento para a música e para a
pintura torna muitos dos poemas verdadeiras experiências órficas. A
tradução poética de procedimentos musicais e o olhar retroverso,
memorialista e reconstrutor de uma imagística visual- mente
identificável são duas marcas da inconfundível poética muri- liana.
Nelas, por um lado, transparece a incorporação poética de elementos
biográficos e procedimentos artísticos a partir dos quais o poeta
reverencia seus avatares; por outro, é o próprio espírito
dionisíaco que rege o duplo movimento de êxtase e entusiasmo, no
poeta que não fala sobre, mas em cada obra ou autor revividos em
seus versos. Sob a ótica do dionisismo órfico,16 a visão de Murilo
Mendes por ele mesmo reforça a dimensão mítica de seu fazer
poético:
Atraem-me a variedade das coisas, a migração das ideias, o giro das
imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fato, a diversidade
dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da
história.17
O terceiro poeta a ser aqui mencionado é Marcus Accioly. Ainda que
também nordestino e, por coincidência, sucessor justamente de João
Cabral na Academia Pernambucana de Letras, Accioly é o mais
completo representante de uma poética identificada com o temário
grego. Os livros de poesia são, em sua maioria, de inspiração mito-
lógica e se tornam exatos, na interação sensível com o leitor,
graças a certa genuinidade de tom e de expressão, adquirida da
legendária capacidade de efabulação nordestina.
A exuberância do hidrismo alcançado no mergulho lírico pelos versos
de Narciso se faz complementar com a força ígnia do imagi- nário
infernal, em Íxion. A experiência poética daí resultante são os
poemas eróticos que se lêem em Érato:
por detrás o prazer é diferente do gozo pela frente” (diz) e a boca
suplica (“mais”) aí toda a carne é pouca
16 KERÉNYI. Dioniso: Imagem arquetípica da vida indestrutível, p.
225-234. 17 MENDES. Poesia completa e prosa, p. 46.
para todo o desejo (pela frente o amor no Próprio amor se satisfaz)
mas é diverso o coito por detrás da fêmea (é como os animais
copulam) existe um cio por detrás (um jeito de pegar os cabelos
quando ondulam suas crinas) que o gozo insatisfeito precisa de mais
gozo para ser em sua plenitude ou gozar mais (se uma só vez o amor
acontecer é preciso que seja por detrás)
O interesse apaixonado do poeta pela poesia popular, pela lite-
ratura oral e de cordel e pelas formas poéticas da tradição ibérica
que se preservaram beneficiaram-lhe a helenofilia. Não faltam à
poética de Accioly o secular onirismo das noites sertanejas, nem as
utopias dos homens fortes. Foram esses os atributos que lhe
facultaram a retomada do estro épico, que se verá a seguir.
2. A épica rejuvenescida O discurso épico na contemporaneidade
apresenta uma nova con- cepção estrutural e temática. Conforme
ensina a melhor descrição teórica da questão, enquanto nos modelos
épicos clássico e renas- centista as epopeias centram-se na
história e descrevem um per- curso do
plano histórico para o maravilhoso, no modelo épico moderno o
relato está centrado na dimensão mítica da matéria épica, levando a
epopéia moderna a uma estruturação do plano maravilhoso para o
histórico.18
O herói, que, na épica moderna, surge miticamente, tramita pelos
fatos narrados, a fim de conquistar a condição humana. O centra-
mento na matéria mítica influi também na dimensão temporal, que é
dominada por um presente contínuo a partir do qual o passado é
reaberto para fins de revisão histórica. Desta forma, o narrador,
ao contrário da atitude distanciada que se encontra nas epopeias
clás- sicas, participa do mundo narrado e dá vazão a uma pulsão
lírica
18 SILVA. Errância ou A dialética do poético possível, p. 16.
34 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos A mímesis astuciosa . 35
apenas admitida, nos modelos anteriores, como forma poemática.19 O
trabalho do narrador traz consigo a revisão dos paradigmas e a
consciência crítica do fazer poético que caracteriza a produção
lite- rária a partir de fins do século 19, razão pela qual a
linguagem épica também se desautomatiza. A elaboração da matéria
épica – história interpretada e mito agora criado, não mais herdado
de uma memória secular – se compagina com a enunciação lírica,
estruturada livre- mente e desobrigada da observância de regulações
externas. Na sua autorreferencialização, a épica moderna e
pós-moderna privilegia a instância lírica de enunciação (daí
decorrem a troca da voz enuncia- tiva, da terceira para a primeira
pessoa, o encadeamento atemporal dos fatos e a plena liberdade
métrica e estrófica).
Este modelo pode ser ilustrado por um número representativo de
poemas épicos produzidos no Brasil contemporâneo. Passemos a
comentá-los, ainda que brevemente.
Em Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, é notória a transfor- mação
do modelo: não se trata de um fato histórico que sofre ade- rência
mítica, mas o mito da miscigenação pacífica da etnia brasílica que
encontra fundamentação histórica. Do casamento do navegante
português (branco) com a Uiara (a terra brasileira), que exige para
sua felicidade a presença da noite (o negro), surge a mestiçagem,
mas também se eufemiza o mais desumano capítulo da história do
Brasil, qual seja, o do tráfico de escravos africanos.
A despeito do lirismo extasiante de muitas das unidades poe-
máticas de que se constitui o poema e da dimensão alegórica que
atravessa a proposição mítica (na primeira parte), a interpretação
de fatos históricos20 (na segunda) e a explicação ideológica –
inconvin- cente – de conquista da autonomia político-econômica (na
última), Cassiano Ricardo não é benquisto por boa parte da crítica
e por seus pares, exatamente pelo excessivo revisionismo em seu
texto e por dubiedade ideológica. O conjunto de poemas é
ilustrativo, entretanto,
19 Neste sentido, a épica moderna e pós-moderna devolvem ao gênero
a estatutária epiliricidade (ou seja, a dupla arkhé, ‘épica’ e
‘lírica’) do gênero. 20 Merece destaque a apresentação dos
bandeirantes (que se internaram pelo território bravio e
descobriram riquezas colossais) como gigantes de botas de sete
léguas.
desta nova elaboração do discurso épico que se pauta pelo eu
lírico. Raul Bopp é o autor de Cobra Norato, poema em primeira
pes-
soa em que o narrador, Norato, ao empreender sua viagem em busca da
filha da rainha Luzia, assume magicamente a pele de uma cobra e,
assim, se qualifica para adentrar/desvendar a realidade amazô-
nica. Ao longo de suas aventuras de sedução da Cobra-fetiche até a
da noiva e a fuga de ambos do ambiente mágico, reconhecem- se tanto
as lendas amazônicas quanto a do Minotauro, em Creta, que também
cobrava o pagamento de uma moça virgem a cada lua cheia. Dessa
maneira, revela-se o caráter antropofágico do poema, bem como a
prevalência do substrato folclórico e simbólico local, no
preenchimento dos episódios narrados: Norato vence provas, se
embrenha pela floresta, ouve o Tatu, escapa aos amores de Joaninha
Vintém, participa de uma cerimônia pajelança (em que uma onça entra
na pele de um pajé), consegue livrar-se astutamente da per-
seguição da Cobra Grande e volta para o Sem-Fim, onde se realizam
as suas núpcias.
A estruturação lírica do relato impede a leitura mítica da
Amazônia. Ao contrário, é o herói mítico que constrói a Amazônia
verossímil e, por conseguinte, real, através de seus olhos
(sensuais) de cobra e de sua emoção engajada, plena de
brasilidade.
Outra modalização épica do discurso totalmente original se encontra
em Invenção de Orfeu de Jorge de Lima. Este longo e com- plexo
poema procura interpretar simbolicamente a ligação entre o homem e
o universo, o que o eu lírico faz, valendo-se de fragmen- tos da
Divina comédia, da Eneida e de Os lusíadas, ou ainda de O paraíso
perdido e da própria Bíblia. Ainda que adotando o processo da
colagem para ligar trechos dessas obras, Jorge de Lima consegue
conferir unidade ao poema. A obra aparece com o subtítulo
“Biografia épica, biografia total e não uma simples descrição de
viagem ou de aventura. Biografia com sondagens; relativo, absoluto
e uno. Mesmo o maior canto é chamado biografia”.21
O encetamento épico do discurso se preserva numa proposição
21 LIMA. Invenção de Orfeu.
36 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos A mímesis astuciosa . 37
de realidade que é previamente dada (de referência ocidental e
cristã), cuja representação se dá através do gênero “invenção”. No
sistema de imagens a que o poema dá vazão, o próprio Brasil, na sua
conformação geográfica, descreve a lira que, pelas mãos de cantar
órfico de Lima, se transmuta em ilha, barco, montanha, à mercê de
uma inventividade esplêndida, inalcançável por qualquer outro poeta
seu conterrâneo, à estatura de Camões, Góngora, Lautréamont,
Rimbaud, Mallarmé e do místico Blake.
Segundo Gilberto Mendonça Teles, Invenção é “o mais surpre- endente
e o mais difícil e talvez o mais belo livro da poesia brasileira, o
livro que atualiza a nossa lírica no plano universal dos grandes
poetas europeus”. E vai adiante:
Todos os planos da nossa realidade cultural – européia e
sul-americana – aparecem em Invenção de Orfeu numa simbiose
altamente criadora, em que os mitos se entrelaçam com as impressões
de leitura, com os traços da cultura luso-brasileira, com a
metafísica, com a Poética, enfim, um texto em que mito, símbolos e
signos, num jogo entre o real e o irreal, remetem para uma
realidade maior, que é a do próprio texto, com o seu sistema
semântico, com a sua poesia.22
Na esteira desta produção surgem dois poemas que se pode- riam
dizer correspondentes pela longa dimensão, pela problemática de
esvaziamento da imagem de mundo com que lidam (e conse- quente
desaparecimento do narrador e de um herói), pela indigna- ção que
os motiva. São eles o “Poema sujo” de Ferreira Gullar e “A grande
fala do índio guarani” de Affonso Romano de Sant’Anna.
Gullar escreveu seu “Poema sujo” durante os anos de ditadura
militar no Brasil. A poética da sujidade a que se refere o poeta
não significa apelo à sordidez circunstancial ou a uma visão mais
catas- trófica da sujeira, na chave do escabroso. Como poeta
pós-moderno e marginal, tratava-se do enfrentamento da desolação,
da realidade em escombros da sua situação de exilado em Buenos
Aires. O Poema fala de São Luís do Maranhão, cidade natal do poeta,
onde viveu até
22 TELES. Camões e a literatura brasileira, p. 148-149. O crítico
endossa o comentário de João Gaspar Simões, que considera a
Invenção de Lima o primeiro poema da brasilidade, no prefácio à
obra.
os 21 anos. Mas o tom memorialístico se alarga ao ponto de possi-
bilitar que o poeta, cantando o corpo da cidade, cristalize o
sentir do próprio corpo (e da alma), suas ideias políticas e
filosóficas, suas perplexidades e seu inconformismo.
“A grande fala”, também escrito no exterior, mas enquanto o poeta e
professor universitário lecionava na Universidade de Colônia
(Alemanha), lança igualmente seu grito de incompreensão perante a
grande incógnita que pairava sobre o futuro político do Brasil. O
poeta constrói o seu “grande discurso” sobre a metáfora
antropológica do “grande falar” dos pajés guaranis, que saíam
durante as madruga- das para a floresta num ritual de contato com
os antepassados.
Neste sentido, os dois poemas constituem modalizações afins da
épica que lidam, como observa Anazildo Vasconcelos, com o relato do
vazio (o poema sujo) ou o vazio do relato (a grande fala).23
Desta mesma época é o Sísifo, de Marcus Accioly. O mito de Sísifo
não é recontado no poema, mas empresta-lhe a dinâmica
estruturadora: o eu lírico rola o seu cantar, que homologamente
rola como a pedra mítica. O poema empreende uma síntese da história
literária brasileira e, ao mesmo tempo, da evolução do modelo
épico, o que se evidencia na passagem do Sísifo-pagão ao
Sísifo-cristão.
Em 2001, Marcus Accioly retoma a fórmula em Latinomérica, trabalho
hercúleo que alcança 535 páginas de poesia. Trata-se de uma
enciclopédia poética que repassa o acervo cultural e histórico,
antropológico e religioso, político e mental das Américas, a partir
de uma visão anti-estadunidense. As vicissitudes coloniais e
pós-colo- niais abastecem a indignação de um narrador erudito, que
intertex- tualiza sua proposta crítico-político-poética com o Canto
general de Neruda e Omeros de Derek Walcott. Suas personagens vão
da huma- nidade miserável aos heróis vencidos (Zumbi, Guevara,
Tiradentes), sem evitar referências a figuras da vida pública mais
atual (Pinochet e Reagan, por exemplo).
No caudal de poemas que integram Latinomérica – uma enge- nhosa
aglutinação que associa as Américas à tradição homérica
23 SILVA. A teoria épica do discurso, p. 69.
38 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos A mímesis astuciosa . 39
– ressoa o protesto por um passado que persiste em seus erros e a
demanda por uma atitude que insira efetivamente o Brasil no
terceiro milênio. A postura combativa e um tanto quixotesca do eu
poético se externaliza na divisão do poema em rounds. E, de fato, o
poema se torna uma trincheira, onde o poeta encontra meios (sim-
bólicos) de assumir o seu combate, como se lê no poema que per-
tence ao Round 22:
Fórceps
madre América minha (minha madre) às vezes no teu seio (quando
sofro por coragem não ter de ser covarde) ânsias sinto de estar ou
ser de novo no teu útero (sim) na intimidade capaz de me fechar
(como em um ovo dentro de ti) por isso é natural que me coloque em
posição fetal
(sim) encolho meu peito até os joelhos puxados com os dois braços
(sem falar vou boiando das chamas dos teus pêlos ao teu ventre
redondo feito o mar) nado em tua placenta onde os vermelhos lençóis
do sangue tentam me dobrar em suas dobras (madre) e sou o filho que
religa o cordão ao próprio umbigo
(em ti posso esconder-me de mim mesmo) sou o menino que era no teu
colo (mas perdeu a saúde e está enfermo de tanto suplicar o teu
consolo) eu quero ser (mesmo empurrado a ferro como um
bolo-de-carne ou feito um rolo- de-sangue) igual a um feto que se
esforce a entrar em ti sob invertido fórceps
A carta de abertura (“aos cegos do poder”) se faz complemen- tar
por um “Bilhete aos surdos-mudos do poder”, transcrita em letras
brancas sobre página negra. Tais excessos desgostaram a
crítica,
que se dividiu perante o empreendimento incomum de Accioly, lou-
vando o talento inegável, mas também condenando as aliterações, os
trocadilhos e neologismos insipientes, que estão muito aquém do
ideário do vate nordestino.
Para finalizar esta sessão, incluo brevíssimo comentário sobre o
mais pós-moderno dos experimentos épicos da literatura brasileira
contemporânea. Trata-se do poema Errância de Pedro Lyra, que se
inspira no encontro da múmia de Otze, com 5.320 anos, em 1992,
perto da fronteira austríaco-italiana. Esse evento mobiliza o poeta
a conceber uma grande aventura poética, a partir da aventura do
herói/narrador Otze, que atravessa o poema, saído das neves em que
esteve milênios soterrado para se re-humanizar. O experimentalismo
é total, com uma variedade formal que vai do soneto a poemas neo-
concretos. O herói transita do plano mítico para a conquista da
reali- dade histórica, num cenário cuja realidade é homóloga ao
deserto de Anfíon, ao Sem-Fim cantado por Bopp, à selva do
aborígine guarani ou mesmo aos mares mágicos da Invenção de Orfeu.
A paisagem espoliada, branco sobre branco, que sobressai mais ainda
nos poemas que minimalizam o uso da palavra, não ajuda a dispor
nitidamente as coisas, mas torna evidente a posição que lhes é
possível dar.
O percurso é caótico, mas não bloqueia o onirismo que nutre a
existência transplantada do herói, nesse novo e desconhecido mundo
para o qual renasce.
Latinomérica e Errância, tão diferentes entre si – o primeiro,
programático e grandiloquente; o segundo, sensualista, em sua
ousadia, e persistente, na prerrogativa socialista/humanista –
repre- sentam as duas reedições mais recentes do heroísmo épico, na
poe- sia brasileira.
3. Máscaras neotrágicas... Não são poucas as obras que, no teatro,
na teledramaturgia e no cinema do Brasil contemporâneo, inspiram-se
no temário greco- latino. Vamos renunciar aqui às mais conhecidas
realizações dramá- ticas, campeãs de estudos críticos e
reconhecimento pela presença nos currículos especializados.
40 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos A mímesis astuciosa . 41
As obras-primas do gênero não podem deixar de ser mencio- nadas. Aí
se inscreve Pedreira das almas, de Jorge Andrade, recons- truindo o
drama de Antígona, nos idos do século 19, espaço ficcional
privilegiado para o dramaturgo analisar tanto o modelo colonial
bra- sileiro quanto a própria época em que o texto foi produzido,
saturada do ufanismo/desenvolvimentismo em que se gestou o governo
bra- sileiro entre os anos 1950 e 1955. Ao mesmo tempo, a peça
coloca em foco o poder da Coroa portuguesa, esmagando os movimentos
de sublevação que espocavam, principalmente, na primeira metade do
século 19 em todo o país, em consonância com o poder da perso-
nagem ficcional, a matriarca Urbana, que impede a busca de novos
meios de sobrevivência econômica por seus conterrâneos, os habi-
tantes de uma cidadezinha mineira denominada Pedreira das Almas (de
onde a peça retira seu título). Urbana não admite mudanças, tanto
quanto não as quer a Coroa. Ambas, por motivos diferentes,
apegam-se ao já exaurido modelo da economia aurífera, sem se
aperceberem de que o Brasil descobria, àquela altura, a
cafeicultura. Esta mãe traz no nome a antítese de suas atitudes,
pois a última coisa que Urbana quer é renunciar às tradições, mesmo
que ao preço da perpetuação do provincianismo.
A filha de Urbana sabe, tanto quanto Antígona o sabia, que destino
a aguardava. A morte do irmão, Martiniano, acaba frustrando todo um
programa de felicidade que a levaria para longe da cidade e traria
sua realização como mulher. A Antígona brasileira, Mariana, aparece
camuflada pelo mesmo antropônimo com que se anuncia a perfeita
aclimatação da cultura religiosa judaico-cristã aos trópicos, porém
insuficientemente capaz de atuar como fonte de promoção individual
ou social. Ao contrário disso, o forte sentimento religioso dos
moradores de Pedreira das Almas é instrumento para a manu- tenção
da situação vigente, o imobilismo e a perpetuação da socie- dade em
níveis primitivos de adoração a túmulos, culto a territórios.
A peça aborda um poder tirânico que, para sobreviver, desba- rata
as forças construtivas da nação, faz-se acompanhar da denún- cia a
respeito de um confuso projeto de emancipação
político-social,
inspirado na retórica do absurdo e sustentado por uma militarização
ostensiva e indesejável.
Pedro de Senna, vencedor da Seleção Brasil em Cena 2006, promovida
pelo Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB, com A tra- gédia de
Ismene, concebe um desdobramento original para a saga tebana, ao
ineditamente promover Ismene à condição de protago- nista. Com
habilidade e fina percepção, a imagem de mulher fraca,
inconsistente e fútil, ofuscada na peça de Sófocles para que
Antígona brilhasse absoluta, é revista na versão brasileira. Ismene
ressurge tão labdácida quanto a irmã, com a intrepidez e a
virulência de uma autêntica heroína trágica, ao assumir
corajosamente sua fragilidade, sua covardia e suas indecisões. A
situação paradoxal – coragem de ser covarde, num mundo de fortes,
de bravos, de heróis – funda- menta a tragicidade da
protagonista.
O dramaturgo recicla, através do enfoque contemporâneo, o antigo
heroísmo trágico. Ousa justificar a covardia que desqualificou a
derradeira herdeira de Édipo aos olhos dos atenienses e da poste-
ridade dramática. Analisa o medo consciente da princesa de dar con-
tinuidade à genealogia criminosa, sexualmente degenerada, indô-
mita dos labdácidas. Consegue dimensionar as fragilidades ligadas a
lembranças infantis da princesa, nas quais o tio não figura como o
alucinado em que se tornou. Ismene se apropria de seu destino e
decide, racional e resolutamente, a forma de conferir a uma deci-
são do Estado a solução pessoal e solitariamente encontrada para o
dilema em que se encontra: aceita o casamento que resolveria
diplomaticamente a nova ameaça de ataque a Tebas. Mas o faz a seu
modo, respeitando o ritmo de seus afetos, sabotando as pressões
políticas e levando os concidadãos tebanos a decidir por si mesmos
se permanecem na cidade mítica ou a abandonam.
A nova Ismene empreende seu ato glorioso ao assumir ques- tões
primordiais para si e para as plateias contemporâneas: direito às
decisões concernentes ao corpo, em geral, e à maternidade dese-
jada, em particular; garantia de conviver com as próprias imperfei-
ções e dúvidas; em vez de morrer, “viver por Tebas” – cidade aqui
tomada como símbolo do que dá sentido à existência de cada
um.
42 . BRASIL - RIO: v. 1 - estudos A mímesis astuciosa . 43
A tragédia de Ismene, além de resgatar aspectos palpitantes, mas
silenciados nas versões conhecidas do tema, traz consigo várias
outras cenas: a organização do espetáculo grego, a dimensão plu-
rívoca dos mitos, a concepção de um texto poético nada ingênuo, que
dialoga dinamicamente com a tragédia grega e com sofisticadas
soluções da poesia contemporânea. Mais que isso: a peça nos impele
a que refaçamos a estrada para Tebas, ao encontro dos enigmas
contidos no caminho.
Outra realização notável é Orfeu da Conceição de Vinícius de
Moraes. A tragédia, cuja primeira montagem se realizou em 1956,
situa Orfeu numa favela