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Literatura Brasileira de Expressão Alemã www.martiusstaden.org.br
PROJETO DE PESQUISA COLETIVA Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa
GERTRUD GROSS-HERING 1879-1968
(Celeste Ribeiro de Sousa)
2016
De boa cepa*
von Gertrud Groß-Hering
Sempre foi assim com o avô Zurich: quando se zangava ou irritava, a ponta do
nariz ficava branca.....
Sempre foi assim com o avô Zurich: quando se zangava ou
irritava, a ponta do nariz ficava branca.
Não era muito frequente que o avô chegasse a esse estado,
mas quando acontecia, o filho mais velho do avô – Hermann – logo
se evadia da zona de perigo, tal como netos e netas.
Hoje, a palidez do nariz estreito e protuberante era
particularmente visível no rosto acobreado do velho.
O queixo com a barba por fazer tremia de leve e os lábios
apertados tremulavam. Na mão direita, o avô trazia uma carta toda
amassada, que ele há pouco havia encontrado sobre a mesa manca
no quartinho do neto. Do neto, que nessa noite havia deixado o teto
protetor da casa dos avós, deixado em segredo!
* Trad. Celeste Ribeiro de Sousa. Groß-Hering, Gertrud. Ein guter Kern. (De boa cepa). In: Kalender für die Deutschen in Brasilien (Rotermund Kalender), São Leopoldo, Rotermund, 1938, p. 97-108.
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Da boca crispada do velho saía uma espécie de rosnado
semiapagado. O Jacozinho, a única memória da filha falecida ainda
jovem – a Margret! – Nesse dia, retornando do enterro, ele e sua
mulher haviam levado para casa o pequenino de dois anos. “Por
pouco tempo”, havia dito Karl Schmidt, o pai da criança. E já se
haviam passado 18 anos. – Karl logo se casara de novo e a benção
da paternidade com que havia sido agraciado no novo casamento não
permitira a este pai sentir falta do filho mais velho.
Para alegria dos avós, o pequeno cresceu e ficou um rapaz forte
e louro. – Nos primeiros anos, talvez tivesse sido bafejado com
muitos mimos, pois Jacozinho se mostrava com frequência bem
teimoso e insubordinado, mas sua bondade nata, na maioria das
vezes, consertava tudo e apagava as más-criações.
As noras do velho casal remoíam-se e exasperavam-se com a
“distorção”, que contaminava o amor dos avós pelas suas crianças.
Mas a avó Zurich tinha um imenso coração que abarcava todos
os seus netos. E, como a avó nunca ligara para isso, nem para o fato
de, na juventude, ter sido submetida a trabalhos pesados, nem de,
em tempos difíceis, com coragem, ter permanecido companheira fiel
ao lado de seu homem, um dia teve um piripaque e, com 67 anos, a
avó Zurich morreu de hipertrofia cardíaca. Lá se vão 5 anos.
A boa mulher havia falecido demasiado cedo. Cedo de mais
para a administração dos trabalhos, cedo de mais para o esposo,
cedo de mais para o neto, naquela época adolescente, sobre cuja
existência rebelde havia exercido influência apaziguadora com seu
jeito tranquilo.
O avô Zurich andava desnorteado para lá e para cá, pela casa e
pelo jardim, ainda apertando na mão direita a carta amassada. - Um
silêncio imenso alargava-se em torno dele. Filho, nora e netos, que,
depois da morte da avó Zurich tinham assumido todas as tarefas,
haviam ido hoje de manhã à igreja, sem imaginar que Jacó, que
acreditavam dormir ainda, tinha fugido na calada da noite.
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Fugido! Por quê? O avô Zurich alisava pela terceira vez a carta,
puxava os óculos da testa para o nariz, sentava-se no banco de
ordenha do curral e lia pela terceira vez a meia voz as poucas linhas
fugidias:
Querido avô, eu estou indo embora. Sei que não é direito
o que estou fazendo. Mas o trabalho sujo da roça não é para
mim. Estou indo para a cidade, talvez vire marinheiro.
Não pense mal de mim e mande cumprimentos à Lena.
Seu Jacó.
Nada mais – nenhuma palavra de agradecimento, nada!
O avô Zurich amassou a carta pela quarta vez e atirou-a com
furiosa raiva no monturo de lixo à frente da porta. Mas depressa se
dobrou e apanhou-a de novo, limpou algumas manchas de sujeira
com o lenço vermelho e enfiou-a no bolso das calças, resmungando.
E, enquanto buscava com o “balaio” a ração picada no galpão
ao lado, para a distribuir pelas manjedouras, seus pensamentos
permaneciam presos àquele que deveria ser a alegria de sua velhice,
ainda que, por vezes, fosse uma alegria “doída”.
Era a indiferença do Jacozinho diante de todos os antepassados,
seu sorriso a jogar tudo para o alto, seu desapego às tradições
familiares, que deixavam o avô furibundo. Assustava-o que Jacó
tivesse sido permeável a influências estranhas, tivesse desprezado o
redentor trabalho na terra e procurado sua felicidade em outro lugar.
Quando o avô Zurich, com palavras vacilantes, desajeitadas,
quis ampliar o mundo das ideias de Jacozinho, contando-lhe casos
vividos e coisas lidas, quando ele tentou, do melhor jeito que ele
mesmo conhecia, despertar no neto o interesse pelos antepassados
na Alemanha, Jacozinho nem se dava ao trabalho de dissimular que
tudo aquilo lhe era medonhamente enfadonho. Preferia muito mais
passar o tempo livre com os camaradas na floresta ou à beira d´
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água, caçando, pescando, aprendendo a fumar cigarros e a bater
papo em português.
“Vocês e sua língua”1, costumava ele dizer com desprezo,
embora ele mesmo com sua pronúncia não pudesse negar seus
antepassados de Baden.
“E o eterno capinar neste calorão abrasador,“ irritava-se ele.
“Sinto-me um fracassado. É mais esperto alugar casa na cidade, ir
para lá é mais cômodo”.
Tudo isto passava pela cabeça do avô Zurich, quando ele voltou
a sair à luz do dia. Colocou a mão sobre os olhos, que piscavam, e
deu uma olhada para a cancela do jardim. Acabara de ser aberta, ele
conhecia o chiado. Uma figura clara insinuou-se entre os arbustos e
um sobressalto percorreu o velho: era a Lena do terreno vizinho, que
ele acalantava ter um dia como neta.
Com passos rápidos, a moça loura e determinada dirigiu-se a
ele. Seus olhos claros esquadrinharam as adjacências e pregaram-se,
interpeladores, no avô Zurich.
“Oi, vô Zurich,” disse ela um pouco embaraçada; e, enquanto o
rosto não parava de corar, acrescentou baixinho: “Queria mesmo
perguntar, se o Jacozinho está em casa?”
O velho puxou o cachimbo do bolso das calças, encheu-o e
acendeu-o com dificuldade.
“Por que pergunta?” respondeu-lhe com outra pergunta,
tragando profundamente.
A moça, embaraçada, retorceu as fitas do avental. “O Jacó
pareceu-me engraçado ontem à noite, é. Ele acha que nada mais o
prende aqui, foi o que ele disse.”
“Hum – hum.” Apesar do clima turvado, um leve sorriso
desenhou-se na boca do avô. “Tu és mas é uma boa sirigaita“.
1 Todas as falas em dialeto alemão receberam traduções em norma standard.
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A moça olhou para o rosto do velho sem entender, até que o
sentido da observação de repente se fez claro. Corou até a raiz dos
cabelos e retrucou com desassombro:
“Nós somos vizinhos, avô, e me importo, se o Jacozinho está
passando por maus momentos.”
As feições do velho voltaram a assumir seriedade austera.
“Maus momentos ele nunca teve na minha casa, o Jacó. Mas um
temperamento rebelde é o que ele tem e, por isso, ele fugiu.“
“Ele - - - ?“ Leninha levou a mão fechada à boca como que a
sufocar um grito.
O avô assentiu com um movimento de cabeça. “É verdade, é
verdade, aquele malandro.”
“Então - -,” a garota sentiu um nó na garganta, virou-se,
tímida, e com rapidez levantou a ponta do avental, levando-a aos
olhos. “Já que é assim – que Deus te acompanhe – av- ”, ela não
continuou. Ficou entravada e, apesar dos apelos tranquilizadores do
avô, logo desapareceu pela cancela do jardim.
O velho puxou o lenço de assoar vermelho, fungou nele e, de
repente, pisou-o furiosamente com os pés, de tal maneira que a bota
de couro perdeu a estabilidade. “Safado, miserável”, rosnou
enfurecido.
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O dito cujo, a quem a exclamação pouco digna se referia,
encontrava-se sentado sobre uma caixa no alto de um carro de bois
com sua trouxa sobre os joelhos, deixando-se conduzir pela parelha
dos bem nutridos bovinos através do barro resistente.
Há horas viajava e a viagem no carro de bois era para ele um
presente dos céus, já que o condutor negro o deixara sentar-se no
alto da caixa em troca de uns quebrados. E, embora o assento
sacolejasse e o carro andasse aos solavancos e ressaltos, Jacozinho
pensava: melhor viajar mal de carro do que andar muito. Além do
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mais era possível ir agradavelmente batendo papo com o negro, que
não era bobo, e, assim, o tempo passava rápido. Jacozinho ficou
sabendo de quem era a caixa e para onde estava sendo transportada.
O Senhor Waldomiro, seu dono, queria viajar, viajar para o Rio,
contou o negro. O vapor do Lloyd brasileiro, entretanto, só zarpava
de Rio Grande dentro de 3-4 dias, mas com os caminhos ruins era
melhor levar a caixa o quanto antes, dissera o patrão. Ele próprio só
seguiria amanhã com o carro agrícola.
Depois dessas revelações, Jacozinho ficou por um tempo em
silêncio. Não era aquilo um sinal do alto a indicar-lhe justamente o
caminho pelo qual ele ansiava há tanto tempo?
E se ele mesmo, em vez do Chico, entregasse a caixa ao Lloyd?
Era o que Jacó queria saber.
O interpelado sorriu confiante: “Naturalmente”, não era à toa
que se tinha um “compadre” foguista no vapor.
O coração saltou no peito de Jacozinho, quase o sentia
fisicamente.
“Chico, tu tens que me ajudar a ser marinheiro no vapor.” ICI
O negro revirou os olhos, deixando apenas o branco à vista.
“Quanto pagas?” perguntou astuciosamente.
“Um cachecol matizado e uma cachaça grande”, disse Jacó
presto.
Chico anuiu com a cabeça. “Bom, combinado.”
- Jacozinho conhecia Porto Alegre; já havia estado lá algumas
vezes e, a cada vez, havia-se admirado do luxo e da riqueza ali
ostentados. Pelo menos assim parecera a Jacozinho, quando, ansioso
no âmago, zanzava pelas ruas animadas. Nunca havia sentido
verdadeiro prazer em olhar, porque em lugar algum era permitido
ficar parado, sempre se corria perigo de ser atropelado.
Desta vez, porém, Jacó Schmidt pouco olhava ou ouvia o bulício
da cidade grande. Estava internamente demasiado ocupado para
fazê-lo. – Ir até o mar – tornar-se marinheiro! Será que havia algo
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mais belo? Nenhum ancinho para arrastar, nenhum lixo para
transportar, nenhum milho nem batatas para plantar! Não, ser ninado
pelas águas do mar, apenas o céu sobre ele – como deveria ser
magnífico!
De manhã cedo, quis viajar com o Chico e a caixa até o
pequeno vapor em Rio Grande – e procurar sua sorte junto ao capitão
do navio.
E Jacozinho teve sorte! Todavia apenas como grumete, embora
estivesse já fora da idade. Mas, e daí? Haveria de progredir; não
tinha medo. Nesse momento, sentia-se feliz pela primeira vez.
Contudo, a felicidade logo se dissipou, assim que o vapor se
colocou em movimento e tudo o que havia no estômago de Jacozinho
se revirou e subiu.
Os marinheiros de cor não se mostraram gente sensível e
zoaram sem piedade do sujeito curvado e choramingas.
Depois de 2-3 dias o sofrimento passou, embora uma sensação
estranha tenha ficado no couro cabeludo, algo como se cada cabelo
se estivesse arrepiando.
Um pouco antes de Santos, Jacó ficou sabendo que o navio do
Lloyd brasileiro deveria fazer-se ao mar em direção a Hamburgo, sem
ficar atracado por muito tempo em portos brasileiros. Diante desta
perspectiva, uma emoção singular apoderou-se de Jacó. Alemanha –
era algo que pairava bem, bem lá longe, bem remoto, algo irreal,
algo borrado. A terra da infância dos avós, de que haviam falado
durante os intervalos de descanso em meio ao trabalho árduo,
quando os pensamentos recuavam a dias pretéritos. Isso sempre se
afigurara ridículo ao Jacozinho, antiquado, quase ingênuo. Parecia-lhe
que lá só havia anciãos de opiniões e costumes antigos. Afinal, era
referida como “velha” pátria. Foi assim que o seu imaginário foi
tomando forma durante a infância, além de que o assunto parecia a
Jacó por de mais irrelevante, para que, mais tarde, pudesse vir a
construir outra imagem.
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E, agora, havia de ir à velha terra e ver com seus próprios
olhos. Ou será que haveriam de permanecer no vapor enquanto este
estivesse atracado no porto?
Meu Deus, o que haveria de grande para apreciar lá.
Hamburgo, certamente, não chegava aos pés de Porto Alegre.
----------
Nesta viagem, Jacozinho não tinha muito do que rir. Todos os
marinheiros pareciam ter o direito de zoar com ele, de o atazanar.
Os companheiros de cor chamavam-no de “Alemãozinho” e
troçavam de sua lourice, de sua pele clara, de sua imperícia de
novato nos trabalhos do navio.
“Eu sou tão brasileiro quanto vocês”, dizia ele empertigado,
quando eles o azucrinavam, chamando-o de alemão. “Eu falo tão bem
português quanto vocês”. E também sou capaz de escrever. Vocês
escrevem o seu nome fazendo esforço igualzinho a mim.”
Aí é que os outros ainda riam mais e chamavam-no de “nosso
professor Jacó”.
Não, Jacozinho não dormia em cama de rosas. Seu entusiasmo
diminuía cada vez mais.
Quando, por fim, fizeram escala em portos espanhóis e
Jacozinho teve permissão para ir a terra, reconciliou-se outra vez.
De resto, ele nem estava muito admirado com as cidades
portuárias. Pareciam-se mais ou menos com as brasileiras na
arquitetura, na vida e movimento. Os comerciantes, que voejavam
em torno do navio no porto, tal como os basbaques ociosos no cais,
pouco se diferenciavam dos conterrâneos de Jacó.
Porém, depois de terem passado por Cuxhaven e adentrado o
(rio) Elba, uma outra paisagem completamente diferente se abriu
diante dele.
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Então isso era a Alemanha! Nas primeiras horas da manhã,
estava um pouco frio, um tanto nebuloso, até o sol despontar
exuberante, radiando por sobre o verde luminoso da margem,
deixando luzir as artemísias meio escondidas lá atrás das árvores
grandes, e urdindo uma aura festiva em volta das pessoas, que, em
trajes domingueiros, se encontravam em cima das pontes de
desembarque, acenando e gritando para os navios que chegavam.
A orquestra de bordo tocava, e quando silenciava, ouviam-se
melodias alemãs vindas de algum lugar de diversões ou de alguma
esplanada. Havia algo genuinamente encantador em tudo, algo que
fazia os olhos de Jacó Schmidt brilharem de intensa e alegre
expectativa.
- Férias na terrinha! Jacó percorria com alguns de seus
camaradas as ruas de Hamburgo. As pessoas olhavam para eles, para
os marinheiros de rostos estranhos, que, com seu jeito barulhento e
descuidado, esquisito naquele lugar, contrastavam com as sóbrias
casas vetustas e com os frios e laboriosos hamburgueses, que
passavam.
Jacó Schmidt, de repente, percebeu a situação e um
desconforto percorreu-lhe o corpo. Tentou ficar para trás, para
continuar depois a andar sozinho, sobretudo, depois de ter ouvido
que o passeio deveria terminar num boteco de marinheiros, que os
rapazes descreviam com observações inequívocas. O líder era um
foguista de pele escura, alto, que já havia feito uma vez a viagem à
Alemanha.
Hermann Wols, um teuto-brasileiro, já alertara Jacó a respeito
desse sujeito e dos botecos que havia nas proximidades do porto.
Assim, Jacó tentou esquivar-se, ficou para trás numa curva da rua.
Mas os outros logo perceberam isso e, em louca euforia, começaram
uma caçada a ele.
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O Alemãozinho era um traidor, um desertor, gritavam, meio a
sério, meio na brincadeira. Primeiro, ele devia travar conhecimento
com a verdadeira vida de marujo, eles haveriam de encontrá-lo logo.
Então, quando alcançaram Jacó e o cercaram e se preparavam
para descarregar sua ira sobre ele, um grupo de gente jovem,
rapazes de 15 a 17 anos, dobrou a esquina, vestindo camisas
marrons, calças curtas, mochilas afiveladas nas costas, o nó do lenço
sob o queixo.
Diante da cena inusitada, o grupo estacou como que
obedecendo a um comando. O que os estrangeiros quereriam? Talvez
arrastar à força o jovem alemão? Mas ele próprio usava o mesmo
uniforme de marinheiro estrangeiro.
“Hei,” gritou – ao que parece – o líder do pequeno grupo, “O
que está havendo aí? Querem ajuda?”
Os marinheiros deixaram sua presa, depois de a terem
perturbado para valer, e voltaram-se rindo para os jovens alemães,
divertindo-se com as calças curtas e as mochilas.
“De onde será essa gente? Da África? Da Índia?” Conjeturavam.
O líder dos jovens alemães avançou em direção a Jacó, que,
exausto, se encostava à parede de uma casa.
“Do you speak English?” perguntou.
Jacó olhou para ele sem entender.
“Was meinen Sie?” (O que quer dizer?“
„Um alemão!“ exclamou o da pergunta, pasmo. “O fazes afinal
nesse grupo?”
Jacó limpou o rosto afogueado com o lenço rústico. “Pertenço à
tripulação do Lloyd brasileiro”, disse ele um pouco embaraçado.
“Caramba! E ele fala badense”, admirou-se o rapaz. “Então,
com certeza, fugiste de casa?” adivinhou ele.
“Certo”, rispostou Jacozinho. “Mas, em breve, retorno ao lar.”
“Lar? Onde?”
“Bem, no Brasil, onde eu moro.”
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Os jovens, que, curiosos, se haviam aproximado, olhavam-no
interrogadores.
“Como assim? Tu falas dialeto. Portanto, com certeza, deves ter
nascido aqui.”
“Ah! Não. Meu avô é que nasceu, eu não. Eu sou brasileiro.”
Disse isso com uma ponta de orgulho e ficou irritado com os rostos à
volta dele, que, de repente, desataram a rir.
“Um brasileiro que fala badense,” exclamou um deles. “Tu
pensas que somos bobos?”
À vista disso, Jacó empertigou-se e puxou de um bolso de sua
camisa um livrinho. Abriu-o, exatamente no lugar, onde o seu retrato
estava colado e o dava como soldado brasileiro.
“Minha Caderneta,” disse orgulhoso.
Meio desconfiados, meio admirados, 10 jovens pares de olhos
pousaram no retrato. “Serviste no exército brasileiro?”
“Como voluntário. Fiz carreira de tiro,” disse Jacó todo cheio de
si.
“Tiro?” Os jovens não atinavam com o significado disso.
Em todo o caso, porém, suas dúvidas foram colocadas de lado.
Só então lhes ocorreu, perguntarem pelos marinheiros de pele
escura. A rua estava vazia, à exceção de alguns transeuntes, não
havia ninguém mais à vista.
“Essa agora, será que os pilantras haviam desaparecido
temporariamente. Afinal, o que eles queriam aprontar contigo há
pouco?” Perguntou o líder.
Jacó deu de ombros. „Eu deveria ir com eles ao boteco
embebedar-me.”
Alguns deles riram, outros mediram o jovem teuto-brasileiro
com olhares piedosos.
“O melhor que tens a fazer é voltares ao teu navio”, interveio
um deles. “Tu sabes, onde ele se encontra?”
12
Um medo súbito e visguento invadiu Jacó. E se ele sozinho não
voltasse a encontrar o vapor e este se fosse embora sem ele?
Era como se aquela gente jovem adivinhasse seus
pensamentos. Olharam uns para os outros, alguns deles encolheram
os ombros. “Querem saber,” exclamou o líder, “façamos nossa
caminhada pelo (rio) Alster, podemos fazer isso. Assim, levamos
nosso badense ao porto.”
A caminho do porto, Jacó percebeu que seus acompanhantes
faziam parte de um movimento, que desejava resgatar a imagem da
Alemanha dos velhos tempos. “O movimento hitlerista”, explicaram
eles.
“Hitler?” É um homem?”
Diante da pergunta, fitaram Jacó perplexos. „Sim, afinal, vocês
no Brasil não leem jornais alemães? – Hitler é nosso futuro. Hitler
será nosso guia, o guia de toda a Alemanha, e isso, queira Deus, em
breve.”
Jacó baixou os olhos, envergonhado. Pensou no avô, que
sempre tentara lhe despertar o interesse pelos acontecimentos na
Alemanha. Mas a Alemanha estava lá tão longe, bem lá atrás não se
sabe onde – pensava Jacó, o que uma pessoa pode ter a ver com
coisas que não lhe dizem respeito?
“Nós estamos numa jornada”, continuou o líder, “feita em parte
a pé, em parte de navio até o Reno. Na Renânia, encontramo-nos
com outros da Juventude hitlerista e aquartelamos em Mutter Grün”.
Na Renânia? Jacó ficou tenso. Baden não ficava por ali perto?
Mas, de medo de cometer outra gafe, não ousou perguntar.
Como se obedecessem a um comando, os jovens hitleristas
permaneceram ali de pé.
“Não te podemos acompanhar mais para diante, se não
perdemos o horário. – Então, adeus, faz uma boa viagem pelo mar e
não te esqueças da Alemanha.” Cada um deles apertou a mão de
Jacó e, depois, separaram-se, enquanto o que permaneceu os
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continuou vendo por um tempo, até que se virou e se dirigiu para o
porto. Algo parecido com inveja tomou conta dele; inveja por não
poder, como eles, passear assim tão saudavel e livremente; inveja da
camaradagem que existia entre eles.
Ah! Nos seus “camaradas”, ele pensava com medo; pensava no
momento em que chegassem ao navio, afogados em álcool, afoitos a
qualquer briga funesta; pensava no capitão, de novo em fúria
contida, pois não suportava o álcool, em especial, quando sua gente
se embebedava tolamente.
Felizmente, apenas alguns mestiços mostravam seu verdadeiro
caráter depois do gozo do álcool: sintomas perniciosos herdados dos
pais. Nessas ocasiões, o próprio capitão se controlava para não agir
contra eles com toda severidade, de medo de sua vingança.
Jacó havia sido introduzido entre eles a pedido do Chico, que
contatara o mulato Manuel, o qual intercedera por Jacó junto ao
capitão.
- Quando Jacó, exausto de tanto andar, coisa a que não
estava acostumado, descansava em sua rede, o jovem teuto-
brasileiro – Hermann Wols – apresentou-se a ele e lhe contou a
grande novidade: por motivos indeterminados, o Lloyd ficaria por
mais tempo ali no porto de Hamburgo.
O jovem ficou fora de si de alegria. “Talvez o velho me conceda
uma licença e, então, vou poder conhecer a Alemanha. Primeiro, a
Pomerânia, de onde vêm meus avós.”
A fadiga de Jacó dissipou-se por completo. Pensou na pequena
sacolinha, que carregava rente ao corpo nu, onde escondia duas
moedas de ouro – presente do padrinho – e a nota de 100 mil-réis.
Talvez pudesse cambiá-las no mercado. Será que eram suficientes
para uma viagem até Baden e para o regresso?
Teve sorte – obteve a licença, cambiou honestamente a nota de
100 mil-réis pela metade do valor e, aconselhado por Hermann Wols,
adquiriu uma passagem para Colônia. “Em Colônia, tu pegas o
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vapor”, foi o que lhe aconselhou, além de ter dado outras dicas
variadas, como por exemplo sobreviver da maneira mais barata
possível durante o percurso. O Hermann Wols era um garoto
iluminado.
- Para Jacó Schmidt era uma novidade, a viagem de trem, o
trânsito regulamentado, a prestimosidade dos funcionários da estrada
de ferro, coisas que Jacozinho nunca havia testemunhado.
- O percurso atravessava a charneca, pequenas florestas e
campos, passava por aldeias e vilas. Como num prodígio, as terras da
Alemanha se abriam ante os olhos pasmados de Jacó. Parecia-lhe um
sonho, um conto de fadas. De novo, as histórias da avó vinham-lhe à
mente – quando ela queria refrear aquela criança rebelde, pô-la para
dormir.
Jacó achava que ele não deveria viajar sozinho; deveria fazê-lo
com um camarada, que desfrutasse do passeio com ele.
Lembrou-se dos jovens hitleristas e pensou em como seria
formidável estar na companhia deles.
Em Colônia, quase se esqueceu de descer por causa do
assombro diante da catedral gigantesca, que despontara ali ao lado
da linha férrea.
Ainda totalmente atordoado, foi perguntando pelo atracadouro
do barco, e ficou feliz em ter conseguido um vapor, um minuto antes
de sua partida.
Assim que Jacó retomou o fôlego e o navio todo enfeitado
deslizou pelo Reno, escutou bem ao seu lado grande cantoria
acompanhada de alaúde.
“Muß i denn, muß i denn zum Städtele hinaus,“2 entoavam as
gargantas de uma dúzia de jovens rapazes. Algumas pessoas
também começaram a cantar e, por fim, todos os passageiros.
2 „Muss i denn, muss i denn zum Städtele hinaus“ é o título de uma canção popular alemã, adaptada por Friedrich Silcher e publicada pela primeira vez em 1827. Os soldados fizeram uso dela. O texto inspirou Elvis Presley a uma adaptação para „Wooden Heart“ (1960). Versão integral da canção alemã ao final do texto. Nota de Celeste Ribeiro de Sousa.
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Jacó conhecia a canção, embora da letra só soubesse o primeiro
verso.
De seu lugar, Jacó podia ver o gramofone e, com um grito de
alegria meio sufocado, levantou-se. Eram os jovens hitleristas, eles
estavam ali, era o seu líder quem controlava o instrumento.
Em grande agitação, Jacozinho irrompeu por entre os
passageiros até chegar perto de seus conhecidos; um deles logo o
reconheceu, chamando a atenção dos demais.
Tão logo a canção terminou, chamaram-no e, então, para Jacó
começou aquilo com que tanto sonhara durante sua viagem solitária.
Para ele, tratava-se de uma senhora experiência o deslizar do
barco sob o céu azul iluminado de sol em companhia entusiasta.
Porém, satisfeito ele não se sentia às margens verdes do Reno,
passando suavemente por cidadezinhas e lugarejos.
E, à medida em que despontavam castelos e burgos em ruínas,
alguns no cimo de rochas escarpadas, outros no topo de morros
cobertos de florestas, muitos dos jovens sabiam contar lendas a eles
ligadas ou declamar algum poema que os evocava. Em paralelo,
todos cantavam uma ou outra melodiazinha, na maioria das vezes,
alegres canções de viandantes (Wanderlieder).
Deveriam pernoitar em Koblenz. Ao chegarem, a estátua
colossal do velho imperador alemão no “ângulo alemão” (Deutschen
Eck)3 elevou-se diante deles, gigante, enquanto na margem oposta
assomava das alturas a antiga fortaleza “Ehrenbreitstein” como uma
vigia de antanho, que quisesse tomar sob sua proteção o imperador
ancião no seu volumoso cavalo.
Os passageiros tiveram dificuldade em desviar os olhos dessa
vista grandiosa e foram os jovens hitleristas os primeiros a subir o
máximo permitido ao monumento.
Mais tarde, os passageiros cansados foram acolhidos numa
pensãozinha pequena e, na manhã seguinte, o proprietário, a quem 3 Alusão à língua de terra, que marca a confluência do rio Mosela com o Reno.
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os rapazes caíram no agrado, só lhes cobrou a metade do preço
normal.
E a viagem continuou pelo azul do Reno. Risos, contemplações
e sonhos alternavam-se com comida e bebida, e, assim,
incorporaram Jacó com grande companheirismo.
Ao passarem pelo rochedo da Lorelei, um músico a bordo em
notas langorosas entoou no trompete a canção de Lorelei4, e na
garganta de Jacozinho formou-se um grande nó na garganta. Era
como se ele, depois de se ter inebriado com vinho doce, voltasse a
sentir a feia miséria. Mas isso logo passou.
Depois de uma breve troca de ideias, os jovens hitleristas
sugeriram a Jacó desembarcar com eles em Aßmannshausen e
acompanhá-los a pé no trajeto até as proximidades do monumento
de Niederwald5, onde deveriam encontrar-se com outros camaradas.
Louco de alegria, Jacó aceitou o convite e a expectativa do que
estava por vir elevou ainda mais o seu entusiasmo com a viagem.
Sabia que, na vida, nunca a haveria de esquecer, sabia que era uma
experiência única em sua existência, que haveria de recordar, mesmo
quando fosse ancião.
E assim foi o passeio através de terras pujantes, a vista do
monumento de Niederwald em meio às paisagens verdejantes de
florestas, e, por fim, a chegada ao acampamento da Juventude
Hitlerista.
Havia tendas montadas na planície viçosa, onde esvoaçavam
bandeiras com a suástica. Predominava ali, entre os rapazes, um
ambiente alegre, mas também meio solene, sério, disciplina férrea
em meio a camaradagem cordial.
4 Das Loreleilied (A canção de Lorelei) é um poema escrito por Heinrich Heine em 1823. Texto completo ao final. Nota de Celeste Ribeiro de Sousa. 5 Este monumento, perto de Rüdesheim no Estado de Hessen, foi construído entre 1871-1880 para comemorar a unificação da Alemanha, ou a fundação do Kaiserreich (Segundo Império Alemão/Prússia) pelo imperador Wilhelm I.. Nota de Celeste Ribeiro de Sousa.
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Não houve alvoroço à chegada de Jacó, embora tivessem
percebido sua surpreendente figura – trajava uniforme de marinheiro.
Nos intervalos entre os exercícios e os jogos, um ou outro
aproximava-se dele, conversava, interessado fazia perguntas sobre
este ou aquele aspecto do longínquo Brasil e Jacó relaxava,
respondia descontraído.
Jacó caiu nas graças de um de seus primeiros conhecidos, que
lhe perguntou de seus relacionamentos, de como estava sua situação
com aqueles camaradas assustadores, que haviam aprontado com
ele.
Jacó não conseguia esconder que receava a continuidade
daquela convivência e que ficaria feliz, se conseguisse escapar da
viagem de retorno.
Por fim, todo o acampamento acabou por se interessar pelas
circunstâncias de Jacó Schmidt e todos ponderaram sobre o modo
como poderiam ajudá-lo.
Um deles comentou pensativo: “Um parente de um amigo meu
viaja na próxima semana para o Brasil ou para a Argentina; será que
ele não poderia levar com ele nosso Jacó?”
“Gente, o parente de seu amigo é um nababo?” retorquiu um
outro.
Era palpite daqui e dali.
“Por que não viajas como comissário de bordo num vapor
alemão”, disse um.
Jacó deu de ombros em dúvida.
“Será que o velho me dispensa? Não posso desertar.”
Mais e mais sugestões vieram à baila, muitas delas bem
aventurescas. Por fim, Jacó esclareceu que ele tinha coragem
suficiente para se despedir do velho e o futuro logo haveria de se
desenhar.
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Infelizmente a vida no acampamento logo chegou ao fim. E as
lágrimas assomaram aos olhos de Jacó, quando, ao despedirem-se,
apertou as mãos daqueles amigos tão rapidamente encontrados.
“Escreve – aqui, o meu endereço – o meu também – –“.
Depois, o trem, a que ainda o acompanharam, partiu.
A sacolinha de Jacó, graças à generosa ajuda de seus amigos,
havia gasto poucos Marcos, e ele podia continuar sua viagem sem
grandes problemas até Baden. Contudo, todo o entusiasmo havia
desaparecido de sua alma, ao ver-se viajando tão sozinho.
“Afinal, o que ele queria em Baden? Ele já nem sabia mais o
nome da aldeia, onde o avô nascera. Que estúpido fora em não se
dar ao trabalho de registrá-lo. Agora, atravessava a região de Baden,
parecida com a da Renânia; e, quando a linguagem do maquinista e
de alguns passageiros lhe recordou o lar - talvez por causa disso
mesmo - a saudade de casa invadiu-o de repente. Tão
inesperadamente, tão avassaladora, que Jacó desceu em Heidelberg
e comprou imediatamente uma passagem de volta para Hamburgo.
Pesava-lhe na alma não ter enviado até agora nenhum sinal de
vida ao avô. Será que o ancião ainda se inquietava com sua
ausência? Será que fora correto da parte dele – Jacozinho – fugir
assim em segredo, sem um agradecimento? Será que o avô merecia
isso dele? – O arrependimento abrasava o coração de Jacozinho e o
medo de que não pudesse mais encontrar o avô com vida
desassossegava-o. Pessoas assim velhas são acometidas de males
súbitos.
E, quando numa paragem a atenção de Jacó Schmidt foi atraída
por uma garota loura, porque apresentava singular parecença com
Lena Wittich, sua amiga de infância, aí as lágrimas rolaram-lhe
impulsivas pela face e ele, perturbado, limpou-as com a manga.
A saudade de casa superava qualquer timidez, qualquer
reflexão, ele tinha que voltar, tinha que voltar.
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O capitão, não sabendo ele mesmo, quando deixaria o porto,
assegurou ao requerente a dispensa, tão logo este mencionou a
saudade de casa. Talvez lhe compreendesse os sentimentos.
Três dias mais tarde, o “Monte Olívia” deixava o porto de
Hamburgo; nele, empregado como camareiro, seguia de volta ao lar
Jacó Schmidt.
Quando o vapor começou a sacolejar, sinal de que tinha
atingido as águas do mar, poderia ter dado cambalhotas de alegria.
E foi o que, realmente, aconteceu - uma cambalhota - , mas
involuntária, quando, caprichoso no serviço, quis levar escada acima
uma cadeira de espaldar. O navio inclinara-se com as ondas e
Jacozinho, num átimo, encontrou-se de volta no pé da escada, o
braço firmemente entalado na cadeira. Manchas roxas, as
consequências; contudo não fizeram arranhão no seu bom humor.
Logo no dia seguinte, percebeu-se que um dos passageiros de
cabine – um sujeito gordo, bem apessoado – residia em Rio Grande,
voltando agora de uma viagem à Alemanha.
Também ele ainda falava um pouco o dialeto alemão do sul e
isso transformou-se, imediatamente, num elo de ligação entre o
passageiro e seu camareiro. Aquele logo ficou sabendo das aventuras
de Jacó e o jeito despretensioso e aberto do rapaz agradou-lhe.
Quase no fim da viagem, o Sr. Kullmann ofereceu ao seu
camareiro um emprego em sua chácara. “De tudo o que me contaste,
deduzi que escondes na alma um agricultor muito capaz. Sem dúvida,
estás familiarizado com todos os trabalhos da colônia. – Na minha
chácara, tu terias de cuidar de um grande número de árvores
frutíferas, terias de tomar conta do galinheiro e da horta. É muito
trabalho, já te adianto, porque não arredo pé de ordem e limpeza
absolutas. Para o geral, poderia empregar ainda um outro homem,
mas eu preciso mesmo é de alguém em quem possa confiar e, aí,
tenho esperanças de que esse alguém possas ser tu. Até agora, meus
empregados mais me arruinaram do que me ajudaram. E, então,
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como é? 250 mil-réis de salário fixo, incluindo tudo. Mais tarde,
quando as coisas começarem a dar lucro, aumento correspondente de
salário.”
Jacó não pensou duas vezes. A oferta seduziu-o e ele atreveu-
se a dar começo à coisa.
O avô Zurich estava sozinho em casa. Estava resfriado,
prostrado, casmurro, aliás como quase sempre nos últimos tempos.
Estava com um cachecol grosso em volta do pescoço, embora
estivesse sentado perto do fogão, onde cozinhava o feijão preto. A
nora passara-lhe sem cerimônia a tarefa do almoço, já que ele hoje
“não servia para mais nada”, enquanto ela própria fora pegar na
enxada, para ombrear com os outros na roça.
E, enquanto o avô Zurich cuidava de sua incumbência,
enquanto mexia o feijão, pensativo, não se esquecendo de ir
colocando madeira no fogo, seus pensamentos percorriam o mesmo
caminho de sempre, de todos os dias.
Onde seria que o maroto do Jacozinho se havia enfiado? Por
que não escrevia ele? Será que caíra nas mãos de gente ruim, ou
estaria mesmo ainda vivo? – Ah! Bem melhor teria sido, se ele,
naquele tempo, tivesse deixado o filho da filha, onde estava. Como
teria se poupado de tantas preocupações.
Ruminando os pensamentos, jogou quase com ira um cepo
sobre as brasas, de tal modo que estas, rebeldes, levantaram faíscas
para todo o lado. Por isso, não ouviu, quando a porta da cozinha se
abriu e, logo, se fechou. Só quando uma vozinha acanhada gaguejou
“Bom dia, avô”, ele se apercebeu da situação.
Sentado ereto, os olhos fixados no recém-chegado. Assim ficou
até recobrar os movimentos, até conseguir mover os olhos, a boca.
“Jacozinho, és tu, realmente?“
„Avô, posso entrar? O Sr. ainda gosta de mim?” Com mãos
quentes e jovens, o neto pegou as do velho, trêmulas.
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“Jacozinho, tu estás aqui, tu estás mesmo aqui.” Os olhos do
velho perscrutavam os do jovem à sua frente. “O Sr. Deus do céu
seja louvado, tu voltaste do mesmo jeito que partiste”.
“Ora, avô, é verdade, falhei um pouco. Sim, mas estive lá, na
Alemanha.”
“Na – – – ?“ O velho ficou pasmo, de boca aberta. “Tu estiveste
na Alemanha -? Jesus, depois disso, não falo absolutamente mais
nada”.
“Sim, veja lá, avô“. Jacozinho conseguiu sobrepor-se. “E se eu
lhe contar das pessoas, que querem o Hitler – andei com elas três
dias – e ficamos amigos – “ ele ria, ao lembrar-se desses dias e ao
sentir a alegria de voltar a encontrar o avô tão conciliador.
O velho estava imóvel, os olhos pregados no jovem, como se
ele falasse indiano.
“A Alemanha é uma nação poderosa, disso eu nem tinha ideia,”
continuou Jacozinho ali perto avô, enquanto se sentava no
banquinho. ”Qualquer um pode ter um deslize. E eu estive em
Baden,” acrescentou triunfante.
“Tu - estiveste - em Baden?” gaguejou o ancião. “E, então, o
velho carvalho ainda existe lá ao pé da fonte da aldeia, onde nós
íamos buscar água?”
Jacozinho corou até a raiz dos cabelos. Afinal, ele não poderia
dizer ao avô que havia esquecido o nome de sua aldeia natal. Mas,
rapidamente, mudou de assunto.
“E, agora, avô, tenho que informar o Sr. que consegui um
emprego com um salário de duzentos e cinquenta mil-réis”. Jacozinho
ficou todo inchado ao pronunciar esse número pausadamente. “E
também tenho direito a uma casinha, caso venha a me casar, foi o
que disse o Sr. Kullmann, o meu patrão.”
“Jacozinho”, o avô Zurich continuava sentado, rígido, o nariz
estreito, que, ao ouvir as improváveis novas do neto, ficara
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empalidecido, tornara-se branco, “Jacozinho, isso não é uma
mentira?“
“Não, não, verdade verdadeira,” assegurou Jacó.
“Então, - -,” o avô Zurich respirou fundo e uma lufada de
satisfação desanuviou a tensão do rosto do velho. “Então, também
conseguiste uma casinha?” Um sorriso espraiou-se por suas feições,
enquanto seu olhar astuto esquadrinhava o rosto do neto.
Este ficou um pouco vermelho, mas não disse nada. Não lhe
ocorreu, adiantar ao avô que, ainda há pouco, encontrara a Lena e,
dos lábios vermelhos, arrancara-lhe um juramento. Isso haveria de
ser ainda uma surpresa extra para o avô.
Viu-se na cozinha à procura de alguma coisa. “Estou com fome,
o Sr. sabe, desde ontem à noite que não como nada.”
O avô levantou-se ligeiro. “Vem, o feijão deve estar no ponto. -
oh meu Deus, será que está saboroso? Está mesmo é queimado. Lá
vem bronca da nora. - - Queres comer pão de milho – então, vem.”
Entre mastigadelas e goles, Jacozinho contou as suas
peripécias, terminando com estas palavras: “O Brasil é minha pátria e eu
morreria, se não pudesse ficar aqui, mas os que são alemães têm que saber de
onde lhes vem a força e não se esquecerem disso.” Deu uma fungadela. O Sr.
sabe, avô, dentro de mim tenho uns pensamentos que não consigo botar em
palavras.” “Não é preciso, não, Jacozinho”, acudiu o avô quase solene. “O que
importa é sentir.” “Mas ainda lhe quero dizer, “ acrescentou Jacó, “das cidades
não guardei nada, lá a gente podia até ficar louco diante de tantas coisas
espetaculosas. Aqui há mais aconchego. – Quando a saudade bateu, só
consegui pensar na nossa colônia.”
O avô Zurich sentiu-se, de repente, 10 anos mais moço, havia
esquecido que, realmente, estava doente e de mau humor. Nem
mesmo os feijões queimados lhe causaram preocupação ou
problemas de consciência. Qual o problema de comer hoje pão de
milho? O que importa é que Jacozinho está outra vez aqui, o
Jacozinho, que, em 2 meses aprendeu o que ele – avô – com todo o
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amor e com toda a disciplina durante 18 anos não lhe conseguiu
ensinar: consideração pela terra de seus pais e, desse modo,
consideração pelos próprios pais, e o amor ao torrão natal.
FONTE: Groß-Hering, Gertrud. Ein guter Kern. (De boa cepa). In: Kalender für die Deutschen in Brasilien (Rotermund Kalender), São Leopoldo, Rotermund, 1938, p. 97-108.
ANEXO:
1) Muss i denn, muss i denn
Muss i denn, muss i denn Zum Städtele hinaus, Städtele hinaus, Und du, mein Schatz, bleibst hier? Wenn i komm’, wenn i komm’, wenn i wiedrum komm’, wiedrum komm' Kehr’ i ein, mein Schatz, bei dir. Ann i glei net allweil bei dir sein, Han i doch mei Freud’ an dir! Wenn i komm’, wenn i komm’, wenn i wiedrum komm’, wiedrum komm' Kehr’ i ein, mein Schatz, bei dir. Wie du weinst, wie du weinst, Dass i wandere muss, wandere muss, Wie wenn d’ Lieb’ jetzt wär’ vorbei! Sind au drauß, sind au drauß Der Mädele viel, Mädele viel, Lieber Schatz, i bleib dir treu. Denk du net, wenn i ’ne Andre seh’, No sei mein’ Lieb’ vorbei; Sind au drauß, sind au drauß Der Mädele viel, Mädele viel,
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Lieber Schatz, i bleib dir treu. Über’s Jahr, über’s Jahr, Wenn me Träubele schneid’t, Träubele schneid’t, Stell’ i hier mi wiedrum ein; Bin i dann, bin i dann Dein Schätzele noch, Schätzele noch, So soll die Hochzeit sein. Über’s Jahr, do ist mein’ Zeit vorbei, Da g’hör’ i mein und dein; Bin i dann, bin i dann Dein Schätzele noch, Schätzele noch, So soll die Hochzeit sein. https://www.youtube.com/watch?v=kHl0OlxRdjo
2) Das Loreleylied
Ich weiß nicht was soll es bedeuten Daß ich so traurig bin; Ein Märchen aus alten Zeiten, Das kommt mir nicht aus dem Sinn. Die schönste Jungfrau sitzet Dort oben wunderbar, Ihr goldenes Geschmeide blitzet, Sie kämmt ihr goldenes Haar. Den Schiffer, im kleinen Schiffe, Ergreift es mit wildem Weh; Er schaut nicht die Felsenriffe, Er schaut nur hinauf in die Höh´. Die Luft ist kühl und es dunkelt, Und ruhig fließt der Rhein; Der Gipfel des Berges funkelt Im Abendsonnenschein. Sie kämmt es mit goldenem Kamme Und singt ein Lied dabey; Das hat eine wundersame, Gewaltige Melodei. Ich glaube, die Wellen verschlingen Am Ende Schiffer und Kahn; Und das hat mit ihrem Singen
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Die Lore-Ley getan.
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