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catálogo com alguns trabalhos
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PAT R O C Í N I O R E A L I Z A Ç Ã O
lourival cuquinhaSCAPA ASSOCIAÇÃO DOS CONFECCIONISTAS
DE SANTA CRUZ DO CAPIBARIBE
A P O I O
Instituto Cultural Banco Real
P R E S I D Ê N C I A
Fabio Colletti Barbosa
D I R E T O R I A E X E C U T I VA
Fernando Byington Egydio MartinsJosé Alfredo LattaroMichiel Frans Kerbert
C O N S E L H O F I S C A L
Elly de VriesJosé de Menezes Berenguer NetoPedro Paulo Longuini
C O O R D E N A Ç Ã O
Carlos Trevi
Mantenedor doInstituto Cultural Banco Real
Banco ABN AMRO Real S.A.
P R E S I D Ê N C I A
Fabio Colletti Barbosa
Galeria Marcantonio Vilaça
C O N S E L H O C U R AT O R I A L
Cristiana Tejo e Moacir dos Anjos
E X P O S I Ç Ã O
Lourival Cuquinha
C U R A D O R I A
Luisa Duarte
C O O R D E N A Ç Ã O G E R A L
Maria Clara Rodrigues
P R O J E T O G R Á F I C O
Fernando Leite
F O T O S
Frédérique Bauwens,Karen Barros e Lourival Cuquinha
T R ATA M E N T O D E I M A G E N S
Ding Musa e Fernando Leite
R E V I S Ã O D E T E X T O
Sonia Cardoso
P R O D U Ç Ã O L O C A L
Rosa Melo
D E S E N H O S O N O R O
Thelmo Cristovam
I M P R E S S Ã O
Sol Gráfica
P R O D U Ç Ã O
Agradecimentos
– minha mãe Janine,
minha filha Ingá,
minha mulher Tatiana
Beto Resende
Carlota
Daniela Brilhante
Ding Musa
Felix Farfan
Fernando Duarte
Geraldo Motta
Julia Favaron Magoulas
Juliana Freitas
Mariana Moura
Paloma Telles Bosquê
Pedro Paulo de Souza
Raimundo Antônio
Tomás Nascimento
Ulysses Magoulas
Valmir Ribeiro
Vinho
e a todas as pessoas que
doaram seus costumes
lourival cuquinha
31 de maio a 1O de julho de 2007
Instituto Cultural Banco Real
Av. Rio Branco, 23 – 2º andar
Recife – PE
curadoria de Luisa Duarte
A ATUAÇÃO DE MARCANTONIO VILAÇA como colecionador e galerista foi marcada pela
rejeição ao que já estivesse estabelecido ou classificado e, portanto, pela vontade de
correr os riscos de apostar no que ainda não se havia provado como seguro ou certo. Ao
promover ativamente a internacionalização da arte contemporânea brasileira, esqui-
vou-se de lançar mão dos apelos fáceis das idéias de diferença ou de exotismo que por
tanto tempo informaram a recepção dessa produção no exterior. Buscou, ao contrário,
enfatizar a articulação original que diversos artistas brasileiros fazem entre elementos
de tradição – os que trazem as marcas da história e da formação de um lugar – e
elementos de ruptura – os que expõem, o tempo inteiro, a natureza contingente dos
primeiros. A escolha dos artistas que colecionava ou expunha não se regia cegamente,
portanto, por convenções ou por critérios de legitimação institucional ou de mercado.
Resultava, ao contrário, do desejo de alargar ou criticar os limites da conformidade.
Fundado nesse espírito, adquiriu e expôs, ao lado da produção de criadores consagra-
dos, trabalhos de artistas então desconhecidos e jovens, posteriormente reconhecidos
como destaques de sua geração.
Com o objetivo de manter-se fiel ao perfil de seu patrono, a Galeria Marcantonio
Vilaça continua, em 2007, um projeto que busca instaurar um espaço de encontro
com o que ainda não se conhece – tanto para os artistas que nela apresentem seus
trabalhos, como para o público que a freqüente. O projeto neste ano apresentará três
exposições de jovens artistas pernambucanos que, embora já tenham esboçado o que
singulariza suas poéticas em trabalhos anteriores, ainda não haviam tido a oportunida-
de de exibir suas produções individualmente e com as condições que permitam o
aprofundamento das questões que as animam. Entre tais condições, destaca-se o fato
de os artistas convidados terem o acompanhamento crítico, ao longo da preparação de
suas mostras, de jovens curadores que, até então, não haviam se detido, com vagar,
sobre seus trabalhos. Além de se constituir em experiências de reflexão sobre o proces-
so criativo – poucas vezes contemplado em atuações institucionais no setor –, há, nesse
encontro entre artista e crítico, a abertura para o que desaloja certezas e promove
conhecimento novo.
Moacir dos Anjos e Cristiana Tejo
C O N S E L H O C U R A T O R I A L
A PRIMEIRA VEZ QUE VI O TRABALHO DE Lourival Cuquinha, foi em 2005. Tratava-se
de um vídeo que registrava uma intervenção urbana de grandes dimensões: um imenso
varal de roupas estendido sobre o rio Capibaribe, no Recife. Estava diante do registro
de mais uma manifestação de arte urbana, exemplar de toda uma vertente da produção
de novos artistas brasileiros que surgiu com força em meados dos anos 1990.
Chamou minha atenção uma inflexão incomum – havia beleza, voltagem poética
naquelas imagens, atributos que nem sempre convergem com manifestações dessa na-
tureza. Estas buscam se infiltrar no tecido das cidades criando atritos, ruídos, viabilizando
trocas, operando, muitas vezes, em um sentido no qual a voltagem “política” fala mais
alto – o que não é demérito, apenas uma característica.1
Passam-se dois anos e me vejo com a tarefa de realizar a curadoria da exposição
do artista no Instituto Cultural Banco Real. Vejo que quase nada conhecia da obra de
Lourival. Foi o tempo de troca para a preparação dessa mostra que me deu a chance
de conhecê-la melhor. Tempo de alinhavar questões que lhe são recorrentes, buscando
ver a obra como um todo, procurando escutar o artista, estabelecer conversas, para então
ofertar ao público, e quem sabe a ele próprio, uma maneira nova de olhar sua produção.
Estamos diante de um trabalho no qual reaparece constantemente um pensa-
mento sobre a liberdade da vida e sobre o controle que a sociedade e a cultura exercem
Costumes – para olhar do avesso
Luisa Duarte
sobre esta; assim como sobre a liberdade da arte, e o controle exercido sobre ela pelas
instituições. Assim, há uma busca constante por negociar os espaços para estas liber-
dades. Ao atuar tanto na cidade quanto na instituição, e transitar ora na legalidade,
ora na ilegalidade, agindo em grupo ou anonimamente em ações ditas “terroristas”,
ao lidar com a instância do crime e testar o poder da arte de validá-lo, questionando
o estatuto sobre o que é “obra de arte” e verificando os limites das instituições na hora
de absorverem investidas artísticas transgressoras, a obra de Lourival nos leva a pensar
em algumas das formas pelas quais os artistas de hoje vêm se posicionando frente ao
sistema da arte.
Diversas destas características apontadas encontram parentesco com propostas
artísticas dos anos 1960 e 70. A retomada de certos procedimentos, entretanto, se dá
sobre um pano de fundo completamente diverso, pois o momento histórico é outro.
O declínio das utopias, o fim dos inimigos comuns, o esvaziamento do espaço público,
os novos termos em que se dá a política, são apenas alguns dos aspectos que influem
para que haja diferenças entre a produção daquelas décadas e a de hoje, mesmo que
esta seja sensivelmente influenciada por aquela.
E a importância deste legado surge já na instalação Parangolé, na qual uma cerca
eletrificada abriga uma televisão e uma réplica de um parangolé de Hélio Oiticica,
Guevaluta Baby, construída por Lourival. Este trabalho, realizado em 2007, teve seu início
no ano de 2002. O vídeo que assistimos na TV, por entre as grades, registra o furto
do parangolé “verdadeiro”, protagonizado pelo artista naquele ano, em uma noite
de abertura de exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.2 Em uma ação
motivada por um ‘feeling momentâneo’, Lourival furtou a obra que se encontrava
exposta numa parede do museu; vestiu-a, sem que fosse advertido, e continuou no
coquetel, repercutindo junto aos convidados seu recentíssimo delito. Tudo não planejado,
mas sendo registrado em vídeo. Do coquetel, Lourival foi para a Lapa (bairro tradicional
da boemia carioca) com amigos, trajando o parangolé. No dia seguinte o artista recebe
um telefonema no qual é advertido pela coordenação do museu sobre a possibilidade
do caso se tornar assunto de polícia, caso a obra não fosse devolvida imediatamente.
Corta e estamos novamente na cena do “crime”, na manhã seguinte, com o artista
devolvendo o objeto do furto. É este enredo que assistimos por entre as grades
eletrificadas de Parangolé, a instalação de Lourival Cuquinha.
Se o ato de furtar o trabalho foi detonado por um impulso momentâneo, a ela-
boração dos significados implicados nessa atitude foi sendo feita ao longo do tempo,
e tem a sua síntese na instalação que vemos hoje. Cabe notar que Hélio Oiticica possui
influência singular na geração de novos artistas brasileiros. Entretanto, tal influência
é, muitas vezes, desproporcional ao conhecimento da obra extensa e complexa que
serve de inspiração. É provável que as várias acepções que o parangolé possui dentro
do contexto da obra de HO sejam desconhecidas ainda hoje não apenas por Lourival,
mas por muitos agentes do sistema da arte no país.3 Porém esse conhecimento restrito
não impede que constatemos, de forma correta, a inadequação existente no momen-
to em que esses trabalhos são exibidos de maneira estática, pendurados em paredes,
fora do alcance do público.
No texto “Anotações sobre o parangolé”, publicado por ocasião da exposição
Opinião 65, no mesmo MAM do Rio de Janeiro, Oiticica afirma:
“Toda unidade estrutural dessas obras está baseada na <estrutura-ação> que é aqui
fundamental; o <ato> do espectador ao carregar a obra, ou ao dançar ou correr,
revela a totalidade expressiva da mesma na sua estrutura: a estrutura atinge aí o
máximo de ação própria no sentido do <ato expressivo>. A ação é a pura mani-
festação expressiva da obra. A idéia da <capa>, posterior à do estandarte, já con-
solida mais esse ponto de vista: o espectador <veste> a capa, que se constitui de
camadas de pano de cor que se revelam à medida em que este se movimenta correndo
ou dançando. A obra requer aí a participação corporal direta; além de revestir o
corpo, pede que este se movimente, que dance em última análise. O próprio <ato
de vestir> a obra já implica numa transmutação expressivo-corporal do espectador,
característica primordial da dança, sua primeira condição.”
Fica claro que há no “crime” praticado pelo artista uma vontade de restituir essas
premissas, que se encontram usurpadas quando a obra é mostrada de forma inadequa-
da. A participação, o movimento, a integração entre espectador e obra, atributos in-
cluídos na proposta de HO, são restituídos aqui via crime, por uma noite.
A instalação que vemos hoje é, por sua vez, uma peça irônica, que põe encarcerados
a réplica do parangolé roubado e todo o enredo que narra a sua “libertação”, com o
alerta de perigo de choque, caso se tente tocar na obra. Dar essa volta, retornar ao ponto
de partida, e ainda comercializar o vídeo que narra o furto são atitudes que exemplificam
uma forma de se posicionar diante do circuito de arte que pode ser verificada, como
já foi dito, em diversos artistas da nova geração. Ao mesmo tempo que criticam as
instituições, fazem uso delas, negociam permanentemente seu lugar, realizando uma
deriva4 contínua entre um lugar de crítica e outro de adesão.5
Este trânsito entre crime e instituição ocorre também na obra ArtTraffic. Na expo-
sição, temos dois trabalhos que fazem parte da grande série abrigada sob este nome:
um vídeo, ArtTraffic, le collier du Mozambique – Recife/Weimar, e ArtTraffic – doação, que
consta de uma nota de cinco libras, emoldurada, da qual pende do retrato da rainha
Elizabeth um colar, que tem como pingente uma pequena pedra de haxixe.
ArtTraffic teve início na França, país onde é comum o consumo do haxixe misturado
ao tabaco. Testemunhando o costume francês, o artista adaptou à sua maneira uma forma
de fumar o haxixe. Colocou a pedra em uma agulha, a queimou, e com um sopro fez
soltar uma fumaça que em seguida era aspirada. Para ter sempre à mão o fumo, o artista
passou uma linha no buraco da agulha e a amarrou ao pescoço. Foi nesse momento
que Lourival se viu, nas suas próprias palavras, “com uma linda peça plástica”. Como
era o dia da independência de Moçambique, intitulou a peça de Collier du Mozambique.
Em seguida, fez um manual de instruções ilustrado para explicar como usar o colar.
Começou a vendê-lo por cinco euros, junto com o manual de instruções.
Logo após se dar conta da invenção e colocá-la à venda, a mesma já estava sendo
exposta como “obra de arte” em instituições européias, e sendo vendida como tal. O
trabalho que trazia o haxixe e seu modo de usar estava institucionalizado, comercializado,
virara obra de arte legitimada por espaços expositivos europeus, críticos e mercado.
No vídeo presente na exposição, vemos a peregrinação do artista por diversas fron-
teiras, aeroportos, levando consigo sua arte, que é também droga, substância consi-
derada ilegal em diversos países, cujo porte e venda são tidos como crime. Entretanto,
quando a droga torna-se obra de arte, como fica a questão? O que a torna obra de
arte, o que a legitima como tal? Estas são algumas das perguntas que habitam o universo
da arte desde Marcel Duchamp, e são aqui recolocadas pelo artista.
Um episódio vivido por Lourival na fronteira da Suíça com a França exemplifica o
impasse provocado por ArtTraffic. A ocorrência foi narrada por ele:
“Eu e minha antiga amada Marion fomos parados na fronteira da Suíça com a França
e os policiais encontraram metade do haxixe. Talvez eu fosse deportado e pagasse
uma multa, mas tudo se esclareceu quando mostrei o manual de instruções e revelei
a arte embutida na atitude. Eles apreenderam o que acharam, disseram que iam
expor o panfleto numa vitrine do bureau da polícia da fronteira, e nos liberaram.
Pela atenção de um dos policiais em relação a minha explicação, acho até que ele
fuma, pois quase todo mundo fuma haxixe na França. Uma coisa é certa, ele apren-
deu direitinho. Eles realmente só engrossaram quando pedi para registrar aquele
momento. Mas tudo deu certo no final.”
A partir do momento que a autoridade legal reconheceu a droga como arte, e o
seu portador como artista, a ocorrência passou a fazer parte de um território imune a
punições. Note-se que nesse caso não foi preciso sequer a legitimação dos agentes con-
vencionais do sistema da arte – instituições, crítica, curadoria, público, mercado, mas
tão-somente o poder de convencimento do próprio artista. O primeiro a ter que legi-
timar a coisa como obra é o artista, para em seguida expor a todo um sistema que pode
ou não fazê-lo. Sem essa aposta primeira, não há obra que venha a público.
Assim como em Parangolé, aqui também é a arte que legitima o crime. O furto do
parangolé seria justificável pelas características da obra, como queria o próprio Hélio
Oiticica. Já em ArtTraffic, a legitimação da peça que traz a droga como “obra de arte”
a retira da ilegalidade. No caso da questão que envolve o porte e a venda da droga como
crime, surge uma preocupação recorrente na obra de Lourival, qual seja, a de se pensar
os costumes de uma época e como eles ditam um modo de viver que é histórico, datado,
que poderia ser outro, dependendo do lugar e do tempo de que estamos falando. Tendo
formação em Direito, vindo a trabalhar como oficial de promotoria durante dois anos,
Lourival tem o hábito de dizer que, uma das melhores formas para se conhecer os com-
portamentos de determinada época é ler o seu Código Penal. Os crimes ali registrados
como dignos de penalidades são índices das práticas correntes da época.
A palavra ‘costume’ deve, no contexto da exposição, ser pensada nos seus múltiplos
sentidos: como hábito ou prática geralmente observada; atitude ou valor social con-
sagrado pela tradição e que se impõe aos indivíduos do grupo; e também como ves-
tuário adequado, roupa.6 O vídeo Costumes – piscina movimenta todas essas acepções.
O trabalho é exemplo da simultaneidade presente na obra de Lourival, citada no início
do texto, na qual convergem inflexão política e potência poética. Assim como em
Parangolé e ArtTraffic, aqui também temas como liberdade e controle estão presentes,
só que formalizados de maneira bastante diversa.
A narrativa é simples, vemos pessoas nuas pularem em uma piscina repleta de roupas
e saírem de lá vestidas. O que interessa é o que se passa no intervalo entre um ato e
outro. Quando dentro d’água, cada qual trava uma pequena luta para conseguir se vestir
em meio àquele ambiente adverso à realização da tarefa. As roupas surgem como pas-
saportes para a civilização, portando consigo a perda da liberdade e o controle. Ultra-
passar esta fronteira não é fácil. A adequação à norma, aos costumes, é árdua. A metáfora
simples da liberdade existente no estado de nudez, e a dificuldade encontrada no ato
de se vestir, aqui visto como adaptação ao mundo da cultura, ganha força graças à
capacidade do artista em potencializar os pequenos gestos, feições e enfrentamentos
de cada um dentro d’água.
A performance Soterramento, prevista para acontecer ao longo da exposição, mobiliza
os mesmos sentidos elaborados no vídeo Costumes – piscina. Um caminhão derramará
uma caçamba repleta de roupas sobre o artista, nu, no marco zero do Recife, na praça
em frente ao Instituto. Aqui a batalha de Lourival será a de se reerguer em meio ao peso
da montanha de roupas.
Na série de fotos de grandes varais, realizados em ambientes urbanos e naturais,
reaparece a dicotomia entre natureza e cultura, e entra em cena, de maneira forte, a
cidade como lugar fértil para o diálogo artístico. De 2003 a 2007, Lourival realizou nove
intervenções desse tipo – algumas feitas de forma legal, outras clandestinamente. Ten-
do como inspiração inicial os varais armados pelos moradores da favela que margeia
a avenida Agamenon Magalhães, no Recife, a obra do artista, ao contrário do que se
poderia pensar por se valer de paisagem típica de moradias pobres, não traz consigo
a vontade de transformação dessas realidades. Os varais super-dimensionados surgem
como intervenções que revelam uma potencialidade poética insuspeita em um símbolo
de moradias pobres que possui uma posição marginal na paisagem urbana. Os varais
provocam desvios na percepção cotidiana, geram ora beleza, ora estranhamento, no
tecido urbano ou natural, e ainda em cenários que aglutinam ambos os aspectos – caso
dos varais realizados em favelas próximas ao mar, no Rio de Janeiro.
Vale atentar para certas particularidades dos varais realizados em cidades. Estes aglo-
merados urbanos são, por origem, lugares do comum, do que diz respeito a muitos.
Sabemos que tais qualidades se encontram hoje em decadência, é notória a falência
do espaço público. Daí ser importante observar o caráter simbólico dos varais como peças
que fazem a ligação de um ponto a outro na cidade, ou seja, eles surgem como elos
em cartografias fragmentadas, feitas de microcosmos isolados e muitas vezes incomu-
nicáveis. Doar essas pontes/poéticas para as cidades não deixa de ser um ato que nos
remete à vocação originária desses espaços que deveriam promover a troca. Ainda sobre
as especificidades de intervenções urbanas como esta, observe-se que aqui o artista abre
mão da instituição que legitima o trabalho como “obra de arte”, e ainda do próprio
lugar de artista enquanto autor. O público que se depara com a peça em meio ao trânsito
citadino não está preparado para receber uma “obra de arte”, muito menos sabe quem
realizou aquilo, mas sim é pego de surpresa pelo objeto que promove um desvio na
paisagem que lhe era familiar.7
Se as intervenções “acontecem”, na sua origem, de maneira efêmera, expostas ao
tempo, as fotografias surgem não apenas como registros das intervenções, mas são
tomadas pelo artista como novas obras, autônomas. As fotos trazem detalhes imper-
ceptíveis a olho nu, e o mais importante, no caso dessa exposição, suscitam a possi-
bilidade de cotejar as diversas ocasiões em que o trabalho foi realizado. Nesse exercício
de comparação e associações, vemos um fluxo que sugere certa respiração dos varais.
Respiração ditada pelo vento, pelo cenário que o emoldura. Ora o ar surge pleno, com
respirações longas, as roupas em movimento, o horizonte claro ao fundo; ora o tempo
pára, nada se move, os cenários urbanos aparecem claustrofóbicos, sem perspectiva.
A disposição das fotografias, na exposição, busca revelar esses diferentes fluxos, o que
nos remete à costura que permeia a obra do artista em sentido maior, ao alinhavar a todo
o momento questões como liberdade versus controle, natureza versus cultura, legalidade
versus ilegalidade. Vemos nessa série de fotografias a deriva do trabalho que sai da cidade
e vem para a instituição, podendo fazer o refluxo, vindo a sair outra vez para a rua.
Essa deriva contínua está explicitada no projeto de intervenção urbana planejado
para os arredores do prédio do Instituto Cultural Banco Real, local onde se dá a mostra.
O desenho sinaliza a intenção de realizar outro varal, ligando o prédio do Instituto ao
que se encontra na outra esquina, atravessando a avenida Rio Branco. Porém, a realização
de mais um varal em uma cidade que já abrigou uma intervenção dessa natureza poderia
soar redundante (o primeiro varal foi feito no Recife, em 2003). A repetição da obra
ganha sentido quando contraposta a outra intervenção, projetada por Lourival para ser
realizada na porta do Instituto. Como é possível ver no desenho do projeto, ali estaria
uma montanha de roupas, formando uma massa pesada, informe, que dificultaria o
acesso dos visitantes à exposição. Cada pessoa levaria consigo as peças de roupa que
tivesse conseguido retirar do caminho de modo a que se pudesse alcançar o objetivo
de entrar na instituição. De novo, a roupa surge como passaporte, mais uma vez um
ritual que envolve esforço e dificuldade. Seria justamente na contraposição entre o varal
que respira a brisa que vem do mar (que mora bem em frente ao Instituto), e a escultura
efêmera, informe, pesada, feita de quilos de roupa, interpondo-se como obstáculo para
os visitantes, que se daria o sentido pertinente para a repetição da intervenção.
Completam a mostra outros dois vídeos, Sogoma e Nonino. No primeiro, vemos
o rosto do artista sendo alvejado por grandes quantidades de goma de tapioca. Esta
goma possui uma elasticidade que a leva do estado sólido ao líquido, dependendo do
contato com o ar. A luta do artista é para respirar em meio à máscara que lhe cobre
o rosto. Os fluxos da respiração e as mudanças do estado da goma provocam mais uma
vez a dinâmica que oscila entre o sufocamento e o respiro, dinâmica tão cara ao artista.
Já em Nonino ressurge o crime e a cidade. Nas palavras de Lourival, se trata de “vídeo
de terror chantagista, do qual desconheço a origem”. O vídeo não possui autoria, tendo
sido muito provavelmente originado de uma ação coletiva. Nele, vêem-se outdoors de uma
campanha política sendo alvejados com tinta branca. A estética do vídeo é suja, a qua-
lidade da imagem está ruim, o som idem, o enquadramento é precário, sinalizando que
foi feito na madrugada, com as ruas vazias, de maneira clandestina. Sua visualidade
caminha na contramão da limpeza da propaganda que lhe serve de alvo. Outdoors que
trazem políticos sorrindo, num país cuja realidade social é degradante, são peças de propa-
ganda prontas para se tornarem objeto de toda espécie de crítica ou ironia, dada a hipocrisia
implícita naqueles sorrisos de encomenda diante de um espaço público dilacerado como
o nosso. Estamos aqui diante de uma daquelas ações características de uma vertente atual
da arte contemporânea que age em uma linha próxima ao ativismo político.
Percorrendo um arco que possui inflexões políticas sem perder de vista a força
poética, buscando a todo o momento negociar a liberdade inerente à vida e à arte
diante da cultura e suas instituições, que ora as viabilizam ora as cerceiam, a obra de
Lourival Cuquinha surge como um local de provocação. Manifestação que nos dá a
pensar sobre o lugar que a arte pode ocupar nessas negociações pelo exercício da
liberdade, experimentando, assim, o seu alcance de intervenção no próprio sistema
da arte e na realidade que o circunda.
N O T A S
1 Sabemos que toda obra com alta voltagem poética possui uma força política, pois a poesia engendra novas
percepções, novos movimentos. Ver uma obra que implica tanto uma atitude política, quanto uma capacidade
poética, é que se torna mais incomum em tempos nos quais proposições deliberadamente “políticas” muitasvezes se vêem desprovidas de apelo poético.
2 Tratava-se da abertura da Mostra Rio Arte Contemporânea. Lourival ganhara, então, um dos prêmios damostra, fazendo parte do grupo “Valdisnei”, com o trabalho 1° Concurso Mundial do Mickey Feio.
3 Refiro-me às deficiências que o sistema da arte no Brasil possui diante da tarefa de divulgar, de maneiramais sólida, uma obra como a de Hélio Oiticica, cuja importância é incontestável no cenário da arte mundial do
século XX. Isso no que diz respeito à exibição de seus trabalhos e também às publicações que deveriam transmitir
o pensamento do artista e de pesquisadores e críticos. Vemos, nesse início de século XXI , centros norte-americanos e europeus muito à frente nesse trabalho de conservação da memória da obra e sua transmissão.
Os motivos desse descompasso são vários e não cabe, aqui, desenvolvê-los, apenas assinalar o problema.
4 Aqui o termo “deriva” tem como inspiração a forma como ele é usado em textos sobre arte e política de autores
como Suely Rolnik e Briam Holmes. Na web tais escritos podem ser encontrados no site http://multitudes.samizdat.net.
5 Ao contrário do cinismo que tal posicionamento poderia sinalizar, existe uma tática que sabe a importância de
se estar dentro do jogo para, quem sabe, desestabilizar as regras desse mesmo jogo. Sobre esse campo de
discussão talvez seja pertinente retomar um texto que publiquei em janeiro de 2004, “O risco dos coletivos”(www.uol.com.br / tropico). Sobre a dinâmica desses grupos, escrevi na época:
“Trata-se de uma clara atitude de resistência e uma tentativa de fazer com que haja a possibilidade de apontarcriticamente as distorções do circuito e também de criar um espaço para uma arte ainda não institucionalizada,
ainda não esvaziada de seu poder de intervenção crítica, de inconformismo, dúvida, vontade de mudança
(seja em que dimensão for). [ . . . ] Mas questiono também se esta ênfase na crítica, no ‘dizer não’, nanecessidade de atuar ‘contra’, não acaba por fazer com que todo o processo seja marcado por um tom mais
reativo do que propositivo, no qual predomina uma tonalidade afetiva de cunho ressentido/frustrado, que por
vezes resvala em um discurso agressivo. A meu ver, isso não leva a lugar algum. Me vem então à mente umverso do Chico Science, que diz mais ou menos assim: ‘venho me organizando para desorganizar’. Ou seja,
para desorganizar o negócio, há que se organizar antes, de alguma forma, do contrário perde-se muito da
potência das ações desorganizadoras.”
Acho que tal pensamento pode ser válido em uma busca por compreendermos melhor essa deriva de artistascomo Lourival, entre um posicionamento crítico / transgressivo e a troca com a instituição.
6 Acepções retiradas do Dicionário Aurélio. Editora Nova Fronteira. 1999.
7 Indico, para uma bibliografia sobre intervenções urbanas no contexto da produção nova na arte contempo-rânea brasileira, os textos “Fronteiras móveis”, 2005, de Marisa Florido César, crítica de arte e curadora
independente, que vem se dedicando de maneira aprofundada ao tema; e “Um panorama e algumas estraté-
gias”, 2001, de Luiz Camillo Osório, curador, crítico de arte e professor. Ambos publicados na coletâneaorganizada por Glória Ferreira, Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas, Funarte, 2006.
Parangolé na Lapa, 2002
Parangolé original de HO furtadono MAM do Rio de Janeirofoto de Karen Barros
Parangolé (instalação), 2002-2006
grade, réplica de parangoléguevaluta baby”, cabide,criado-mudo, reprodutor de DVD,vídeo em DVD (still à esquerda),bateria de automóveldimensões: 1 x 1 x 2 mprodução de Dani Vilelafoto de Lourival Cuquinha
“
Artraffic, le collier duMozambique – Recife/Weimar, 2006vídeo, 8'
Artraffic – doação, 2007nota da cinco libras, agulha, linha,hax e textodimensões: 40 x 30 cmfoto de Lourival Cuquinha
Costumes 1 – piscina, 2007vídeo, duração indeterminadadireção de Lourival Cuquinhaprodução de Rosa Meloassistência de direção de Geraldo Mottafotografia de Adson, Felipe Falcão,Erich Nascimento e Lourival Cuquinhamergulhos de Leo Rodrigues, Wolder, Juliana Notari,La Prissa, Anaira, Sandra Oksman, Marquinhos Pajeudesenho sonoro e trilha de Thelmo Cristovammontagem de Leandra Leal e Lourival Cuquinhastill de Lourival e Luisa Duarte apoio: Cara de Cão
Varal (intervenção na paisagem urbana), 2003-2007
cordas, roupas e linha
página anterior: ilha de Porquerolles, sul da Françafoto de Frédérique Bauwens
esq.: Av. Paulista, São Paulo, 2006
dir.: Morro da Babilônia, Rio de Janeiro, 2006
fotos de Lourival Cuquinha
esq.: Morro da Babilônia, Rio de Janeiro, 2006
dir.: Parque do Ibirapuera, São Paulo, 2006
fotos de Lourival Cuquinha
esq.: Rio Capibaribe, Recife, 2003
dir.: Vitória, Espírito Santo, 2006
próxima página: Morro da Babilônia,Rio de Janeiro, 2006
fotos de Lourival Cuquinha
Costumes 2 – soterramento, 2007
performance e desenho /projetodo caminhão soterrandoduração indeterminadaroupas e caminhão-caçambaperformance de Lourival Cuquinhaprodução de Rosa Melo
Sogoma, 2002-2007vídeo, 7’20’’direção e produção deLourival Cuquinha e João Buenofotografia de Camila Marquezmontagem de Lourival Cuquinha
Lourival CuquinhaOnze anos de atuação em artes visuais, nas áreas de artes plásticas, intervenção urbana, cinema e vídeo.
Não tendo chegado ao fim de nenhum curso acadêmico, mas cursado engenharia química, filosofia, direito
e história, passou 10 anos na Universidade Federal de Pernambuco (1993-2002). As artes visuais
se iniciam com um coletivo de artistas, Molusco Lama, nos idos de 1996 ou 1997, com muitas ações
e performances. Neste começo, sofre grande influência de Fernando Peres, também do grupo (“será que
eu era praticamente um replicante?”). Depois de algumas participações em salões e exposições
pernambucanas e tendo trabalhado como designer, diretor de clip e cenógrafo da banda Textículos de
Mary, participa da Mostra Rio de Arte Contemporânea em 2002. Nesta mostra, junto com Daniela
Brilhante, é premiado pelo trabalho 1° concurso mundial do Mickey Feio. Paralelamente, trabalha no
atelier coletivo Submarino (2002-2004) onde expõe e participa de várias obras e ações coletivas, como
o nunca finalizado filme da MONGA. Em 2003, faz pela primeira vez o trabalho Varal, no SPA/Semana
de Artes Visuais do Recife, e, desde então não pára mais de fazê-lo (talvez já esteja na hora, mas adora
o processo). Varal é premiado no Olinda Arte em Toda Parte, de 2003, e no 7º Salão do Mar,
em 2006. Entre 2003 e 2004, ganha a Bolsa Salão Pernambucano de Artes Visuais com projeto Mapa
do Ácaro. No fim de 2004, expõe tal pesquisa no rio Capibaribe. Em 2005, faz uma residência na Ècole
Supérieure d’art de Aix en Provence, França. Nesta, aprende francês, realiza uma primeira exposição
individual e ministra um workshop de intervenção urbana. No fim de 2005, em Paris, expõe no Territoires
Transitoires do Palais de Port Doré o trabalho Désolé. Em 2006, participa do projeto Rumos Artes
Visuais do Instituto Itaú Cultural. Ainda neste ano, expõe na ACC Galerie, Weimar, Alemanha, na coletiva
de artistas sul-americanos Die Kunst erlöst uns von gar nichts, Künstlerpositionen aus Südamerika
(A arte não nos libera de absolutamente nada), com o trabalho Artrafic: Le collier du Mozambique.
Durante todo este tempo, também trabalhou com audiovisual, mas, aqui, não vai falar sobre isso.
Atualmente, vive entre Olinda e São Paulo, pagando aluguel na rua de São Bento, 141, no Atelier Prefeitura.
Luisa Duarte é crítica de arte e curadora independente.
Em 2007 é mestranda em filosofia pela PUC-SP. Membro do grupo de críticos do Centro Cultural São Paulo.
Desde 2003 publica regularmente textos sobre arte contemporânea. Fez parte da comissão curatorial do
Programa Rumos Artes Visuais, edição 2005/2006, do Instituto Itaú Cultural. Curadora da exposição “Entre
o público e o privado – transições na arte contemporânea”, no Museu de Arte Contemporânea Dragão do
Mar, Fortaleza, CE, setembro/outubro de 2006. Fez a curadoria da programação de artes visuais e interven-
ções urbanas do 7° Festival Rio Cena Contemporânea, 2006.
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