ESGOTAMENTO DE UM CICLO - Fundação Astrojildo Pereira€¦ · Diogo Tourino de Sousa Edgar Leite...

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ESGOTAMENTO DE UM CICLO

Ailton BeneditoAlberto Passos G. FilhoAmilcar BaiardiAna Amélia de MeloAntonio Carlos MáximoAntonio José BarbosaArlindo Fernandes de OliveiraArthur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCésar BenjaminCícero Péricles de CarvalhoCleia SchiavoDélio MendesDimas MacedoDiogo Tourino de SousaEdgar Leite Ferreira NetoFabrício MacielFernando de la Cuadra

Fernando PerlattoFlávio KotheFrancisco Fausto Mato GrossoGilvan Cavalcanti de MeloHamilton GarciaJosé Antonio SegattoJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLucília GarcezLuiz Carlos AzedoLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Aurélio NogueiraMarco MondainiMaria Alice RezendeMartin Cézar FeijóMércio Pereira GomesMichel ZaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPierre LucenaRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRubem Barboza FilhoRudá RicciSérgio Augusto de MoraesSérgio BessermanSinclair Mallet-Guy GuerraSocorro FerrazTelma LoboUlrich HoffmannWashington BonfimWillame JansenWilliam (Billy) MelloZander Navarro

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Política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.políticademocratica.com.br

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EditorMarco Antonio T. Coelho(In memoriam)

Editor ExecutivoFrancisco Inácio de Almeida

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. AraújoDavi EmerichDina Lida Kinoshita Ferreira Gullar

George Gurgel de OliveiraGiovanni Menegoz Ivan Alves FilhoLuiz Sérgio HenriquesRaimundo Santos

Copyright © 2015 by Fundação Astrojildo Pereira

Obra da capa: Os Palhaços, de DJ Oliveira. Acervo do professor Flavio Kothe. Brasília, DF

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2015.ISSN 1518-7446 No 43 200p.

CDU 32.008 (05)

DistribuiçãoFUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRATel.: (61) 3224-2269Fax: (61) 3226-9756contato@fundacaoastrojildo.org.brwww.fundacaoastrojildo.org.br

Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Dezembro /2015

ESGOTAMENTO DE UM CICLO

Sobre a capa

Temos o imenso prazer de comemorar os primeiros 15 anos da nossa revista, ilustrando-a com obras do grande artista plástico D.J. Oliveira. O nosso Dirso José de Oliveira, nas-

cido em 1932, na cidade de Bragança Paulista, desde criança demonstrava a sua vocação para as artes plásticas. Com apenas 10 anos, já se iniciava nos estudos de desenho e pintura, sob o olhar do pintor Luís Gualberto. Em 1948, foi para a cidade de São Paulo, onde, entre outras coisas, atuou como assistente de pintura em murais e em cenografia e chegou a ser orientado por Laurindo Galante, escultor e professor do Liceu de Artes e Ofí-cios. No convívio com o grupo de Galante (ou Grupo do Braz), conheceu Francisco Priori e Alfredo Volpi que, em 1949, o pôs em contato com o Grupo Santa Helena. Com o artista Angelo de Sordi, aprendeu as técnicas do afresco, da têmpera, da encáustica, do esgrafito e da pintura a óleo.

Em 1956, mudou-se para Goiânia e criou seu ateliê de pintura e desenho publicitário, fazendo vitrines e cartazes. De 1961 a 1972, lecionou Pintura, Desenho e Gravura na Escola de Belas Artes (EGBA) da PUC de Goiás; produziu cenários e figurinos para teatro e fundou o Ateliê Livre daquela escola. Ainda em 1956, abriu o primeiro ateliê livre e coletivo de pintura moderna em Goiás. Desse espaço democrático de arte, participaram jovens que se tornaram grandes artistas, como Siron Franco e Amaury Menezes, dentre tantos outros.

Como professor e bolsista, D.J. foi à Europa e conheceu a Espanha, Holanda, Itália, França, Inglaterra e Suíça; excursão que rendeu uma revisão geral de seus conceitos sobre arte e sobre a gravura. Nessa viagem, ele teve contato com o trabalho de artistas modernos como Giotto, Goya e Picasso. Voltou à Goiânia, em 1970, e dedicou-se à gravura em metal, abandonando a pin-tura, temporariamente. Dois anos depois, deixou a EGBA e passou a se dedicar exclusivamente à arte, trabalhando com murais, pin-turas e gravuras. Em 1973, mudou-se para Luziânia e voltou à pintura, da qual se afastara por três anos.

No dia 23 de setembro de 2005, o excepcional artista plástico faleceu em Goiânia, deixando como herança a grande evolução das artes visuais no Estado de Goiás. O professor Flávio Kothe gentilmente nos cedeu as obras da capa e contracapa deste número de seu acervo particular.

Sumário

EDITORIALDois momentos a destacar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

I. TEMA DE CAPA: ESGOTAMENTO DE UM CICLO POLÍTICOO esgotamento de um ciclo imperfeito e o futuroMarco Aurélio Nogueira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11A crise e seus efeitos dramáticos sobre os brasileirosRoberto Freire . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24Reflexões (pouco otimistas) sobre a atual crise brasileiraPaulo César Nascimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29O perigo do imobilismoMoacir Longo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

II. OBSERVATÓRIO Lava-Jato, partidos e democracia Luiz Sérgio Henriques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39Ativismo Robinson Crusoé: da servidão voluntária ao respeito de si mesmoRuszel Lima Verde Cavalcante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43Uma revolução democrática?Lincoln de Abreu Penna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

III. CONJUNTURAA pergunta trágica de Vargas Llosa e nósLuiz Werneck Vianna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53A política dos partidos e as crisesPaulo Fabio Dantas Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56Como nunca antes na história deste país...Mauricio Rudner Huertas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

IV. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTOEconomia segue ladeira abaixoVicente Nunes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69Alguns desafios que exigem rapidezSeverino Theodoro de Mello . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

V. ENSAIOCrise de Estado: colapso republicano?Luís Mir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

VI. A CIDADE E A GOVERNANÇA DEMOCRÁTICAAntigos e novos desafios do poder municipalJosé Arlindo Soares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

Governança democrática, representação política e participaçãoJoão Carlos Victor Garcia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

VII. BATALHA DAS IDEIASBerlinguer: vencedor ou vencido? Biaggio De Giovanni . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107Estado, desenvolvimento e democracia, no BrasilMichel Zaidan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116

VIII. QUESTÕES DO ESTADO E DA CIDADANIAO feminismo brasileiro se espalha e resisteBia Cardoso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123A discriminação do negro no trabalhoSofia Vilela de Moraes e Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128Cidadania e democracia no novo constitucionalismo latino-americanoWillame Parente Mazza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

IX. MEIO AMBIENTEMudança climática e justiça ambientalFernando de la Cuadra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137A crise elétrica para além de São PedroLarissa Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146

X. MEMÓRIAUm formulador do pecebismo contemporâneoRaimundo Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151Mais uma vez sobre as rebeliões de novembro de 1935Marly de A .G .Vianna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159O que eu vi e vivi Esther Kuperman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

XI. MUNDOVisões do Papa FranciscoClaudio Sardo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173Paz, shalom, peace, paix, frieden, perdamaian...Isaac Roitman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182Hegemonia e identidade no conflito entre a Rússia e a UcrâniaCarla Soavinski . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184

XII. RESENHARui Facó: o homem e sua missãoAdelson Vidal Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

O cientista e o político – Mario SchenbergSilvio R . A . Salinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197

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Dois momentos a destacar

Com este número 43, Política Democrática completa 15 anos de edições ininterruptas, sempre na busca de constituir-se em instrumento de discussão e difusão de conhecimento

junto à sociedade brasileira, na perspectiva dos valores democrá-ticos e de esquerda, capaz de contribuir, teórica e politicamente, para o melhor entendimento de nossa realidade nacional, local e internacional, nos seus mais diversos ângulos.

Na tradição de outras publicações semelhantes que procuramos seguir, como Estudos Sociais, Brasiliense, Temas de Ciências Humanas, Civilização Brasileira, Encontros com a Civilização Brasi-leira e Novos Rumos, nessa década e meia de anos de atividades editoriais, temos procurado colocar à disposição do público leitor múltiplos enfoques de análise sobre os temas mais importantes da agenda do país e do mundo.

Contam-se entre nossos colaboradores intelectuais polêmicos e dedicados, com presença assinalada nos debates públicos; acadê-micos de renome, estudiosos das questões políticas, sociais, econô-micas e culturais que compõem a agenda da política; agentes polí-ticos e sociais, independentemente de concepção política e ideológica, assim como de filiação partidária, que expõem suas opi-niões, suas ideias e propostas, com o objetivo de servir à cidadania e de colaborar para que se conheça em profundidade a complexa e delicada situação em que vivemos neste início do século 21.

Imprescindível destacar que a Fundação Astrojildo Pereira, esti-mulada pela forma aberta e democrática como vem sendo apoiada pelo Partido Popular Socialista, seu criador e mantenedor, tem con-seguido desenvolver tanto suas atividades editoriais quanto aquelas de promoção de cursos, seminários e debates sem confiná-las única

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e exclusivamente ao espaço de uma única corrente política. Uma ousada tentativa de envolver-se com representantes da esquerda democrática, oriundos de partidos políticos, movimentos sociais, organizações não governamentais ou mesmo da academia, procu-rando dar voz aos diferentes argumentos, promover seu confronto e construir, no processo, consensos que sirvam de fundamento à reconstrução da esquerda brasileira, de uma esquerda com viabili-dade e eficiência, capaz de promover, no curto prazo, a ampliação e o aprofundamento da democracia, o desenvolvimento da equidade no país, tendo como uma diretriz central a oportunidade igual para todos, homens e mulheres; a superação da pobreza e da exclusão social; e o combate a toda discriminação em razão de classe, gênero, etnia, cor da pele, opção religiosa e/ou ideológica.

Além da edição impressa, Política Democrática é lançada sob a forma de e-book, há quase dez números, e já possui sua edição ele-trônica. É um orgulho sermos bem considerados pela Qualis, um dos mais importantes sistemas brasileiros de avaliação de perió-dicos, mantido pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-soal de Nível Superior), que relaciona e classifica os veículos utili-zados para a divulgação da produção intelectual dos programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado), quanto ao âmbito da circulação e à qualidade. Sem falar que nossa revista está inserida no SciELO (Scientific Electronic Library Online), coleção de revistas e artigos científicos de amplitude mundial.

Permitam-nos fazer o amargo registro da inesperada morte do nosso querido editor Marco Antonio Tavares Coelho, no dia 21 de novembro último, em São Paulo, o que nos deixa um enorme vazio, considerando-se sua rica e permanente colaboração às nossas edi-ções. Advogado, jornalista, escritor, ex-deputado federal, era uma cabeça brilhante, sempre atento ao novo e sempre aberto e estimu-lador do diálogo, unindo com muita propriedade o pensamento e a ação, bem articulando a teoria e a prática. Seu exemplo de intelec-tual e de militante vai permanecer conosco e com quantos tiveram o privilégio e a honra de com ele conviver. Muita paz para sua compa-nheira Terezinha, seus filhos Simone e Marco Filho e seus netos.

Abertos a colaborações, sob a forma de elaboração de artigos e ensaios, ou de críticas ao nosso trabalho, estamos orgulhosos do que já alcançamos e pretendemos ir adiante, sempre procurando pro-duzir o melhor para fazer cabeças e estimular ações na batalha diária da cidadania por uma sociedade democrática, justa e fraterna.

Vamos em frente!

Os editores

I. Tema de Capa: Esgotamento de um ciclo

Autores

Marco Aurélio NogueiraProfessor de Teoria Política e Coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp, em São Paulo .

Moacir LongoJornalista, ex-vereador cassado da Câmara Municipal de São Paulo, consultor e assessor de imprensa .

Paulo César NascimentoProfessor de Ciência Política da Universidade de Brasília .

Roberto FreireAdvogado, deputado federal e presidente nacional do Partido Popular Socialista .

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O esgotamento de um ciclo imperfeito e o futuro

Marco Aurélio Nogueira

Há um clima de fim de ciclo no país: o dos governos do PT e da “hegemonia” petista na política nacional. Corresponde à realidade dos fatos?

Parte da opinião democrática afirma estar havendo uma inflexão conservadora na sociedade, que estaria claramente estampada nas sucessivas manifestações de intolerância e radica-lização verbal e nos seguidos projetos de lei de nítido matiz reacio-nário, capitaneados ou por bancadas evangélicas “fundamenta-listas” ou por representantes da “bala e do boi”, de certo modo coordenados pelo atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha.

Para outros, o fim do ciclo aparece com maior clareza no governo Dilma e na postura do PT, que não conseguem se mostrar à altura dos tempos difíceis por que passa o país. Há desgoverno, inope-rância e escassez de liderança política na Presidência da República, e seu principal partido de sustentação parece perdido, sem reação, flutuando protocolarmente por sobre surradas palavras de ordem e espicaçado pelo protagonismo personalista de Lula.

E há, também, uma imagem de fim de ciclo na postura da opo-sição ao governo Dilma, que não se estabiliza e não cresce como contraponto democrático e reformador, perdendo-se em estrata-gemas táticos de baixa qualidade e inócuos, em vez de apresentar à sociedade um plano que possa sinalizar alguma saída do buraco.

Do que se trata? Há um retrocesso político efetivamente em curso ou estamos constatando a presença de “ameaças”? Os sinais

1212 Marco Aurélio Nogueira

de uma marcha para trás indicam fortalecimento das posições antidemocráticas ou revelam, ao contrário, enfraquecimento das forças progressistas?

Não são perguntas retóricas. No texto que segue, gostaria de apresentar alguns pontos, não necessariamente consensuais, para organizar a discussão e, quem sabe, sugerir um mapa com que guiar uma reflexão política interessada no futuro.

Ciclos, esgotamentos e imperfeições

1. O esgotamento do ciclo petista – que é real – faz parte do esgotamento de um processo maior, que deita raízes na redemo-cratização e no movimento que culminou na Constituição de 1988. De lá para os dias atuais, este processo produziu resultados importantes, chegou ao apogeu e está, agora, em busca de atuali-zação e reposição. Seu principal produto foi o estabelecimento, no plano do Estado e da cultura política, de um conjunto de direitos, novos espaços de participação, mecanismos de controle democrá-tico e políticas de inclusão social, inclusive com muitas conquistas em termos de reconhecimento de identidades específicas. Houve um “pacto informal” destinado a promover avanços sociais no país. Ele incluiu a estabilidade da moeda, o combate à inflação e o financiamento social. Em boa medida, esta tem sido o lema da redemocratização brasileira: deixar patente que não se conseguirá dar passos firmes para frente sem uma política que combine, com sensibilidade e visão crítica, democracia, estabilidade, direitos e inclusão social. Tal obra pode ser tida como consolidada, no sen-tido de que conseguiu se fixar como eixo da dinâmica republicana e democrática do país. Nada surgiu nos últimos tempos que possa ser tido como uma alternativa a ela. Deste ponto de vista, parece precipitado constatar que estaria em curso uma guinada conser-vadora destinada a inviabilizar as conquistas democráticas e sociais das últimas décadas.

2. A redemocratização foi também democratização e conteve, em seu interior, uma inflexão de tipo social-democrático, talvez seu mais importante fruto. É ele que está agora, ao que tudo indica, vivendo as dores de um esgotamento.

Tal inflexão associa-se à afirmação progressiva de uma grande democracia de massas, de caráter inclusivo e popular. Mas também à implantação do que se tem hoje no país de “Estado de bem-estar”, com políticas sociais importantes, reconhecimento

1313O esgotamento de um ciclo imperfeito e o futuro

explícito de direitos e uma orientação oficial largamente favorável à melhoria na distribuição de renda e à redução das desigual-dades sociais. Associa-se tanto às políticas de estabilização mone-tária e responsabilização fiscal dos anos FHC, quanto às políticas assistencialistas e de renda dos anos Lula. Tanto ao esforço de redimensionamento e racionalização do Estado e da adminis-tração pública, quanto à busca de novas formas de inserção inter-nacional do país.

Tratou-se, porém, de uma inflexão imperfeita, na medida em que não construiu para si os devidos suportes e a necessária sus-tentabilidade. O Estado continuou com os mesmos problemas de antes, em termos financeiros, técnicos e políticos, ainda que alguma melhoria tenha se registrado. Abandonou-se a reforma da adminis-tração pública ensaiada nos anos 1990 e não se avançou rumo a uma reforma democrática do Estado. A governação tem-se mos-trado muito ruim, extremamente dependente de coalizões espúrias. O preço tem sido alto nessa área. Descuidamos das reformas que poderiam fazer o Estado cumprir adequadamente o papel de guar-dião da comunidade política e de coordenador de um projeto de sociedade no cenário da globalização. Preferimos, simplesmente, instrumentalizar o aparelho de Estado para alavancar um projeto de crescimento que nunca conseguiu se afirmar, apostando em políticas de câmbio e juros, em aumentos da carga tributária e em mecanismos de centralização fiscal na União, mediante a sangria do federalismo. Opções que sobrecarregaram as classes assala-riadas e afetaram negativamente Estados e municípios.

A inflexão social-democrática não se tornou sustentável. Nem sequer chegou a ganhar plena coerência, a sintonizar seus termos e componentes ou a ser assimilada pela população e pela opinião pública a ponto de se converter em ideia-força, cultura política e convicção cívica.

A imperfeição do ciclo está estampada em algumas de suas características mais relevantes.

Antes de tudo, o ciclo não foi assumido como tal: jamais se fixou, na vida nacional, o reconhecimento explícito de que está-vamos a conhecer, de modo tardio, uma “onda” social-democrá-tica. A arena política não foi contagiada. Ora o vetor discursivo predominante se apoiou na tese de que se estava a viver a “conti-nuidade da redemocratização”, ora que se tratava de trazer para o país o ideário “neoliberal” e ora que se iniciava entre nós uma fase

1414 Marco Aurélio Nogueira

de “redenção nacional”. Não se compreendeu que uma opção social-democrática estava a se objetivar.

Os próprios partidos políticos e movimentos que protagoni-zaram o ciclo deixaram de cooperar entre si: optaram por abrir guerras e litígios uns com os outros, investindo energia irracional na disputa eleitoral. Preferiram processar suas diferenças às cegas, ou melhor, privilegiando tão somente a conquista de governos e posições de força no sistema político.

Uma terceira imperfeição deriva deste ponto. Convertidos em máquinas eleitorais, os partidos não se reproduziram de modo adequado, não funcionaram como “escolas de quadros” e não renovaram seus dirigentes. Transmitiram assim, para o conjunto do Estado, um notável fracasso em termos de formação de lide-ranças e de oxigenação da elite política. Soterraram, sem pena nem glória, figuras políticas da estatura de Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Leonel Brizola, Paulo Brossard, Miguel Arraes, Tancredo Neves, Itamar Franco, entre outros, que haviam definido o perfil da elite política que emergiu durante os anos de luta pela democracia. Mesmo lideranças como Fernando Henrique Cardoso e Lula não foram preservadas e engrandecidas da forma devida. A elite política, com isso, perdeu densidade e chega aos dias de hoje reduzida em níveis inimagináveis de ruindade e primitivismo: não há mais estadistas, os líderes nada lideram, o discurso polí-tico é tosco e grosseiro, falta cultura aos políticos.

Apoia-se no entrelaçamento destas três “imperfeições” o fator principal da imperfeição social-democrata a que me refiro: seus partidos principais, o PSDB e o PT, mas também parte do PMDB, o PSB, o PPS, o PSol, os movimentos sociais mais fortes, como o MST, nunca conseguiram elaborar um projeto claro de sociedade. Tudo se concentrou na conquista e na manutenção do poder. Deixaram de ser apresentadas saídas positivas e consistentes, propostas con-catenadas de políticas. Jogou-se o país numa contraposição fictícia entre “esquerda” e “direita”, num maniqueísmo que desarmou e emburreceu a sociedade. Abriu-se mão da politização, da mobili-zação popular, da produção de cultura política, da luta por hege-monia, por “direção intelectual e moral”. Jamais os partidos e movi-mentos democráticos responderam à questão de saber quem somos e para onde queremos ir. Em decorrência, não educaram a cida-dania, não promoveram reformas estruturais profundas e não construíram uma hegemonia digna do nome, ou seja, uma cultura capaz de cimentar e dar sentido às posições de força que se con-quistavam no sistema político e no aparelho de Estado. Houve

1515O esgotamento de um ciclo imperfeito e o futuro

muita ocupação de espaços e muito uso dos mecanismos estatais, mas poucas ideias e pouca articulação. As próprias políticas públicas mais afeitas à social-democracia – saúde, educação, pre-vidência, renda e trabalho – ficaram soltas, sem se completar.

3. O ciclo sofreu a interveniência do processo histórico e foi em alguma medida “prejudicado” por ele. A globalização, a revolução tecnológica, a conectividade em rede, a gestação de uma nova sociabilidade, a fragmentação e a individualização foram reconfi-gurando a sociedade, tornando mais difícil a sua coesão e minando a capacidade que tem a política de promover articulações e coor-denação. A realidade do capitalismo globalizado e financeirizado, do mercado onipotente, da sociedade em rede e da “crise de sobe-rania” dos Estados nacionais complicou dramaticamente o uni-verso político, dentro e fora do Brasil. Passou a exigir respostas mais sofisticadas e complexas dos operadores políticos, antes de tudo dos partidos. E foi nesse ponto que a engrenagem engripou. Em vez de se reorganizarem como usinas de reflexão qualificadas para elaborar uma resposta política substantiva para o novo estado do mundo e a nova sociedade que emergia, os partidos se limitaram a se aperfeiçoar como estruturas eleitorais competi-tivas, entregando-se ao marketing. Não evoluíram em nenhum aspecto significativo, assim como nada fizeram para atualizar o sistema político, que permaneceu estagnado, digerindo as pró-prias entranhas.

4. Oito anos de PSDB e 12 anos de PT foram uma oportuni-dade rara. Dois partidos com tradições distintas, mas compro-missos parecidos, governaram o país sem solução de continui-dade. Tudo esteve ao alcance deles, que chegaram até mesmo a usufruir dos bons ventos da Fortuna. Contando com consensos sociais importantes, poderiam ter feito muito mais e, sobretudo, poderiam ter agido para construir poderosos diques de susten-tação para os governos democráticos e reformadores que diri-giram. Mas não. Os partidos não quiseram avançar em termos de cooperação e coordenação, optando pela destruição recíproca mediante vetos cruzados. Com o passar do tempo e a radicali-zação da competição, o PT perdeu o eixo como governo, o PSDB se desfez como oposição.

As políticas governamentais tornaram-se erráticas, ainda quando bem sucedidas ou formuladas com propósitos meritórios. Flertaram com a mercantilização, o assistencialismo e a focali-zação, deixando-se condicionar em excesso por expectativas elei-torais. Governos e partidos capitularam perante o sistema polí-

1616 Marco Aurélio Nogueira

tico, o assim chamado “presidencialismo de coalizão”. Maximizaram a necessidade de obter base parlamentar, pagando o preço neces-sário para atrair aliados e cooptar adversários. A insistência em coalizões não programáticas fragmentou a ação governamental e “empoderou” a escória política. A opção foi gerenciar acordos tópicos, não com os melhores, mas com os piores setores da polí-tica nacional. A consequência foi perversa: os governos ficaram de mãos atadas e a corrupção ganhou livre curso, crescendo de forma obscena ano após ano.

Legitimação pela economia

Durante um tempo, a economia segurou tudo. Viabilizou a mon-tagem de uma aliança de classes entre empresários e sindicatos em torno do Estado. Isso “pacificou” a política, legitimou um estilo de fazer política e um núcleo de poder, deu a impressão de que o hori-zonte futuro estava resolvido. Durante os governos Lula, o boom dos preços das commodities, resultado do maior relevo da China no cenário mundial, ocultou a crise latente e criou um clima falso de euforia. A economia cresceu, as divisas do país aumentaram e pos-sibilitaram a entrada de milhões de novos consumidores no mer-cado. A folga fiscal e a estabilidade econômica permitiram novos patamares de endividamento, impulsionando positivamente a demanda interna. O consumo cresceu e se “popularizou”.

Houve, porém, alguns efeitos não desejados. A euforia tur-binou o voluntarismo, o vamos que vamos, a improvisação. Impediu que se visse o precipício. O gasto cresceu, a arrecadação diminuiu, a dívida pública aumentou, a inadimplência começou a despontar, a inflação reapareceu. Tudo foi sendo devidamente empurrado para baixo do tapete, de olho nas próximas eleições.

A crise do modelo econômico a partir de 2010 inviabilizou a reprodução dos arranjos políticos e sociais prevalecentes. A própria crise internacional foi tratada como dado menor. Mostrou suas garras em 2008, mas não foi abordada em termos sistemáticos, nem monitorada com cuidado. Demorou para ser decodificada. Anos seguidos de medidas anticíclicas praticamente empurraram para os bastidores as necessárias medidas cautelares pró-cíclicas, que terminaram por ser vetadas, deslegitimadas e estigmatizadas. A montagem de uma “nova matriz econômica” se fez de forma voluntarista, somente por meio de passos para frente, sem recuos táticos e sem acúmulo de forças. Foi impulsionada por artifícios gerenciais que escamotearam e complicaram as dificuldades fiscais

1717O esgotamento de um ciclo imperfeito e o futuro

e deixaram livre a inflação. Crédito subsidiado, controles artificiais de tarifas e preços, uso dos bancos públicos e facilidades de finan-ciamento como forma de estimular o consumo criaram a impressão de que o país entrara em novo rumo, mas não produziram uma política sustentável de crescimento e de estabilização.

A crise atual é de governo, mas é maior do que ele. Reflete os novos arranjos da estratificação social, em parte provocados pelas políticas de inclusão social dos últimos anos, mas também forte-mente associados à progressiva conversão da sociedade brasileira aos padrões “líquido-modernos” do capitalismo contemporâneo. Tem a ver, portanto, com uma transição estrutural e com reposi-cionamentos das forças do capital e do trabalho, que reverberam no plano mais imediatamente político. É por isso que se pode dizer, também, que estamos em uma crise institucional, ainda que não necessariamente isso venha a desembocar em uma rup-tura. Não há, no horizonte, saídas revolucionárias pela esquerda, nem um retrocesso regressista pela direita. O futuro poderá ser sombrio, mas não será necessariamente mais sombrio do que o presente ou o passado próximo.

A crise institucional está sendo manejada pelo sistema, que mesmo estando em crise consegue atuar mediante o aproveita-mento de seus recursos de poder, valendo-se, para tanto, dos canais que mantém com muitos interesses sociais (os “anéis buro-cráticos”), dos cargos obtidos graças às coalizões fisiológicas que patrocina com os governos, do efeito inercial do “presidencialismo de coalizão” e da inexistência prática de dinâmicas antagonistas expressivas na sociedade civil. Isso poderá, ao menos no curto prazo, (a) garantir o prosseguimento do governo Dilma mediante a assimilação e acomodação de seus desacertos, à espera de 2018, ou (b) viabilizar uma armação “suprapartidária” manifesta ou oculta que substitua o governo sem sangue, dor e lágrimas, também com os olhos em 2018 mas com maior preocupação com a vida cotidiana e a reprodução do próprio sistema.

Não é só a corrupção

Não é adequado reduzir a crise à ideia de que se tem hoje no país “um governo criminoso que se vale da corrupção para finan-ciar seu projeto de poder”. A corrupção está aí e alcançou níveis sistêmicos categóricos na última década e meia. Isto é fato que precisaria ser reconhecido e enfrentado, a começar por parte daqueles que articularam politicamente o sistema, ou seja, os

1818 Marco Aurélio Nogueira

setores que se tornaram dominantes no PT e que, hoje, vestem passivamente a carapuça, deixam-se atacar sem se defender, ou se defendem mediante procedimentos retóricos e de agitação total-mente inócuos. Por vias transversas e por erro de cálculo político, o PT contribuiu para dar sistematicidade à corrupção. Forneceu alimento para operações que ganharam vida própria e literalmente fugiram do controle. Mas é evidente que o partido é mais do que isso. Acusá-lo de “chefiar” uma corja de corruptos não corres-ponde à verdade dos fatos e somente ajuda à agitação política.

A corrupção convertida em sistema impulsiona e justifica o fortalecimento do Poder Judiciário, processo que representa a versão nacional da judicialização da política. A operação Lava-Jato hoje ocupa o centro de tudo, confundindo-se com a própria crise, e seus desdobramentos – que são imprevisíveis e incontro-láveis – jogarão papel determinante no andamento do processo político imediato. Não haverá análise política eficiente que possa desconsiderar tal fato, ou que veja o juiz Sergio Moro como guar-dião isolado de uma política “anti-PT”, por exemplo, em vez de vê-lo como expressão da emergência de outro sistema político, mais judicializado. Não há nele a dimensão vibrante do “herói”, por mais que se queira impulsioná-lo assim. Trata-se do represen-tante de uma instituição.

O fracasso da política econômica praticada a partir de 2010 joga um peso na situação. Primeiro, porque desarrumou a eco-nomia e não facilitou a emergência de propostas alternativas nem o processamento adequado das controvérsias. Hoje estamos às cegas neste terreno, por mais que se tente marcar posição. Depois, porque impôs a exigência de um ajuste fiscal, com suas implica-ções conhecidas em termos de “austeridade”, e pôs em xeque os programas sociais que deram eixo e força aos governos dos últimos anos. E, por fim, but not least, porque inviabilizou a reprodução da aliança de classes que sustentara os dois governos de Lula e reforçou tudo o que havia de pior no sistema político, já que, no afã de manter os apoios que ameaçavam faltar, Dilma radicalizou a política de coalizões e passou a alimentá-la com concessões sempre mais erráticas e fisiológicas.

Não se tratou somente de abalos e fissuras na base parla-mentar, mas de quebra das alianças de classe que haviam feito o sucesso do modelo lulista. Não houve nenhuma atenção parti-cular para isso e tudo continuou a ser feito como se o cenário não tivesse se alterado.

1919O esgotamento de um ciclo imperfeito e o futuro

O modelo de financiamento das conquistas sociais se esgotou com o retorno dos preços das commodities ao seu curso tradicional. A recessão econômica contraiu a arrecadação, acarretando a ele-vação do custo na rolagem da dívida pública. Os juros seguiram nas alturas, empobrecendo famílias, empresas e governos, e incen-tivando o rentismo parasitário. Tudo oprime as contas públicas. Depois das eleições de 2014, o “ajuste fiscal”, com sua sequela de efeitos colaterais, se impôs. O futuro imediato ficou travado.

Hoje, a aposta da “nova matriz econômica” precisa ser revista, e a questão é saber como isso será feito. Há indícios claros de que o Estado não tem como arcar com todos os custos das políticas governamentais sem provocar desequilíbrios fiscais e financeiros. Mas simplesmente cortar gastos públicos representa um tiro no pé, dados os efeitos perversos que isso terá no campo do emprego e da renda. Um ajuste duro, além do mais, tende a ser unilateral e pode fazer a recessão ser mais forte e durar mais tempo. Domar a inflação com estratégias recessivas tem inequívocas consequên-cias políticas e alto custo social.

A saída mais sensata e inteligente seria o entendimento entre os diferentes protagonistas. É possível projetar um ajuste que não dizime a sociedade. Governo, trabalhadores e empresários deve-riam estar procurando zonas de consensos, auxiliados pelos par-tidos. Mas a qualidade da política não ajuda e ninguém toma a iniciativa de patrocinar isso.

Alianças e coalizões

O calcanhar de Aquiles dos governos petistas não tem sido o mau desempenho da economia, mas a política de coalizões, ou seja, o modo como o PT buscou compensar a falta de maioria par-lamentar e de condições de governabilidade. Dadas a fraqueza partidária das esquerdas e a impossibilidade de uma frente social-democrata reunindo PT e PSDB, a opção petista foi buscar apoio no “baixo clero” do Congresso Nacional, ou seja, nos partidos menores. Uma opção de risco, seja porque não estavam ali as lide-ranças políticas mais expressivas, seja porque o preço cobrado pelo apoio foi alto e teve de ser pago em moeda, não só com cargos e favores. O episódio do “mensalão” escancarou o procedimento, que espalhou seus venenos pelo sistema. O partido recompôs sua base, aliou-se ao PMDB e passou a fazer vistas grossas para o crescimento da corrupção, agora praticada mediante empreiteiras e empresas públicas, como a Petrobras. Ainda que não tenha

2020 Marco Aurélio Nogueira

impedido que Lula e Dilma se reelegessem em 2006, 2010 e 2014, tal política de coalizões cobrou seu preço: amarrou e enfraqueceu o PT, descaracterizando-o como força progressista. Terminou por forçar seus governos a uma entrega ao PMDB que, aos poucos, foi engolindo o partido e a própria agenda governamental.

A política de coalizões se articulou com uma política de “aliança de classes” por meio do Estado. Em seus dois mandatos, Lula atraiu o apoio do grande empresariado (agrário, industrial, finan-ceiro) e dos setores organizados da classe trabalhadora em nome de uma política que se apresentava como expansionista e que anunciava ganhos para todos. Fez com que essa aliança servisse de base para a interlocução política com a sociedade, atraindo ao mesmo tempo os setores mais excluídos mediante políticas assis-tencialistas e de transferência de renda. O Estado se converteu no grande articulador político do país, na Meca desejada por todos, para o bem e para o mal. Para manter os inúmeros aliados da hora, Lula, Dilma e o PT concederam todos os anéis, viraram as costas para a esquerda democrática e passaram a tratar os adver-sários como inimigos. Cortaram o país em duas metades. Aju-daram a alimentar o “ódio” de que tanto reclamam hoje.

Com o fracasso da política econômica, a difícil reeleição em 2014 e a falta de molejo político da presidente, o governo Dilma passou a perder apoios em cascata. Não decifrou o jogo político em curso e não conseguiu coordenar nem sequer as próprias bases. Tentou contornar o problema mediante a opção pelo ajuste fiscal, na expectativa de recuperar a interlocução positiva com o mercado, mas este já não se mostrou sensível aos acenos governa-mentais. Reorganizou o ministério para atrair novamente o “baixo clero”, mas o resultado deixou a desejar em todos os sentidos. Procurou explorar o apoio do agronegócio, mas ao fazer isso se isolou dos movimentos sociais.

Sem forças para repor a política de alianças e vendo sua polí-tica de coalizões fazer água, o governo perdeu capacidade de agen-damento e ação. Abriu-se assim esse cenário quase surreal em que nos encontramos, no qual um governo recém-empossado parece prematuramente envelhecido e se arrasta para o ostra-cismo, ameaçando levar a sociedade consigo. A gritaria é geral, mas pouco se faz para que se reponham as bases da convivência civilizada e produtiva entre os que pensam diferentemente.

O sistema político funciona mal. Não consegue dar voz às classes, aos grupos e interesses que digladiam entre si nos sub-

2121O esgotamento de um ciclo imperfeito e o futuro

terrâneos. Nada faz para que o capital e o trabalho apareçam como tal na política. Não há no país um “partido burguês” com força e identidade, contrapartida do fato de que os interesses do trabalho estão estilhaçados por todo o leque partidário, devidamente mis-turados com bancadas evangélicas e corporativas.

Se Lula pôde, em seus dois mandatos, unificar as diferentes camadas de empresários e articulá-los com o mundo do trabalho que se via representado pelo antigo líder sindical, no período Dilma tudo isso foi pelos ares, entre outros motivos porque o sis-tema passou a se ressentir da falta de um ponto de convergência, coordenação e aglutinação – algo que ficou ainda mais indispen-sável a partir do momento em que o modelo econômico começou a rodar em falso. O protagonismo adquirido pelo Estado entre 2003 e 2010 iria pouco a pouco declinar e perder força, em parte pelo agravamento da crise internacional e em parte pela ausência de um projeto político claro que repusesse a coalizão governista como aliança de classes. A falta de um interlocutor político na Presi-dência – a ausência de uma liderança institucionalizada – agravou o quadro e converteu Dilma numa governante errática.

O divórcio entre Dilma, o setor produtivo e as finanças – o mercado – só fez crescer de 2012 em diante. E só não provocou o fim do ciclo petista nas eleições de 2014 por força de uma campanha eleitoral movida a marketing agressivo e que não se envergonhou de empregar os mais baixos recursos de “desconstrução” dos adversários.

O segundo mandato de Dilma agravou o que já era ruim, tanto em termos da situação econômica quanto em termos de ação estatal e de política de alianças. Os diferentes setores da bur-guesia e da classe média soltaram-se do governo, acirraram suas convicções anti-estatais e contrárias ao setor público, afastando-se dos trabalhadores organizados e dos movimentos sociais mais à esquerda, que ficaram assim isolados. O próprio governo ficou sem chão e sem discurso. Aos poucos, foi perdendo os apoios polí-ticos que havia conseguido preservar nas eleições de 2014.

O isolamento da presidente fez coro com a má qualidade de seu ministério e com a perda de confiança da opinião pública em seu governo. Todos se voltaram contra Dilma, dos empresários industriais e da classe média aos bancos e à grande mídia. Os próprios partidos e movimentos de esquerda passaram a condi-cionar a continuidade de seu apoio. Junho de 2013 já havia dado o alerta, mas ele foi desconsiderado, fazendo com que o protesto das ruas permanecesse em estado de latência. Nenhum dos pro-

2222 Marco Aurélio Nogueira

blemas e reivindicações vocalizados nas manifestações de 2013 encontraram acolhida ou tratamento adequado do governo ou do sistema. A insatisfação manteve-se alta, passando a servir de base e pretexto para o gradual descolamento do grande capital e das classes médias em relação ao governo. Por muito pouco Dilma não foi derrotada nas eleições de 2014.

Ao iniciar seu segundo mandato, a presidente já não dispunha de bases sólidas de sustentação. Havia vencido uma eleição durís-sima, mas optou por seguir insensível aos sinais que a competição eleitoral havia exibido. Seus primeiros atos foram ruins: não se abriu ao diálogo ampliado, reiterou a coalizão partidária anterior mas buscando submetê-la ao PT, organizou um ministério de perfil fisiológico e sem nomes capazes de coordená-lo. Em poucos meses o desastre estava consumado. A Operação Lava-jato, as denúncias de corrupção na Petrobras, as seguidas falhas de gestão fiscal e a precariedade da articulação política atearam fogo à crise, facilitando o crescimento das tensões entre os setores das classes dominantes que haviam ganhado com as políticas gover-namentais, as classes médias e o movimento sindical dos traba-lhadores. Quanto mais se isolava, mais o governo se viu obrigado a acenar com mudanças em sua política econômica, de modo a torná-la palatável ao mercado, e mais concessões passou a fazer aos vários pedaços da sua “base aliada”. A turbulência e a falta de rumo do governo acabaram por incentivar as correntes internas do PT a uma luta para “disputar o governo Dilma”, o que só fez piorar a situação.

A crise política, a inoperância governamental, a fratura na aliança de classes e no bloco de poder fizeram com que se abrissem maiores espaços para segmentos organizados em sentido tradicio-nalista, mas modernizados o suficiente para capturar parte da opinião pública. As bancadas da bala, da Bíblia e do boi ganharam protagonismo tanto graças ao recuo propositivo dos partidos democráticos e progressistas, quanto graças à incapacidade destes mesmos partidos de dialogar com a sociedade. Os retro-cessos a que se está assistindo no Congresso Nacional podem ser compreendidos como uma revanche provocada por uma mudança na correlação de forças.

E agora?

Pouco adianta esbravejar ou travar o combate no plano ético-moral. O que se tem feito politicamente para bloquear a onda conser-

2323O esgotamento de um ciclo imperfeito e o futuro

vadora no Congresso ou para incentivar o predomínio de uma pauta democrática e libertária entre os que se manifestam contra Dilma?

O fato é que a polarização PT-PSDB, levada ao paroxismo, está contribuindo para desarticular o campo democrático. Enquanto os democratas ficam se perguntando quem é o mais corrupto ou o mais “de esquerda”, o conservadorismo mostra sua cara. Ele não está somente no Congresso, mas também no governo Dilma: impregna o ministério atual (composto para dar “governabili-dade”), por exemplo. E quanto mais se tem ausência de governo, ou “desgoverno”, mais fortes ficam as correntes conservadoras.

Saídas existem, mas dependem de uma concentração de esforços para a qual o mundo político não está suficientemente preparado.

Aqui, ganha ainda mais destaque a ausência de projetos de sociedade. Como reaglutinar as forças progressistas sem uma ideia de país? Não bastam palavras de ordem e frases feitas, até mesmo porque elas não têm mais o condão de organizar o descon-tentamento popular. Não basta ser “do contra”. Sem uma narra-tiva que dialogue com a vida real das pessoas, com seu cotidiano, não haverá como desenhar um futuro.

A crise atual, portanto, não é somente econômica ou política. É também cultural, moral, intelectual. A sociedade está desar-mada de ideias.

O resultado disso está exposto à luz do dia. A bola de neve da corrupção, a miséria intelectual da política, uma sociedade civil exasperada e mal estruturada, a demonstração cabal de que cargos e vitórias eleitorais não dão sustentação confiável aos governantes e sobretudo uma estrondosa e profunda separação entre sociedade e Estado. A crise política atual reflete isso, ainda que também deva ser lida pela chave da inoperância presidencial e da falência ético-política do principal partido do campo social-democrata, o PT. O povo se distanciou dos governos, e especialmente do governo federal, peão principal de um sistema presidencialista. Não convi-dado, ao longo dos anos, para discutir seriamente a relação com os governos, o povo optou por romper relações com eles.

O que virá pela frente é uma incógnita, mas dá para dizer que um novo ciclo já está brotando e que avançará em diálogo com obra da democratização e com a social-democracia imperfeita do ciclo que hoje se esgota. Isso pode significar que uma opção social-demo-crata permanecerá a disputar hegemonia na vida nacional. Se tal opção se materializará ou não é algo a ser respondido mais à frente.

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A crise e seus efeitos dramáticos sobre os brasileiros

Roberto Freire

Enredada pela conjugação entre graves crises na economia e na política, que vêm formando o que analistas chamam de “tempestade perfeita”, a presidente Dilma Rousseff

segue imobilizada diante da série de más notícias que se avo-lumam a cada semana. A mais recente faceta do descalabro que toma conta do país foi a prisão do líder do governo no Senado, senador Delcídio do Amaral (PT-MS).

O Supremo Tribunal Federal não viu outra saída senão mandar prendê-lo para que ele deixasse de tentar atrapalhar as investiga-ções da Operação Lava-Jato. Nunca antes na história deste país um senador em exercício de mandato havia sido preso.

Mas o parlamentar petista extrapolou todos os limites e ofe-receu suborno e até mesmo fuga ao ex-diretor da área internacional da Petrobras, Nestor Cerveró, para que ele desistisse da delação premiada que estava negociando com o Ministério Público Federal. Será que Delcídio estava preocupado somente consigo mesmo ou com gente mais graúda do atual governo e do anterior?

Uma das afirmações de Cerveró é que Dilma sabia que a compra da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, era um péssimo negócio para a Petrobras. E mesmo assim, como presidente do Conselho Administrativo da estatal, ela aprovou o negócio. Espe-remos para ver os detalhes na delação do ex-diretor e os desdobra-mentos cada vez mais preocupantes da Lava-Jato para o PT.

Desemprego

Outra tragédia foi apresentada pelo IBGE. São os números do desemprego levantados na Pnad Contínua que mostram que a população sem trabalho no Brasil chegou a 8,979 milhões de pes-soas no terceiro trimestre.

De acordo com o levantamento, houve um aumento de 33,9% – ou 2,274 milhões de pessoas – em um ano, o que se configura na maior expansão da série histórica, iniciada em 1992.

2525A crise e seus efeitos dramáticos sobre os brasileiros

Segundo dados da Pnad Contínua, houve aumento de quase dois milhões de desocupados, elevação muito relacionada com empregos com carteira assinada. A população ocupada ficou pra-ticamente estável, conforme os números divulgados pelo IBGE, com 121 mil a menos que o trimestre anterior e 179 mil inferiores ao ano anterior.

Um dos setores mais atingidos pela inoperância do governo federal desde os tempos de Lula, a indústria respondeu pela maior perda de vagas. Os mais atingidos pela avalanche de desemprego são os jovens entre 18 e 24 anos, as pessoas com idade de 40 a 59 anos e acima de 60 anos. Entre os mais jovens, o desemprego subiu de 18,6%, no segundo trimestre, para 19,7, no terceiro.

Um ajuste contra os trabalhadores

A incompetência e a irresponsabilidade de Lula e Dilma na condução da economia brasileira foram tão gritantes, gerando o descalabro nas contas públicas do país, que um ajuste fiscal é mesmo necessário. Mas, evidentemente, não nos termos em que foi apresentado, sacrificando os trabalhadores. O paradoxo da proposta do governo petista é que, em plena recessão, as medidas se limitam ao aumento de juros e ao corte de investimentos. Ao invés de amenizar a crise, o resultado inequívoco é justamente o seu agravamento, como atesta a escalada do desemprego e a queda na renda das famílias.

O tipo de ajuste apresentado por Dilma e Joaquim Levy é uma invencionice criada para atender aos interesses da banca finan-ceira em detrimento da classe trabalhadora, que sofre com a perda de benefícios e direitos históricos. Se alguém imagina que esse pacote será suficiente para fazer o Brasil retomar a trilha do desenvolvimento, os indicadores de desemprego dão a resposta. Este não é, nem de longe, o melhor caminho.

Sem qualquer perspectiva de recuperação de curto prazo no campo econômico, Dilma também enfrenta enormes dificuldades políticas, com a desarticulação da base aliada e a falta de interlo-cução mínima com as diversas forças que compõem o Parlamento. A crise é tamanha que a perda de apoio político no Congresso pode até levar, em última análise, à ingovernabilidade. Se che-garmos a tanto, a resolução de um eventual impasse institucional pode desaguar em um processo de impedimento da presidente da República, já reivindicado por amplos setores da sociedade.

2626 Roberto Freire

A recessão da economia, o desemprego, a inflação, os desdo-bramentos do maior escândalo de corrupção da história republi-cana, além do isolamento político, só aumentam a temperatura e a pressão sobre o governo, levando à chamada “tempestade per-feita” que engolfa Dilma e o PT. É a tempestade da incompetência, do despreparo, da impostura. Que seja breve, pois seus efeitos mais devastadores já se fazem presentes país afora, diariamente, e atingem milhões de famílias brasileiras. Não se sabe quanto tempo ainda vai durar, mas é certo que passará.

O empobrecimento do Brasil

O desmantelo da política econômica levada a cabo pelos governos de Lula e Dilma vem cobrando um elevado preço a ser pago diariamente pelos brasileiros na forma de inflação, desem-prego e perda da renda. Em 2015, pela primeira vez nos últimos 11 anos, haverá uma queda substancial do poder de compra da população, o que confirma as expectativas mais pessimistas em relação ao futuro de nossa economia. Segundo estudo da consul-toria Tendências, infelizmente, o cenário deve se repetir em 2016, não havendo no horizonte sequer uma tímida esperança de melhoria no médio prazo.

De acordo com o levantamento, os recursos disponíveis para o consumo dos brasileiros, que vinham crescendo a um ritmo anual médio de 2,5% desde 2004, devem sofrer um tombo de nada menos que 7,7% em 2015. Para o próximo ano, a projeção é de nova queda de 1,6%. Em números absolutos, os cidadãos tinham em mãos R$ 3,06 trilhões em 2014 para gastar tanto em itens considerados essenciais como educação, transporte, habitação, energia e água, quanto em bens de consumo e serviços. Neste ano, esse valor será de R$ 2,82 trilhões e, em 2016, não passará de R$ 2,78 trilhões – semelhante ao de cinco anos atrás (R$ 2,72 trilhões em 2011).

Diante da absoluta incompetência do atual governo, completa-mente desorientado na área econômica, os consultores projetam um índice de desemprego de 8% ao final deste ano e de até 8,5% em 2016. A inflação, segundo as estimativas, deve fechar 2015 acima de 10,5% e continuar corroendo a renda das famílias. A retração econômica do país, ainda de acordo com a consultoria, deve ser de 2,8% neste ano e de mais 1% em 2016, o que afeta diretamente o mercado de trabalho, com elevação do desemprego,

2727A crise e seus efeitos dramáticos sobre os brasileiros

reajustes mais baixos ou até mesmo congelamento de salários para quem continua empregado.

Apesar da gravidade de uma das maiores crises econômicas da história do país, o que chama a atenção é a omissão quase total do empresariado nacional diante de tamanho descalabro. Enquanto as empresas fecham e o desemprego não para de subir, os empresários permanecem calados e acabam, de certa forma, sendo coniventes com o desastre patrocinado pelo desgoverno lulopetista no Brasil.

Quando o então presidente Lula propôs ao Congresso a pror-rogação da famigerada CPMF, o empresariado reagiu fortemente e foi determinante para a derrubada de um imposto amplamente rejeitado pela sociedade. Naquela oportunidade, houve uma grande mobilização nacional, ecoada pelas principais lideranças do setor, e o governo fracassou na tentativa de aumentar a carga tributária e jogar sobre os ombros dos cidadãos a fatura do des-controle financeiro da União. Lamentavelmente, na crise atual, não se vê reação daquele nível.

Um governo que já não governa

Como se ainda fosse necessário, a presidente Dilma Rousseff parece se superar a cada dia na dedicada tarefa de apresentar aos brasileiros as credenciais de sua própria incompetência. A mais recente trapalhada de um governo que não tem mais nada a ofe-recer ao país é a entrega ao Congresso Nacional da peça orçamen-tária de 2016 com um déficit de mais de R$ 30 bilhões, o que escan-cara o tamanho do rombo produzido pelo PT nas contas públicas e o total descompromisso do Executivo com suas obrigações.

Além de assumir categoricamente que o governo não tem capa-cidade sequer de pagar as próprias contas, Dilma não demonstra constrangimento em violar a Lei de Responsabilidade Fiscal, que entrou em vigor durante o segundo mandato de Fernando Hen-rique Cardoso. O texto legal é claro e não deixa margem para dúvidas: o Executivo tem de dizer de onde vêm as receitas para cobrir as despesas previstas – e entregar ao Legislativo uma pro-posta de Orçamento equilibrada, e não deficitária.

A desfaçatez lulopetista, além de flagrantemente ilegal, é moralmente inaceitável. Incapaz de realizar os cortes e ajustes que se impõem para o equilíbrio orçamentário, sobretudo depois da farra dos últimos 13 anos que destruiu as contas do país em

2828 Roberto Freire

troca da popularidade fácil e para perpetuar o PT no poder, o governo joga sobre os ombros do Parlamento uma proposta incon-cebível e tenta transferir aos congressistas uma prerrogativa exclusiva da presidente da República.

O rombo no Orçamento é o atestado definitivo da incapacidade do governo do PT de conduzir o país em meio a uma das maiores crises de nossa história republicana. A política econômica irrespon-sável levada a cabo por Lula, com base no incentivo ao consumo exacerbado, levou o país ao chão. A conta que a sociedade paga hoje é altíssima e vem na forma de desemprego, inflação, endivida-mento e queda da renda das famílias, além da desindustrialização que comprometerá o desenvolvimento do Brasil por décadas.

A conjunção de diversas crises – econômica, social, política e moral – se agrava a cada dia e paralisa o país. A ingovernabilidade se instalou de tal forma que a presidente da República já não con-segue comandar coisa alguma, pois perdeu a credibilidade e o apoio parlamentar que lhe dava sustentação no Congresso. O único objetivo de Dilma é permanecer no cargo e concluir o mandato para o qual foi eleita graças às mentiras, aos ataques rasteiros contra os adversários e às irregularidades nas contas de campanha – mas esse desfecho parece cada vez mais improvável diante das enormes dificuldades no horizonte político, o que reforça a tese do impeachment.

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Reflexões (pouco otimistas) sobre a atual crise brasileira

Paulo César Nascimento

Sabemos desde a Grécia clássica que crises não signi-ficam somente declínio e fraqueza, mas também Kairos – momentos de novas oportunidades de ação e reflexão que

devem ser aproveitados por aqueles que desejam protagonizar mudanças. A atual crise brasileira, em suas dimensões politicas, econômicas e éticas, está justamente oferecendo esta oportuni-dade de reflexão sobre o país. Ela nos permite avaliar o quanto o Brasil tem melhorado em certas áreas, estancado em algumas, e piorado em tantas outras. Embora o desenrolar da crise possa ainda apresentar novas tendências e surpresas, algumas de suas características já podem ser identificadas.

Um delas é a tradição brasileira de enfrentar seus impasses através de mudanças pelo alto, a partir de instituições do Estado e de instâncias administrativas e governamentais. Muitos dos momentos que levaram a modificações importantes na política e na realidade socioeconômica do país tiveram o Estado como pro-tagonista principal. Esta tradição é inaugurada em 1808, quando a vinda da Coroa portuguesa para o Brasil e o estabelecimento de uma administração centralizada substituiu os frouxos laços que a colônia havia mantido até então com a metrópole. A chegada do monarca português, e a subsequente abertura dos portos, pro-vocou profundas mudanças no Brasil, modernizando-o em vários aspectos. Da mesma forma, o governo Vargas, na década de 30 do século passado, ainda que de forma autoritária, promoveu direitos civis e sociais, lançou o esforço de industrialização do país e con-solidou a nação por meio do poder federal.

A atual crise brasileira tem repetido essa tradição. É de algumas instituições do Estado que partem os indícios mais signi-ficativos de que o clientelismo, uma das causas da própria crise, está finalmente sendo combatido com rigor. O Ministério Público tem se destacado no combate à corrupção e à utilização indevida do poder para favorecer grupos econômicos e políticos. O Judi-ciário brasileiro estabeleceu-se definitivamente como poder autô-nomo, com uma nova geração de juízes e desembargadores exer-cendo papel fundamental no estabelecimento de uma cultura de

3030 Paulo César Nascimento

respeito e cumprimento à lei. Da mesma forma, quadros de servi-dores da receita e da polícia federais têm combatido com êxito a sonegação fiscal, a corrupção e a formação de cartéis.

Todos estes fatos coadunam-se com alguns postulados clás-sicos da teoria sociológica e da ciência polìtica. Max Weber res-saltou a importância, nas sociedades democráticas modernas, da presença de quadros profissionais de servidores públicos exer-cendo suas atividades dentro de um ethos de impessoalidade e meritocracia; já as teorias institucionais têm apontado a impor-tância das instituições – governamentais e outras – na criação de incentivos que influenciem o comportamento dos atores políticos e econômicos, beneficiando práticas transparentes e legais, e aumentando os custos de práticas clientelistas.

Ainda assim, estes avanços são muito limitados para alimentar qualquer otimismo. O Estado brasileiro continua sendo, para todos os efeitos práticos, um enorme paquiderme ineficiente e per-dulário, cujos ministérios são loteados em troca de apoio político. Pior que isto, práticas clientelistas e patrimonialistas que vieram à tona nos últimos anos, como os escândalos do mensalão e do petrolão, são reproduzidas, ainda que em escala inferior, por todo o Brasil. Relações espúrias entre capital privado, governo e grupos políticos constituem a cultura política do país, e, por isso, fazem parte igualmente da realidade das pequenas e médias empresas, prefeituras e câmaras de vereadores. E as instituições federais que estão protagonizando as tímidas mudanças apontadas acima não têm poder de chegar até esse nível micro e mais localizado de atividades clientelistas.

Se esta suposição for correta, então ela é prenhe de conse-quências políticas. Significa, em primeiro lugar, que as observa-ções feitas por Oliveira Vianna no início do século passado, a res-peito dos efeitos negativos que teria no Brasil uma descentralização política aos moldes do federalismo norte-americano, continuam atuais: descentralizar significaria ceder mais poder aos chefetes políticos locais e fortalecer suas relações de clientela.

Mas se é possível visualizar mudanças em algumas institui-ções do Estado, em nível da sociedade brasileira a questão é bem mais complexa. É certo que a mídia tornou-se instrumento funda-mental de informação e análise dos problemas do país, além de exercer importante pressão sobre as autoridades. Entidades não governamentais e movimentos sociais também avançam agendas democráticas, ligadas a reivindicações sociais, direitos específicos

3131Reflexões (pouco otimistas) sobre a atual crise brasileira

de minorias, ou políticas contra a discriminação racial e de gênero. Ainda assim, a sociedade brasileira, até por falta de uma tradição democrática no país, organiza-se prioritariamente em torno de interesses específicos de grupos, e bem menos em torno de temas mais amplos que pudessem ser articulados nacionalmente.

As siglas partidárias, por sua vez, aparecem e desaparecem com fantástica rapidez, servindo a interesses particulares de lide-ranças políticas e seus grupos, ao invés de exercer aquilo que realmente constitui o leitmotiv da existência qualquer partido polí-tico genuíno: a agregação de interesses em torno de agendas nacionais, e o fortalecimento do vínculo entre sociedade e Estado.

Além dos partidos políticos e de grupos organizados em torno de agendas específicas, existe uma numerosa parte da população do país de baixa renda sem vínculos institucionais estáveis, que se torna presa fácil do populismo ou de políticos vinculados a igrejas neopentecostais. O legislativo brasileiro, neste sentido, representa bem a constelação societária da qual é oriunda. É uma instituição fragmentada em grupos de interesse representados por bancadas como a ruralista, a evangélica e outras, que se tor-naram por sua vez sustentáculo do ineficiente e corrupto “presi-dencialismo de coalizão” brasileiro.

A crise brasileira, no entanto, estaria incompleta se não se mencionasse o papel que nela desempenha o lulopetismo. O par-tido dos trabalhadores, em seus 13 anos de poder, tem levado a cabo uma sistemática destruição de todos os avanços econômicos e políticos que o Brasil obteve desde sua redemocratização. O tripé macroeconômico responsável pela estabilização que o país conhece desde o plano real está sendo paulatinamente destruído: queda do superávit primário devido ao desequilíbrio nas contas públicas, metas de inflação abandonadas e taxas de câmbio mantidas arti-ficialmente por meio de intervenções governamentais.

Na área política, o PT aparelhou as instituições governamen-tais, sustenta uma base parlamentar instável através da distri-buição de cargos e benesses, e organizou um vasto sistema de corrupção envolvendo empresas públicas e fundos de pensão para fins de manutenção do seu poder. Ataca periodicamente a mídia, o Judiciário e outras instituições, sempre que seus interesses e objetivos são contrariados. O PT, enfim, reforçou e expandiu o clientelismo e o patrimonialismo em níveis nunca antes vistos no Brasil. A crise atual brasileira, em larga medida, é a crise do sis-tema de poder mantido pelo lulopetismo.

3232 Paulo César Nascimento

Diante deste quadro desanimador, torna-se óbvio que qual-quer superação da atual crise tem que passar pela saída do par-tido dos trabalhadores do governo, seja via eleições ou impedi-mento da presidente Dilma, caso as contas de seu governo ou o financiamento da sua campanha eleitoral sejam rejeitados pelos órgãos competentes. Mas este é apenas o primeiro passo, talvez até o mais fácil deles, pois se o sistema político se mantiver inal-terado, nada impede que outras forças políticas reproduzam no futuro a lógica de poder do PT.

Por outro lado, é preciso reconhecer que por mais meritória que seja a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário, não se pode esperar que estas duas instituições se responsabi-lizem pela renovação do sistema político brasileiro. Ao contrário, se no curto prazo a intervenção do Supremo Tribunal Federal para dirimir problemas legislativos é positiva, no longo prazo tal prática pode levar à judicialização da esfera da política e ao desequilíbrio das relações entre os três poderes.

A melhor alternativa possível a esta conjuntura não é novi-dade: a formação de um bloco de forças que aposte em mudanças de longo prazo no sistema político e na sociedade brasileira. Não é tarefa fácil, já que mudanças no atual sistema político, que teriam de incluir, entre outras coisas, novas regras para financiamento eleitoral e formação de partidos, além de uma possível mudança na forma de governo, certamente iriam contrariar muitos inte-resses no viciado parlamento brasileiro.

Caso tal coalizão política seja formada, ela teria ainda que superar a envelhecida dicotomia PT versus PSDB, que tem sido a marca da política brasileira nas últimas duas décadas, e propor uma nova alternativa de governo. A chegada ao poder de tal coa-lizão seria o evento mais importante, pois vale reiterar que a tra-dição brasileira favorece reformas modernizadoras oriundas do Estado. A partir disso, vínculos mais democráticos teriam que ser estabelecidos com a sociedade brasileira, de forma a mudar gradualmente a cultura política do país. Missão impossível? Parece que sim, se analisarmos racionalmente a lastimável con-juntura nacional. Mas como disse certa vez um conhecido pen-sador italiano, o otimismo da vontade pode às vezes superar o pessimismo da razão.

3333

O perigo do imobilismo

Moacir Longo

Depois das vigorosas manifestações de rua, ocorridas nos meses de março e abril deste ano de 2015, tivemos um refluxo dos movimentos em favor do afastamento de Dilma

Rousseff da Presidência da República. Evidenciando-se, também, as dificuldades crescentes da oposição institucional (leia-se par-tidos políticos) em apontar caminhos viáveis para enfrentar as crises política e econômica, acrescida de crise social, que vai se desenhando, em consequência do aumento do desemprego e queda da renda da população, agravada pela inflação que começa a sair de controle.

De modo que estamos diante dos fatores que apontam para uma paralisia do país e de suas forças políticas à espera de ele-mentos novos para retomar o movimento pelo impeachment ou aguardar as eleições de 2018, já que, no momento, faltam dados contundentes para dar sustentação jurídica à abertura do pro-cesso de afastamento da presidente, apesar da montanha de denúncias levantadas pela operação Lava-Jato, comprobatórias da corrupção na Petrobras e em outras esferas da administração federal. Assim, o processo aberto pelo ex-promotor público Hélio Bicudo, endossado pelos partidos de oposição, que teve que se basear, fundamentalmente nas chamadas pedaladas fiscais, de eficácia duvidosa para o prosseguimento da ação, ficará em banho maria, não se sabe por quanto tempo.

Resta, portanto, considerar que o elemento de maior peso a dificultar essa operação de afastamento de Dilma da Presidência está na ausência de condições políticas, indispensáveis para a condução de uma ação dessa natureza, o que não ocorreu quando foi possível o afastamento de Collor, em 1992. A partir dessas con-siderações, pode-se concluir que o país, talvez, tenha que conviver com as suas atuais crises até as eleições gerais de 2018. E por quê? Porque o PMDB, partido que tem sido pilar da governabili-dade desde 1985, faz parte da tal base de sustentação do governo lulo-petista, e reluta em desembarcar da canoa furada em que navega com Dilma e seus comparsas.

3434 Moacir Longo

A maioria deste partido ainda prefere desfrutar dos cargos e das verbas de que dispõem, participando da base governista, acre-ditando que a entidade não será afetada pelo desgaste do governo, provocado pela crise, entendendo que, ao contrário, será benefi-ciada por mais vantagens no futuro. Conclusão óbvia: sem o PMDB, não há condições políticas para afastar a atual ocupante do Palácio do Planalto.

Além dos elementos já citados, temos o fator Cunha. Quando o governo conseguiu, através do procurador geral da República, Rodrigo Janot, concentrar as acusações de corrupção reveladas pelos delatores da operação Lava-Jato sobre o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, poupando os mais de 50 políticos envolvidos no escândalo da Petrobras, inclusive o pre-sidente do Senado, Renan Calheiros, diminuíram ainda mais as condições políticas para que a bandeira do impeachment tivesse apoio de uma maioria sólida na Câmara dos Deputados.

O que se vê, desde então, é uma insistência de todo noticiário voltado para a cassação do mandato de Cunha, e não da chefe do Executivo Federal. Com isso, o governo consegue mudar o foco de suas lambanças para um cenário que constrange o PMDB, emba-ralha o jogo no Legislativo e coloca suas tropas de choque for-madas por movimentos sociais pelegos, sustentados com dinheiro público, para induzir os brasileiros de que, cassado Cunha, está resolvida a crise.

É claro que o presidente da Câmara dos Deputados está sem condições de exercer o seu cargo diante das provas já juntadas contra ele. É claro que ele tem que deixar a Presidência da Casa, seguida da perda do mandato de deputado, mas isso não implica em abrir mão de uma pressão crescente pelo afastamento de Dilma da chefia do Executivo, pois é aí que está o foco da crise. E a opo-sição, para exercer seu papel tem que chamar para o centro do debate os desmandos do governo lulo-petista, a impossibilidade de mudar os rumos do país com Dilma à frente do governo, já que ela perdeu as condições éticas, morais e de credibilidade para conti-nuar comandando o Brasil. Cabe ainda à oposição propor medidas visando fortalecer a democracia no país, retomar o crescimento econômico, recuperar e aumentar a renda da população, reduzindo o desemprego, a inflação para o centro da meta, com medidas fortes de ajuste fiscal, cortando gastos que sustentam mordomias e empreguismos na máquina pública, inchada com um número de ministérios impensável em qualquer um outro país.

3535O perigo do imobilismo

Recentemente, tivemos em Brasília o Congresso Nacional do PMDB, que levaria esse partido a liderar mudanças nos rumos do governo atual. Trata-se de propostas genéricas, parecidas com aquelas apregoadas pelo ministro Joaquim Levy. Após o evento que confirmou a presença desse partido na base governista, nada de novo aconteceu, pois sem remover do Palácio do Planalto a atual presidente, a crise geral permanece e continuará cada vez mais aguda.

De modo que cabe à oposição o papel de liderar o processo de mudanças, a começar pelo afastamento da presidente (nos termos da Constituição), que simboliza um sistema de poder, hoje, repu-diado pela esmagadora maioria do povo brasileiro. Mudanças explicitadas em um programa consistente e mobilizador da socie-dade, sem o qual a retomada da bandeira do impeachment não irá prosperar, permanecendo o país à deriva, até às futuras eleições de 2018.

II. Observatório

Autores

Lincoln de Abreu PennaProfessor de Teoria Política e Coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp, em São Paulo .

Luiz Sérgio HenriquesTradutor e ensaísta . Um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil .

Ruszel Lima Verde CavalcantePromotor de Justiça do Estado do Piauí e escritor . Especialista em Relações Internacionais pela UnB . Mestre em Direito Internacional Econômico pela UCB . Doutorando em Direito Público pela Universidade de Paris 1 .

3939

Lava-Jato, partidos e democracia

Luiz Sérgio Henriques

Difícil calcular, ainda, o impacto e o alcance de uma ope-ração como a Lava-Jato não só sobre usos e costumes como também sobre o sistema partidário, este elemento

central da vida democrática. Numa visão clássica da moderna comunidade política de massas, os partidos são a própria “demo-cracia que se organiza”, a “democracia que se afirma”, ao lado, naturalmente, de outros numerosos institutos que expressam o associativismo, representam interesses e, em última análise, animam o confronto de ideias e dão substância ao pluralismo.

Não é trivial saber, pela voz do Ministério Público, que haverá consequências para partidos, como o PT ou o PMDB, que em maior ou menor grau se envolveram em esquemas de poder ao longo dos últimos governos. Estes dois partidos não são agremiações irrele-vantes: estão longe de ser cartórios ou ajuntamentos eleitorais remanescentes de outros tempos, como o atual Partido Progres-sista, igualmente atingido pelas investigações e, ao que tudo indica, sem perspectiva de sobreviver.

O primeiro corporificou majoritariamente a “nova esquerda” tal como construída no país redemocratizado; o segundo consti-tuiu o instrumento decisivo para a derrota do regime militar, manteve capilaridade em todo o território, mesmo depois do desa-parecimento de suas lideranças históricas e de sua evidente invo-lução programática – o partido que gerou, há décadas, docu-mentos como “Esperança e mudança” só recentemente reencontrou fôlego para propor “uma ponte para o futuro”, seja qual for o juízo

4040 Luiz Sérgio Henriques

que fizermos da possibilidade de uma ação partidária minima-mente vertebrada daqui por diante.

O impacto sobre um partido de esquerda, como o PT, medido pela eventual retenção significativa de fundos públicos ou pela hipótese extrema de cassação do registro, não pode nem deve ser subestimado. Melhor buscar atar algumas pontas soltas de nossa história política do que bradar, de modo estridente ou imaturo, contra perseguições ou pretensas tentativas de criminalização de uma força popular, urdidas por uma “direita” aninhada nos órgãos republicanos de controle e mancomunada com a mídia conserva-dora e outras forças do mal. O maniqueísmo não costuma ser bom conselheiro; antes, é uma das formas prediletas de loucura indu-zidas pelos deuses naqueles a quem querem perder.1

Se de esquerda falamos e com fios soltos temos de lidar, um caminho é fazer um corte radical e voltar brevemente a um tempo distinto sob tantos aspectos, mas também, como este nosso, um tempo partido e de homens partidos, para evocar a imagem de um esplêndido poeta então momentaneamente “engajado”. Interessan-tíssima experiência teve a esquerda marxista brasileira – partida-riamente organizada – no curto período de legalidade do antigo PCB, logo no segundo pós-guerra. Com relativo êxito eleitoral, este grupo obteve registro entre novembro de 1945 e maio de 1947, enri-quecendo as instituições com a representação dos excluídos, tal como se podia esperar de um partido que contava, entre outros, com Prestes, Jorge Amado, Mario Schenberg e Caio Prado Jr.

Ça va sans dire, aquele comunismo tinha relações conflituosas com a democracia política. Por um lado, sua presença legal alar-gava os espaços da representação e introduzia no sistema parti-

1 O traço maniqueísta, contudo, atravessa de ponta a ponta o documento “Em defesa do PT, da verdade e da democracia”, assinado por “um grupo de dirigentes da Comissão Executiva Nacional” daquele partido, à frente o presidente nacional da legenda. A gravidade da situação é percebida pela menção à possibilidade extrema de cassação do registro, “como ocorreu em 1947 com o antigo PCB”. Uma percepção desvirtuada não só pela estridência retórica, que fala em “cam-panha de cerco e aniquilamento” levada a cabo, de modo “solerte”, por chefes da oposição, mídia monopolizada e setores do aparelho de Estado, mas também pelo fato de ignorar a conexão no pós-guerra entre política nacional e política in-ternacional. Em outros termos, sem a guerra fria não se explicaria a cassação do PCB – um fator que, hoje, é rigorosamente inexistente. A natureza das acusações que se fazem ao PT, desde pelo menos a Ação Penal 470 já transitada em julgado, é bem outra. Não é convincente referir-se à “mitologia do mensalão” ou acusar “o golpismo latente da oposição brasileira e seus ‘asseclas’ no aparato judicial”, como faz o documento, permitindo-se, ainda por cima, pesados ataques pessoais a membros do Judiciário e demais órgãos de controle.

4141Lava-Jato, partidos e democracia

dário um contingente de cidadãos até então majoritariamente excluídos. Por outro, era de se esperar que a própria democracia, com sua dinâmica e suas exigências inescapáveis, reduzisse o caráter toscamente antissistema do ator, tal como configurado no marxismo-leninismo de extração stalinista. Um duplo movimento que, realizado em outros lugares, traria ganhos consideráveis à vida civil, e podemos supor razoavelmente que não teria sido dife-rente na democracia garantida pela Constituição de 1946.

Assim, a prolongada clandestinidade ou semilegalidade do PCB não dizia respeito só aos comunistas, mas representava pesada hipoteca sobre a qualidade de nossa vida pública. Entre outras coisas, contribuiu para que a esquerda marxista, em sua quase totalidade, amadurecesse com dificuldade ou não amadure-cesse de todo, mantendo extemporâneas veleidades “revolucioná-rias”, haja vista a fortuna retórica – má retórica! – dos apelos à “luta armada” que vez por outra ainda se fazem ouvir, no rastro da memória dos hiperideologizados anos 1960.

Já quase esvaziada a forma política do comunismo histórico, o PCB empregou suas últimas forças numa tarefa ainda insuficien-temente resgatada e valorizada, a saber, uma estratégia de frente democrática com o segundo dos partidos hoje sob risco de punição, o MDB e o PMDB, para enfrentar o regime ditatorial.

Do ponto de vista teórico, em prazo maior ou menor uma estra-tégia desse tipo não poderia deixar de ter repercussões decisivas – para falar com clareza, a assimilação e a valorização dos princí-pios liberal-democráticos, a compatibilização das “liberdades negativas” próprias do liberalismo com as “liberdades positivas” próprias das correntes democráticas, sempre preocupadas com a generalização da cidadania e a regulação das economias de mer-cado. Afinal, só espíritos extremados, adeptos de um liberalismo econômico sem limites, admitem como boa coisa uma “sociedade de mercado”, fechando os olhos para injustiças e desigualdades que gera automaticamente.

É possível que parte considerável das dificuldades do petismo no poder consista na manutenção puramente exterior de alguns dos piores vícios do comunismo histórico, como o centralismo, o culto à personalidade e a pretensão de ser superior às degenera-ções “burguesas”, como se isso garantisse, a priori, a correção de comportamentos individuais e políticas públicas. E como se os críticos, sejam quais forem suas motivações e orientações de valor, devessem ser confinados no perímetro de uma odiosa “direita”, à

4242 Luiz Sérgio Henriques

qual no fundo não se reconhece legitimidade por estar na con-dição de “inimigo total”. É o que nos volta a ensinar, como num manual, o bolivarianismo da vizinhança, cuja linguagem conta-minou amplamente o petismo oficial.

Nossa esquerda, em algum momento, renunciará a este legado?

4343

Ativismo Robinson Crusoé: da servidãovoluntária ao respeito de si mesmo

Ruszel Lima Verde Cavalcante

O Brasil não vive uma transformação política e não a viverá tão cedo. O que estamos testemunhando é apenas o exau-rimento de um modo de gestão pública que associa gastos

volumosos e irresponsáveis à corrupção por demais desenfreada, por que não dizer tresloucada? Assim, os atores políticos se tor-naram apenas um peão no tabuleiro do xadrez das finanças e dos interesses internacionais que nos jogam para o ralo de outrora, desgoverno, inflação, corrupção e ilegalidades.

‘’Aquele que ocupa função pública tem obrigações frente aos cidadãos que lhe deram confiança e cooperação para fazer fun-cionar uma sociedade democrática’’,1 pensamento que reflete a própria existência do Estado, como uma cooperação mútua e van-tajosa segundo regras que se impõem à liberdade como limites necessários a benefícios que todos possam usufruir.

O Brasil não vive uma transformação política e não a viverá tão cedo, pois as famílias e seus modos de gestão estão associados à manutenção do status quo da corrupção (observação feita para a América Latina e a China). Em artigo no livro Jours de Colère, o mesmo autor assim abordou a questão da corrupção:2

Se toda a elite política e/ou econômica de um país adere a prin-cípios que toleram a corrupção e o nepotismo, então as institui-ções melhor concebidas não funcionarão.

É a velha questão do ovo e da galinha, à qual são confrontados muitos países em transição ou em via de desenvolvimento: Eles tem necessidade de instituições jurídicas sãs e transparentes para poderem criar um sistema de confiança generalizado que se estenda além do ciclo estreito da família e dos amigos, resul-

1 RAWLS, John. Théorie de la Justice . Paris: Éditions Points. 2009. p. 143.2 FUKUYAMA, Francis. A Grande Ruptura, a natureza humana e a reconstrução da

ordem social. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 96.

4444 Ruszel Lima Verde Cavalcante

tando portanto em impedimento à instituições com tais caracte-rísticas.3 (tradução do autor).

O que fazer ? Bem, bater palmas e sorrir para os corruptos é que não é, mas o fazemos ante uma teia de cumplicidade e coni-vência das famílias com o sistema herdado de gestão da coisa pública, que envolve inclusive a transmissão de poder de pai para filho, de marido para esposa, de tio para sobrinho, com o aval delirante de uma massa que ainda não entendeu que o poder é dela mesma.

O Brasil poderá viver uma transformação política, caso você aceite fazer parte de uma corrente de sacrifícios individuais em que você eventualmente não estará vivo para ver o resultado, mas tal transformação depende fundamentalmente dessa decisão hoje, individual, quieta, muda, mas que se revestirá de uma atitude que chamo de solidariedade consigo mesmo.

O preço? Bem, ele existe com toda certeza meu caro leitor, será aquele de transformá-lo em uma espécie de novo Robinson Crusoé, ilhado em si mesmo e longe da civilização perdida dos corruptos e da quimera da cupidez econômica, mas em paz consigo mesmo, em paz com a consciência de fazer e de ter feito a boa história, ou seja, a inversão do processo histórico que vem do descobrimento de nossas terras aos dias de hoje.

Destarte, não vejo outra solução que a da aplicação da velha pena primitiva do direito penal, a do banimento, mas não a do bani-mento social, por ser impossível que, sozinho, se possa banir da sociedade quem quer que seja, mas você pode aplicar às pessoas corruptas e às tais famílias que passam o poder aos descendentes, o banimento do seu sorriso, do seu aplauso, do seu convívio.

Um bom fundamento para tal comportamento está no ensina-mento preconizado por Jean Jacques Chevallier, pois, referindo-se a Julien Benda em as Grandes Provas às Democracias, disse:4

O plano da obra, nos orienta, de imediato, no capítulo I à natu-reza dos princípios da democracia tanto dentro de uma ordem

3 ______. Encore césenchanté ? Capitalisme Social, Développement et capitalisme postindustriel in Jours de Colère . Paris: Descartes & Cie: 2009. p. 71 a 91, 88 a 90.

4 CHEVALLIER. Jean-Jacques (1900-1983). Cours d’histoire des idées politiques [Texte imprimé]: recherches sur la naissance et le développement de l’idée démo-cratique doctorat 1960-1961. identifiant: PPN015202070; 000078979 Bibliothè-que Cujas-Paris.

4545Lava-Jato, partidos e democracia

espiritual quanto política: antes de tudo a dignidade da pessoa humana dentro das relações entre os cidadãos.

Daí decorre que o Estado é feito para os indivíduos e não o contrário.

O autor estuda a origem dos princípios da democracia sob uma dupla ótica: socrática e cristã, para admitir que verdadeira democracia repousa em um sentido de estar sempre a ser feita. (tradução do autor).

O Brasil poderá viver uma transformação política que vai redundar em melhoria e qualidade de vida da população se você deixar de acreditar em propagandas e índices e passar a se solida-rizar com a realidade vivida de grande parte dos brasileiros, donde a vida se resume ao vai e vem do trabalho para casa como se fossem da Casa Grande para a Senzala.

E se você é um desses ou se sente um desses, abra o olho, faça uma análise dos reais ganhos que você obteve, em moradia sadia, em esgotamento sanitário, em transporte digno, em educação e saúde de qualidade para você e seus filhos, sem falar na segu-rança pública, que constrange essa tal propagada saída da zona da miséria. Depois de fazer esse balanço, não precisa de muito raciocínio para enxergar seu erro e ter uma nova postura.

Agora, se você é um daqueles entre a classe média e a classe rica, a questão é mais complexa, pois a sua conivência com a podridão reflete a sua própria, daí uma mudança seria um esforço extremo, uma quase catarse de sua posição social. Para fazer isso é preciso muita coragem, mais fácil é se beneficiar, todavia, o resultado é que você é uma pessoa fraca e merece a repulsa, o banimento aqui pregado.

Vale a lembrança de que a Teoria da Justiça proposta por Rawls, prevê uma sociedade bem organizada em torno de dois princípios de base, o da igualdade de todos e o da igualdade de oportunidades e o respeito aos princípios guia a fundação de uma Constituição, das leis e das instituições, guardado devidamente o respeito ao princípio da diferença.

Mas isso não é suficiente, pois a partir desse ponto de fun-dação do social, mister se faz o ato individual de obediência aos princípios, à Constituição, às leis e às instituições, como um dever natural que supõe uma moralidade disseminada na sociedade e não o inverso, a sujeição ao imoral. Assim, ele diz:

4646 Ruszel Lima Verde Cavalcante

O conteúdo dessa moral é caracterizado pelas virtudes próprias à cooperação: a justiça e a equidade, a fidelidade e a confiança, a integridade e a imparcialidade. Os vícios característicos são a cupidez e a falta de equidade, a desonestidade e a enganação, o preconceito e a imparcialidade.5 (tradução do autor).

Então, Raws alvitra um respeito de si mesmo e é somente a partir de uma dignidade oriunda dos princípios de base, a igual-dade de todos e a igualdade de oportunidades, que podemos con-ceber o respeito de si mesmo. Do contrário, caímos na cilada his-tórica da servidão voluntária, sob a ótica de La Boétie, que leva ao desrespeito de si mesmo.

D. Jouaust, que reimprimiu a obra com base no manuscrito de Henry de Mesmes, no prefácio, sintetizou o seu conteúdo e alcance da seguinte maneira:

Os reis, quaisquer que sejam, por direito de conquista, reis por direito hereditário ou reis por eleição, sacrificam a liberdade dos seus sujeitos à satisfação de suas paixões e à manutenção de sua autoridade. Mas o tirano é apenas um e se os milhões que lhe são sujeitos vivem em servidão, estes o fazem voluntariamente, pois bastaria uma tomada de decisão para se liberar dela. A força do tirano vem do dinheiro e dos socorros que fornecemos. Então é o próprio povo que em se dando em força e bens, forja as correntes da própria escravidão”.6 (tradução do autor).

Assim, tornar-se um ativista Robinson Crusoé é uma tarefa assaz complicada, mas em caso de hesitação, lembre-se, não espere que a Justiça resolva os problemas que são de identidade indivi-dual ou social, até porque aqueles que fazem a justiça esbarram nos vários motivos da inaplicação da lei penal às elites, bem expostos no livro Sociologie des Élites Délinquantes, como o poder e a influência dos poderosos, ou discurso de minimização de fatos.7

Todavia, quando fatos chegam a ser apurados judicialmente, temos os labirintos da justiça e uma tal distinção de classe do direito penal que impedem e entravam os processos implicando em não repressão de todos os casos levados à apreciação penal. Exemplo mais atual é o fracionamento da Operação Lava-Jato,

5 RAWLS, John. Théorie de la Justice . Éditions Points. Paris. 2009. p 512.6 LA BOËTIE. La Servitude Volontaire ou Le Contr’un . Paris: Librairie des Bibliophi-

les. 1872 – avant propos p. VIII.7 LASCOUMES, Pierre; NAGELS, Carla. Sociologie des Élites Délinquantes . Paris:

Armand Colin. 2014.

4747Lava-Jato, partidos e democracia

que, segundo decisão do STF, deve se restringir aos fatos ligados apenas à empresa Petrobras, ocorridos no Estado do Paraná.8

De tal sorte, somente a superação à servidão voluntária aos atos insanos dos nossos gestores, marchando em direção ao res-peito de si mesmo, poderia transformar nosso país. Para isso, o processo histórico de formação de nossa moral coletiva e mesmo de nosso caráter, aguarda a revolução do íntimo do nosso ser, fato que poderia ter efeitos em grande escala, a começar pela rejeição do modo de fazer política e de gerir a coisa pública.

Qualquer saída política que não seja no plano individual, de rechaçar tudo o que se produziu da mais remota reminiscência da nossa identidade brasileira aos fundamentos e princípios pactuados na Constituição de 88, replicará o modelo que opera no cotidiano. Afinal, a educação moral é a educação para a autonomia.9

8 <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/10/30/ministro-do-stf-separa-eletronuclear-da-lava-jato-e-tira-moro-do-caso.html>.

9 RAWLS, John. Théorie de la Justice. Éditions Points. Paris. 2009. p 560.

4848

Uma revolução democrática?

Lincoln de Abreu Penna

Revolução na democracia ou rebelião democrática podem bem definir o que se passa no Brasil e no mundo, apesar de estarmos mergulhados numa crise que parece não ter fim.

Eu prefiro acreditar na possibilidade de que estejamos vivendo um processo de mudanças substantivas da relação do povo com o poder e as suas instituições, quando estas não mais atendem às expectativas do cidadão.

Quero chamar a atenção para esse processo de democrati-zação que corre ao largo da crise econômica e política que assola o Brasil e o resto do mundo. Centrar a análise para os desdobra-mentos da crise em suas duas dimensões só faz sentido se come-çarmos a perceber o que está a ocorrer no âmbito da sociedade brasileira e mundial.

Claro que entre nós há aspectos peculiares diferentemente do que acontece em outras partes do mundo, mas é preciso que este-jamos atentos para compreendermos o alcance desse processo de democratização, pois ele é pedagógico para as iniciativas que vierem a ser adotadas visando as tão reclamadas reformas polí-ticas e também econômicas.

É ainda prematuro talvez dizer que estamos conhecendo um processo de revolução democrática, mas há como afirmar que já há evidências de uma rebelião continuada na democracia que vigora diante de tantas evidências. São camadas sociais diversas a manifestarem profundo descontentamento com as instituições políticas de um sistema que se diz democrático, porém resiste à expansão de direitos das massas populares, cuja participação nessa democracia liberal ou neoliberal é interditada. Bastaria arrolar alguns episódios aparentemente isolados, mas que estão seguramente conectados com um considerável movimento que aponta para uma mudança das relações entre Estado e sociedade. Senão, vejamos:

• cresce como nunca a cobrança de direitos individuais e coletivos, portanto direitos sociais, por parte da sociedade, numa expressão viva do exercício da cidadania. Essas

4949Uma revolução democrática?

demandas são ainda difusas e imprecisas, mas há um con-teúdo vigoroso para o estabelecimento de novas relações entre representantes e representados;

• a crise da representatividade política tem produzido formas alternativas de organização societária, como jamais foi visto antes; uma vez que os partidos, os sindicatos e demais entidades clássicas têm se tornado organizações fechadas e cada vez mais distanciadas de seus representados;

• os casos de truculências policiais contra as populações pobres e negras, como no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo, têm sido repudiados com vigor pela sociedade, principalmente via manifestações espontâneas do povo e também nas redes sociais;

• as políticas intervencionistas não encontram a mesma pas-sividade das sociedades dos países interventores obrigando os seus dirigentes a adotarem formas de negociação polí-tica e diplomática ao invés do emprego sistemático das armas de agressão;

• a condenação à corrupção, às fraudes e aos privilégios de órgãos e categorias sociais apontam para a rejeição obje-tiva da desigualdade e injustiças sociais, numa clara demonstração de crítica contumaz às práticas e à lógica do capitalismo, sem que ainda se associem essas condenações ao modo de vida do poder do capital;

• a sociedade europeia se sensibiliza com o problema dos refugiados, e condena os governos que se mostram omissos ou reativos em abrigar os contingentes que buscam uma fuga para a vida. Com isso, alguns governos admitem incluir regras que venham a atender as levas de indivíduos em busca de amparo e proteção;

• no Brasil, em especial, a pauta do governo começa a ser orientada pela pressão da sociedade, cujas crises nos planos da economia e da política educam as ações da cida-dania, indicando a necessidade de se achar um caminho que consagre o consenso mínimo de governabilidade. E a demora desse consenso mínimo acelera e radicaliza as cobranças ao governo federal e aos governos estaduais, que se mostram arredios ou insensíveis a tais apelos.

Em face dessa conjuntura delicada, porém instigante, não há dúvida de que a saída passa pela negociação e convivência das

5050 Lincoln de Abreu Penna

diferentes avaliações quanto ao que fazer, sempre, contudo, dentro dos limites dos direitos e do marco institucional. Isso serve para todos os casos em que os governantes enfrentam sérias dificul-dades, sejam elas de cunho de gerenciamento político e adminis-trativo ou de outra natureza.

Mas essa revolução democrática se afirma, no momento, não apenas no acatamento da ordem institucional e, evidentemente, constitucional, mas também na necessidade que demonstra de alargamento da democracia, por meio da incorporação de novos mecanismos de representatividade, sem que se mexa de maneira radical com as representações parlamentares atuais. Mesmo que estas não estejam em consonância em face da expectativa da sociedade, em razão de práticas abusivas de seus quadros.

Assim, direitos ampliados e exercitados mais o alargamento dos espaços democráticos são típicas manifestações dessa revo-lução silenciosa, porque quase imperceptível, que temos pela frente. Com isso, a possibilidade de avançarmos para perspectivas mais libertárias é algo que não está descartado em curto espaço de tempo. Nada tem a ver com a ideia de “revolução passiva” de Gramsci, que apontava para a emergência do poder burguês na Itália, mas para a mudança ainda que lenta de atitude do povo frente ao poder.

Contudo, os perigos dessa travessia estão, de um lado, na into-lerância política, que despreza o exercício do contraditório, ou seja, de se reconhecer no seu interlocutor o direito de pensar e agir dife-rentemente; e, o outro perigo é o do retrocesso. Neste caso sua configuração se encontra na atitude reativa de parcelas da socie-dade temerosas dos avanços dos direitos e da própria democracia, ciosas essas parcelas de seus privilégios de herança e arredias a qualquer tipo de mudança que incorpore os excluídos neste mundo que caminha para uma transição na direção do socialismo.

III. Conjuntura

Autores

Luiz Werneck ViannaCientista social e político, e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica-RJ .

Mauricio Rudner HuertasJornalista, é secretário de Comunicação do PPS/SP e integrante da diretoria-executiva da FAP (Fundação Astrojildo Pereira) . Dirige a TVFAP .net e edita o Blog do PPS .

Paulo Fabio Dantas NetoCientista político . Professor e pesquisador da Universidade Federal da Bahia .

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A pergunta trágica de Vargas Llosa e nós

Luiz Werneck Vianna

Não foi em agosto, outubro acaba de se despedir. Quando será que vai surgir uma luz no fim desse túnel escuro em que tateamos às cegas? Está bem, todos concordam, as

instituições têm revelado uma insuspeitada resiliência. Mas até quando serão capazes de manter em equilíbrio antagonismos ferozes que se manifestam sem freios, agravados pelas revelações, trazidas pelos operadores da Lava-Jato, dessa miserável trama em que fomos enredados, em que a política virou lugar do salve-se quem puder?

Em Natais passados, circunstâncias assemelhadas a essas contavam com um rico arsenal de categorias que nos advertiam para os riscos do cesarismo e do bonapartismo em sociedades incapazes, pela natureza incontornável dos seus conflitos, de assegurar uma ordem política previsível e confiável e que, assim, passam a reclamar dos quartéis uma solução salvadora. Eles não deixaram saudades. Livre desses riscos, porque o mundo mudou e nós mudamos com ele, a imaginação recorre agora a fontes mais prosaicas e benignas de salvação, como entre os que depositam suas esperanças nas ações dos tribunais.

Nesse trajeto dos quartéis aos tribunais, tomada a devida dis-tância quanto à ingenuidade, quase patética, das expectativas repousadas atualmente nestes últimos, um longo e virtuoso caminho foi empreendido pela sociedade, embora ela ainda esteja bem longe de uma compreensão refletida da sua nova situação. As grandes transformações por que ela passou nas últimas décadas

5454 Luiz Werneck Vianna

– econômicas, demográficas, ocupacionais e no seu modo de ins-crição no mundo – testemunharam a imposição no país do modo de produção especificamente capitalista, exemplar na mutação experimentada pela questão agrária, tradicional calcanhar de Aquiles entre nós para uma estabilização da ordem burguesa, processo que se realizou sob um plano de estado-maior do regime militar que abriu caminho para o êxito do agronegócio.

Adeus às presumidas vantagens do atraso como alavanca para a mudança social. Sob o impacto dessas mudanças, a sociedade, na medida em que reagia ao autoritarismo político e ao regime de exceção que lhe era imposto pelo regime militar, foi concebendo por ensaio e erro um novo repertório para orientar suas ações a fim de reconquistar liberdades civis e públicas. Aos poucos, e não sem tropeços, a agenda andou: as vantagens em favor da mudança passaram a ser percebidas na chave dos temas do moderno. O foco do conjunto de forças que se aplicava na resistência ao auto-ritarismo político concentrou-se no esforço de valorização da sociedade civil.

A esfera pública se adensou com a presença de instituições que vieram somar-se ao propósito comum de restaurar os valores do liberalismo político, como, principalmente, a Igreja Católica, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Nas eleições de 1974, com a vitória do candidato oposicionista ao Senado em São Paulo, a sociedade afinal descobre a via eleitoral como forma superior de luta na sua resistência ao regime militar; e nos massivos pro-testos contra o assassinato do operário Manoel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog nos porões da ditadura consolida a sua adesão à agenda da democracia política.

Um pouco à frente irrompem as manifestações do sindicalismo do ABC, na ponta moderna do parque fabril, em movimentos gre-vistas que, ao lado de reivindicações específicas, denunciavam a estrutura corporativa que o atava ao Estado e às razões do processo de modernização conduzido por ele. As demandas políticas da sociedade por liberdades civis e públicas e de autonomia diante do Estado passam a se confundir com a pauta da democracia social.

A partir daí, a história é conhecida e teve seu desenlace feliz com a Carta de 1988, que nos trouxe de volta ao liberalismo polí-tico, impôs limites ao discricionarismo do Poder Executivo por meio de instrumentos de accountability, entre os quais o de con-trole da constitucionalidade das leis, e fixou princípios e institui-

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ções afetos à questão social, abrindo canais, com a criação de novos institutos, para que a sociedade possa fazer-se presente em matéria de políticas públicas.

Vargas Llosa, em sua obra-prima Conversa na Catedral, nas primeiras páginas do romance faz com que o protagonista se per-gunte sobre “en qué momento el Perú se jodió”, indagação que nos pode servir para que venhamos a refletir sobre as razões por que, aqui, com um enredo tão propício no ponto de partida – que não era bem o caso no país natal do nosso autor –, nos tenhamos per-dido, em tão pouco tempo, neste labirinto de horrores a que nosso cotidiano foi condenado.

Decerto nem tudo está perdido, ainda há tempo para recupe-rarmos o fio da meada que nos escapou das mãos quando opera-ções desastradas levadas a cabo, por erros de interpretação do PT sobre a situação do país, dissociaram os nexos fecundos que des-cobrimos, no curso das lutas contra o regime militar, entre a democracia política e a social. Nada na natureza das coisas obri-gava ao abandono da via de aprofundamento da democracia polí-tica como estratégia para a mudança social – foi uma livre e equí-voca opção do ator.

Como alternativa a esse caminho, o PT, antes um sistemático antagonista da chamada tradição republicana brasileira, denun-ciada – nem sempre justamente – como força de sustentação do atraso, se alia acriticamente a ela e se deixa contaminar por suas tradições patrimonialistas. Pior, adere às suas práticas decisio-nistas dos tempos áureos da modernização – a mudança social seria obra do Estado sob sua hegemonia a exigir um tempo de longa duração e a sua permanência no poder.

Daí para o mensalão e o petrolão bastou um pulo, que nos arrebatou das mãos o fio da meada que nos mantinha vinculados ao enredo feliz que, em tempos idos, criamos para nós e, agora, cumpre retomar.

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A política dos partidos e as crises

Paulo Fabio Dantas Neto

Começo reiterando análise feita num artigo publicado, em março último, sobre o que se espera de partidos e lide-ranças políticas quando, num quadro de mal-estar social

e dificuldades econômicas, o jogo democrático entre elites abri-gadas nos partidos e líderes que os chefiam é truncado por táticas do varejo político. Aquele contexto já requeria que partidos atu-assem como instituições e líderes como estrategistas do atacado para reabilitarem a fluência do jogo político, através de um pacto pela governação.

Será sensato reiterar essa expectativa quando, tantos meses depois, a crise política prossegue grave, com as dores agudas da novidade dando lugar a sintomas de problema crônico? Creio que a ideia de um pacto político tende a se tornar cada mais persuasiva à medida em que se generalize a percepção do pântano em que estamos navegando. O pacto pela governação pode não ser o des-fecho mais provável da crise política, mas penso que seja a opção mais realista, dentre as que não flertam com o fantasma do caos.

Sem esse pacto político destinado a produzir entendimento e governo não iremos a lugar melhor do que o presente. Refiro-me a uma solução provisória do contencioso político, reunindo um arco de partidos para permitir o controle da economia e a pavimen-tação de um caminho institucional até as eleições de 2018.

Essa perspectiva joga o nosso olhar para um centro político esvaziado no qual, objetivamente e solitariamente está, desde o início do ano, o PMDB. Esse centro não é ideológico, mas “posi-cional” e relacional, tendo em vista a configuração dos scripts e atores reais. Penso que erra sobre o PMDB quem lhe atribui lugar e papéis fixos na política brasileira. Continuamos sem saber quem (se governo ou oposição) entenderá antes que uma saída realista e democrática para a crise política passa necessariamente pelo reforço institucional e político daquele partido. Aqui não expresso uma preferência política, mas uma convicção analítica.

O governo teve, em abril, a chance de fazer de Michel Temer mais do que um canal de atendimento de demandas por cargos

5757A política dos partidos e as crises

públicos, sediadas no Congresso. Poderia também ter “terceiri-zado”, através dele, um diálogo com a oposição. Ambos os passos ajudariam à aprovação do ajuste fiscal, solução que não se pôde fazer avançar na velocidade requerida pela crise econômica. Com esse diálogo o governo teria a ganhar, no mínimo, uma chance de recomeço e, a depender dos resultados econômicos de médio prazo, de recuperação da credibilidade e consequente adoção de um dis-curso político novo para 2018, já que aquele inaugurado em 2002 chegou à exaustão. Seria um modo de seguir o jogo político com maiores chances para o Governo e maiores riscos para a oposição.

Já o PSDB, no vácuo da inação que então marcava o núcleo petista do governo, poderia ter buscado em Temer um canal nego-ciador para criar condições de aprovação de medidas de ajuste na economia, ademais desdobramento lógico do próprio discurso eleitoral tucano de 2014; e também para fazer surgir, no Con-gresso, uma proposta alternativa de ajuste viabilizada por essas forças oposicionistas, no caso de fracasso de um entendimento bancado pelo Governo, ou da recusa deste em promovê-lo.

Enfim, ter protagonismo numa solução para a crise teria sido um modo de a oposição fazer mais do que somente replicar, na arena política, a agenda do Ministério Público, do Judiciário e da Polícia Federal. Construiria uma agenda política com P maiús-culo, resgatando o discurso da campanha de Aécio Neves, então assumido candidato não só do PSDB, mas de um conjunto de forças que quer mudar o governo do país. O jogo político também seguiria, mas, nesse caso, com mais chances à oposição e mais riscos ao Governo.

Prevaleceram, porém, desde março até aqui, em ambos os lados do espectro político, scripts de quem aposta no truncamento do jogo. Além de Eduardo Cunha e, até certo momento, Renan Calheiros, várias lideranças do PSDB, Aécio Neves incluso, faziam, até ontem, discursos monotemáticos contra a corrupção no governo e no PT. Apelo eleitoral sem dúvida, mas sem eleições no horizonte imediato. Por outro lado, no PT, pregações críticas ao ajuste fiscal e por “refundação” da democracia encenaram saída retórica “pela esquerda”, combinada a operações desastradas para manter postos governamentais no varejo político, ao custo da inviabilização do governo no atacado.

Por que as coisas se deram assim? Essa é uma pergunta que não encontra respostas convincentes no campo da crítica moral às estratégias dos atores políticos, embora ela possa ser feita

5858 Paulo Fabio Dantas Neto

também. Penso que é mais sensato admitir que, num ambiente político marcado por alto grau de incerteza, os atores tiveram difi-culdade para ir além do plano tático. Como nenhum deles governa os movimentos de todos os outros, prevaleceram as táticas defen-sivas, inclusive aquela que estipula o ataque como a melhor ação de defesa.

Parece claro que sem pacto – sequer entendimento – e com esvaziamento do centro político a instabilidade aumenta. Após a queda prevista de Eduardo Cunha poderá se acentuar o protago-nismo do Congresso em convívio com um Executivo fraco. Até quando essa relação assimétrica se sustentará não se pode prever. A volatilidade das relações entre os poderes alterna períodos de sangramento com outros de estancamento provisório. Hoje o impeachment estará fora do script, mas nunca fora de cogitação.

Entre os sucessivos cenários mantém-se como o pior a ausência de pacto amplo no interior da elite política e sua consequente inação, à espera da conclusão do Lava-Jato, sob efeito da recessão, da inflação e do desemprego. Se a um cenário desses sobreviver alguma voz ativa no mundo da política institucional, o que ela verbalizar como solução certamente será uma alternativa prefe-rível à inação.

Mas nada garante que essa voz se imporá como movimento interno à elite política, mesmo que por instinto de sobrevivência corporativa. Daí, é preciso ir além da reiteração das análises sobre os atores políticos. Também nas pautas dos atores sociais precisa se destacar a preocupação com a urgência de um pacto pela gover-nação do país. Nessa linha argumentarei a seguir, perante esse auditório majoritariamente empresarial.

Certas afirmações podem ser incômodas. A primeira é a de que pactos não são grátis. E se um pacto político tem, como é o caso, motivações ligadas ao rumo da economia, seus custos não podem deixar de afetar os agentes econômicos. Para definir como esses custos serão partilhados não cabe perguntar de quem foi a culpa pela crise, se do governo, da oposição, do setor privado, ou do mordomo. Isso pode ser assunto para as urnas. Colocá-lo na mesa agora, como premissa, é diletantismo. Levará a manter o país no pântano, atolando, juntos, governo, políticos e a própria eco-nomia. A pergunta a ser feita mira o presente e o futuro imediato. Diz respeito a que políticas e reformas de curto e médio prazo são economicamente racionais e pragmáticas (no sentido de se apro-ximarem do consenso, mais o que do dissenso, entre analistas e

5959A política dos partidos e as crises

atores da economia) e politicamente viáveis, no sentido de que possam ser assumidas publicamente por líderes e partidos polí-ticos sem que com isso eles estejam cometendo suicídio eleitoral.

As respostas, portanto, não podem ser encontradas no retro-visor ou em bolas de cristal e sim nos limites da crise e da demo-cracia. A crise é momentânea e a democracia parece felizmente consolidada entre nós, embora possa, como em qualquer lugar, ter avanços incrementais e/ou retrocessos parciais. Nessas condi-ções, tanto a competição como os direitos têm lugar e valor de coisas práticas, isto é, valor econômico, social e político.

A segunda ideia decorre da primeira. Empresas de diversos portes e empreendedores de variada força econômica são protago-nistas da economia de mercado, mas os trabalhadores, de modo geral, também cumprem papel de agentes econômicos, além de serem atores sociais politicamente válidos, isto é, titulares de direitos e não só usuários ou clientes de políticas públicas e bene-ficiários de empregos da iniciativa privada. A política do pacto ultrapassa, portanto, a parceria ou a queda de braço entre setor privado e governo. As duas partes – aliadas aqui, litigantes ali – não encerram o problema. Por isso não o resolverão sozinhas. E não basta incluir na mesa o vago e não devidamente entendido (muito menos, bem representado) “terceiro setor”. Há que se levar em conta o mundo do trabalho propriamente dito, sua represen-tação sindical e também sua cidadania eleitoral, pela qual os atores desse mundo do trabalho integram-se subjetivamente ao povo. Esse é um modo politicamente eficaz de atrair as elites polí-ticas a um pacto público. E por que as atrair e convencê-las do pacto? Não para revogar o conflito político, cancelar a disputa elei-toral entre partidos e grupos, mas para fixar regras informais, de modo que a disputa regrada resolva e não agrave as crises.

Até bem pouco tempo (creio que até antes da última campanha eleitoral) essa extensa e intensa malha de agentes e interesses alimentava, em diferentes graus, uma presunção de prescindir da “política dos políticos”, isto é, dos partidos, do Congresso, do Estado. Vigoravam com força, também no Brasil, ideias que, segundo uma vertente da literatura internacional sobre partidos políticos (Peter Mair é dela um exemplo), contribuem para reforçar o indiferentismo político nas democracias do mundo atual.

A primeira dessas ideias é a de contrapor, quase platonica-mente, a política real (rotineira, instrumental e impura) à política das virtudes cívicas, às quais se associam ideias sobre o que

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deveria ser a “boa”, ou a “verdadeira” democracia. A segunda ideia-força, ruidosamente presente nas ruas brasileiras, em 2013 e em 2015, é a crença na eficácia da subpolítica, isto é, a política da sociedade privada, que faz de um ativismo “cidadão” um subs-titutivo do seu envolvimento com a política convencional.

Cotidianamente, à subpolítica ativista dos cidadãos privados soma-se à dos grupos de pressão, dentre eles os empresariais. Muitas pessoas que vão à rua, como cidadãos individuais, pedir qualidade dos serviços públicos e ética na política participam, também, de pressões sobre governantes e burocratas do Estado, aí na condição de representantes de segmentos empresariais e mesmo de suas empresas. Esse conjunto de modos de ação não partidários e não assumidamente políticos faz parte de uma polí-tica “da sociedade” e consagra, na prática, uma terceira percepção alimentadora do indiferentismo político contemporâneo. Refiro-me, acompanhando a mesma literatura, à ideia da democracia como governo “para o povo”, julgado mais pela eficácia de políticas públicas no atendimento a demandas dos grupos de pressão do que pela qualidade da representação política. A essa última, âncora da ideia (antiga?) de governo “do povo” ou, em versão rea-lista, de governo de partidos, resta a imagem de uma Geni.

Guiados por essas percepções desqualificadoras da política convencional, atores sociais consideram partidos políticos como intermediários inconvenientes e, até certo ponto, dispensáveis na representação de seus interesses, já que estado e políticas públicas mostram-se cada vez mais permeáveis à influência desses grupos. Analogamente, um eleitorado cada vez mais pragmático usa o mesmo metro (o do governo “para o povo”) para avaliar governos e eleger governantes. Assim, no caso brasileiro, eleitorado e grupos de pressão (inclusive empresariais) tornaram-se canais de legiti-mação do governo “para o povo” e assim legitimaram a estatolatria que, pela percepção de Werneck Vianna, anima a parte da esquerda brasileira que governa há mais de década.

Ocorre que a estatolatria governante, combinada a esquemas de corrupção, foi uma das variáveis que contribuiram para que-brar o próprio Estado. Assim ela perdeu a chave do seu argu-mento público. Resultam altíssimos índices de reprovação do governo e dos atores políticos mais identificados com ele. Estão situados, em sua maioria, no campo da esquerda política liderada pelo PT, embora disso não saiam ilesas as áreas do sistema polí-tico que validaram o processo, bem como os segmentos empresa-

6161A política dos partidos e as crises

riais específicos que adubaram interessadamente o terreno para a produção de malfeitos em larga escala.

Se o Estado quebrou nas mãos de estatólatras é da lógica democrática que a busca de saídas para a crise seja guiada pelo oposto, isto é, pela valorização liberal do mercado. A política do pacto, porém, requer que essa lógica seja moderada por partilha social de danos. Trocando em miúdos: o discurso que vai ven-cendo à medida em que a crise avança e as forças que o proferem podem até ser implacáveis com os atores do campo político que vai sendo derrotado pelos fatos, mas terão que contemplar, numa nova política, os interesses dos beneficiários sociais da antiga. Mais uma vez é bom lembrar que numa democracia direitos são moderadores da lógica da competição. Ao liberalismo em ascensão não será dado condenar ao puro relento do mercado os pobres beneficiários sazonais da política superada, sob pena de torná-los força arredia à democracia. No mínimo, poderão ser órfãos eleito-ralmente ativos de Lula e do PT e, no limite, massas sem rumo e impermeáveis a influências políticas. Justamente essas possibili-dades fazem com que se esteja hoje falando em pacto, não só pura e simplesmente em impeachment.

Chego ao último ponto dessa reflexão, que se liga ao seu ponto inicial. A quebra fiscal do Estado, a usina do governo “para o povo”, deixa a ver navios não apenas o eleitorado do lulopetismo mas também a estratégia subpolítica dos grupos de pressão. Por outro lado, percebe-se os limites políticos do ativismo de cidadãos privados. Manifestações de rua contra o governo e o PT podem voltar a ser massivas e mais frequentes. Podem até mesmo agregar pautas e interesses, melhor do que os partidos e a política conven-cional. Mas não produzem governação. E sem ela a sociedade vai a pique, economia incluída.

A governação eleva-se à condição de exigência de primeira ordem, ou mesmo assume o grau zero de prioridade. E para ela partidos políticos são imprescindíveis, ainda mais quando há amplo consenso quanto à ausência de fortes lideranças políticas pessoais. Dizendo melhor, além de partidos é imprescindível um sistema partidário, isto é, não basta haver um conjunto aleatório de partidos, mas interação sistemática de partidos e desse sis-tema com Governo e Congresso. A boa notícia é que, bem ou mal, temos isso, após trinta anos de democracia. A má notícia é que a eficácia desse sistema está em suspenso há meses, pela situação de desgoverno e pela relativa paralisia decisória da Câmara, às vezes convertida em arena plebiscitária. Ambas as notícias devem

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moderar a afoiteza dos apetites por reforma política, cujos efeitos, sempre duvidosos, virão, se vierem, a longo prazo. Precisamos agora do edifício institucional existente, mesmo com rachaduras, pois suas dependências são as mais adequadas para sediar um pacto que envolva toda a sociedade e não só os que se acomodam no seu andar de cima.

O caminho que aposta nas regras e na estrutura do atual sis-tema partidário traz ônus e bônus: é mais complexo, mas em com-pensação dificulta o perigoso atalho de soluções salvacionistas. O pacto urge, inclusive para que o ambiente político não se torne propício a elas. E como urge, não pode esperar por partidos de amanhã e por um novo sistema partidário. Terá que ser obra dos partidos e do sistema partidário atual. Fique claro que não men-ciono nada semelhante a uma conciliação personalista entre líderes.

No início dos anos 90, após a renúncia de Collor, um pacto de sucesso foi feito a partir da constituição do governo interparti-dário de Itamar Franco. Seu programa foi o Plano Real. Só agora se esgotou o impulso positivo daquele mergulho, inclusive do ponto de vista das instituições políticas. A partir dali a dinâmica do sistema partidário brasileiro passou a ser, para surpresa de muitos, próxima ao que a literatura clássica sobre o assunto (Sar-tori) chama de sistema de pluralismo moderado.

Apesar do grande número de partidos com representação con-gressual (que dava ao sistema feição de pluralismo atomizado) a interação entre os partidos relevantes estabilizou só duas opções de coalizão viáveis para disputa do poder. O PMDB posicionava-se no centro político, entre o PSDB e o PT, mas o poder revezava-se à volta dos partidos líderes das coalizões alternativas. O PMDB foi se tornando imã a atrair a política dos polos ao centro, fomen-tando moderação. A fórmula funcionou até o primeiro governo Lula, embora já então o mensalão – dando espaço no centro a partidos menores, concorrentes entre si, alguns sem tradição e vocação para o centro – sinalizasse subestimação do papel estabi-lizador do PMDB. A sociedade e talvez o próprio PT não viram isso, distraídos pela popularidade de Lula, que chefiava um governo polar e era também o moderador.

O sistema começou a trincar quando, na sucessão de 2010, o PT, não podendo contar com nova reeleição de Lula e já na ausência também de um centro político e partidário consistente a mediar as duas coalizões possíveis, adotou uma candidatura filha da liderança pessoal do presidente. O advento da chamada nova

6363A política dos partidos e as crises

matriz econômica foi a tradução, na política econômica, da velei-dade petista de governar para si e a partir de si, esvaziando o centro político de outros atores relevantes, para tentar ocupá-lo sozinho. Como o PT não era centro e sim expressão nítida de um dos dois polos, o sistema partidário transitou aos poucos para o que Sartori chamou de pluralismo polarizado, com esse agravante de ser postiço o centro a partir do qual o PT queria governar. Como não havia partido antissistema relevante à esquerda do PT, o rei polar logo ficaria nu. Um arranjo como esse só costuma durar em democracias infantis.

Mesmo assim, mais uma vez, o grande número de partidos aparentava um pluralismo atomizado mas não impedia que a inte-ração entre os mais relevantes conseguisse evitar a dinâmica da atomização. Só que, nessa nova fase, a interação, com o arreda-mento prático do PMDB, induzia não à moderação, mas à polari-zação crescente, da qual a campanha de 2014 foi o clímax. Nessas condições, com o polo governante subsumindo o centro e improvi-sando outro, a emersão da dinâmica de um pluralismo polarizado torto foi efeito colateral da estratégia de um ator. O PT queria evitar o risco de alternância de poder em favor da coalizão alterna-tiva, liderada pelo PSDB, para a qual a balança eleitoral parecia pender, se a competição não se radicalizasse. Para evitar o des-fecho provável foi quebrada uma regra básica do pluralismo mode-rado. Deu errado. O PT venceu as eleições, mas durante 2015 até a polarização desvaneceu e o sistema partidário brasileiro apre-senta, pela primeira vez em duas décadas, dinâmica atomizada. A quebra fiscal do Estado brasileiro é o capítulo mais dramático desse processo político.

O sentido mais geral do pacto político cuja urgência aqui se discute é o da retomada, pelo sistema partidário, de uma dinâ-mica mais próxima de um pluralismo moderado. Para isso um pacto político pode ser mais veloz e eficaz do que uma reforma política que tente reduzir riscos de atomização sem sacrificar o pluralismo. As eleições de 2018 são um horizonte temporal pos-sível, mas não obrigatório, para que a viabilidade desse objetivo seja testada. A retomada de um pluralismo moderado pode demorar mais.

De todo modo trata-se de recompor um centro político real do sistema, que modere e facilite a governação, cuja chave está guar-dada pelo PMDB. No curtíssimo prazo tratase de revogar a atomi-zação atual. Para tanto, parece inevitável um estágio de retorno ao pluralismo polarizado, pelo qual o centro governa, privilegiando

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aliança com um dos polos e correndo o risco do outro assumir (ou reassumir, no caso do PT) traços de partido antissistema. Essa travessia pode ser feita com o PMDB na presidência ou com a (improvável) “despetização” da presidência atual. Mas as duas alternativas – especialmente a primeira – podem, ou não, implicar em que essa transição vá além de 2018, caso ali a polarização antiga possa ser retomada pelo PT, via candidatura Lula.

Durante o ano de 2015, o PT teve algumas chances de aceitar esse script, entregando gradualmente poderes no curto prazo para preservar-se como um ator capaz de recuar para dar uma volta por cima e disputar de novo o protagonismo político em prazo médio ou longo. Mera cogitação, sem base na realidade, pois tal estratégia colidiria com a tradição autárquica do PT, com limites de formulação política da atual liderança lulopetista e com moti-vações contrárias, oriundas do envolvimento do partido no Lava-Jato, envolvimento que o faz cativo de táticas defensivas, restritas ao curto prazo.

Pode-se entender esses limites objetivos, evitando juízos morais. Mas isso não cancela a urgência de reconstruir-se o centro político, mesmo que isso tenha que se fazer, como em 1992, sem o auxílio do PT. O programa econômico do PMDB, que a princípio adere (aliás, contra a tradição do partido) a uma pura lógica liberal, não é por isso um programa de governo. Independente-mente de supostas intenções de sinalização ao empresariado, ele pode e deve ser usado para dar partida à discussão dos termos de um pacto pela governação que vá além de uma conversa entre elites econômicas e políticas.

Reconhecer, com objetividade, o papel da política real (conven-cional, partidária) na solução das crises pode ser difícil e parecer perigoso para quem se acostumou a ver essa política como menor, supérflua, ou malévola. Mas ao menos enquanto um Zepelin eco-nômico nos sobrevoa e já nos atira petardos, convém parar de jogar pedra na Geni.

(Palestra proferida no XI EAU (Encontro Anual de Usuários da Usuport – Auditório Fieba, Salvador, BA. 23/11/15).

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Como nunca antes na história deste país...

Mauricio Rudner Huertas

A dificuldade de escrever no calor dos acontecimentos é ser atropelado pelos fatos. A situação do Brasil, no momento em que você lê este artigo, certamente já não é mais a

mesma de quando ele foi escrito. Mas tudo bem. É o preço que se paga por estarmos vivendo a História. Daqui a alguns anos, com o distanciamento necessário no tempo e no espaço, alguém fará uma análise muito mais exata e criteriosa desta crise assombrosa que o país enfrenta.

Mas até lá, nós que somos espectadores (e até personagens) privilegiados, para o bem ou para o mal, seguimos destrinchando as redes sociais, os sites de notícias e as páginas de política (e de polícia) para entendermos o que se passa. Vamos nos deter num período muito específico do noticiário: o final de novembro, início de dezembro de 2015.

Para registro histórico e refresco da memória: o Brasil ainda lamentava o rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Minas Gerais, e acompanhava o caminho destruidor da lama pelo leito do Rio Doce, da cidade de Mariana até o litoral do Espírito Santo, num crime ambiental que arrastou casa, gente, peixe, planta, bicho e tudo que tinha pela frente (como nunca antes na história deste país...).

O mundo chorava os ataques terroristas orquestrados pelo Estado Islâmico na França, matando gente inocente que curtia a noite parisiense em bares, restaurantes e na casa de shows Bata-clan, num ano que já havia começado com outro assassinato insano cometido por extremistas: o atentado ao jornal satírico Charlie Hebdo. Isso para ficarmos apenas nos dois ataques mais midiáticos – e somente na França – dentre tantos outros crimes inomináveis em diversas partes do mundo.

Mas, voltando ao nosso mundinho da política nacional, a notícia mais marcante, até então, foi certamente a prisão do petista Del-cídio do Amaral. Como nunca antes na história deste país, paro-diando outra vez o pai-de-todos, assistimos a prisão de um senador no exercício do mandato. Pior: o líder do governo Dilma!

6666 Mauricio Rudner Huertas

Ato contínuo, aparece Rui Falcão, o presidente do PT, “intem-pestivo e covarde” (nas palavras insuspeitas do presidente do Senado, Renan Calheiros, e do líder do aliado PSD, Omar Aziz), para negar solidariedade ao senador preso. Como assim? Logo o PT, que louva todo e qualquer “guerreiro do povo brasileiro”...

Quem alegava que as prisões da Lava-Jato são abusivas e bla-blablá do tipo, ficou sem argumento. Tem líder do governo preso, tem tesoureiro do PT preso, tem presidente do PT preso... Mas o governo e o PT não têm nada com isso? Ora, é impossível bancar essa defesa inverossímil.

Para não deixar dúvida, a prisão de Delcídio foi pedida pelo Pro-curador Geral da República, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal e referendada pelo Senado (por 59 votos a 13). Calou a boca do “coitadismo” petista. Não chega a surpreender que 13 senadores tenham votado contra a decisão do STF. Além do número emblemá-tico, quase cabalístico, são 13 também os senadores investigados na Lava-Jato.

A preocupação de Renan Calheiros e Jader Barbalho, tanto ao defenderem o voto secreto quanto ao tentarem barrar a prisão de senadores no exercício do mandato, não foi por acaso. Quem mais tem pendências com a Justiça é geralmente quem expressa maior “preocupação com a democracia” e manifesta solidariedade com o colega preso.

O fato é que a prisão do senador Delcídio do Amaral parece ser mais uma pá de cal no longo e doloroso funeral petista. Isso é triste para a democracia. Guardadas as diferenças que temos com o petismo, ninguém aqui torcia para um fim tão grotesco e vergonhoso quanto este. Até porque isso é um desserviço para a política de um modo geral e, principalmente, para este segmento que se originou no socialismo e na social-democracia, a dita esquerda democrática.

Enfim, não tem como se discordar das palavras da ministra do STF, Cármem Lúcia, ao justificar os motivos da prisão do senador: “Houve um momento em que a maioria de nós brasileiros acre-ditou no mote segundo o qual uma esperança tinha vencido o medo. Depois, deparamos com a Ação Penal 470 e descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora, parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo. O crime não vencerá a Justiça. Aviso aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e das iniquidades: criminosos não passarão, não passarão sobre a Constituição do Brasil.”

IV. Economia e Desenvolvimento

Autores

Vicente NunesEconomista e comentarista econômico .

Severino Theodoro de MelloMembro do Conselho Político do PPS .

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Economia segue ladeira abaixo

Vicente Nunes

Os brasileiros assistem, atônitos, ao derretimento da eco-nomia. Enquanto a presidente Dilma Rousseff só se preo-cupa em garantir o mandato, o ministro da Fazenda, Joa-

quim Levy, agoniza em praça pública e o Congresso Nacional vê seus líderes sendo tragados pelas denúncias de corrupção, o con-sumo e a produção agonizam.

A indústria, pelos cálculos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou, no terceiro trimestre do ano, retração de 9,5%. O varejo acumulou, no mesmo período, queda de 5,7%. Somente esses números já seriam motivo para disparar o sinal de pânico. Mas o que está por vir será ainda pior.

Nada indica reversão a curto prazo. A tendência da economia é de caminhar ladeira abaixo, diante da incapacidade do governo de criar fatos positivos. Apesar de Levy já ter apresentado um diagnóstico completo do que precisa ser feito, a começar pelo ajuste fiscal, a presidente da República resiste em encampar o pacote de medidas. Há o risco, inclusive, de retrocesso.

Sob enorme pressão do ex-presidente Lula e do PT, Dilma já admite a interlocutores que poderá adotar programas de estímulos à economia semelhantes aos que prevaleceram no primeiro man-dato e que levaram o Brasil para o buraco.

Economista-chefe do Itaú Unibanco, Ilan Goldfajn piorou todas as suas estimativas para a economia. Ele aumentou a pre-visão de queda do Produto Interno Bruto (PIB) para este ano, de

7070 Vicente Nunes

3% para 3,2%, e para 2016, de 1,5% para 2,5%. “Esperamos retração mais intensa do PIB nos próximos trimestres”, afirma. O risco, portanto, de a recessão contaminar 2017 se tornou maior.

Com isso, Dilma já poderá incluir na biografia dela a façanha de fechar um mandato – o segundo – com retração média do PIB. Mesmo que 2017 e 2018 sejam positivos, não há como compensar os tombos dos dois primeiros anos.

Na avaliação de Goldfajn, tudo jogará contra a economia. A massa salarial real deve continuar caindo, reduzindo o consumo das famílias. O ainda elevado custo unitário do trabalho em reais, combinado com receitas menores advindas da demanda domés-tica fraca, deve impactar a lucratividade das empresas. Esse fator, associado à baixa confiança dos empresários, à reduzida utili-zação da capacidade instalada da indústria e aos estoques ele-vados, tende a encolher ainda mais o investimento produtivo.

O mais preocupante é que, a despeito de toda a contração da economia, a inflação continuará elevada. Pelas contas do Itaú, será de 7% no ano que vem, ou seja, acima do teto da meta, de 6,5%, o que obrigará o Banco Central a manter a taxa básica de juros (Selic) em 14,25%, até o encerramento de 2016.

Tempos terríveis

Tais projeções não se tratam de alarmismo ou de “derrotismo enfraquecedor”, como ressalta Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central, que está em campanha aberta para assumir o Ministério da Fazenda no lugar de Levy. É a mais pura realidade do país que Dilma quebrou. Ele, por sinal, deveria lançar mão de comparações mais consistentes para dizer que o Brasil está melhor. Comparar com 20 anos atrás é piada. É claro que o país está melhor do que há duas décadas, quando ainda se debatia para se livrar da praga da hiperinflação.

O Brasil está longe de reviver aqueles tempos terríveis. Mas a situação à qual Dilma levou ao país é estarrecedora. Como res-salta Carlos Thadeu de Freitas Gomes, economista-chefe da Con-federação Nacional do Comércio (CNC), a inflação alta deste ano já foi o maior problema. Agora, o que vai atormentar a população é a recessão. Os dois anos seguidos de queda do PIB – fato sem pre-cedente, desde o início dos anos 1930 – ampliará, de forma muito veloz, o desemprego. O índice de desocupação vai passar tranqui-lamente dos 10% e o calote caminhará na mesma toada.

7171Economia segue ladeira abaixo

Para ele, seria interessante que o Banco Central liberasse uma parcela dos depósitos recolhidos compulsoriamente pelos bancos junto à autoridade monetária para facilitar a renegociação de dívidas de empresas e consumidores, alongando os prazos de pagamento.

Para Thadeu, não se trata de uma medida inflacionária, pois não abrirá espaço para mais endividamento. Ao contrário do que prega o ex-presidente Lula, que defende a abertura indiscrimi-nada da torneira do crédito, as facilidades para a renegociação de dívidas ajudarão a segurar empregos e a evitar que o calote avance a níveis preocupantes. “Temos que conter a trajetória declinante do PIB”, afirma. Se o governo não agir rápido, o colapso baterá à porta. E de nada adiantará jogar a culpa nos inimigos. A autora da história do desastre tem nome e sobrenome: Dilma Rousseff.

Não se brinca com inflação de 10%

A combinação perversa de inflação alta, desemprego e crédito caro e escasso fará com que o consumo das famílias registre queda por dois anos seguidos, em 2015 e 2016, o que não se vê desde 1990 e 1991, quando o então presidente, Fernando Collor de Mello, confiscou a caderneta de poupança dos brasileiros. Essa retração será determinante para o tombo do Produto Interno Bruto (PIB), que, pelos cálculos do Banco Central, encolheu 3,3% nos nove primeiros meses do ano ante o mesmo período de 2014.

Economista sênior da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Fábio Bentes explica que, nos últimos quatro anos, as famílias conseguiram driblar a inflação alta recorrendo ao crédito para reforçar o orçamento. Como havia boas perspectivas para o mercado de trabalho, a preocupação com o acúmulo de dívidas era mínima. Por isso, as vendas de bens duráveis, como móveis, eletrodomésticos e carros, cresciam a um ritmo impressionante.

Mas, com a inflação chegando aos 10%, as empresas demitindo sem parar e os juros médios do crediário atingindo 63,2% ao ano – o nível mais elevado desde 2011, início da série histórica do Banco Cen-tral –, as famílias tiveram que pisar fundo no freio no consumo.

A dificuldade dos lares em lidar com momento tão adverso é tamanha que nem mesmo o consumo de alimentos está resis-tindo. Pelos cálculos de Bentes, as vendas de hiper e supermer-cados fecharão 2015 com queda de 2,9%, a primeira contração em mais de uma década. É possível que também o setor de medica-

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mentos aponte retração. Em setembro, houve encolhimento de 1,1%, o primeiro tombo mensal desde 2003.

Efeito cascata

O consumo das famílias começou a desabar na mesma veloci-dade em que o governo decidiu liberar os reajustes das tarifas de energia elétrica e os preços dos combustíveis, contidos por um bom período para evitar que a inflação superasse o teto de meta, de 6,5%, e complicasse o projeto de reeleição da presidente Dilma Rousseff. Mas não é só. Os aumentos desses serviços se espa-lharam por toda a economia, produzindo aumentos em cascata.

As primeiras vítimas do desarranjo foram os bens de consumo duráveis, que dependem de crédito. As vendas de carros tom-baram 16,1% nos nove primeiros meses do ano. As de móveis e eletrodomésticos encolheram 13%. As de livros, 9,7%. Também no setor de serviços, que vinha sustentando a economia, o quadro de retração impressiona. As receitas de serviços prestados às famí-lias estão em queda há 16 meses seguidos.

Esses números, destaca Bentes, levam a crer que, em 2016, o quadro não será muito diferente, sobretudo porque o impacto da recessão ainda não chegou com tudo ao mercado de trabalho.

É por isso, no entender do economista da CNC, que a confiança de consumidores e empresários está no chão. As famílias só estão com-prando o essencial. E continuarão assim até que a economia comece a dar sinais concretos de recuperação, o que não está no horizonte de ninguém. Nas empresas, a ordem é reduzir custos. E demitir o número necessário de trabalhadores para que não haja quebradeira.

Enganação, é bom evitá-la

Responsável por mais de 60% do PIB, do lado da demanda, o consumo das famílias fará com que a retração da economia se prolongue pelo menos até o terceiro trimestre de 2016. Por mais que o governo consiga dar um rumo ao ajuste fiscal – o que poucos acreditam – a desconfiança prevalecerá. Dilma conseguiu deses-truturar a economia de tal forma, que será preciso um longo período para a reconstrução das bases essenciais à estabilidade.

Na avaliação de especialistas, diante de toda a enganação do governo que os brasileiros tiveram de engolir nos últimos anos, e

7373Economia segue ladeira abaixo

que estão custando muito caro ao país, será preciso mais do que discursos otimistas e conciliadores para reverter o pessimismo. A fatura do desastre só está no começo. Não à toa, a maior parte dos eleitores desaprova a atual administração.

É legítimo o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, imprimir um tom otimista em seu discurso. Faz parte da liturgia do cargo. Mas encampar a propaganda enganosa que é característica do PT já é demais. Mesmo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-tica (IBGE) mostrando forte aceleração da inflação em novembro – o IPCA-15 cravou alta de 10,28% em 12 meses, a maior taxa desde 2003 –, o chefe da equipe econômica disse, sem constrangi-mento, que a carestia está em queda. Para um técnico tão concei-tuado quanto Levy, seria melhor se ele tivesse ficado calado.

A inflação, asseguram especialistas, continuará elevada até pelo menos o fim do primeiro semestre de 2016. Com o resultado do IPCA-15 de novembro, de 0,85%, muitos economistas revi-saram, para cima, as projeções deste mês e do ano. Nos cálculos de Elson Teles, do Itaú Unibanco, em vez de 0,70%, o IPCA fechado de novembro será de 0,90%. Para dezembro, a estimativa preli-minar está em 0,85%. Já a taxa anual ficará em 10,4% ante os 10,1% previstos anteriormente. Na visão de Teles, a disseminação de reajustes ganhou força. Em outubro, de cada 100 produtos e serviços pesquisados pelo IBGE, 68,8% apontaram aumento. Agora, o chamado índice de difusão saltou para 71%.

O recrudescimento da inflação está se dando mesmo com o aprofundamento da recessão. Esperava-se que, com queda tão acentuada do Produto Interno Bruto (PIB), os preços recuassem já no fim deste ano. Esse, inclusive, era o cenário traçado pelo Banco Central, que prometia entregar a carestia no centro da meta, de 4,5%, até o fim de 2016. Mas tudo está jogando contra, especial-mente o governo. Para dar a sensação de que a situação estava sob controle e garantir a reeleição, a presidente Dilma Rousseff segurou, o quanto pode, os preços administrados, mais precisamente os da energia elétrica e dos combustíveis. Tão logo as urnas confirmaram o segundo mandato, a verdade deu as caras. As contas de luz pas-saram a subir numa velocidade impressionante e os aumentos da gasolina e do diesel se tornaram mais frequentes.

Esses reajustes se espalharam por toda a economia e se somaram à alta do dólar e à dos alimentos. Agora, acima de 10%, qualquer movimento fora da curva poderá empurrar o IPCA para 11% facilmente. Inflação de dois dígitos no Brasil é um grande pro-

7474 Vicente Nunes

blema, devido à forte indexação da economia. Os contratos corri-gidos por índice tão elevado vão contaminar o custo de vida futuro. Por isso, a cada semana, pioram as estimativas para os próximos anos. Se os economistas estiverem certos, nem em 2018 a inflação estará no centro da meta. Ou seja, nos oito anos de mandato de Dilma não se verá o BC cumprir a missão que lhe foi entregue.

O quadro inflacionário se torna mais dramático diante do estrago que a recessão está fazendo no mercado de trabalho. André Perfeito, economista-chefe da Gradual Investimentos, afirma que o desemprego, que atingiu 7,9% em outubro, chegará a 10% no ano que vem, retornando aos níveis de 2006 – um retro-cesso de uma década. Somente nos últimos 12 meses, a renda média real dos trabalhadores caiu 7%. Isso quer dizer que, além das demissões em massa, quem ainda consegue uma vaga está sendo obrigado a aceitar salários menores. O resultado disso será mais retração econômica.

O que mais perturba especialistas é o estrago social que está se desenhando no país. Recessão, inflação alta e desemprego tendem a elevar a pobreza, por mais resistente que seja a rede de proteção criada nos últimos anos. Nas periferias das grandes cidades, já se vê um contingente maior de homens adultos desocupados. Muitos sequer têm dinheiro para pagar as passagens de ônibus que lhes permitiriam procurar trabalho. Os recursos do seguro-desemprego, que vinha segurando as despesas emergenciais, já acabaram. Res-tará, nesse ambiente de insatisfação, o aumento da violência.

A ordem, dentro do governo, é para monitorar as tensões sociais que possam despontar país afora devido ao descontentamento com a economia. Dilma já deixou claro a interlocutores a preocupação com o risco de a nova classe média, a mais beneficiada pelo longo período de crescimento econômico, sair às ruas e encampar as pressões pelo impeachment. A presidente sabe que, neste momento, não tem nada a oferecer para aplacar as mazelas que estão destruindo o poder de compra das famílias e inibindo os investimentos produtivos.

A alternativa será apresentar paliativos, como o Programa de Proteção ao Emprego (PPE), sancionado em novembro. Lançado em julho, o projeto trouxe pouquíssimo alento. As demissões se acen-tuaram, a economia afundou na recessão e a desconfiança em relação ao governo só cresceu, por causa, sobretudo, da crise polí-tica que travou o país.

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Alguns desafios que exigem rapidez

Severino Theodoro de Mello

O primeiro passo a dar para debelar a crise econômico-social que assola o país é fazer um ajuste fiscal nas contas da União. Uma vez este realizado, a confiança no futuro do

Brasil pára de cair e a retomada do desenvolvimento se tornará possível. Só então o país estará pronto para enfrentar seus outros desafios, sobretudo aqueles de inserir sua economia nos mercados globais e de investir em larga escala na produção de tecnologias de ponta.

O ajuste pode ser realizado por meio de algumas medidas de con-tenção de gastos e de aumento de receitas, a serem postas em prática, por tempo definido, no âmbito dos poderes Executivo e Legislativo.

Pelo lado da contenção dos gastos, vale lembrar, principal-mente, o escalonamento do pagamento das dívidas do Tesouro Nacional com os bancos públicos, causados pelas “pedaladas” da presidente Dilma Rousseff. O Banco do Brasil e a Caixa Econô-mica Federal, que são os megacredores do Tesouro, têm sido beneficiários de mega-lucros, obtidos em suas operações bancá-rias correntes, graças às crescentes taxas de juros que impõem aos seus clientes. Taxas que vêm contribuindo para a já desen-freada inflação que inferniza a vida do nosso povo. Tais dívidas devem ser pagas em, por exemplo, 10 parcelas anuais iguais. Com os demais bancos públicos, o governo negociaria outros prazos e parcelas, levando em conta as condições financeiras de cada um.

Além dessas, outras medidas de contenção de gastos poderão ser adotadas pelos dois poderes, entre elas a suspensão, por anos, da admissão de novos funcionários, e, por tempo variando entre dois a quatro anos, a do início de novas obras públicas nominal-mente especificadas. Da suspensão das admissões resultará que, ao cabo daqueles anos, o efetivo dos funcionários dos dois poderes terá sido reduzido em 10 por cento, devido às aposentadorias nor-mais que acontecerão e sem que um único funcionário tenha sido demitido a título de redução de gastos.

Pelo lado da receita, o instrumento mais eficaz para incremen-tá-lo e também o socialmente mais justo, é a Contribuição Provisória

7676 Severino Theodoro de Mello

sobre Movimentação Financeira, a CPMF. Com taxa de 2%, em quatro anos de duração, carreará para o Tesouro, já em 2016, nada menos do que 32,5 bilhões de reais, soma que vai aumentar anual-mente à medida que a economia volte a crescer. Assim, não será um despropósito admitir que, até terminar sua vigência em 31 de dezembro de 2019, ela haja arrecadado em torno de R$ 150 bilhões.

Além dessas medidas de contenção de gastos e de aumento da receita, uma outra de capital necessidade para evitar que a desordem nas contas públicas volte a anarquizar a vida econômica e social brasileira é dotar a Lei de Responsabilidade Fiscal de disposições que estabeleçam a perda do mandato daqueles que a infligirem.

Também seria bom que a reforma da Previdência Social fosse feita desde já, neste ambiente do ajuste fiscal das contas da União. Não tanto pela redução de gastos que ela propiciará nestes pró-ximos quatros anos, mas pelo fato de que um problema que se anunciava devastador para os orçamentos federal, estaduais e municipais fora, afinal, equacionado, e isto pelo método mais justo: o de que o segurado passa a ter direito à aposentadoria a partir de quando a soma do tempo mínimo de contribuição com o número de anos da idade que ele tem alcance determinados totais, variáveis em consonância com o aumento ou diminuição da idade média de vida dos brasileiros.

Com Lula na Presidência da Republica, a função de governar passou a se misturar e a depender de recursos da corrupção, da prevaricação, da lavagem de dinheiro e do concurso de quadrilhas dedicadas a tais atividades. O recurso a esse método se tornou sistêmico. Esta realidade passou a ser do conhecimento público quando o Supremo Tribunal Federal julgou o processo do “men-salão”, em 2012, e condenou mais de trinta implicados, entre eles alguns até o momento tidos como altas figuras políticas.

De então para cá, a Polícia Federal e o Ministério Público mul-tiplicaram seus esforços, em todo o território nacional, para levar aos tribunais também os grandes corruptores, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas.

Entretanto, no que tange à política institucional, a situação é decepcionante. Responsáveis pela debelação da crise econômica, política e social em que o Brasil está mergulhado, a Chefe do Governo e os senadores e deputados mais influentes no Legisla-tivo não chegam a um acordo sobre como consegui-la, pois cada uma dessas individualidades traz, dentro de si, um intrincado conceito de interesses de diversas ordens, alguns deles inconfes-

7777Alguns desafios que exigem rapidez

sáveis, dos quais relutam em abrir mão. E, em conseqüência, aquela indispensável reforma fiscal não anda.

Inserir nossa economia nos mercados globais é a principal medida para que a nossa exportação de bens industrializados que, em 2014, alcançou 60 bilhões de reais, passe a crescer no decurso do ajuste fiscal. Mas, a pouca atenção que os órgãos governamentais responsáveis pelas políticas nesse campo dis-pensam ao assunto está pondo em risco até mesmo a simples repetição do montante do ano passado.

É que, há dois meses, 12 países – dos quais, quatro da Amé-rica Latina: Chile, Peru, Colômbia e México, liderados pelos Estados Unidos, criaram o maior acordo comercial regional da história, a Parceria Transpacífico. E como será inevitável que os que a compõem passem a comprar mais, e a vender mais dentro do próprio bloco – tal como fizeram Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai entre si, nos áureos tempos do Mercosul – vai ser inevi-tável que o Brasil veja reduzida suas vendas naquele megamer-cado, cujos doze países haviam comprado, em 2014, 35% de toda a nossa venda de manufaturados no mercado internacional.

E não é só. A criação de outro megabloco, o do Atlântico, está em curso, e quando ele entrar, em vigor, 70% da economia mun-dial estará nas mãos dos dois. E quanto aos restantes 30%, já estão com destino confirmado: o bloco que a China está organi-zando que incluirá parceiros da África.

V. Ensaio

Autor

Luís MirPesquisador médico, jornalista, historiador e escritor .

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Crise de Estado: colapso republicano?

Luís Mir

Mais do que a corrupção sistêmica do aparelho de Estado e as crises seculares da educação, saúde, renda, habi-tação, o que temos no atual quadro democrático brasi-

leiro é um cenário de terrorismo político em alta escala. A Ope-ração Lava-Jato é apenas a ponta do iceberg. A crise é o próprio Estado, seu modelo, seus beneficiários. E como sempre, e não podemos ignorar, temos a história diante dos nossos olhos. E com a falência, o trituramento, do campo da esquerda democrática nos últimos vinte anos, estamos sem saída, sem alternativas, sem propostas, para reencontrarmos o rumo.

A falência da esquerda brasileira pós-redemocratização é algo pavoroso. Porque a única saída para crises desse porte e profundi-dade só é possível pela esquerda. A direita não tem interesses, além dos seus. O povo, a nação, é apenas sua massa de exploração. E com a falência do campo de esquerda no Brasil, estamos sem terra e bússola para chegarmos a um porto seguro. E temos também um quadro de colapso republicano, com as instituições democráticas não exercendo plenamente seu papel de alternativa e solução.

Enquanto o país oficial afunda, o país real tenta sobreviver além dele, acima dele, ou escapando dele. Temos instalada uma crise de Estado, que é a somatória de todas as vacilações e inconclusos pro-cessos de redemocratização e constituinte instalados em 1988. Tínhamos várias crises larvadas, outras em erupção, algumas pri-mariamente solucionadas, mas agora, todas convergiram para uma crise que vai não só sepultar um ciclo histórico, mas parir uma

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nova realidade política, econômica, social. Todos os responsáveis pelas soluções demandadas pelo caos institucional, político, social, quadro agravado pelas últimas eleições presidenciais, não podem dirigir, conduzir essas soluções. Eles são não só os provocadores da crise, do caos, como incapazes de sobreviverem fora dele.

Estamos no auge de uma quadra inédita de terrorismo político em nossa história. Fuzilaram as ideias, torturam os argumentos, estão tentando quebrar as pernas democráticas da República. E ele está em grau máximo. Mas não podemos acreditar que o Brasil não vai acabar. O Estado está sólido, forte, completamente à margem da crise do governo. Mas este está dissociado do Congresso, que está dissociado da sociedade, que está dissociada do governo e do Congresso. Então, o PT e PSDB, em termos de direções e projetos políticos em execução, estão se dissolvendo à luz do dia. Como estão, como querem continuar, como não aceitam refundações totais, vão desaparecer melancolicamente. O PT perdeu o mono-pólio do bem e o PSDB, o monopólio da modernidade, e a direita – os fascistas aí incluídos – resolveu se reinventar nas ruas.

Para onde vamos, qual a origem dessa mãe de todas as crises desde o advento democrático, há breves trinta anos? É necessário identificar as origens dessa mãe de todas as crises. Porque o momento, a que chegamos, é gravíssimo.

Dentro do processo de democratização vertical e horizontal, do Estado e das suas instituições a serviço da sociedade, temos atualmente a convergência de uma crise sistêmica. Ela é fruto da inconclusa implantação do regime democrático plasmado na Constituinte de 1988, de representação democrática congressual, partidária, de deficiência crônica no atendimento às demandas sociais, seja educação, saúde, habitação, renda. E porque esta crise é a mãe de todas as últimas crises? A estrutura de poder que comandou o país, à esquerda e à direita, nos últimos vinte anos, desabou, implodiu, acabou, feneceu. Estão soprando cinzas, ou acreditando numa negociação fênix, que salve a todos.

A redemocratização, como foi pactuada inicialmente, não se completou. Prometeu e não entregou. O que vem por aí, depen-dendo de que ótica se observe, ou com qual prospectiva se penetre no seu âmago, é, no mínimo, assustador. O correto é aterrori-zante. Como não temos esquerda, campo de forças progressistas articuladas, lideranças populares, vamos mergulhar no vazio, pri-meiramente. Não há, não haverá, nunca tivemos paraquedas para todos, não será agora que os teremos. Acabou a Presidência Impe-

8383Crise de Estado: colapso republicano?

rial, acabou o Congresso Passivo, o Judiciário Classista, e a Repú-blica está em convulsão. É tempo de crise, de caos, de ebulição. É tempo de exigir, reivindicar, avançar, demolir, atacar o status quo sem piedade, com o máximo de violência pacífica possível. É tempo de colocar a Presidência, Congresso, Judiciário, de joelhos. É esta a solução, é para isso que caminhamos?

Vamos discutir as origens e atores dessa crise de Estado. Ela não é congressual, partidária, social, econômica, em seus princi-pais eixos e vertentes. Ela é a crise de um modelo de Estado, petista, de uma sociedade petista, de um petismo retrógrado, conservador, fundamentalista. Que exauriu, implodiu, se negou e naufragou.

Republicanismo e Governabilidade

O que é exatamente governabilidade, ora tratado como algo espúrio na busca de apoios e alianças, outras vezes tratado como algo fetichista, no qual se põe em jogo a capacidade política de governar, ou seja, a relação de legitimidade do Estado e de seu governo, perante à sociedade? No século XX, os Estados latino-a-mericanos, inclusive o Brasil, enfrentaram crises políticas perió-dicas, crises de governabilidade, originadas pelos processos elei-torais de escolha de seus governantes. Não havia legitimidade, nem processo democrático, nem representação democrática plena.

Nas duas últimas décadas do século, houve um avanço gradual nos processos de democratização no continente. E o problema da governabilidade se deslocou para uma outra vertente – a necessi-dade de adequação das instituições políticas estatais ao efetivo interesse público. Assim, hodiernamente, a governabilidade nos regimes democráticos depende, em grande parte, de uma melhor intermediação dos diversos interesses do Estado e da sociedade em geral; da capacidade da sociedade em limitar suas demandas e da capacidade do governo de efetivamente atendê-las.

Vamos à origem dessa crise de todas as crises: o petismo, antes de constituir doutrina, partido ou uma ruptura democrática eleitoral e política, presumia ser uma odisseia extraparlamentar e extrarrepublicana, guiada pela lógica moralista e religiosa que a distinguiria, não só da política e dos partidos tradicionais, mas da estrutura política e institucional ortodoxa da República. Distinto de tudo o que havia, contra o republicanismo e a democracia. A conduta da massa petista, seja suas lideranças ou suas massas, costumeiramente limítrofes à intolerância política, tem uma prá-

8484 Luís Mir

tica política absolutista, a deificação de seus líderes transposta à realidade política e social. Como projeto histórico, é uma excres-cência. O avanço democrático e social não é possível sem uma instância política democrática, apropriada para dotar milhões de homens de um anseio real de mudança e solidariedade, tempo real de emancipação social e política.

Um partido político pode autonomear-se como o único apto a identificar e defender os interesses gerais e essenciais dos traba-lhadores? Todas as necessidades sociais? Só ele tem o direito de transformar revolucionariamente o mundo, conforme sua teoria? Os partidos comunistas acreditaram nisso e desapareceram por só crerem nisso. Tal ambição entra em contrassenso com as necessidades democráticas, a fundamental negação das justifica-ções filosóficas totalitárias. Partido dos Trabalhadores, generali-zação que define com perfeição que tipo de representação seria. É denominação eclesiástica, religiosa, todos os trabalhadores, todos os corações, todas as esperanças. Atua por todos os traba-lhadores, os que querem e os que não querem estar no Partido dos Trabalhadores, sem exceção.

Ovo da serpente

A desordem institucional e o descalabro ético do caixa dois revo-lucionário pós-tomada do poder federal em 2002 pelo PT, alcunhado como mensalão, não é a maior das crises da atual crise de Estado, do atual colapso republicano. Seria reducionista colocá-la como tal. Até porque a anormalidade institucional e política que possibilitou o caixa dois revolucionário é a comprovação reiterada da bancarrota da modernização política do país como civilização. A socialdemo-cracia brasileira (a peessedebista e a petista) não conseguiu resolver o impasse histórico entre modernização e revolução, entre reformas e justiça social, democratismo e republicanismo, igualmente como o deus romano e seus braços políticos provaram que não eram imunes ao pecado, como veremos no decorrer deste trabalho.

Essa derrota moral do petismo terá indubitavelmente uma repercussão latino-americana em face do compromisso e responsa-bilidade tácita dele como modelo de poder político-religioso. O que produziu a metodologia política petista: assombro coletivo em um país imerso no rumo incerto para onde o tumulto nos levará. Perdeu-se a memória institucionalizada da idoneidade política democrática como geradora de confiança. A superestrutura política petista está inoculando o conveniente veneno: alguns paradigmas

8585Crise de Estado: colapso republicano?

petistas estão em mutação ou decomposição, contudo os verdadei-ramente importantes para a manutenção de seu domínio serão mantidos por completo, não importa a degenerescência.

Mas o que estamos assistindo, efetivamente, a se auto implodir, histórica e ideologicamente? E ao petismo e a todos os seus braços políticos, sindicais, profissionais? Ele decidiu, em seu parto, unila-teralmente, ser o partido político dos movimentos sociais. E para tal, o Estado petista teria um braço político, com organizações sociais satelitizadas, no qual, como instituição paraestatal, pudesse exercer seu poder e controle. E se tornou, em suas origens, uma cruzada de evangelização político-religiosa, de resgate das massas pobres do Brasil para o centro da história. E começando do marco zero, da fundação de um novo Brasil (petista), uma nova humani-dade (petista) e uma superioridade da condução petista nos rumos da sociedade brasileira. Esse novo missionarismo político deixou a esquerda marxista estupefata. E imobilizada.

A partir de sua matriz político-salvacionista, o PT foi conde-nado a ser um partido político encravado no mundo das entidades não reais, como o são os partidos políticos salvacionistas, man-tidos pela utopia da fé em seus projetos e ações. A dificuldade insuperável como partido político republicano, em toda a sua his-tória, foi não poder descartar a metafísica petista que o susten-tava como arranjo político e social. Do que se compõe precisa-mente a metafísica petista? É a encarnação política da revolução messiânica, dirigida e alimentada por movimentos sociais reden-tores. Centrado numa visão fundamentalista do mundo.

Mas que tipo de partido é o PT? O tipo de categorização elabo-rado por Andreas Schedler (1964-),1 anti-political-establishment-parties, aproxima-se bastante da configuração movimentista e antipartido petista. Segundo Schedler, tais oposições contrapõem as elites políticas aos cidadãos, simultaneamente os contrapõem às elites políticas combinando elementos carismáticos, e tentam ultrapassar o eixo esquerda-direita construído pelos partidos tra-dicionais, com uma aceitação condicional da democracia.

“Estes movimentos, embora sejam grupos políticos que apre-sentam candidatos a eleições e, por meio delas, exercem cargos públicos, não serão considerados verdadeiros partidos políticos. Um partido desafiante é, antes de tudo, um partido, cuja ação se apoia em impugnar os atores estabelecidos, mas os reconhece como atores

1 SCHEDLER, Andreas. Anti-political-Establishment-Parties, Parties Politics, 2, 1996, p. 292-296.

8686 Luís Mir

legítimos para a disputa pelo poder, que alimentam novas clivagens democráticas ao invés de derrubá-los. A emergência dos movimentos populistas vem acompanhada do colapso do sistema de partidos pré-existentes com o esfacelamento da arte democrática”.

A emergência do PT conviveu com a fundação de um novo sis-tema de partidos que entre 1973 e 1989 sofreu duas simultanei-dades: um impulso conservador, em que as formas tradicionais do predomínio das elites foram mantidas e/ou reforçadas; e a emer-gência de novas formas de organização social e política que ten-taram contrapor-se ao status quo (KECK, 1991).2 Nessa raia, o partido contestador por excelência no Brasil pós-ditadura foi o Partido dos Trabalhadores.

“Os partidos desafiantes fracassados são aqueles que, em algum momento, constituíram uma ameaça real aos partidos do status quo, mas não conseguiram manterem-se como atores rele-vantes (ou efetivos) dentro do sistema de partidos durante um período de tempo suficiente. Quando as novas oposições partidá-rias não desenvolvem o caminho para a sua institucionalização, se debilitam como escolhas críveis e terminam por ser experiên-cias fugazes”. (LÓPEZ, 2005).3

Como atuar e influenciar, então, no mundo real? Os discursos proféticos, dramáticos, quase apocalípticos, sinalizando que a condenação eterna virá inclemente sobre aqueles que não se enquadrarem e esperarem o reino divino, não sensibilizam a polí-tica democrática e laica, ao contrário, a fragilizam e a desquali-ficam. Os movimentos sociais petistas, o verdadeiro PT, o utiliza-riam como instrumento político-partidário para aceder ao máximo de bens possíveis e reverter a exploração histórica. Para isso era desnecessário desnaturar a justiça, a política e a organização republicana na sociedade brasileira, com os direitos fundamen-tais transmutados em concessões petistas, colocados num hori-zonte utópico de que só assim haveria avanços. Essa equação política-salvacionista deu ao petismo uma aura simbólica e salva-cionista que o viabilizou eleitoralmente durante muitos anos.

Este Estado e este poder, em última instância e exercício, é um poder acima do bem e do mal. Esta é uma disposição política e socialmente autoritária, a pluralidade como refém da violentação da minoria.

2 PT . A lógica da diferença, Margaret E. Keck, Centro Edelstein de Pesquisas So-ciais, 1991). Acessível em: <http://www.centroedelstein.org.br/>.

3 Revista de Ciência Política, v. 25, n. 2, 2005, p. 37-64.

8787Crise de Estado: colapso republicano?

Anti-PCB

Segundo Paul Israel Singer (1932-), o PT era a oportunidade histórica perseguida, durante décadas, pela esquerda anti-PCB: em um partido de trabalhadores, de massas, que unificaria todos aqueles que haviam lutado politicamente contra o Partido Comu-nista, “combinavam-se elementos chaves para materializar a orga-nização independente dos trabalhadores, perseguida há décadas por pequenos grupos dissidentes do PC nos anos 30, por revolu-cionários isolados e grupos que romperam com os PCs nos anos 66-69. O surgimento do PT era a chance de estabelecer um par-tido amplo, de massas e enraizado nos sindicatos, nos movimentos populares e no meio da juventude”. A oportunidade histórica a que se refere Singer é organizar um grande partido socialista de trabalhadores não comunista. Um partido de trabalhadores é ideação histórica primeiramente socialista, no século 19, e comu-nista por excelência no século 20, surgido única e exclusivamente da classe operária, dirigido por operários, atuando como poder operário hegemônico dentro da sociedade. Os partidos comunistas tinham esse exclusivismo de origem e ação.

Dentro desta ótica, é uma ruptura radical. Os dirigentes sindi-cais do ABC, com algumas exceções, podiam sonhar e desejavam um partido (fundamentalmente anticomunista), mas não sabiam como construí-lo e não dispunham de recursos e base social para tanto. A CNBB possibilitou ao sindicalismo e à intelectualidade anti-PCB fundar um partido rival, uma alternativa definitiva a ele. Era um preço a pagar e o pagaram, mas historicamente o custo hoje se revela impagável. O que os militantes marxistas e os sin-dicalistas tinham que abandonar: a geometria política ortodoxa de esquerda e direita, que não seriam mais referências políticas; vale mais para o cidadão a honestidade, a eficiência, o diálogo; não é admissível uma doutrinação totalitária (comunista) na realidade brasileira contemporânea, pois ela será combatida numa socie-dade em que a heterogeneidade é cada vez mais elástica, como era a brasileira, a partir da década de 80.

A nova organização popular seria multi-representativa e face-tada, posto que não existe uma só cidadania, mas múltiplas cida-danias específicas, entre elas a cidadania de gênero, a cidadania étnica, a de deficientes, a de favelados etc, e cada uma delas tem direitos e obrigações, mas ocupando lugares diversos no entorno social. As lideranças sindicais e os movimentos sociais cooptados aceitam dogmaticamente o produto fabricado – Lula –, abrem mão

8888 Luís Mir

de qualquer controle ou exame nos rumos do caminho que toma-riam e aceitam assepticamente os seus mandos.

A massa crítica se pausteriza e se aglutina em torno dele, ela-bora uma fórmula política e ideológica ajustada a essa liderança político-religiosa e sua parenética. Todas as concessões ideoló-gicas se justificavam porque era um desejo histórico, a redenção e a salvação dos pobres e oprimidos, a maioria real do país, que acabaria numa sociedade democrática e popular com o exercício pleno de democratismo pelos movimentos sociais, a nova e verda-deira sociedade civil brasileira. É a mais admirável inflexão da história política brasileira no pós-guerra.

Todos os leigos, intelectuais, movimentos tiveram de se adaptar, voluntariamente ou a contragosto, ao novo projeto revolucionário brasileiro: movimentos sociais fundidos com um clerical-sindica-lismo messiânico, uma superestrutura político-ideológica anti-his-tórica. Essa contrafação político-ideológica legitimaria uma ver-tente autoritária fundamentalista como a senda histórica privilegiada para o desenvolvimento nacional. Francisco Weffort, Florestan Fernandes, Celso Furtado, Paulo Freire, José Álvaro Moisés, intelectuais petistas orgânicos, tentaram criar outra supe-restrutura político-ideológica laica que, se não anulasse, pelo menos neutralizasse o viés religioso do PT. Não conseguiram.

O PT se constrói com uma cultura política maniqueísta desde o princípio, o mundo dividido entre bons e maus, fiéis e hereges, santos e pecadores. A sociedade industrial e a democracia, formas organizativas modernas e flexíveis, são atropeladas pelas discipli-nadas militâncias petistas, cuja adesão férrea ao princípio de maiorias e minorias (os explorados contra os exploradores), reproduz uma construção cristã primitiva e não o programa ou a ação de um partido moderno e reformista. Explora e desenvolve permanentemente todas as formas de ação política extraparla-mentar e extra institucional, o que lhe confere uma falsa imagem de vanguarda revolucionária e social.

Como diria Gramsci, casamatas e trincheiras na sociedade civil eram conquistadas para a formação de uma nova sociedade política. Só que a nova sociedade política pretendida pelo PT acabou primitiva, reacionária e fundamentalista. Em duas décadas, o PT se converteu em partido nacional. É um partido com a necessária dose de vontade política para conquistar o Estado e violência política autossuficiente para triturar todos os inimigos ideológicos e sociais que lhe fizerem frente. Finalmente,

8989Crise de Estado: colapso republicano?

triunfa nas eleições presidenciais de outubro de 2002 sem pro-grama, sem projeto histórico, sem rumo. A Presidência da Repú-blica era uma ação de fé, e não de história. E de 2002 chegamos a 2015. A crise sem fim que parece querer eternizar-se.

Salvadores da pátria

Surgiu, dentro do projeto do Partido dos Trabalhadores, o povo petista. A principal fabulação: desaparece, como por encanto da história, o povo brasileiro e ocupa seu lugar o povo petista, insti-tuído como sujeito histórico fora da história. Seus fundadores – CNBB, sindicalistas e intelectuais anti-PCB – conseguem apenas materializar uma imagem que seria colocada dentro da história, a do povo petista, que gravitaria em torno deles para concretizar suas aspirações políticas e sociais, transformando-os em agentes da his-tória e de seu destino, donos de um discurso que seria a língua e a escrita desse povo. O povo petista seria o populacho em marcha, a definitiva rebelião dos pobres e oprimidos à luz do dia, a instau-ração de uma nova era. O ano zero de um novo mundo fundado na igualdade, fraternidade e solidariedade, a linha divisória do tempo entre as elites e a vigência dos direitos fundamentais e do democra-tismo. Com o mito fundador do povo petista, aflora um esponta-neísmo ortodoxo. O surgimento inesperado e intempestivo das mul-tidões de pobres no cenário da política brasileira nos anos 80 representava uma nova teoria de ação política das massas que, finalmente, além do brado da fome e da miséria, se recusavam a ser um simples populacho e assumiriam seu destino e o do país.

O PCB e as organizações marxistas e revolucionárias que se interpuseram à cruzada católica da CNBB no ABC foram atrope-lados, sem qualquer comiseração, pelo discurso de fé (rigoroso) e religiosidade (tridentina), agora uma mensagem revolucionária. A parênese e a técnica eclesiástica eram teológicas e espirituais, mas com fundamento temporal. E não acreditaram, não acei-tavam que uma estrutura religiosamente totalitária, como o cato-licismo, pudesse avançar revolucionariamente e se manter dentro das massas. Caracteriza-se aqui o erro estratégico do PCB quando confunde seu embate com o petismo católico.

Os dirigentes comunistas, em sua última discussão em Paris, antes do retorno do exílio em 1979, possibilitado pela anistia, haviam decidido que a militância do PCB e seus principais diri-gentes adotariam o socialismo democrático, a extinção do dogma do partido único, o fator democrático como principal ferramenta

9090 Luís Mir

histórica e política. Era o auge do eurocomunismo do PCI – Par-tido Comunista Italiano. Essa mudança dentro do PCB já estava consolidada e amadurecida desde a iniciativa de censurar publi-camente a invasão soviética da Tchecoslováquia, em 1968. Poder democrático, rigorosamente isso. Em Gramsci, a forma de exer-cício do poder nas sociedades modernas tem que ser democrática, com a construção gradativa do comunismo, quando instrumentos como a geração de consenso, alianças e convencimento no âmbito cultural são priorizados em detrimento da violência.

Petismo e regressão

O petismo como processo político e histórico foi constituído por uma série de invenções. A mais paradigmática delas foi a do petismo como o paradigma da sociedade frente ao Estado. Ele nunca pro-curou distinção alguma entre Estado e sociedade. Estabelecido isso, começa a jorrar a partir da nascente petista o simplismo tota-litário. Exemplo: uma definição válida de sociedade era tudo o que não é o Estado. Totalmente impreciso, com uma enorme força de inteligibilidade, supunha uma mudança completa da ordem tradi-cional na história da esquerda brasileira. Os petistas eram os únicos que estavam inseridos na história real, sua legitimação pro-vinha do Deus de Roma. A clara separação entre a sociedade e o Estado também supôs que era possível eliminar a história real – o petismo era efetivamente autônomo: podia-se dar leis a si mesmo. Essa divisão do processo e método histórico produziu um grupo político peculiar – os petistas intocáveis, um fenômeno perverso e totalitário na atual quadra democrática brasileira.

O Estado, a segunda grande invenção da política moderna, só pode ser aceito pelo petismo mediante sua separação da socie-dade e sua contraposição com ela. O Estado deve ser a transfigu-ração final do poder petista. Transformou-se no corpo da política petista, ou o vulgo aparelhamento, no sociologuês ortodoxo. Em primeiro lugar, o Estado deve representar a sociedade sobre a base de um poder delegado, abstrato e impessoal. Mas o PT adi-vinha o pensamento da sociedade, fundando-se em um mandato eterno, em todas as decisões nas quais a sociedade não deve ter vontade e nem a capacidade de não aceitar o desígnio petista.

Em segundo lugar, a vontade de todos não é igual em extensão à vontade geral, quebrada pelas persistentes divisões sociais que distinguem o mundo moderno. Para o PT, a vontade geral encontra-se em seu Estado e não na sociedade, pois é o símbolo do geral

9191Crise de Estado: colapso republicano?

frente às infinitas particularidades. (Este é o locus classicus do que Marx descreve como o autoengano ideológico). Por uma sur-preendente metamorfose, esse gestor do abstrato, o PT-Estado, é ao mesmo tempo o gestor do particular com respeito ao universal: humano e desumano de uma só vez.

O PT exige ser o depositário do espírito da nação; e, como legis-lador, exige para si a única instância na qual se pode fazer justiça (na sociedade só há justiça popular). Como se encontra, suposta-mente, além das particularidades, suas ações pretendem repre-sentar a solidariedade e o desinteresse frente ao interesse parti-cular e egoísta. A terceira grande invenção política petista foi apossar-se hegemonicamente da questão social, que funciona como o mais importante vínculo entre o Estado e a sociedade. É uma invenção propriamente moderna. Sem a proclamação dos direitos universais do homem, 90% desses problemas que hoje constituem a questão social teriam sido considerados como sofri-mentos e injustiças antes impostos pelos deuses. Os governantes e os governos não poderiam nem deveriam fazer nada. No melhor dos casos, teriam sido vistos de maneira pragmática e como obri-gações de pouca relevância.

Todas as invenções petistas se acham eivadas de uma visão fundamentalmente discordante da essência da modernidade. Quase todos os agentes políticos utilizados pelo PT, tanto na esquerda quanto na direita – a famosa aliança revolucionária para a tomada do poder –, foram apresentados como o novo mundo, como um cosmos dinâmico, mas sabiam eles que esse novo mundo petista, cedo ou tarde, sucumbiria por sofrer uma contradição interna crônica, possivelmente incurável. Progressivo, mas ins-tável em si mesmo, o petismo se presume dotado de princípios reitores e uma direção científica. Intrinsecamente dialético, faz ilusória a reconciliação dos opostos fora de qualquer política regida por princípios filosóficos.

Como tipologia política e fenômeno totalitário, é necessário assinalar alguns dos traços dominantes do petismo. A política petista tinha de servir a metas da história, impulsionar o fim da história e o advento da história real petista; devia expressar (e ser inspirada por ele) o grande relato da epopeia da humanidade, da história sem fim (a salvação e a redenção), no fim da viagem des-tinada pelo petismo.

Mas não podemos acreditar que o Brasil vai acabar. O Estado está sólido, forte, completamente à margem da crise do governo.

VI. A Cidade e a Governança Democrática

Autores

João Carlos Victor GarciaDoutor em História Social pela USP e membro do Conselho Curador da FAP .

José Arlindo SoaresSociólogo, professor da Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba e presidente do Centro Josué de Castro .

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Antigos e novos desafios do poder municipal

José Arlindo Soares

Revendo os meus arquivos, deparei-me com um artigo que escrevi em janeiro de 2009, no momento de mais uma posse de prefeitos. O artigo procurava dividir os mandatos

em ciclos e destacava a agenda mais importante de cada ciclo, tomando como referência inicial a retomada do processo de elei-ções diretas para as capitais em 1986, ou seja, a retomada da escolha democrática em espaços de grande complexidade social, onde diferentes visões podem se apresentar de maneira mais transparente e competitiva.

Sem quebrar a lógica do raciocínio, vejo que poderia simples-mente reproduzir o artigo, incluindo as tendências que se deli-nearam no último pleito e serviram para marcar o discurso de muitos dos novos prefeitos eleitos. No artigo de 2009, escrevi que as administrações municipais chegavam a uma fase de maturi-dade, mas, também, já enfrentavam graves sinais de esgotamento do modelo definido pela Constituição de 1988.

O acirramento dos problemas urbanos já se manifestava com todas as suas vicissitudes, revelando o seu verdadeiro alcance e suas grandes limitações. Na metade da década de 90, quando se iniciava a terceira safra de prefeitos eleitos nas grandes cidades brasileiras, participei de uma pesquisa, pelo Centro Josué de Castro, com o apoio da Comunidade Européia, onde se pretendia verificar se a democracia local tinha trazido mudanças significativas no reconhe-cimento de direitos e na qualidade de vida das pessoas.

9696 José Arlindo Soares

Tomando como referência cidades dirigidas por diferentes par-tidos constatou-se que cada eleição trazia uma agenda específica para ser respondida pela administração local, cujo escopo, nem sempre, vinha sendo totalmente preenchida pelo modelo de des-centralização em curso. No primeiro ciclo, emergiram como priori-dades a participação direta da população na definição das polí-ticas públicas e o reconhecimento da cidade informal. Uma agenda seguinte foi marcada pela retomada das grandes obras viárias, ampliando as atribuições das prefeituras de maior porte. Uma ter-ceira fase, muito bem diferenciada, foi a do município assumindo o protagonismo de indutor do desenvolvimento econômico.

Sob a influência do modelo de Barcelona, alguns municípios procuraram recuperar sítios históricos degradados com estímulo a um turismo diferenciado, que despontava no mundo todo. Na mesma direção, estava o incentivo à implantação de empresas com um novo perfil tecnológico que respondessem às exigências do padrão globalizado emergente. Surge aí realmente um novo papel que supera a tradicional atribuição de prestador de serviços básicos e incorpora a parceria com a iniciativa privada na explo-ração ordenada das potencialidades econômicas locais.

Paralela a essas tendências, em todas as fases, foi se aprofun-dando a responsabilidade do município com as políticas sociais básicas, como educação e saúde, de acordo com a ótica da Carta Magna de 1988, muito embora ainda permaneça confusa a regu-lamentação das competências e da distribuição de recursos entre os entes federativos no Brasil. Nas duas últimas campanhas elei-torais, duas novas questões afloraram em boa parte das plata-formas dos candidatos.

A primeira questão trouxe a necessidade dos municípios assu-mirem também a responsabilidade da prevenção à violência, com políticas concretas, em parcerias com os estados. Uma segunda passou pelo reconhecimento de que o modelo da escola pública atual não é mais adequado para promover a integração social, e, em consequência, não contribui para uma melhora efetiva na equidade que deve prevalecer em toda a sociedade. Enfim, é uma escola que está cada vez mais distante de concorrer para garantir oportunidades iguais para os desiguais. Daí a razão da disputa por modelos alternativos como os CEUS ou os Centros Experi-mentais de escola integral que apontam reais perspectivas de futuro para os seus alunos.

9797Antigos e novos desafios do poder municipal

É importante agregar que a safra 2009/2012 foi de baixa qua-lidade em importantes cidades, a começar por São Paulo e pelas três principais capitais do Nordeste. O índice de reeleição foi um dos mais baixos na história recente das eleições. As duas ques-tões colocadas em 2008 ressurgem agora, com mais ênfase, na agenda dos prefeitos, revelando que a velocidade do tempo social é muito maior do que a capacidade das cidades enfrentarem a forte pressão das demandas postas pelas crescentes tensões urbanas. O novo discurso da segurança e da necessidade de um novo modelo de educação terá grandes dificuldades, em razão da crise imposta pela reversão do quadro assumida pela descentrali-zação no Brasil.

Passados 12 meses no exercício do cargo dessa nova safra de prefeitos (2013/2017), uma nova agenda cai com força nas costas dos edís das grandes cidades – a agenda da moralização, da ética, como política de extensão dos direitos sociais. Como lembra o sociólogo Gaudêncio Torquato: “o grito das ruas fez-se ouvir nos espaços de todas as instâncias do poder.... um grito tão forte que tirará de cena quem não souber ouvi-lo.” (Estado de S. Paulo, 05/01/2014).

Nas duas principais cidades do país, a representatividade dos eleitos ficou no limite da sobrevivência. Em todas as cidades, tornou-se mais difícil o discurso fácil das promessas mirabolantes que não resistem a cinco minutos de realidade. A cada grande crise de representação, constata-se que o Brasil ainda mantém regras confusas e inconclusas no arcabouço institucional vigente, além de continuar com uma distribuição tributária bastante bem desigual.

Esta última característica coloca em risco uma governança mais equânime, gerando um perverso círculo vicioso. De um lado, o governo federal não dá o exemplo, por manter uma cultura gerencial de baixa densidade e de pouca confiabilidade. Para boa parte dos municípios, constata-se o aumento do número de pre-feitos que entregaram as prefeituras degradadas, sem nenhum temor à Lei de Responsabilidade Fiscal e ao poder de punição dos agentes de controle.

Talvez faltem recursos para o cumprimento dos desafios impostos pela descentralização inconclusa. Porém, o que falta mesmo é a confiança da sociedade de que a cultura política preva-lecente seja capaz de gerir adequadamente os recursos descentra-lizados sem traquinagens ou maquiagens.

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Governança democrática, representação política e participação

João Carlos Victor Garcia

Vale iniciar este texto com uma afirmação relativamente bem compreendida, mas nem sempre presente nos textos polí-ticos ou acadêmicos com a necessária ênfase: liberdade e

democracia são fundamentais para se alcançar o desenvolvimento econômico e social em toda a sua plenitude. O Nobel de Economia, Amartya Sen, reconhecidamente quem melhor estudou esse tema, argumenta que mais do que o aumento da renda, desenvolvi-mento significa também maiores oportunidades para a conquista de equidade e bem-estar social. Neste sentido, o exercício dos direitos e a garantia das liberdades têm valor em si mesmos e na democracia, com respeito aos direitos de todos, é que podem ser levados em conta os interesses e necessidades dos grupos sociais mais desfavorecidos.

A argumentação vai no sentido de que só no regime democrático a sociedade encontra a liberdade necessária para lutar por suas necessidades ou para pressionar por maior equidade na distribuição da renda, no acesso aos serviços públicos ou no respeito ao meio ambiente. Só com a livre circulação de ideias e valores podem ser construídos consensos e compartilhados objetivos com a força mobi-lizadora capaz de gerar capital humano e capital social, principais alicerces do desenvolvimento econômico. Ou, ainda, dito de outro modo, só com a liberdade de informação para poder produzir conhe-cimentos e inovação atenderemos às exigências da economia infor-macional, sobre a qual estamos erguendo hoje uma nova sociedade.

Portanto, abertura, flexibilidade, estabilidade e integração são características necessárias às relações institucionais entre os atores sociais e são elas determinantes para a capacidade de inovar e incorporar novos atores. E é exatamente a maior ou menor capacidade de cooperação entre eles, conforme especia-listas na matéria afirmam apoiados em estudos empíricos, que explica o diferencial de desenvolvimento entre comunidades. Nesse sentido, o ambiente de liberdade democrática facilita a geração das chamadas “vantagens colaborativas” e também do capital social, uma vez que participação e colaboração são atri-butos intrínsecos da democracia.

9999Governança democrática, representação política e participação

Mais do que a simples disponibilidade de infraestrutura, sabe-se hoje que o desenvolvimento econômico e social está dire-tamente relacionado às possibilidades encontradas nas demo-cracias para articular formas de interação flexíveis e estáveis, baseadas na confiança e na cooperação, nas possibilidades de articular diferentes interesses em amplos projetos, na capaci-dade de mobilização e responsabilização da cidadania a partir de valores compartilhados.

Estamos, assim, diante de uma concepção de governança que necessita de democracia e do aprofundamento dos aspectos da representação política e da participação da cidadania para pro-mover o desenvolvimento. Se as instituições democráticas são as que melhor facilitam o desenvolvimento, por outro lado o principal fator de êxito na governança democrática é a qualidade da repre-sentação e da liderança nela baseadas.

No contexto da nova economia, da sociedade-rede, e da abso-luta necessidade de gerir as interdependências dos atores sociais para se alcançar o bem comum, o valor da representação está na qualidade do político, na sua capacidade para escutar e dialogar, compreender, convencer e motivar para a ação coletiva e estabe-lecer a responsabilização e o compromisso social da cidadania.

Nesse sentido, a política democrática, tanto como valor e fim quanto como meio para o desenvolvimento social contemporâneo, deve ser entendida, principalmente, como capacidade de represen-tação. E já aqui cabe apontar aspectos relevantes daquilo que qua-lifica a representação. A boa governança democrática guarda relação direta com a qualidade da representação do governante eleito, votado por todos os cidadãos e apenas enquanto cidadãos, portanto com a liderança legitimada pelo voto para criar as condi-ções para que a governança seja realmente integradora. Ao político eleito cabe a tarefa de construir o interesse geral a partir dos inte-resses dos distintos atores e setores sociais, inclusive dos que não dispõem de capacidade organizativa ou de interlocução na defesa de seus interesses. Tal concepção faz com que as lideranças eleitas, ainda que democraticamente, para representar corporações ou seg-mentos sociais – como igrejas, sindicatos ou universidades – sejam vistas com limitações para gerir as interdependências entre os atores sociais e construir consensos. A liderança principal deve corresponder, pois, à instituição mais democrática, isto é, à esco-lhida por toda a cidadania. Do contrário, nos encontraríamos com uma liderança corporativa a partir da qual não é possível construir o interesse geral, uma vez que se reduz ao corporativo.

100100 João Carlos Victor Garcia

Se a democracia é, em essência, representação, o papel que caberia à participação cidadã seria o de contribuir para assegurar a qualidade dos mandatos entre as eleições. Ou seja, teria uma função complementar, sem nunca substituir o essencial, embora a representação com base em interesses implique a criação de espaços de cidadania nos quais haja deliberação e construção de conhecimento mútuo, confiança e compromisso de ação. Neste sen-tido, a participação é um espaço necessário, que torna possível e qualifica a representação, até mesmo porque nele são expressas as demandas dos que não têm ou têm pouca representação eleitoral e em que se manifestam setores descontentes e, muito especial-mente, setores vulneráveis. Mas, de qualquer modo, não se pode dizer que se trata da participação do conjunto da cidadania.

É bem verdade que os processos participativos sofrem com fre-quência criticas severas por erros de concepção na sua implemen-tação, que acabam levando à inconsequência dos mesmos e debi-litam a sua importante contribuição que não só completa, mas qualifica a democracia. Muitas vezes, a participação é confundida com elaboração de estratégias ou de projetos, como se esta não fosse tarefa complexa e de rigor técnico e, portanto, inadequada aos processos participativos. Ou, com grande frequência, é atri-buída equivocadamente à participação cidadã a aprovação de pro-jetos, desconsiderando-se o fato de que a aprovação dos mesmos depende dos atores que têm capacidade de realizá-los, produ-zindo, assim, importante frustração de expectativas e descon-fiança nos processos participativos. E, ainda, muitas vezes os pro-cessos participativos são colocados como lócus para tomada de decisão, em substituição aos órgãos de representação política, desconsiderando o fato de que qualquer processo participativo é setorial-corporativo e que os participantes, quando muito, repre-sentam suas organizações.

Tais críticas reforçam a argumentação no sentido de que os processos participativos devem estar voltados para a ampliação dos canais de interlocução não só para legitimar o exercício do poder, mas também para viabilizar o encontro de soluções com maior grau de resolutibilidade e identificar desafios e interesses da sociedade, ou seja, para servir de principal insumo para a ela-boração de estratégias. O contrário significaria obter estratégias e projetos sem legitimação nem apoio social e, por consequência, sem impacto na melhoria da capacidade de organização da socie-dade. De fato, a participação pode referendar e dar consentimento majoritário às estratégias e, sobretudo, aos projetos.

101101Governança democrática, representação política e participação

Na realidade, o que se defende é a concepção de que a partici-pação cidadã em condições de normalidade democrática deva ser efetivada de tal modo que favoreça a participação eleitoral e o inte-resse pelo monitoramento das políticas públicas e, desse modo, dê mais qualidade à democracia. Nesse sentido, um dos principais indicadores dos processos de participação cidadã seria o aumento da participação eleitoral, o interesse pela política e o prestígio da figura do representante político.

Não cabe no presente texto – embora a ideia venha logo à mente, daí a necessidade deste registro – abordar a generalizada descrença nos valores da representação dos eleitos, hoje presente na alma de cada cidadão aqui entre nós, mas também em outras partes, que acaba sendo, em última instância, a descrença nos valores democráticos. Promessas eleitorais irrealistas apenas para a conquista do voto, corrupção, desperdício dos recursos públicos fazem dos políticos a principal causa do seu próprio desprestígio.

Esse rebaixamento da prática política tem como contraponto a necessidade da existência de lideranças entre os atores institucio-nais com capacidade de aglutinar e representar a maioria dos interesses, pactuar e respeitar institucionalmente suas decisões, enfim, envolver a maioria da sociedade na construção de um pro-jeto de futuro compartilhado.

Por outro lado, tais críticas representam desafio e estímulo para a busca do melhor formato para o sistema de representação que, entre nós, passa por pelo menos dois conjuntos de medidas, ambos difíceis e de realização demorada. O primeiro deles é a reforma do sistema político, partidário e eleitoral brasileiro, capaz de definir caminhos compatíveis com a abertura dos estreitos corredores que viabilizarão maior transparência e com-preensão dos processos sociais e políticos em que se assenta a sociedade brasileira hoje.

O avanço do sistema representativo, no entanto, não se exaure nesse aspecto. Por tudo que já ficou dito antes, também é preciso superar as dificuldades que se interpõem aos processos participa-tivos. Muito se tem feito nesse sentido, mas sempre em dimensão acanhada; essa timidez termina por tornar as alternativas imagi-nadas infrutíferas, gerando desânimo e frustração, diminuição da participação e, por fim, alimentando um círculo vicioso altamente contagioso. Um dos grandes defeitos que pode sugar a energia de um sistema político é “o de não proporcionar exercício suficiente às faculdades individuais, morais, intelectuais e ativas do povo” .

102102 João Carlos Victor Garcia

Faz-se urgente que os mecanismos dessa atuação sejam qua-lificados, englobando a maior gama possível de áreas de inter-venção pública, sem se resumir, contudo, a espaços de discussões abstratas; o que deve ser buscado são veículos de intensa partici-pação com capacidade de superação da desconfiança que surge ao serem propostas aos participantes deliberações que não lhes dizem respeito. Dos processos participativos podem, sim, sair cri-térios de atuação que orientem a ação política e a gestão, com real possibilidade de acompanhamento e controle.

Tais observações guardam relação estreita com soluções hoje comumente adotadas, como as audiências públicas e a instituição de conselhos setoriais e temáticos, que embora importantes canais de participação, acabam tendo seus resultados avaliados negati-vamente no dia-a-dia por serem ineficazes, meramente protoco-lares, ou homologatórios. As audiências habitualmente envolvem assuntos que exigem amplo conhecimento técnico e terminam sendo meramente protocolares; os conselhos, por sua vez, acabam quase sempre sendo uma corruptela dos sistemas convencionais de representação. A trajetória de superação de tais fragilidades passa, certamente, por reconhecer o papel importante, porém subsidiário ao sistema representativo, que a participação tem nos regimes democráticos. Passa, igualmente, pelo reconhecimento das suas diferentes dimensões – seja a da participação cidadã na elaboração de políticas financiadas com recursos público – princi-palmente as municipais, mais próximas da população –, seja a participação nas organizações sociais, desportivas, culturais ou de moradores. Todas são importantes e guardam relação entre si, mas os métodos para o seu desenvolvimento são distintos.

O enfrentamento dessa discussão ganha relevância quando examinada no contexto dos desafios da superação da visão do desenvolvimento como crescimento econômico e industrial, em cuja origem figuravam apenas os investimentos em infraestrutura e grandes equipamentos. Visão hoje insuficiente para abarcar a complexidade que caracteriza a temática do desenvolvimento na sociedade em que vivemos – a sociedade do conhecimento ou sociedade-rede, cujo eixo estruturador são as tecnologias da infor-mação e comunicação.

Nesse sentido, o conceito de desenvolvimento humano, do Pro-grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), talvez seja o que melhor ajude a entender essa nova realidade, porque compreende não somente o desenvolvimento econômico, mas

103103Governança democrática, representação política e participação

também a redução das desigualdades sociais, a sustentabilidade ambiental e o fortalecimento da democracia.

Sabe-se que, diferentemente da sociedade industrial, a prin-cipal fonte de valor agregado e de produtividade hoje são as pes-soas, as equipes profissionais e a organização em rede das empresas. Não se diz com isso que as infraestruturas deixam de ser importantes, mas que são insuficientes diante da relevância atual do que chamamos capital cultural ou intelectual, que é gerado e fortalecido a partir da qualidade e intensidade das inte-rações humanas e empresariais.

Com as lentes da sociedade industrial, não se podia enxergar a amplitude dos fatores que geram o desenvolvimento. Em espe-cial, compreender que ele depende da qualidade das redes de pes-soas e empresas, ou que ele só é alcançado quando tem por base o capital social, entendido como a capacidade de organização e ação de uma sociedade. Em outras palavras, na sociedade-rede é fundamental articular o potencial humano e o capital físico para promover o desenvolvimento.

“O capital social refere-se ao conjunto formado pela confiança social. Às normas e redes para resolver os problemas comuns. As redes de compromisso cívico, tais como associações de bairros, as federações desportivas e as cooperativas, constituem uma forma essencial de capital social. Quanto mais densas forem estas redes, mais possibilidades existirão de que os membros de uma comuni-dade cooperem para obter um benefício comum.” (PUTNAM, R. D., Making Democracy work: Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton University Press, 1993, p. 125).

A transição que vivemos hoje rumo à consolidação da socie-dade do conhecimento não só trouxe a necessidade de inovar per-manentemente, como impôs novas formas de relacionamento social. Ao indivíduo cada vez mais autoinsuficiente, contrapõe-se a sua dependência de redes sociais para atender às suas cres-centes e complexas necessidades. Das empresas são demandados reposicionamentos horizontais em relação aos seus clientes, for-necedores e empregados, estes com maior autonomia no processo produtivo e formação. Sociedade e economia se configuram cada vez mais como uma construção coletiva assentada em redes.

Do ponto de vista dos governos, e especialmente das prefei-turas, gerir a sociedade-rede é gerir as relações, é desenvolver a governança, não a que busca a colaboração esporádica de atores em um tema concreto, mas a governança como modo de governar

104104 João Carlos Victor Garcia

habitual, que busca melhorar a capacidade de organização e ação de uma sociedade. E dela se exige democracia, pois a livre circu-lação das ideias e interesses e a existência de organizações abertas são necessárias para que seja possível construir consensos sobre interesses legítimos e visões em torno da sociedade (ou de uma cidade) que se acredita possível e desejada.

Na sociedade do conhecimento, portanto, a tarefa principal consiste em promover o desenvolvimento humano a partir da criação, fortalecimento e coordenação das redes econômicas, sociais e culturais. Da capacidade de gestão das interdependên-cias entre os atores sociais e institucionais depende o aproveita-mento das potencialidades e oportunidades de desenvolvimento da sociedade. É esta gestão das interdependências que precisa-mente caracteriza a nova arte de governar: a governança democrá-tica ou governo-rede, que se configura pelo envolvimento da cida-dania na solução dos desafios sociais, pelo fortalecimento dos valores cívicos e públicos, pela revalorização da política democrá-tica e do papel do governo representativo e, finalmente, pela cons-trução compartilhada do fortalecimento do interesse geral.

VII. Batalha das Ideias

Autores

Biaggio De GiovanniFilósofo italiano .

Michel ZaidanHistoriador e professor da Universidade Federal de Pernambuco .

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Berlinguer: vencedor ou vencido?1

Biaggio De Giovanni

1. Não é fácil iniciar um debate sobre Enrico Berlinguer. Para tentar fazê-lo, é preciso passar por diferentes camadas de sua per-sonalidade, não é possível identificá-lo só com a função política que teve na sociedade italiana e como secretário do PCI, ainda que naturalmente seja preciso dedicar a ela a atenção principal. Fica-riam de fora traços muito pessoais, e as contas poderiam não fechar na definição mesma de um juízo político e, sobretudo, na compreensão de certas razões de suas escolhas. Basta pensar no fato de que nenhum outro dirigente do velho PCI (que teve tantos, e carismáticos, a começar pelo próprio Togliatti) pôde conquistar uma dimensão “universal” na consciência dos italianos, como a que se consolidou em torno de Berlinguer. A imagem conta, e para a mencionada dimensão contribuiu, antes de tudo, a expressivi-dade e o “recorte” de sua face, destituída de toda prolixidade, uma face cinzelada, superposta a um corpo frágil, o todo capaz de for-necer a realidade – filtrada através da imagem – de um asceta político (que oxímoro!), uma pessoa que parecia propensa a car-regar dores e sofrimentos do mundo e, quem sabe, a tentar dar-lhes resposta, eu diria, com todo o seu ser.

Rapidamente descrito, era este um traço austero (palavra fatal, veremos) que Berlinguer conseguia suavizar com uma pitada de ironia que às vezes parecia dirigida também a si mesmo, e aquele aspecto frágil e um tanto atormentado se resolvia, para os outros, numa personalidade certamente introvertida e possivelmente um

1 Texto originalmente publicado no jornal L’Unità, de Roma, 20/10/2015.

108108 Biaggio De Giovanni

pouco sombria, mas íntima, familiar, suave; único, neste sentido, entre os “grandes” do PCI. Para fazer só um paralelo, Togliatti era carismático, mas distante; a pequena figura de Berlinguer entrou no imaginário de milhões de italianos (muitos de modo algum “comunistas”) por uma espécie de respeito afetuoso que só sua pessoa suscitava, e ninguém se surpreendeu quando Roberto Benigni o pegou nos braços e o levantou por alguns instantes. Giorgio Amendola, por causa da compleição física, mas certa-mente não só por isso, Togliatti, pelo efeito... reverencial que ins-pirava, não poderiam ter encorajado um tal abraço.

2. É um começo um pouco longínquo, mas talvez menos do que pode parecer, e nestes seus traços pessoais ainda podemos nos deter por um momento para constatar o quanto sua comunicação política estava como que envolvida por eles e neles resolvida: uma comunicação enxuta, severa, sem nenhum toque de retórica, a política sempre considerada no fio que a une e a distingue da ética. E sua morte parece assim como algo marcado pelo destino, em Pádua, naquele 1984, quando a língua começou a tropeçar no momento em que, concluindo o comício, saudava os “compa-nheiros” e os exortava ao esforço final. Tudo isso fazia pensar em algo bem distante do temperamento predominante nas personali-dades políticas italianas, dava o sentido de uma política que bro-tava não de si mesma – nem de uma escolha hiper-realista nem de outra, por assim dizer, de pura filosofia da história – e sim de uma inspiração ética. Como se suas raízes (e aquelas em que se baseava a escolha de Berlinguer) devessem ser buscadas não nos grandes cenários da história e, sim, em algumas verdades próprias dos estratos mais elementares da vida social, a partir das vidas atribu-ladas dos camponeses do Sulcis [Sardenha] ou dos operários de Mirafiori [Turim]. Mas, certamente, estes contrastes e conflitos, que viveu diretamente desde o início da juventude, levaram-no à radi-calização política da crítica e à observação dos grandes cenários do mundo. Em resumo, no quadro das respostas a estas realidades, partícipes de uma humanidade maltratada, nascia a necessidade de considerar, com uma convicção que permaneceu inalterada até o fim, “outra” sociedade, produzida por vicissitudes que original-mente nasceram, no juízo de Berlinguer, precisamente para levar os excluídos à cena histórica. Um forte elemento ético estava na base de uma escolha histórico-política, mas esta escolha histórico-política adquiriu autonomia própria e condicionou tudo. O ano de 1917 dividira a história do mundo num antes e num depois. Um ponto firme, do qual não se afastou nunca.

109109Berlinguer: vencedor ou vencido?

3. Aqui deve ser ressaltado um elemento que quero expressar com grande nitidez: Berlinguer foi até o final um comunista con-victo. Até mais do que Togliatti (se é que tal paralelo, assim refe-rido, pode se sustentar), cuja culta inclinação historicista, e de realismo político, fazia com que entrevisse cenários mais maleá-veis e complexos: por um lado, Togliatti era personagem de grande relevo da III Internacional stalinista (mais do que “comu-nista”); por outro, tinha mais percepção da complexidade da cul-tura ocidental e talvez fosse mais capaz de perceber o sentido de uma crise irreversível do mundo comunista já nos últimos anos de sua vida. Afirmo esta tese com plena convicção: tudo o que disse sobre a solidez do temperamento de Berlinguer se tornava clareza e quase simplicidade de uma escolha de campo, certa-mente atormentada nos últimos anos por dúvidas provenientes de sua sincera consciência democrática, que, no entanto, jamais foi genuína consciência liberal. E os elementos que estou prestes a recordar nunca cancelaram o que adquirira como traço funda-mental e quase primordial de sua escolha: estar do lado do “campo socialista”.

4. Quem pensa de modo diferente pode aduzir muitos ele-mentos em contrário: já na segunda metade dos anos setenta, Berlinguer expressou, em rápida sucessão, severas críticas ao ordenamento dos estados socialistas: forte referência à autonomia das escolhas políticas do PCI; intervenção no XXV Congresso do PCUS, em fevereiro de 1976, que lhe valeu uma frieza incomum de tratamento; a célebre entrevista sobre a Otan, sempre em 1976; a afirmação do valor universal da democracia e muito mais coisas que aqui não teria espaço para lembrar. Tudo bastante impor-tante para um juízo de conjunto sobre sua ação política. Mas, se estes elementos e fatos, seguramente fundamentados, pretendem ser a evidência de interpretações de sua saída da escolha original, então não, isso precisamente é o que não existe. Comunista, quase no sentido pré-político desta expressão, entendida como represen-tação substancial dos excluídos da história, que exatamente por esta exclusão podiam ser considerados como “diversos”, e diri-gidos por uma classe política “diversa”, por princípio imunizados contra as degenerações da sociedade capitalista, sustentados por um duro antagonismo ético e por uma correspondente vontade de transformação política. A diversidade comunista, que Berlinguer várias vezes afirmou, não nascia de nenhuma soberba, mas, antes, da interiorização daquele dado fundamental ora subli-nhado, que devia levar a subtrair-se às leis de uma sociedade cujos elementos degenerativos e involutivos Berlinguer sempre

110110 Biaggio De Giovanni

sublinhou. O ponto estabelecido era este, e veremos as conse-quências sobre suas escolhas concretas.

A citação direta de seu pensamento vale mais do que qualquer comentário. Em 1974, em Bruxelas, lançando a proposta do euro-comunismo, disse: “Basta observar a carta geográfica para avaliar o imenso alcance da existência, neste nosso continente, de toda uma série de estados socialistas a partir do Elba em direção ao Leste e ao Sul, os quais conseguem, graças a sua estrutura eco-nômica e social, levar adiante sua experiência através da pes-quisa, da superação das dificuldades, da obra de renovação até mesmo no momento em que todo o mundo capitalista se vê às voltas com dificuldades que testemunham os limites atingidos pelo desenvolvimento de que o capitalismo é capaz”. É um texto emblemático, e não de ocasião, que poderia ser multiplicado. Nele é recorrente o critério de uma análise constante, que deve ser interpretada, a meu ver, como o fundamento de tudo. Sua pers-pectiva é anticapitalista, no sentido original deste elemento fun-dacional, e o é a ponto de remetê-lo à camada mais elementar da visão comunista sobre um capitalismo que esgotou sua capaci-dade de inovação e só deve assistir ao próprio declínio. Diante desta previsão, assumida como horizonte de tudo, deviam ser postas em campo as forças adequadas e moduladas as escolhas possíveis. Um capitalismo chegado “a seus limites”, mas isso, deve-se dizer, na véspera da maior revolução capitalista de todos os tempos, seja qual for o juízo que dela se queira dar: um capita-lismo capaz de destruir seus próprios limites e, com a revolução tecnológica, mudar os arranjos do mundo. Uma leitura do capita-lismo, a berlingueriana, encerrada nos esquemas mais clássicos da tradição comunista e que poderia parecer singularmente desa-tenta a aspectos fundamentais do próprio pensamento de Gramsci, a que certamente Togliatti se mostrou bem mais sensível.

5. Esta contraposição não pretende ser impiedosa, não tenho a intenção de enrijecer este aspecto da reflexão. Mas mantenho a opinião de que todo o trajeto de Berlinguer (e as escolhas de que falarei daqui a pouco) esteve marcado por aquele formidável con-dicionamento que o levava a ver a história do mundo dividida defi-nitivamente por um evento e, também, a manter, sobre tal base, a rigidez de uma escolha ética, mais ainda do que política, resis-tindo a qualquer desmentido ou dura réplica da história. E aqui acrescento uma reflexão, certamente a ser discutida: talvez este seu apego sólido e firme às origens, a 1917, para dizer claramente, expressasse a consciência de que o PCI, em última análise, não

111111Berlinguer: vencedor ou vencido?

podia separar-se daquela data, mesmo que corretamente interpre-tada, e de que a renúncia a tal relação também implicaria a con-clusão de toda uma história da esquerda italiana. E Berlinguer, então, não via de modo algum as razões iminentes. Pelo contrário! Sua utopia, antes, era unir o que a história do mundo dividira, mas unir o mundo na vitória do ideal socialista. Muita coisa até mesmo do Berlinguer mais “italiano” pode ser lido sob esta luz, a partir do “compromisso histórico”.

6. Pelas razões indicadas, sua batalha política “no interior da” história do movimento operário e socialista se desenvolveu em duas frentes: contra as degenerações do sistema soviético, com a constante referência às ideias de atraso e insuficiência em relação a um modelo ideal, a uma ideia-força que estava originalmente bem colocada, daí seu “leninismo” muitas vezes confirmado, ainda que – certamente – corrigido, mas nunca além de determinado ponto; e contra as perspectivas do reformismo social-democrata, independentemente do caráter que assumisse, a não ser que fosse tendencial subalternidade à tradição comunista. Quando Craxi venceu a batalha no PSI, a coisa estimulou mais ainda a hostili-dade do secretário do PCI precisamente porque a “origem” se via submetida ao mais duro dos ataques. Portanto, uma dupla frente de luta, contra as degenerações autoritárias soviéticas em prol de uma (utópica) visão democrático-comunista, o ponto de vista que o levara, em 1977, à invenção do eurocomunismo; e contra o reformismo social-democrata, porque sua ideia central sempre fora a de ultrapassar os limites da democracia liberal e/ou socia-lista. Berlinguer tinha fascínio pela ideia de uma ultrademocracia dos iguais, mas nem por isso devemos subestimar seu realismo de dirigente político, de secretário de um grande partido de massas, e a pergunta é: qual a relação do tecido concreto de suas pro-postas políticas com esta posição fundamental?

7. Aqui se chega a Berlinguer secretário político de um partido de massas como o PCI, vivo no interior da sociedade italiana, por-tador de política concreta, de participação indireta no governo da Itália, e deve-se observar com atenção para ver como aquele fun-damento essencial por mim posto no centro de sua escolha também tenha estado, ou não, na base das escolhas políticas que em cada circunstância eram definidas, e neste ponto é preciso clareza. Tal fundamento para mim é decisivo, desempenhou sempre um papel de perspectiva, mas não sectário, não à moda do PCF, para esclarecer as coisas. Com Berlinguer o PCI alcançou o máximo de seu apoio eleitoral. Por quê? Como se comportou sua

112112 Biaggio De Giovanni

convicção básica diante da dinâmica política de uma estratégia concreta? Desde logo, deve-se dizer que o temperamento de Ber-linguer sempre o colocará diante de escolhas que, em seu núcleo duro, participavam dos tormentos históricos da sociedade ita-liana. O rigorismo comunista de Berlinguer não pretendia ser sec-tário, minoritário.

A proposta de compromisso histórico – verdadeira expressão de sua personalidade – foi formulada, bem se sabe, na esteira da tragédia chilena, mas, mais amplamente, da irrupção do terro-rismo na Itália, da confusão geracional e política pós-1968, da crise energética, em suma, de um momento da história, não só italiana, que parecia à beira de uma grande crise. As coisas devem ser compreendidas em seu contexto. Mas, mesmo compreendidas naquele contexto, elas não pareciam ter o futuro consigo. Baseavam-se em elementos essencialmente conservadores das grandes estruturas, que afastavam para o futuro distante os ele-mentos de transformação crítica que já permeavam os partidos de massas e a sociedade pós-1968, sua vontade de libertação, a irrupção nova dos direitos civis, o abalo das firmezas militantes, o tom de um novo liberalismo de massa, possivelmente oculto pelo hiperideologismo de alguns movimentos extremos.

No terreno da política geral, só a utopia de uma democrati-zação “comunista” do sistema soviético podia fazer imaginar uma participação do PCI no governo da Itália; só uma representação da coesão valorativa do “mundo católico” podia levar a sonhar com um encontro cada vez mais envolvente “com aqueles movimentos e tendências de católicos que, em número crescente, colocam-se no âmbito do movimento dos trabalhadores e se orientam em sen-tido nitidamente anticapitalista e anti-imperialista”, ênfases que pretendiam dar o tom ao encontro entre dois mundos. E nisso pesava a oscilação da leitura do “compromisso”, entre um acordo de base já em parte hegemonizado pelos comunistas e um acordo de governo com a DC: um nó nunca resolvido e talvez não passível de resolução, dado o contexto cultural ambivalente em que Berlin-guer apresentou a própria estratégia. E dada, talvez, a ideia de que o movimento comunista, sendo o portador do futuro, antes ou depois iria vencer a partida, com uma vitória capaz de incorporar o melhor da identidade do adversário.

Naturalmente, coisa diversa é considerar os efeitos imediatos de tal proposta. Inegavelmente, ela contribuiu para a defesa da democracia italiana e colocou o PCI num espaço político que nunca tivera. E dizer isso não é dizer pouco. Mas, observando o

113113Berlinguer: vencedor ou vencido?

tema com a distância que hoje é possível (e talvez também com o juízo retrospectivo, contra o qual se deve tentar ter cautela), a falta de perspectiva estratégica estava um pouco nas coisas e já se entreviam, entre tantas outras coisas, as linhas novas que atra-vessavam o mundo católico e sua relação com a política.

8. E mais: a austeridade enunciada por Berlinguer em 1977, no discurso do Teatro Eliseo [Roma]. Evitemos comparações, que também foram feitas, com a atualidade. Não nos limitemos à asso-nância, senão o domínio das meras palavras torna tudo abstrato. A austeridade proclamada no Eliseo foi nitidamente anticapita-lista, contra a irrupção da sociedade de consumo e individua-lismos conexos. E, se acentuava temas que hoje certamente retornam, isso não deve impedir que se observe sua inspiração de então e seus efeitos naquele contexto: inspiração que estava toda, ou quase, na oposição entre um tipo de sociedade, secularizada e consumista, e a imagem de uma sociedade regulada, que naqueles anos não podia deixar de se assemelhar a sociedades que viviam outra experiência no outro lado da Europa. Hoje, a austeridade, em chave inteiramente diversa, é pregada sobretudo pela direita de governo europeia e pelos equilíbrios do capital financeiro.

Por fim, a “questão moral”, que irrompeu no debate italiano com a célebre entrevista em La Repubblica, promovida por Eugenio Scalfari em 1981. Também aqui se assiste às lamentações de muitos que recordam sua capacidade de antecipar uma “questão”, chamada pela primeira vez com tal nome. É bem compreensível que uma difusa sensibilidade diga: Berlinguer viu corretamente, viu a irrupção da corrupção nos partidos e fulminou-a com pala-vras de fogo que deixaram estupefatos velhos dirigentes de extração bastante mais togliattiana, como Alessandro Natta e Giorgio Napolitano, o segundo dos quais veio a campo precisa-mente contra o que lhe pareceu um potencial abalo do cenário político, uma espécie de retirada da política concreta. Sobre o tema ninguém quer negar a Berlinguer capacidade de visão e desafiadora coragem política: é o reconhecimento da qualidade de um líder. Mas reflitamos um momento. Apresentada assim, naqueles anos, como crítica aos partidos italianos (menos o PCI, diverso: os demais, todos ou quase, indicados como bandos e clientelas de poder que ocupavam o Estado) e com simultâneo reconhecimento das reformas executadas pelo partido polonês, contribuiu seja para interromper o diálogo político, seja para pre-parar as condições (mentais, diria) de abalos radicais que, anu-lando o sistema italiano, escancariam as portas para outra his-

114114 Biaggio De Giovanni

tória e, quase, para uma sociedade sem partidos. Em resumo, uma crítica impiedosa, uma pequena mexida destinada a acelerar inconscientemente a destruição dos partidos de massa? E preci-samente da parte de Berlinguer? Talvez tenha sido exatamente isso. Naturalmente, com o acréscimo dos eventos amadurecidos no fatal 1989, que ele não podia prever.

9. Luzes e sombras, pois, se entrelaçam na ação de um político que permanece na história da Itália. Difícil estabelecer um ponto de equilíbrio. A Itália lhe deve muito nos anos da emergência [da luta antiterrorista], seria inútil e estúpido esquecê-lo, mas certamente inútil é isolar suas escolhas dos contextos que, para um político, são obviamente decisivos. Mas insisti no fato de que uma parte de sua personalidade e de sua cultura estavam vinculados a um mundo que se dissolveria velozmente, sem deixar de si verdadeiro traço, e que nos anos oitenta já se encaminhava visivelmente para o epílogo. Refiro-me ao mundo do socialismo real, mas não só: também a questão católica foi vista por Berlinguer quando suas características tradicionais já estavam se obscurecendo, e isso não foi compreendido por ele. Mas aqui há uma continuidade interna da história do PCI, de Togliatti a Berlinguer, a obsessão pela questão católica, uma continuidade que impediu ao conjunto daquele par-tido inserir na própria história os elementos mais fecundos de um liberalismo laico; e a Berlinguer, em particular, sondar com con-vicção não suspeitosa a relação política com a outra parte da esquerda italiana que dera início a outra história e que, por sua vez, foi enfraquecida pelas incompreensões recíprocas.

10. O mundo a que Berlinguer pertencia, com profunda e sólida convicção ético-política, desapareceu da cena da história. Reitero que a permanência de um laço com aquele mundo não constituiu uma espécie de núcleo duro berlingueriano, ainda que ele o mantivesse firme independentemente de qualquer cons-ciência atenta de suas degenerações e, mais do que outros, o rea-firmasse com um tom assertivo que não era de todos. Estava esculpido, aquele mundo, na própria história do PCI, dava o sen-tido de um percurso histórico, de uma escolha em torno da qual milhões de homens haviam empenhado a própria vida, amontoando-se nas linhas de tensão e divisão da história do século XX. Com o fim da URSS, chegava a seu termo também uma parte fundamental da história da esquerda italiana, e nenhuma antiga e eficaz reivindicação de autonomia podia substituir a morte do pai. Assim, seu desaparecimento só podia ser enfrentado com um novo início, que, no entanto, a meu ver, não coube à his-

115115Berlinguer: vencedor ou vencido?

tória do PD nem de suas várias evoluções, a partir de 1992, uma vez que só podia ser interpretado por outras classes dirigentes e literalmente, diria, por uma nova geração. Terminado aquele mundo, a história da esquerda italiana estava destinada unica-mente a uma refundação, não a uma reconstrução através da sín-tese de duas culturas derrotadas e por parte dos mesmos homens que desta derrota foram os protagonistas. Hoje se está traba-lhando de modo eficaz numa descontinuidade efetiva. Veremos, estamos só no começo.

11. Naturalmente, nenhuma direção política que marcou um tempo morre de todo, tal como nenhuma época desaparece sem deixar traços de si. Não se trata hoje de bloquear a crítica aos paradoxos do capitalismo por causa do trágico fracasso do comu-nismo; ou de aceitar o ritmo de desigualdades crescentes; não se trata de negar a crise da democracia política, mesmo vencedora; de acolher como libertadora a dissolução das ideias políticas ou, como se diz, das ideologias. O mundo, esta nova grande Babel, necessita de pensamento e ideias gerais; trata-se de utilizar tanto instrumentos novos quanto instrumentos herdados, incorporados ao nosso tempo e a suas conexões, por certo separados dos con-textos em que nasceram. Deste ponto de vista a morte do passado é sempre relativa, senão o mundo renasceria sempre do nada. Mas sabemos que não é assim, e isso vale também para as pes-soas que deram uma contribuição sofrida para a história, seja qual tiver sido, e que só por isso merecem lembrança e mesmo reconhecimento, precisamente no momento de distanciamento em relação a elas e de crítica.

Tradução: Luiz Sérgio Henriques

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Estado, desenvolvimento e democracia, no Brasil

Michel Zaidan

Foi solicitado que falasse sobre Estado, desenvolvimento e democracia, no Brasil – da perspectiva dos avanços e desa-fios. Lembro-me do livro escrito por Celso Furtado, em plena

ditadura militar, intitulado O mito do desenvolvimento econômico”, mas lembro também de um outro, no meu período de estudante universitário, cujo nome era A dialética do desenvolvimento. É pre-ciso frisar que Furtado não só foi um teórico do desenvolvimento, mas também um formulador de políticas de desenvolvimento para os países do Terceiro Mundo.

O tema do “desenvolvimento” deve ser pensado de um ponto de vista multidimensional. Não é sinônimo de crescimento nem se resume à mera geração e acumulação de riquezas. Há desenvolvi-mento e desenvolvimento.

Quando teóricos da Cepal abordaram este assunto, havia quase um consenso que o desenvolvimento era igual à industria-lização. E que sem uma industrialização não haveria desenvolvi-mento. Foi a época da chamada “Razão dualista”, tão bem criti-cada por Chico de Oliveira em seu famoso ensaio. Os autores dualistas acreditavam que o subdesenvolvimento, ou a falta de desenvolvimento, era produzido pela hegemonia do setor agro-ex-portador-primário (com uma agricultura extensiva, de baixa pro-dutividade). Daí a ideia de incrementar a industrialização, subme-tendo à agricultura as necessidades da economia urbano-industrial. E claro, a necessidade de uma readequação da estrutura fundiária brasileira, com o aumento da produtividade e uso de tecnologias modernas no campo. Vem daí uma clássica e antiga disputa entre os reformistas e reformuladores agrários, representados pelos cir-culacionistas e os críticos da plantation.

Na ideia dos dualistas, não havia nenhuma comunicação entre os dois setores da sociedade (rural e urbano). A agricultura era exportada: e a indústria sofria as consequências da disfuncionali-dade econômica do setor agrícola, tido como atrasado. A proposta de desenvolvimento coincidia, então, com o incremento da indus-trialização e a subordinação do setor agrícola ao setor industrial. E o desenvolvimento de mercado interno, por meio da generali-

117117Estado, desenvolvimento e democracia, no Brasil

zação do trabalho assalariado e o aumento do poder de compra dos trabalhadores.

Este modelo ficou bem em evidência com a revolução de 30, tida e havida como a nossa revolução burguesa, e a instalação do “Estado de Compromisso” no Brasil. A política de socialização das perdas, tão bem estudada por Celso Furtado, minimizava a crise da cafeicultura e dava um impulso decisivo à indústria brasileira, pela generalização das leis trabalhistas, a formação de um mer-cado nacional e o processo conhecido como substituição das importações. Enquanto o setor agrícola pôde financiar esse pro-cesso, com a contenção das importações e sua substituição pela indústria nacional, houve um grande avanço da indústria brasi-leira, sem grandes mudanças na estrutura agrária. O estrangula-mento desse processo se deu quando não foi mais possível impul-sionar a indústria, sem o concurso da importação de insumos, máquinas, peças e acessórios e a falta de poupança interna.

Colocou-se, claramente, para a sociedade brasileira que o aprofundamento do processo de industrialização se daria com a internacionalização do departamento de bens de produção, e não com a produção interna de máquinas e insumos industriais. A questão é que esse modelo dependente e associado não liber-taria a economia brasileira da sua subordinação ao capital inter-nacional, e o setor agrícola continuaria atrasado e improdutivo. A ideia de criar um mercado de capitais, com o fim da estabilidade dos trabalhadores, e a abertura econômica, pelos militares, dando a passagem ao capital financeiro, não ajudou a fortalecer a indús-tria nem a mudar o campo, mas modernizou a infraestrutura do país e deu origem a um processo de diferenciação dos atores sociais muito grande no Brasil.

Vem daí o conceito de “sociedade civil” contra o Estado, de inspiração gramsciana e no bojo das revoluções contra o Estado, também chamadas de “recuperadoras”, por um filósofo alemão contemporâneo. Achava-se que, por um paradoxo, a moderni-zação econômica do Brasil teria gerado novos atores políticos (modernos) num processo de socialização da política, e que a sociedade brasileira rumava firmemente para a “ocidentalização”, ou uma democracia de massas. Segundo essa análise, no Brasil o Estado era tudo, e a sociedade civil era nada. Entre nós, havia uma “Estadania”, não uma “cidadania”. E que o primeiro projeto de cidadania teria vindo com Getúlio Vargas – a cidadania regu-lada, a cidadania da carteira de trabalho.

118118 Michel Zaidan

Malgrado essas expectativas, a sociedade brasileira que surgiu foi uma mistura de Bélgica com Índia, uma Belindia, em razão não só das características da transição democrática (pelo alto, por uma conciliação entre as elites), mas também pelo formidável pas-sivo social (e a falta de representação política) dos setores margi-nalizados. Produziu-se, com o governo Sarney, uma societas sce-leris, uma sociedade de bandidos, com o império de uma “razão cínica”, representada pela “lei de Gerson” e seus heróis: Pelé, Ayrton Senna, Macunaíma, Jeca Tatu etc. Todo o ensaio de criação de uma nova sociedade civil e seus sujeitos políticos coletivos, atuando nos aparelhos privados de hegemonia, desapareceu num passe de mágica. E a velha política voltou a dominar o país, com o prolongamento do governo corrupto de Sarney e a distribuição de canais de TV aos oligarcas regionais. Foi o período da hiperin-flação e a moratória da dívida externa.

O próximo passo foi a introdução, a golpes de medidas provisó-rias e ataques a direitos e organizações de trabalhadores, da agenda dita moderna, das privatizações, da redução do Estado, da demissão de funcionários públicos, da abertura da economia brasileira etc. De início, ela se deu de forma atabalhoada, depois de forma siste-mática, planejada, com FHC e sua gestão gerencial/regulatória, apoiada no tripé: desregulamentação do mercado financeiro, priva-tização de ativos públicos e abertura da economia brasileira, com câmbio flutuante, metas, juros altos e superávit primário.

Sob o pretexto de criar um clima “ótimo” para os negócios, vendeu-se o país, na bacia das almas, com o preço depreciado e empréstimos do BNDES. Época das bandalheiras, dos negócios da China. A proposta de cidadania era a do cidadão-consumidor. Aquele que tinha a capacidade de escolher o modelo, a qualidade, o preço, o tipo de serviço, mediante pagamento. Cooptou-se a sociedade civil, através do “mercado altruístico”, do terceiro setor e flexibilizaram-se ao máximo as relações de trabalho, quebrando o princípio básico da legislação trabalhista: a relação de continui-dade da relação de trabalho. Foi a época do voluntariado, dos amigos disso, os amigos daquilo etc, na qual as fundações empre-sariais passaram a fazer filantropia, às custas do Tesouro, e agregar valor às suas marcas.

A chegada de Lula ao Poder, por meio de uma coligação de centro-esquerda e um discurso econômico contemporizador, colocou a questão da continuidade ou não dessa política econô-mica, a forma de garantir governabilidade através de uma ampla coalizão partidária e se essa seria uma janela de oportunidades

119119Estado, desenvolvimento e democracia, no Brasil

para o avanço das lutas sociais no Brasil. Questão difícil de res-ponder, tanto no plano econômico, como no político. Na pior hipó-tese, o governo petista teria acrescentado uma agenda social à política econômica de FHC. No plano da reengenharia institu-cional, ou da relação entre os Poderes, temos de reconhecer honestamente que não houve avanço. O governo petista procurou tirar proveito de todos os vícios e defeitos do regime político (pre-sidencialista e multipartidário), cooptando parlamentares e os partidos de sua base, dando uma enorme sobrevida às figuras teratológicas da política brasileira.

Estendeu muito a cobertura das políticas de transferência de renda, ajudando a tirar muitos brasileiros da linha de miséria. A política redistributiva, apoiada no fundo público, empréstimos consignados, investimentos em infraestrutura, expansão do ensino, renúncia fiscal, administração dos preços públicos e o apoio ao setor agroexportador, contribuiu muito para criar um arremedo de mercado interno para os produtos da chamada linha-branca, cons-trução de casas populares, redução da dívida externa, formação de grandes reservas em moeda forte. Mas quando mudou a conjun-tura internacional e o preço das commodities despencou, produziu-se um enorme buraco nas contas públicas, acompanhado de mais inflação, mais taxas de juros, escassez do crédito, retração da eco-nomia e dificuldades para encontrar uma demanda sustentável para a indústria de transformação.

Houve uma mudança grande de agenda econômica, passando de uma política anticíclica, expansionista do crédito e investi-mentos estatais, para uma política contracionista, baseada em aumento de impostos, cortes de direitos, aumento de juros e uma necessidade premente de economizar dinheiro para o equaciona-mento das contas públicas. A dívida pública chegou a 37% do PIB, os índices previstos para o crescimento são negativos, como a inflação. Emprego e renda também sofreram queda. E o país enfrenta a má-vontade das agências de avaliação do grau de inves-timento no país. Há também um ataque especulativo ao Real, que precifica a crise política e o mau desempenho da economia. O cenário internacional também é desfavorável.

A janela de oportunidades para os movimentos sociais não produziu os resultados esperados. Os movimentos foram atraves-sados pela divisão entre a resistência ao ataque aos direitos dos trabalhadores e a defesa das instituições democráticas. O que torna pouco enfática a defesa do mandato da Presidente da Repú-blica, que praticamente entregou a sua sorte ao maior partido do

120120 Michel Zaidan

Congresso, em troca de cargos, verbas e nomeações. A oposição golpista insufla os movimentos de rua e as redes sociais contra a permanência da Presidente da República, aproveitando-se dos processos contra ela, da Operação Lava-Jato e dos péssimos indi-cadores econômicos. Mas não há unidade entre estes. A imprensa golpista também dá sua contribuição à fervura do caldeirão, mais preocupada com seus interesses corporativos do que com o inte-resse público. É possível que Dilma sobreviva a tudo isso. Mas a um custo extremamente elevado para o país e os interesses popu-lares. E a gente se perguntando se vale a pena pagá-lo.

Democracia consentida e administrada. Sociedade civil tute-lada. Capitalismo de Estado, que redistribui, por um lado, e ajuda a acumulação de capital das empresas e o fabuloso lucro dos bancos e agentes financeiros.

Que tipo de cidadania é essa, que o governo petista ajudou a criar?

VIII. Questões do Estado e da Cidadania

Autores

Bia CardosoJornalista paraense .

Willame Parente MazzaMestre em Direito, auditor fiscal da Fazenda Estadual do Piauí.

Sofia Vilela de Moraes e SilvaProcuradora do Trabalho, vice-coordenadora nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho do Ministério Público do Trabalho, mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas e doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco .

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O feminismo brasileiro se espalha e resiste

Bia Cardoso

Companheira, me ajude, que eu não posso andar só . Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor . (Grito coletivo no protesto ‘Mulheres Contra Cunha’ em São Paulo)

Em 2015, as Blogueiras Feministas completaram 5 anos de existência. No início do ano, ao retomarmos as atividades do blog, escolhemos “resistência” como nossa palavra-

-chave. Foi um ano difícil, mas também um ano em que vimos cada vez mais pessoas falando sobre feminismo, especialmente mulheres jovens, adolescentes e meninas. O feminismo tem se tornado pop, tem sido mastigado pelo capitalismo, cuspido por pessoas equivocadas, tem sido atacado e também abraçado. Fico feliz que esteja sendo assunto, pois mais pessoas podem ouvir sobre o feminismo, pensar, se sentirem instigadas a buscar mais informações.

Sendo um movimento social e político, acredito que o femi-nismo é construção coletiva, bricolagem, algo que não pode ficar parado, precisa girar constantemente. Por isso, saúdo esses últimos dias em que o feminismo brasileiro esteve tão em evi-dência com a Campanha Primeiro Assédio, o Enem e as Marchas contra o deputado federal Eduardo Cunha. Resistimos!

124124 Bia Cardoso

Primeiro assédio: infância e juventude marcadas pela violência contra a mulher

A primeira pergunta que me fiz quando soube dos comentários sexuais a uma participante do programa Masterchef Junior foi: como chegamos num ponto em que homens sexualizam e expressam publicamente sua atração por uma menina de 12 anos, num programa em que o objetivo é avaliar dotes culinários, sem receio algum?

Não acho que a cultura do estupro explique tudo. Há mais. Há nossas relações nas redes sociais, há os limites entre público e privado na internet. Há as regras sociais impostas a homens e mulheres desde a infância. É um conjunto grande de elementos e de ações que levam homens a muitas vezes terem o assédio e a violência como a única forma de resposta. Em vários eventos femi-nistas vi homens se sentirem totalmente à vontade para subirem no palco, pegarem o microfone e defenderem o direito de bater em mulheres. Não há nenhum medo neles ao fazer isso, mesmo estando em frente um grande grupo de mulheres, porque a socie-dade permite que ocupem esse espaço.

Como resposta aos comentários abusivos à menina de 12 anos, o Think Olga propôs que as mulheres relatassem seus casos de assédio na infância ou adolescência, usando a hashtag #PrimeiroAssedio. A campanha tomou proporções gigantescas e produziu mais de 100 mil tweets. Grande parte dos homens viu suas time lines de redes sociais virarem grandes murais de relatos e demonstraram não saber que o problema era tão grave e tão próximo, o que só mostra o quanto falamos pouco publicamente sobre o assunto, o quanto somos ensi-nadas a termos vergonha por sermos violentadas.

É claro que esse tipo de ação em redes sociais tem limitações. Como lembrou Djamila Ribeiro: Para as meninas quilombolas a hashtag não chega. Também houve quem não pudesse relatar nada em redes sociais, pois seus abusadores fazem parte de seus círculos de familiares e amigos. O assédio e a violência são per-passados por questões de raça, etnia, corpo, idade, classe. Não há ação política perfeita e fatalmente estaremos esquecendo ou dando menos atenção a problemas graves enfrentados por mulheres periféricas. Porém, acredito que para o tão combalido feminismo, isso representa uma inspiração. Uma reação espontânea e cole-tiva de mulheres que não querem mais permanecer caladas, uma abertura para que diferentes mulheres relatem suas diferentes vivências marcadas pela violência do assédio sexual. Mesmo clas-

125125O feminismo brasileiro se espalha e resiste

sificada como ação de marketing, as mulheres se apoderam da hashtag e constroem em cima dela.

Também é preciso lembrar que nem todas as mulheres têm uma história de horror para contar. Há mulheres que gostam de gracejos e assobios de estranhos, sentem-se desejadas com o olhar do outro. Porém, é importante repensar tais práticas para nos questionarmos: como tratamos as mulheres na sociedade? E pensar num mundo mais inclusivo e seguro para todas, não apenas para o meu desejo. Acredito que repensar as maneiras como me sinto desejada pelo olhar do outro contribui para uma coletividade maior.

O Enem e as adolescentes feministas

Faz tempo que vemos a movimentação das adolescentes femi-nistas pelas redes sociais. Perfis em redes sociais, páginas no Facebook, grupos de discussão, blogs, tumblrs. Elas estão por todos os lugares. Discutindo geralmente assuntos do cotidiano, questionando o machismo nas famílias e nas escolas.

Também é comum ver críticas a elas dizendo que são pouco politizadas, que se preocupam muito com pormenores como as propagandas de esmalte. Porém, quando você era adolescente preocupava-se com o quê? A construção do feminismo também se dá no questionamento e compartilhamento das vivências, no esta-belecimento de laços de amizade com outras mulheres e não apenas na luta por direitos dentro das instituições. Quem não sai para lutar contra leis retrógradas pode estar em outras frentes do feminismo. Num momento em que o gênero está sendo retirado dos planos de educação, em que os Top 10 Vadias demonstram o poder da violência cotidiana nas vidas dessas jovens, são elas quem estão resistindo.

No primeiro dia do Enem, uma questão baseada em citação da filósofa e feminista francesa Simone de Beauvoir. No segundo dia, o tema da redação: “a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Ainda teve poesia sobre resistência negra e a feminista queer mexicana Gloria Evangelina Anzaldúa. A ava-liação de 2015 logo ganhou o apelido de Enem Feminista.

Para mim, o Enem está totalmente por dentro do que está rolando entre a juventude. Tenho 34 anos, sou de uma geração que ainda foi ensinada que o assédio às mulheres é algo corri-queiro, que faz parte das nossas vidas. Não fui ensinada a reagir,

126126 Bia Cardoso

apenas a ignorar, a correr, a pedir ajuda. O que vejo nas jovens de hoje é que elas querem reagir, não querem ficar caladas e sabem que não encontrarão respostas para seus anseios nas delegacias de polícia.

Então, talvez nesse momento, a conversa não seja especifica-mente sobre o que eu ou você achamos melhor para o feminismo. Talvez as ações colocadas em práticas por determinados grupos não sejam as que considero mais estratégicas, mas com certeza tem um objetivo para quem as promove. Fora que não acredito na máxima “isso queima o filme do movimento feminista”, porque o movimento feminista já tem seu filme queimado diariamente pelo status quo, por anos e anos de back lash. Um movimento que questiona relações sociais, que quer promover mudanças nunca será visto com bons olhos, não nos cederão espaços de bom grado, mesmo que hoje o palavrão “feminismo” esteja presente até nas bocas das apresentadoras de programas matutinos.

Devemos sempre buscar a inclusão de mais e mais mulheres, lutar contra a invisibilização e o silenciamento. Não há manual, nem cartilha, nem bíblia do feminismo. O meu desejo é deixar a mulherada livre para hackeá-lo, desconstruí-lo, remixá-lo. O que vai sair disso, não sei, mas sigo otimista acreditando que será algo positivo. Por isso, assim como Aline Valek: As adolescentes são minhas novas heroínas.

Mulheres Contra Cunha: pela liberdade de nossos corpos.

No fim de outubro, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, o PL 5.069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que dificulta o atendimento a vítimas de violência sexual e prevê penas mais duras para quem induzir ou auxiliar uma gestante a abortar. O próximo passo é ir à votação no plenário.

Esse projeto representa um grande retrocesso nos direitos das mulheres. Atualmente, não é preciso fazer boletim de ocorrência em casos de violência sexual e o atendimento na saúde é obriga-tório. Essa medida não aumentou o número de abortos legais no Brasil, mas cada vez mais temos menos centros de referência especializados nesse tipo de atendimento e menos informações.

Primeiro houve uma mobilização nas redes sociais: “Pílula Fica, Cunha Sai”, para depois organizarem marchas com milhares de mulheres nas ruas de algumas das principais capitais do país

127127O feminismo brasileiro se espalha e resiste

gritando: Mulheres Contra Cunha! As imagens são poderosas e mostram o quanto estamos dispostas a lutar para que nossos direitos não sejam retirados. Quando as mulheres se unem somos ameaçadoras, tanto que violência policial se fez presente nos pro-testos de Belo Horizonte e na 1° Feira do Livro Feminista e Autô-noma de Porto Alegre.

Ainda estamos longe de ter representatividade efetiva no topo das instituições políticas e na mídia, mas ações surgem todos os dias. Durante essa semana, ocorrerá o movimento #AgoraÉQue-SãoElas, com mulheres ocupando espaços de colunistas homens. Uma ação pequena, mas que pode representar um momento para refletirmos sobre a baixa presença de mulheres como referência em opinião.

Sim, estou otimista, talvez ingênua. Acredito que num momento tão tenebroso, com redução da maioridade penal sendo aprovada, estatuto do desarmamento sendo modificado, demarcações de terras indígenas ameaçadas, escolas públicas sendo fechadas ou privatizadas e retrocessos nos direitos das mulheres pululando todos os dias, há o mínimo que comemorar para seguir no femi-nismo. Resistir é preciso!

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A discriminação do negro no trabalho

Sofia Vilela de Moraes e Silva

Insistentemente, propaga-se a ideia de que não existe racismo no Brasil. Contudo, rotineiramente, pessoas negras são revis-tadas, expulsas de ambientes públicos e privados, desabo-

nadas, não contratadas, apelidadas e prejulgadas pela cor da pele. O goleiro de futebol, Aranha, em plena Copa do Brasil, foi cha-mado de macaco por torcedores de time rival, assim como a atriz Taís Araújo e a jornalista Maria Júlia Coutinho, recentemente, foram agredidas nas redes sociais com frases racistas.

O único intuito dos agressores é humilhar e desmerecer as vítimas, nutridas por ódio, ignorância e certa carga histórica e cultural de uma falsa ideia que as pessoas afrodescendentes seriam inferiores às pessoas de cor branca e etnia ocidental.

Na esfera trabalhista, as pessoas negras ainda são excluídas do mercado de trabalho. Na fase pré-contratual, isso é, no momento da admissão ao emprego, é possível encontrar anúncios que fazem referência à cor da pele e à aparência dos candidatos. Durante o contrato de trabalho, ainda se observa que negros ocupam cargos com baixa possibilidade de progressão profis-sional, sofrem humilhações e assédio moral e recebem remune-ração inferior às pessoas de cor branca.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, em 2014, os trabalhadores negros ainda ganhavam, em média, 58% do rendimento recebido pelos trabalhadores de cor branca.

A mulher trabalhadora negra, par sua vez, é duplamente dis-criminada em razão do gênero e da raça, vista que, além do pre-conceito em relação à cor, enfrenta as discriminações pela clás-sica divisão sexual do trabalho. A verdade é que a discriminação, especialmente na esfera laboral, condena a parcela negra a uma vida como cidadã de segunda categoria e mantém o ciclo de pobreza e exploração ao diminuir a possibilidade de distribuição de renda por meio do trabalho.

A Convenção n° 111, da Organização Internacional do Trabalho, que trata sobre a matéria de discriminação em emprego e ocupação,

129129A discriminação do negro no trabalho

define a discriminação nas relações de trabalho como “toda dis-tinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão”.

A Constituição brasileira de 1988, em art. 3°, IV, aduz que um dos objetivos fundamentais da República Federativa da Brasil é “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. No caput do tão invocado art. 5° afirma-se que todas “são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [..]”. No art. 7°, XXX, ainda, proíbe-se a “diferença de salários, de exercício de fun-ções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.

O Estado brasileiro, portanto, consagrou o princípio da igual-dade e da vedação à discriminação. Nesse sentido, o Ministério Público do Trabalho, por meio da sua Coordenação Nacional de Promoção de Igualdade e Oportunidade e Eliminação da Discrimi-nação no Trabalho (Coordigualdade), em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, reconhece que o preconceito ainda impera, inclusive, nas relações laborais, bem como que é preciso refletir sobre a igualdade racial e propor políticas públicas e formas de inclusão da pessoa negra no mercado de trabalho.

Não à toa que o 20 de novembro coincide com a morte do guer-reiro Zumbi dos Palmares, pois se configura com uma data de resistência e luta contra o preconceito. É um momento para pen-sarmos nos reflexos do escravismo no processo histórico de cons-tituição da sociedade brasileira e para não fingirmos que somos uma plena democracia racial.

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Cidadania e democracia no novo constitucionalismo latino-americano

Willame Parente Mazza

A formação do constitucionalismo latino-americano inaugura uma nova era com a superação da modernidade uniformi-zadora, com uma sociedade civil efetivamente democrá-

tica e mais integrada constitucionalmente nas decisões da nação dentro da sua diversidade e complexidade.

Essa formação do novo Constitucionalismo latino-americano vem acontecendo mais expressivamente nas mudanças constitu-cionais recentes na Bolívia (2009) e no Equador (2008) e em alguns traços nas Constituições da Colômbia (1991) e Venezuela (1999).

O novo constitucionalismo latino-americano traz a ideia do Estado plurinacional, considera novas formas de lidar com as diferenças culturais, rompe com o direito moderno uniformizador e uniformizado do modelo hegemônico europeu, que se traduz na negação sistemática da diversidade.

Dessa forma o Estado plurinacional traz uma cidadania mais participativa e integrada com o núcleo modificador da sociedade. Integra uma sociedade na sua diversidade que ultrapassa a ideia do diferente.

Como afirma Magalhães, o Estado plurinacional “reconhece a democracia participativa como base da democracia representativa e garante a existência de formas de constituição da família e da economia segundo valores tradicionais dos diversos grupos sociais (étnicos e culturais) existentes”. Dessa forma, esse modelo de Estado constitucional democrático, participativo e dialógico rompe com as bases teóricas e sociais do Estado nacional uniformizador de valores e radicalmente excludente.

O autor considera o ano de 1492 uma espécie de marco ini-cial do processo de formação do Estado moderno e do direito moderno uniformizado e uniformizador. Com ele vieram todas as instituições que marcaram a modernidade como: o exército nacional; as moedas nacionais; os bancos nacionais; o capita-lismo; o povo nacional; a polícia; a burocracia estatal; o direito internacional; as ideias de democracia representativa; a sepa-ração de poderes; o liberalismo; o fascismo e o nazismo; o socia-

131131Cidadania e democracia no novo constitucionalismo latino-americano

lismo; o stalinismo; as constituições nacionais; os direitos humanos, entre outras instituições.

O ponto em comum dessa modernidade é a ideia uniformiza-dora e homogeneizadora que normaliza, gerando hegemonias e nega a diversidade. Fala-se em diversidade que supera a ideia da diferença, porque o diferente continua comparado a um para-digma imposto. A diversidade é reconhecer o outro na sua indivi-dualidade, na sua cultura, nas suas tradições. Desde a invasão das Américas mantém-se a lógica do “nós” versus “eles” que nega o reconhecimento do outro e cria uma identidade nacional em que o “nós”, nacional, europeu, espanhol, católico que compar-tilha uma identidade fundada em valores comuns, em uma moral e uma ética unificada pelos nacionais e nega sistematicamente o “eles”, dito “bárbaros e inferiores”. Nisso, tem-se a ideia do que é europeu é universal, que a única filosofia existente é a europeia e o que está fora da Europa é menos evoluído e não uma comple-xidade distinta.

Assim a discussão gira em torno da uniformização gerada por diversas instituições. Uniformização de valores da religião, do direito de família, da propriedade que permite e sustenta o desen-volvimento do capitalismo na economia moderna e se contrapõe à sociedade diversa que se forma.

A existência de uma sociedade civil que reconheça sua diversi-dade vai além do multiculturalismo e passa pelo intercultura-lismo, pois coloca o cidadão como integrante das decisões estru-turais do país com a emergência de novos espaços e a preservação desses grupos e não somente o reconhecimento do diferente, mas a integração da diversidade. Seria uma sociedade civil plural e democrática pautada no multiculturalismo e interculturalismo assim definido:

O interculturalismo é um conceito que vai além da diversidade cultural, pois implica a construção de um espaço no qual os diversos grupos culturais possam se manifestar, dialogar e serem conhecidos e reconhecidos como agentes participantes nas decisões e rumos da política cultural e, principalmente, na (re)construção e (re)interpretação da Constituição.

Dessa forma seria necessário além do multiculturalismo, que reconhece a existência de mais de um grupo cultural com partici-pação política, um interculturalismo que permitiria “a criação de um espaço para dialogar que efetivamente garanta a participação de todos os grupos sociais” .

132132 Willame Parente Mazza

Valoriza-se aqui a participação política dos cidadãos, essencial para efetivar os chamados direitos culturais, no qual seria neces-sário garantir “um espaço de igualdade para que os atores cultu-rais, incluindo o público, possam dialogar e participar efetiva-mente da política e da (re) construção da Constituição”. Nesse sentido para que haja o plurinacionalismo é imperioso que exista o reconhecimento dos grupos culturais e que as diversas culturas e a diversidade cultural sejam incorporadas nesse processo de construção do Estado.

Nesse contexto é que se traz a sociedade civil dentro do cons-titucionalismo latino-americano que desenvolve como eixos de modificações e de ruptura com o Estado moderno: a democracia consensual não hegemônica, a existência de vários direitos de família e de propriedade; a existência de tribunais (judiciários locais) e tribunais pluriétnicos e plurirepresentativos de grupos sociais distintos com a promoção de mediações que promovam soluções consensuais.

Essas modificações podem ser vistas nas Constituições da Bolívia e do Equador, que, conforme afirma Wolkmer:

Para alguns publicistas, tais textos políticos expressariam um constitucionalismo plurinacional comunitário, identificado com um outro paradigma não universal e único de Estado de direito, coexistente com experiências dos “saberes tradicionais” de sociedades plurinacionais (indígenas, comunais e componesas), com práticas de pluralismo igualitário jurisdicional (convivência de instâncias legais diversas em igual hierarquia: jurisdição ordinária estatal e jurisdição indígena/camponesa), e, final-mente, com o reconhecimento de direitos coletivos vinculados a bens comuns da natureza.

A Constituição da Bolívia de 2009 já contempla essa diversi-dade dos povos e cultura daquele país. Assim dos 36 povos origi-nários que se formaram desde o período colonial até a segunda metade do século XX, passam a ter uma maior participação efe-tiva em todos os níveis do poder estatal e na economia. Dessa forma, a Constituição passou a fazer a inclusão na política das culturas e comunidades historicamente excluídas conforme se vê nos artigos 10 e 11: “os povos e as pessoas indígenas têm direito a pertencer a uma comunidade ou nação indígena, de conformi-dade com as tradições e costumes da comunidade ou nação que se trate. Não pode haver nenhuma discriminação...ao exercício deste direito”.

133133Cidadania e democracia no novo constitucionalismo latino-americano

De uma forma sucinta, a Constituição da Bolívia traz como inovações para a formação de uma sociedade civil plural e um Estado plurinacional:

A Constituição de 2009 contempla em seus arts. 30 a 32, os direitos das nações e povos indígenas, originários e campo-neses, cuja existência é anterior à invasão colonial espanhola. Ao lado do projeto de um Estado comunitário plurinacional, estruturado sob a forma de autonomias (departamental: arts. 277-279; regional: arts. 280-282; municipal: arts. 283-284; indígena originária campesina: arts. 289-297), surge como uma das maiores inovações, a regulamentação do chamado “iguali-tarismo jurisdicional”, ou seja, a igual hierarquia entre a juris-dição ordinária e a jurisdição indígena, originária e componesa (art. 179, I e II). A jurisdição indígena será exercida por suas autoridades, aplicando seus princípios, valores culturais, normas e procedimentos próprios (art.190, I, e art. 191, I). Compete ao Tribunal Constitucional plurinacional resguardar a supremacia da Constituição e exercer o controle de constitucio-nalidade (art. 196), sendo seus membros eleitos mediante o sufrágio universal (art.198). Por fim, consta entre suas atribui-ções (art. 202, 11) resolver “os conflitos de competência entre a jurisdição indígena, originária e campesina e a jurisdição ordi-nária e agroambiental”.

Já a Constituição do Equador também traz profundas mudanças a fim de promover o Estado plurinacional. Dentre elas, percebe-se a participação das mulheres nos sistemas jurisdicionais indígenas e no controle de constitucionalidade que envolve a justiça indígena e a justiça estatal. Dito de outra forma, “na resolução dos conflitos, a aplicação pluralista do derecho próprio indígena desde que não contrários à Constituição e aos direitos humanos reconhecidos internacionalmente”. Acrescenta-se ainda o fortalecimento da inter-culturalidade no direito à educação, como previsto no art. 28: “É direito de toda pessoa e comunidade interagir entre culturas e participar em uma sociedade que aprende. O Estado promoverá o diálogo intercultural sem suas múltiplas dimensões”.

Quanto a Constituição Federal do Brasil de 1988, pode-se destacar que esta anuncia uma nova era constitucional e uma possível interpretação que leva ao rompimento dessa moderni-dade uniformizadora. Percebe-se que a Carta Constitucional reconhece o direito à diferença como direito individual e coletivo, assegurando direitos aos povos indígenas originários e quilom-bolas construindo um espaço de diversidade individual e coletivo

134134 Willame Parente Mazza

que se acelera a partir do século XXI com interpretações consti-tucionais realizadas pelo Judiciário e alguns doutrinadores do direito à diversidade.

Portanto, como núcleo de uma sociedade civil democrática, tem-se o reconhecimento da diversidade que vai além do direito à diferença, que, como diz Luis Alberto Warat , traz a fantasia jurí-dica da igualdade. Continua Warat “tratar os homens ignorando a diferença de seus desejos é ignorá-los e submetê-los a certos desejos institucionalmente triunfantes. Psicanaliticamente falando: ignorar que os outros são diferentes é aniquilá-los como seres com exis-tência autônoma”. E continua ao criticar a pragmática da singula-ridade na democracia e, portanto, na sociedade: “creio que a demo-cracia necessita sobretudo de desfazer-se de sua bandeira igualitária para içar, em substituição, a bandeira da diferença”.

Referências

FELISBERTO, Rosana Ribeiro. Pluralismo, diversidade e cultura no Brasil. In: MAGALHÃES, José Luiz Quadros (coord.). Direito à diversidade e Estado plurinacional. Belo Horizonte: Arraes editores, 2012.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. A Constituição de 1988 e a construção de um novo constitucionalismo democrático na América Latina: direito à diversidade individual e coletivo e a superação de uma teoria da constituição moderna. Disponível em: <http://www.refundacion.com.mx/rev/index.php/ultima-edicion/517-brasil/519-a-constitui%C3%A7%C3%A3o-de-1988-e-a-constru%C3%A7%C3%A3o-de-um-novo-consittucionalismo-democr%C3%A1tico-na-am%C3%A9rica-latina>. Acessado em: 14/07/2014.

______. José Luiz Quadros. O Estado plurinacional e o direito internacional moderno. Curitiba: Juruá, 2012.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América latina. In: MELO, Milena Petters; WOLKMER, Antonio Carlos. Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013.

WARAT, Luis Alberto. A fantasia jurídica da igualdade: democracia e direitos humanos numa pragmática da singularidade. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16138/14691>. Acessado em: 14/07/2014.

IX. Meio Ambiente

Autores

Fernando de la CuadraDoutor em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ . Membro do Grupo de Trabalho “Mudança Ambiental Global, Políticas Públicas e Movimentos Sociais” do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) . Editor do Blog Socialismo e Democracia: <http://fmdelacuadra .blogspot .com/> .

Larissa RodriguesDoutoranda e mestra em energia pelo Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, trabalha na campanha de Clima e Energia do Greenpeace Brasil .

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Mudança climática e justiça ambiental: construindo um vínculo imprescindível

Fernando de la Cuadra

Apesar da sua incontentável presença nos dias atuais, a mudança climática é um fenômeno que já se encontra pre-sente há bastante tempo como dinâmica de transformação

em escala sistêmica da Terra. Isto é aquilo que se entende por Mudança Ambiental Global, ou seja, as manifestações que se vêm produzindo nos sistemas Terra, Atmosfera, Oceano e Biosfera são mais amplas e complexas que a mera categoria mudança climá-tica. Em todo caso, ambas as duas supõem a combinação perni-ciosa provocada por um conjunto de atividades humanas (caráter antropogénico1) que dependem de variados fatores, entre os quais a quantidade de população que habita o planeta, seu nível de consumo energético, uma determinada matriz tecnológica, o uso excessivo dos recursos naturais etc.

Especificamente, a mudança climática pode ser definida como as transformações que acontecem no mundo a partir da acumu-lação de emissões dos gases que provocam o efeito estufa, quer dizer, de um aumento da temperatura global que traz consigo múltiplos efeitos que vão desde o enfraquecimento da camada de ozônio, a modificação da biodiversidade, as precipitações ácidas, a contaminação dos rios, oceanos e águas subterrâneas e os cada vez mais frequentes eventos climáticos catastróficos: monções, tornados, furacões, chuvas torrenciais, secas, derretimento das

1 Um relatório do IPCC assinalava em 2007: “Existem provas novas e mais convin-centes de que a maior parte do aquecimento global observado durante os últimos cinquenta anos se podem atribuir a atividades humanas”. (IPCC, 2007).

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calotas polares, descongelamento dos glaciais e aumento do nível do mar. Ainda que exista um acordo quase unânime no mundo científico sobre a presença desta mudança climática, todavia subsiste alguma incerteza sobre as consequências efetivas que esta venha a ter sobre o conjunto do orbe. As projeções cientí-ficas têm avançado no último período e um estudo recente cal-cula que para o ano 2100 aproximadamente 10% do planeta padecerá os efeitos de dita mudança.2 Na América Latina estima-se que os maiores impactos destas mudanças sejam experimen-tados nas atividades pesqueiras, na agricultura e nos ecossis-temas mais frágeis, impactando particularmente às comunidades ribeirinhas, camponesas e indígenas, às moradias instaladas em áreas de alto risco e, em termos gerais, aos habitantes mais pobres da cidade e do meio rural.

Com efeito, além da vulnerabilidade que possuem estes grupos humanos para enfrentar as vicissitudes das crises econômicas que ciclicamente impactam os diversos países, eles também devem fazer frente – em condições de absoluta fragilidade – a um conjunto de desastres climáticos, constituindo uma “dupla exposição” dos grupos mais carentes da população aos embates do clima e da economia.

Excursus histórico/teórico sobre a mudança climática

A problemática da mudança climática tem adquirido uma importância que era impensável há somente três décadas atrás, porém já muitos cientistas e especialistas que alertavam a res-peito do iminente perigo que significava para o mundo, o modelo produtivista e predatório de capitalismo criador/destruidor (na consagrada síntese schumpeteriana) que sustentado num con-sumo exorbitante estava provocando um conjunto de graves impactos sobre a Terra, especialmente no que diz respeito à cres-cente emissão de gases contaminantes sobre a atmosfera, gases que provocam o chamado “efeito estufa” e consequentemente o aquecimento global. Apesar de que muitas inovações tecnológicas e de controle sobre as emissões de dióxido de carbono têm permi-tido mitigar em parte os efeitos nefastos do crescimento e a indus-trialização, os padrões de vida de uma população mundial em

2 Uma pesquisa publicada pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (Pnas) afirma que dentro das regiões que poderiam experimentar transformações mais severas por causa da mudança climática se encontram o sul da Amazônia, o sul de Europa, Centro-América e algumas regiões tropi-cais de África.

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aumento que demanda cada vez maiores níveis de consumo de energia, só produziram, em termos absolutos, uma ampliação exponencial das emissões globais. Este processo foi acentuado nos últimos anos por produto da intensiva atividade industrial, o uso de combustível fóssil, as constantes queimadas agrícolas, o aquecimento domiciliar etc.

A Convenção Marco das Nações Unidas sobre a Mudança Climática enfatiza o substrato antropogênico desta mudança, de tal forma que define este como “Uma mudança de clima atribuída direta ou indiretamente à atividade humana que altera a compo-sição da atmosfera mundial e que se agrega à variabilidade natural do clima observada em períodos comparáveis”. (IISD, 2006).

Precisamente, a atual crise ambiental que enfrenta o globo vem a ser uma expressão daquela perspectiva epistemológica e do modelo subsequente que sustenta a crença muito arraigada que existe a respeito da supremacia dos seres humanos sobre o resto das espécies e sobre a natureza, a qual pode ser explorada ilimi-tadamente em benefício do gênero humano. Então, esta crise ambiental reflete principalmente uma crise do pensamento oci-dental, de uma determinada forma de conceber o mundo, cindido entre a mente e o corpo, entre o conhecimento validado pela ciência que produziu um mundo fragmentado e coisificado no controle e domínio da natureza e o saber tradicional, sagrado e mágico dos povos “primitivos”. (LANDER, 2005).

A evidência acumulada nas últimas três décadas demostra niti-damente um fenômeno que vem sendo exposto e discutido faz algum tempo: o esgotamento de um modelo produtivista e predatório que ameaça cada vez com maior intensidade as bases materiais da vida sobre o planeta. Em efeito, as sucessivas catástrofes ambientais e “climáticas” que experimenta a Terra desde o desastre de Chernobyl e a mais contemporânea tragédia da planta de Fukushima, permitem sustentar sem exagero que nos encontramos num estádio avançado de risco fabricado (GIDDENS, 2003) ou de crise estrutural (MÁS-ZÁROS, 2011) não somente do capital, mas da sustentabilidade da espécie. O século XXI até agora tem se caracterizado pela sua marca catastrófica, com um volume de desastres ecológicos e naturais sem precedentes na historia mundial.3

3 Um boletim do Centro de Estratégia Internacional para a Redução de Desastres (EIRD) organismo de Nações Unidas, apontou que 2010 foi o ano no qual se registraram a maior quantidade de desastres naturais nas últimas três décadas, sendo que o número de pessoas que perderam a vida por estes sinistros alcan-çou a cifra de 300 mil vítimas.

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Entretanto, a temática dos limites ecológicos ao crescimento económico e as inter-relações entre desenvolvimento e ambiente foram reintroduzidas no pensamento ocidental4 nos anos sessenta e início dos setenta por um grupo importante de teóricos, entre os quais se podem destacar Georgescu-Roegen, Kapp, Naess, Sachs e Schumacher. Por exemplo, num trabalho pioneiro de Ernst F. Schumacher O pequeno é belo (Small is Beatiful) publicado origi-nalmente em 1973, o economista germano-britânico realiza uma crítica contundente ao modelo taylorista e produtivista das socie-dades ocidentais que nos levaria ao descalabro ambiental e da vida mesma. Neste texto o autor nos propõe tentar compreender como humanidade o problema na sua totalidade e começar a ver as formas de desenvolver novos métodos de produção e novas pautas de consumo num estilo de vida desenhado para perma-necer e ser sustentável. Apesar das diferenças entre os vários enfoques e a posição mais ou menos militante de cada um destes pensadores, o que se vislumbra como um aspecto comum a todos eles é a crítica veemente do modelo de produção e consumo ine-rente ao desenvolvimento capitalista.

Este modelo que tem gerado um crescimento exponencial de exploração dos recursos naturais e que estimula um consumismo desenfreado, especialmente nos países do hemisfério norte, é res-ponsável tanto por provocar um esgotamento dos recursos como de produzir concomitantemente toneladas de lixo que contaminam cotidianamente as águas, o ar e a terra.5 Cada ano se destrói milhões de hectares de florestas e milhares de espécies, reduzindo e comprometendo irreversivelmente a diversidade biológica. Per-manece a devastação das selvas, com o qual o mundo perde anual-mente cerca de 17 milhões de hectares, que equivalem a quatro vezes a extensão da Suíça. E como não há árvores que absorvam os excedentes de CO2, o efeito estufa e o aquecimento global se agravam. A informação proporcionada pelos cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) alerta que

4 Referimo-nos a uma reintrodução, pois consideramos que na origem destas pre-ocupações se encontra a obra antecipatória de um contemporâneo de Marx, o filósofo anarquista e artista, William Morris, quem já havia introduzido elemen-tos de uma visão ecosocialista em seus escritos, especialmente em seu romance utópico Notícias de Lugar Nenhum.

5 Por exemplo, se calcula que si o consumo médio de energia dos Estados Unidos fosse generalizado para o conjunto da população mundial, as reservas conheci-das de petróleo se esgotariam em somente 19 dias. Além disso, se todos fossem tão contaminadores como qualquer cidadão padrão dos Estados Unidos ou Ca-nadá se necessitaria de nove planetas Terra para absorver as emissões produzi-das. (Raj Patel, 2010).

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precisamos reduzir o nível de equivalentes de CO2 na atmosfera de 350 partes por milhão. Atualmente este nível se encontra em 390 partes por milhão e a tendência é que continue aumentando.

O dióxido de carbono presente na atmosfera tem-se incremen-tado em 32% com relação ao século XIX, alcançando as maiores concentrações dos últimos 20 milhões de anos e se prevê que tais emissões se acrescentem 75% até o ano 2020. A camada de ozônio, apesar dos acordos do Protocolo de Montreal, não se recuperará até meados do século XXI. Cada ano se emite cerca de 100 milhões de toneladas de dióxido de enxofre, 70 milhões de óxidos de nitro-gênio, 200 milhões de monóxido de carbono e 60 milhões de par-tículas em suspensão, agravando os problemas causados pelas chuvas ácidas, o ozônio troposférico e a contaminação atmosfé-rica local. Em definitivo, um conjunto vasto de indicadores meio ambientais estudados nos últimos anos parece revelar com bas-tante clareza que se a humanidade não alterar seu estilo de vida, consumo e exploração desmedida dos recursos existentes, em menos de um século estaremos colocando em sério risco a super-vivência do gênero humano.

A justiça ambiental como horizonte ético e político

No seu ensaio The Politics of Climate Change (2010), Anthony Giddens acunha o conceito de “paradoxo de Giddens” para referir-se àquela situação em que pese a que os indivíduos estão cons-cientes dos impactos negativos que o aquecimento global poderia ter sobre suas vidas, pelo fato de que estes acontecimentos não são palpáveis, imediatos ou visíveis no dia a dia, muitas pessoas agem de forma passiva perante tais eventos sem tomar medidas concretas para reduzir ou mitigar sua pegada ecológica ou reduzir seu consumo. Apesar de que para este sociólogo a resposta frente ao fenômeno deveria ser de caráter individual, ela se insere num contexto global em que os problemas derivados da mudança cli-mática afetariam a todos por igual. Noutro texto precedente ao já citado, o autor afirma que a “ecotoxicidade é um perigo que afeta potencialmente a todos, não importando de que maneira ou onde as pessoas vivam”. (GIDDENS, 1996, p. 256).

Pensamos que este argumento possui um erro fundamental ao identificar genericamente o conjunto da humanidade como vítima da crescente degradação ambiental, sem considerar precisamente o lugar e a situação em que se encontram os habitantes de deter-minado território. A ideia de que todos somos vítimas potenciais

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das catástrofes climáticas porque compartimos um mesmo macroecossistema, ignora o fato de que estes fenômenos se encon-tram distribuídos desigualmente entre a população mundial, tanto em termos de incidência e frequência como em termos de intensidade e rigor. Nesta perspectiva, os elementos tecnocráticos primam sobre a dimensão sociopolítica, negligenciando na análise as relações de poder existentes entre as comunidades mais vulne-ráveis que habitam determinados ecossistemas e os agentes eco-nômicos que realizam um uso extensivo e intensivo do meio ambiente e dos recursos naturais.

O anterior define um cenário no qual – como apontávamos – junto com a vulnerabilidade existente entre as populações mais pobres da Terra se adicionam também as fragilidades que pos-suem tais comunidades para enfrentar as catástrofes climáticas. Esta vulnerabilidade se encontra associada a uma posição de desigualdade e exclusão que coloca grupos sociais particulares numa situação de maior risco em comparação a outros. Do mesmo modo, a distribuição desigual dos impactos da mudança climática indica que, tanto os fenômenos meteorológicos extremos como a transformação paulatina do entorno ambiental, afetam de maneira desproporcional àqueles grupos humanos mais sensíveis que se encontram em situação de pobreza rural ou urbana, povos origi-nários, idosos, mulheres, crianças, doentes. Estes setores sociais estão sujeitos a uma “dupla exposição”, ou seja, aos efeitos desas-trosos da mudança climática e a uma constelação de problemas associados a sua condição de carência, entendida como déficit ou insuficiências socioeconômicas. Do anterior podemos concluir que o fenômeno da Mudança Climática se acha não somente vin-culado a um padrão de comportamento da natureza – que tem sua própria e indesmentível dinâmica – mas que sua essência baseia-se na estreita tessitura que existe entre as dinâmicas ambientais e os processos sociais.

Esta iniquidade social expressada no âmbito ambiental certamente constitui um dado irrefutável à luz dos diversos eventos a que estão expostas as populações mais pobres do pla-neta. Moradias localizadas em áreas de alto risco (nas encostas dos morros ou na beira de rios que se transbordam) ou em zonas de alagamento, enchentes e desmoronamentos; lugares nos quais não existe saneamento básico e os esgotos correm a céu aberto ou em territórios afetados pelo despejo de resíduos sólidos ou de pro-dutos líquidos contaminantes de origem industrial ou em regiões ameaçadas por ciclos de seca, são algumas das diversas manifes-

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tações que agudizam a situação de miséria e desamparo em que vive uma proporção significativa da humanidade.

A partir deste diagnóstico, a noção de justiça ambiental se constitui como uma articulação criativa entre lutas de caráter social, territorial, ambiental e de direitos civis que procuram a superação das condições inadequadas de saneamento, da dispo-sição indevida do lixo tóxico, da contaminação química tanto dos lugares de moradia como do trabalho. Ela se define em termos propositivos como uma luta de caráter solidário que procura colocar na pauta pública a denúncia daquilo que seria o alicerce da lógica sociopolítica promotora da desigualdade ambiental. Contrariamente à postura individualista de se preocupar somente com o que é “meu terreno”, o movimento pela justiça ambiental reconhece o direito de todos os cidadãos a ter um mundo livre de poluição. A justiça ambiental representa em síntese um conjunto de princípios e práticas que permitem que nenhum grupo social, seja étnico, de classe ou género, suporte uma parcela despropor-cional das consequências ambientais negativas de operações eco-nômicas e decisões políticas, assim como a ausência e omissão de políticas que vijam em benefício de toda a população. Tal con-cepção implica, portanto, a consagração jurídica e política do direito a uma vida segura, sã e produtiva para todos, em que o meio ambiente seja considerado na sua totalidade, incluindo suas dimensões ecológicas, físicas, econômicas, sociais, políticas e estéticas. Nas palavras de um grupo de autores aderentes a esta proposta “a injustiça ambiental cessará somente com a contenção do livre arbítrio dos agentes econômicos com maior poder de causar os impactos ambientais, ou seja, pelo exercício mesmo da política nos marcos de uma democratização permanente”. (ACSELRAD et al., 2009, p. 47).

Reflexões finais

A maneira de conclusão, uma primeira constatação que podemos fazer a respeito da mudança climática e seu viículo com a justiça ambiental é que as implicações que adquirem as catástrofes ambientais sobre determinadas populações e países são muito desiguais, reproduzindo desta forma a situação de iniquidade que impera noutras esferas da realidade econômica, política e social. Com efeito, estudos realizados pela Cepal e pelo Banco Mundial demostram que os países em desenvolvimento são aqueles que se encontram mais expostos às sequelas negativas da mudança cli-

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mática e a construção de cenários futuros auguram que estes grupos humanos deverão suportar a maior parte (entre 75% e 80%) dos custos provocados pelos impactos nocivos de diversos eventos climáticos apontados anteriormente, a saber: furacões, inunda-ções, séquias, desertificação, aumento do nível do mar, alteração dos ciclos agrícolas e nos regimes de precipitações. Por sua vez, os principais geradores de poluição e da emissão de gases de efeito estufa são fundamentalmente as empresas privadas – algumas vezes em parceria com o setor estatal – que mantém um conjunto de atividades de produção de energia, industriais, agropecuárias, extrativistas que implicam uma violenta intervenção sobre a natu-reza e que não assumem o ônus de tais empreendimentos, muitas vezes utilizando os mecanismos da bolsa verde, por meio da compra de bônus de carbono, que lhes permitem obter uma licença ou sus-tento legal para seguir contaminando.

Uma segunda questão associada a esta temática consiste na verificação de que os efeitos acumulados da emissão de gases de efeito estufa já não se podem combater exclusivamente com polí-ticas de mitigação. O problema atualmente se situa num patamar superior de gravidade, ou seja, ainda que se consiga uma dimi-nuição drástica e imediata das atuais emissões de gases, ela não terá grande relevância ou consequências significativas em termos do comportamento do clima. O que atualmente se requer são políticas de adaptação a este fenômeno, com medidas amplas que propiciem maior justiça social tais como a provisão mais igualitária e universal da água potável, saneamento básico, segurança alimentar, acesso a melhores serviços de saúde e a uma educação digna.

Finalmente, no contexto de América Latina é preciso consi-derar as conexões entre as cambiantes características dos ecos-sistemas com os modelos de desenvolvimento impulsionados pelos governos, tanto historicamente quanto na atualidade. Desta maneira, a preocupação pelo impacto da mudança climática no continente e os esforços de adaptação para superar as consequên-cias desastrosas do aquecimento global, a contaminação das águas e dos solos, representam um desafio não somente em termos de democratizar o uso dos recursos, mas sobretudo cons-titui uma resposta impostergável que supõe cuidar e preservar as próprias expectativas de sobrevivência em que se encontram os habitantes da região.

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Referências

ACSELRAD, Henri et al. O que é justiça ambiental? Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

IISD, Boletim de Negociações da Terra, v. 12, n. 297. Nova York: IISD, 2006.

GIDDENS, Anthony. A política da mudança climática, tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

______. Mundo em descontrole, tradução Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Record, 2003.

______. Para além da esquerda e da direita . O futuro da política radical; tradução Álvaro Hattnher, São Paulo: Unesp, 1996.

IPCC. Mudança climática: Relatório de síntese . Contribuição dos Grupos de Trabalho I, II e III ao Quarto Informe de Avaliação do Grupo Intergovernamental de Expertos sobre a Mudança Climática . Genebra: IPCC, 2007.

LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos, in: ______. (Org.) A colonialidade do saber . eurocentrismo e ciências sociais . Perspectivas latino-americanas, Buenos Aires: Clacso, 2005, p. 21-53.

MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital, tradução Francisco Cornejo. São Paulo: Boitempo, 2011.

MORRIS, William. Notícias de lugar nenhum: ou uma época de tranquilidade, tradução Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.

PATEL, Raj. O valor de nada: por que tudo custa mais caro do que pensamos, tradução Vania Curi. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

SCHUMACHER, Ernst F. Lo pequeño es hermoso, tradução Oscar Margenet. Buenos Aires: Orbis, 1983.

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A crise elétrica para além de São PedroLarissa Rodrigues

O Brasil encara grave crise no setor elétrico. As contas de luz não param de subir e o risco de racionamento ainda existe. Além dos brasileiros, quem sofre é São Pedro, cul-

pado pela falta de água nos reservatórios das hidrelétricas. Mal sabem o santo e a população que muito do que ocasionou a crise foram decisões políticas tomadas nos idos de 2012.

A parte fácil de entender é a relação da crise com a estiagem. Basta olhar como a eletricidade é gerada no Brasil: cerca de 70% vêm das hidrelétricas. Em 2014, em quase todo o país, os reserva-tórios chegaram a níveis extremamente baixos – mais que os regis-trados em 2001 quando o Brasil viveu o apagão.

Para evitar que o país ficasse no escuro, o governo optou por acionar mais usinas térmicas. O uso constante das usinas poluentes e mais caras elevou o custo da energia. Para ter uma ideia, o preço pode chegar a mais de R$ 1.000/MWh, quase sete vezes mais do que o preço das eólicas e quase cinco vezes mais do que as solares contratadas nos últimos leilões. Os custos aumen-taram e foram pesar no bolso do consumidor.

Para piorar, no começo de 2015, as bandeiras tarifárias entraram em operação. Elas indicam se a eletricidade está cus-tando mais ou menos em função das condições de geração, sendo traduzida nas cores verde, amarela ou vermelha. Quando muitas termelétricas são utilizadas, a bandeira é vermelha, o que signi-fica custos elevados, repassados para as contas de luz (aumento de quase 30%)

Infelizmente, a crise não é passageira. Além de a bandeira não sair do vermelho há sete meses, a conta de luz sofreu mais rea-justes para cobrir parte do endividamento das distribuidoras. Elas possuem hoje dívida de mais de R$ 30 bilhões, que conti-nuará sendo repassada aos consumidores. Esse é o lado da crise um pouco mais difícil de ser entendido.

É aqui que São Pedro deixa de ser protagonista e uma sequência de medidas irresponsáveis começa a ganhar a cena: em 2012 foi editada medida provisória – que virou lei – que renovava as con-

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cessões de usinas elétricas e estabelecia a divisão da eletricidade delas em cotas destinadas às distribuidoras a preço estabelecido em um terço do que vinha sendo praticado.

No início de 2013, a presidente Dilma veio com a “boa notícia” de um desconto médio de 20% na conta de luz. A má notícia, não anunciada, é que algumas usinas não aceitaram renovar as con-cessões pela baixa remuneração da energia. A consequência foi que as distribuidoras ficaram sem parte dos contratos para receber as cotas de energia e tiveram que recorrer ao mercado livre para comprar energia e honrar a entrega ao consumidor.

O problema é que, no mercado livre, o preço flutua conforme as condições do sistema. Quando os reservatórios estão cheios, o preço cai; quando estão baixos, o preço sobe. Em um momento de crise hídrica, os custos foram elevadíssimos. Para se ter uma ideia, em 2011 os preços eram próximos a R$ 30/MWh e, em 2014, com o baixo nível dos reservatórios, o preço máximo atingiu quase 30 vezes esse valor.

A soma desses acontecimentos no setor elétrico traz como resul-tado dívida de dezenas de bilhões de reais. Na prática, a conta de luz, que teve desconto de 20%, em 2013, depois do anúncio de Dilma, hoje, está cerca de 60% mais cara para o consumidor resi-dencial. Em algumas regiões, o aumento foi ainda maior.

A situação atual demonstra a fragilidade de uma matriz elétrica alicerçada no binômio hidrotérmico, além da falta de planejamento para a utilização dos recursos naturais do Brasil, que poderia diver-sificar a matriz e investir no abundante potencial de sol e de vento. O argumento de que essas fontes são caras é mito. A geração eólica é a segunda mais barata do país. A solar apresentou redução de preço e está no mesmo patamar de outras fontes.

Hoje, cerca de 600 brasileiros optaram por instalar sistemas próprios em suas casas e estabelecimentos, sendo beneficiados pela redução na conta. Há um potencial imenso para a geração distribuída, que, além de beneficiar o consumidor, traz eficiência a todo o sistema. Potencial e necessidade existem. O que nos falta são incentivos para seguir na direção das novas renováveis, pois, se depender do sol e do vento, o Brasil não fica sem energia.

X. Memória

Autores

Esther KupermanGraduada em História, mestre em História Social do Brasil e doutora em Ciências Sociais . Professora do Mestrado em Práticas de Educação Básica do Colégio Pedro II .

Marly de A. G. ViannaDoutora em História pela USP, professora aposentada da Universidade Federal de São Carlos e professora do Mestrado em História da Universidade Severino Sombra, em Vassouras/RJ .

Raimundo SantosProfessor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro .

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Um formulador do pecebismo contemporâneo

Raimundo Santos

O nome de Marco Antônio Coelho, editor da revista Politica Democrática, falecido no dia 21 de novembro passado, ocupa lugar importante no Partido Comunista Brasileiro.

Ele foi um dos formuladores do pecebismo contemporâneo, ao lado de Caio Prado Jr., Armando Lopes da Cunha e Armênio Guedes.

No período imediatamente posterior ao segundo pós-guerra, Caio Prado escreveu dois textos bem expressivos da formulação – radicada na interpretação da realidade brasileira – de uma estra-tégia para concretizar mudanças progressistas e democráticas no País. O primeiro é o artigo “Os fundamentos econômicos da revo-lução brasileira”, publicado, em fevereiro de 1947, na Tribuna de Debates da Voz Operária, preparatória ao IV Congresso do PCB, quando da sua primeira convocatória (o congresso só veio a realizar-se em 1954). No início desse texto, o historiador se refere à sua tradição marxista também reivindicando filiação ao exemplo dos clássicos que eram “homens de ação e políticos militantes”. Ele escreve no artigo: “E, assim, a maior parte da obra de Marx e Engels, e sobretudo a de Lênin, tem um conteúdo essencialmente prático e joga com elementos, circunstâncias e problemas que representavam a própria experiência histórica de que partici-pavam”. Caio Prado interpreta a circunstância daqueles anos 1940 e define como tarefas da revolução brasileira concluir dois processos históricos, como condição para o país se desenvolver e caminhar em direção a um “futuro socialismo brasileiro”. A pri-meira delas era “completar a transição do regime de trabalho escravo, extinto juridicamente há mais de meio século, diz ele em

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1947, mas ainda mantido mais ou menos disfarçadamente em um sem número de casos, para um novo regime de trabalho efetivo e completamente livre”. Seu olhar sobre o rural fará com que, voz isolada, veja os efeitos da aplicação do Estatuto do Trabalhador Rural, promulgado em 1963, no governo Jango, como uma nova Abolição. A segunda tarefa era levar a bom termo a industriali-zação que vinha tendo curso no país de modo parcial por meio do processo de substituição de importações (uma indústria “mal apa-relhada e onerosa para o país, que representa com sua produção cara e de qualidade medíocre um pesado tributo imposto à comu-nidade nacional)”.

O segundo texto é o livro Diretrizes para uma política econô-mica brasileira (monografia para o concurso à cadeira de Economia Política da Faculdade de Direito da USP), publicado em 1954, que nos traz a argumentação com que Caio Prado participa do intenso debate público sobre a superação do atraso brasileiro. O militante comunista interpela a compulsão economicista dos desenvolvi-mentismos daquela época. Sua Economia Política não segue a lei de Say, segundo a qual a produção cria o seu próprio consumo. Ele dizia que entre os dois mecanismos econômicos, o da pro-dução e o do consumo, tomava o segundo como ponto de partida e baliza da questão do desenvolvimento; o termo consumo alu-dindo ao conjunto da população brasileira. É desta perspectiva que ele defende uma industrialização menos “eventual”, menos “artificial”, como a que se processava no país, e que fosse mais estruturada, capaz de incorporar de modo realmente produtivo a força de trabalho nacional e estender o bem-estar a todos os bra-sileiros, social e geograficamente. Sua problematização, no livro de 1954, de uma política econômica renovadora significa assentar de fato no campo pecebista bases teóricas de uma estratégia para avançar o desenvolvimento do país mediante reformas capitalistas tendo no horizonte a meta socialista.

Enquanto essas reflexões caiopradianas apontam linhas pro-gramáticas, os artigos de Armando Lopes da Cunha (“O Programa e os caminhos do desenvolvimento do Brasil”), de Armênio Guedes (“Algumas ideias sobre a frente única no Brasil”) e de Marco Antônio Coelho (“A tática das soluções positivas”) voltam-se para o agir político, com o qual ficará o PCB conhecido na história bra-sileira. Os textos de Lopes da Cunha e de Guedes são intervenções nos debates de 1956-57 sobre os reflexos no PCB da denúncia do stalinismo feita por Kruschev, no XX Congresso do PC soviético, em 1956, cujo impacto, como se sabe, iria levar à Declaração de

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Março de 1958, que anunciou a refundação do PCB. Já o artigo de Marco Antônio Coelho, sua contribuição às discussões do V Con-gresso do PCB de 1960, procura desdobrar a nova política na afir-mação de um outro padrão do agir dos pecebistas.

Armando Lopes da Cunha publicou, na Voz Operária, de 27/10/56, o seu artigo “O Programa e os caminhos do desenvolvi-mento do Brasil”, no qual se choca frontalmente com a tese do “Brasil-colônia dos Estados Unidos”. Era esta visão estagnacionista que sustentara o Manifesto de Agosto de 1950 e que ainda conti-nuava presente no Programa do PCB, aprovado no IV Congresso de 1954. A orientação “sectária e esquerdista”, como ele diz, que dis-tanciava os comunistas da vida real e da política nacional, manten-do-os isolados em suas doutrinas encapsuladas, aparece nesta tese: “O desenvolvimento do país e a conquista da sua plena inde-pendência só serão possíveis após a derrubada do ‘atual governo’ (Dutra; Getúlio-RS), governo visto como expressão pura e simples dos latifundiários e dos grandes capitalistas serviçais dos imperia-listas norte-americanos”. Lopes da Cunha põe a questão de modo direto, dizendo que era inegável, naqueles anos 1950, “que o país pode se desenvolver e caminhar rapidamente para sua indepen-dência nacional sem a prévia derrubada do ‘atual governo’, e não há mais dúvida simplesmente porque isto está acontecendo sob nossos olhos. A necessidade de modificarmos nossas concepções programáticas é, portanto, patente, como patente é também que muito se pode avançar no sentido da independência e do progresso, bem como da própria modificação do governo, nos quadros da atual Constituição”. Este reconhecimento impunha que se passasse a apresentar soluções positivas para os problemas brasileiros “e que deixemos de criar dificuldades para a unidade de ação em prol da independência como por vezes tem ocorrido por estarmos imbuídos das mencionadas ideias programáticas que condicionam a tática estreita, sectária e exclusivista”.

Armênio Guedes publicou em setembro de 1957, na revista Novos Tempos, editada por um grupo de renovadores após serem derrotados na discussão sobre o XX Congresso, um artigo cha-mado “Algumas ideias da frente única no Brasil”, no qual, pri-meiro, desconstrói a mentalidade dogmática que impedia divisar a realidade brasileira, e em seguida delineia os contornos de uma estratégia de frente única concebida como convergência das “forças progressistas e democráticas”, efetivamente existentes na cena pública, com vistas a ações não episódicas. Essa estratégia consiste numa articulação de grande alento: “O objetivo não deve

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ser apenas a frente única por reivindicações parciais; deve visar a ação política pela criação de um governo de frente única antiimpe-rialista (ou nacional-democrática ou antientreguista ou que nome tenha)”. Esta idéia da construção progressiva da frente única – que se tornará trabalho permanente no PCB – vai se notar inclu-sive bem mais adiante na redação da Declaração do Comitê Esta-dual do PCB da Guanabara, de março de 1970. Neste texto – de sua autoria, cf. Guedes, 1981a –, Guedes traz-nos uma apresen-tação mais precisa da política de concentração democrático-refor-mista ao realçar o papel central da política e recusar um tipo de primarismo “que vê as esperanças do êxito de uma política revo-lucionária unicamente na catástrofe da política econômica das classes dominantes”; economicismo catastrófico ainda arraigado nas esquerdas e em intelectuais de grande prestígio que escrevem textos estagnacionistas na época ditatorial, prevendo a inviabili-dade da política econômica do regime e o seu colapso no curto termo. O texto de 1970 tornou-se emblemático da política da resistência antiditatorial a partir da atuação em todas as conjun-turas por mais adversas que fossem, como a do início do governo Médici. Guedes atentava para os problemas postos e os processos e tendências que iam se formando ou já estavam em curso. Não obstante o endurecimento da ditadura com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13/12/68, ele previa, naquele momento, examinados os ziguezagues do regime, possibilidades de desenvolvimento da Resistência e do isolamento do regime de 1964, processos que se dariam com avanços e recuos.

Esse agir tem como referência os cenários possíveis que Armênio Guedes divisa nos seus textos “como hipótese para o tra-balho político”. Em “Algumas ideias sobre a frente única no Brasil”, de 1957, ele desenha estes cenários: 1) era possível reunir forças na frente nacionalista e democrática e transformar o governo JK num sentido reformista; e 2) havia a possibilidade, “menos ime-diata, porém mais provável, de formar um governo desse tipo como resultado das eleições de 1958 e 1960”. Interligadas essas possibilidades num processo progressivo, “a mais próxima asso-ciada à outra seguinte e mais decisiva – a eleição presidencial”. No texto de 1970, os cenários em que o processo de fascistização do regime pós-AI-5 poderia ser detido e derrotado seriam estes: 1) ou por meio de um movimento irresistível que mobilize a opinião pública, atraia para o seu lado uma parte das Forças Armadas e organize um levantamento geral (com maior ou menos emprego da violência); 2) ou através da desagregação interna do poder, sob o impacto do movimento de massas e depois de crises sucessivas,

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forçando uma parte do governo a facilitar a abertura democrática; e 3) ou pela predominância e vitória, nas Forças Armadas, da cor-rente nacionalista, capaz de superar e liquidar o conteúdo entre-guista do regime, nos moldes concebidos pela ESG e aplicados pelos altos chefes militares no mando do país, a partir de 1964”. Neste caso, Guedes advertia que a corrente nacionalista poderia manter o poder autoritário, o que implicava, necessariamente, seguir com a luta democrática. (GUEDES, 1981b).

Essa reorientação do PCB recebeu a contribuição renovadora que Marco Antônio Coelho nos apresenta no seu artigo “A tática das soluções positivas”, publicado na Tribuna de Debates da Voz Operária, preparatória ao V Congresso de 1960. Neste texto, ele se contrapõe a várias críticas às teses do evento congressual, nas quais reaparece a velha mentalidade “sectária e esquerdista” que “leva, de um lado, às manifestações aventureiras e, de outro, à espera passiva das ‘grandes lutas’ que se avizinham, realizadas por uma vanguarda isolada”. Defendendo a virada radical de 1958, Marco Antônio Coelho concentra o seu texto no que ele chama de “elemento novo e essencial e de extraordinária impor-tância para a atividade do PCB: a defesa pelo movimento revolu-cionário da tática das soluções positivas. Ele cita a Declaração de Março: “A frente única nacionalista e democrática acumula forças à medida que luta por soluções positivas para os problemas colo-cados na ordem do dia, realizando-as na proporção da capacidade da frente única e das condições favoráveis de cada momento”. Pelo seu caráter mobilizatório, essa tática leva os interessados nas demandas a pressionar, com mais vigor no contexto da frente única, os governos para que afirmem seu lado progressista; e, caso não se obtenha êxito, ela suscita a necessidade de se lutar pela formação de um novo governo reformista e democrático. A política construtiva não só desenvolve a autoconsciência das massas a partir dos seus próprios problemas, como também con-fere prestígio aos comunistas ante a população e a opinião pública nacional, habilitando-os cada vez mais como ator político a ser levado na devida conta.

Como fazem Lopes da Cunha e Armênio Guedes – partir da realidade e, naquele segundo quinquênio dos anos 1950, atentar para “novas condições (que) determinam nova tática” –, Marco Antônio associa o caminho das soluções positivas a mudanças de mais alento, progressivas, na perspectiva das “reformas estrutu-rais” do capitalismo. Pela clareza na exposição da política de “renovação democrática” dos comunistas italianos, ele cita um

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texto de Enrico Berlinguer sobre as teses do IX Congresso do PCI, de 1958: “A palavra de ordem de desenvolvimento econômico e político democrático e a luta pelas reformas de estrutura nada têm em comum, pois, com uma politica reformista que se propõe apenas introduzir pela cúpula, no sistema capitalista, determi-nadas correções de caráter paternalista. Para nós, uma política de desenvolvimento democrático e de reformas de estrutura significa que, sobre a base do avanço do movimento de massas, podem ser levadas a efeito radicais transformações na esfera da produção que constituam outros golpes contra as grandes concentrações da propriedade e do Poder” (citado de Problemas da Paz e do Socia-lismo, n. 2, 1960).

Marco Antônio Coelho observa que a tática das soluções posi-tivas requer dois reconhecimentos de grande significado. O pri-meiro se refere ao fato de que a opção pela politica construtiva decorre da realidade política do país, “onde as coisas não se passam de acordo com esquemas revolucionários idealistas”, sendo assim formulado esse reconhecimento: “Felizmente, hoje já não pensamos dentro da mesma bitola (“sectária e esquerdista” – RS). Vamos para a disputa das massas na arena política e colo-camos na mesa as soluções que possuímos (denominamos de positivas essas soluções porque elas visam unir todos os setores do povo contra o imperialismo, porque isolam os piores reacioná-rios e os inimigos da nação brasileira, e resolvem problemas do país e do povo). Na luta política, muitas vezes, somos obrigados a concordar com opiniões apresentadas por outras forças porque não temos a pretensão de possuir o monopólio da verdade ou da linha justa”. Em consequência, essa política exige “a mais intensa participação no processo político real”. O segundo é o reconheci-mento de alcance estratégico: “Não nos esqueçamos que a luta pelas soluções positivas só é possível desenvolver-se num clima de democracia, quando haja respeito pelo direito inscrito na Cons-tituição. Sendo assim, a tática das soluções positivas determina que se trave a defesa das liberdades e o combate pelo aperfeiçoa-mento do regime democrático”.

Estas reflexões de Marco Antônio Coelho sobre o agir e os seus fins construtivos vão ter atualidade à hora em que Santiago Dantas reclamou da falta de uma “esquerda positiva” (expressão deste quadro político do governo Jango) no tempo de radicalização anterior à destituição do presidente; e durante a Resistência democrática, quando o PCB pôs à prova o seu agir lúcido e agre-

157157Um formulador do pecebismo contemporâneo

gativo, tornando-se, por esta qualidade, um partido decisivo no campo da frente democrática antiditatorial.

Com esse pecebismo descrito nos textos dos quatro formula-dores, podemos dizer, com a distância do tempo, que, antes de ter obsessão pelo poder, o PCB transformou-se em um partido de mentalidade reformista, comprometido com a política de frente única, por meio da qual, em muitos anos de luta, foi consolidando sua vocação democrática e a percepção da democracia política como instrumento das mudanças progressistas no Brasil.

Na sua longa trajetória, afastando-se da disputa doutrinal, como forma de afirmar identidade, o PCB foi se concentrando na busca de uma orientação eficaz nos processos políticos e nos enca-minhamentos das questões postas pelas conjunturas vividas por seus militantes. Balizado pela análise das situações e previsão de cenários, o seu agir caracterizou-se como um trabalho construtivo, paciente e constante, sempre se movimentando com perspectiva e o hábito da avaliação das suas táticas, autocrítica e retificações.

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O PCB deixou um legado ainda hoje importante, sobremaneira quando vemos que a ideia de esquerda foi profundamente erosio-nada e, muito preocupante, as correntes militantes se afastam da tradição do agir referido por uma teorização sobre o Brasil, por uma análise compreensiva da circunstância em que vivemos.

O PT nunca mostrou interesse pela tradição da esquerda histó-rica. Nos últimos tempos este legado tem passado por um processo de esmaecimento, lembrando a Operação Borracha, que Érico Veríssimo viu apagando a memória em Antares, lugar imaginário do seu livro político publicado em 1965, Incidente em Antares (esta observação é de José Antônio Segatto). Agora, quando não há outra saída senão empreender uma autocrítica radical em relação a toda a Era Lula, o PT necessita de um caminho de volta – pois seu pro-jeto de revolução do social populista acabou –, e, quem sabe, também possa mirar a cultura política pecebista.

Referências

GUEDES, Armênio. Apresentação à Resolução política do Comitê Estadual do PCB da Guanabara (março de 1970). Revista Temas de Ciências Humanas n. 10. 1981a.

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_______. Resolução política do Comitê Estadual do PCB da Guanabara (março de 1970). Revista Temas de Ciências Humanas n. 10. 1981b.

PRADO JR. Diretrizes para uma política brasileira. Monografia para o concurso à cadeira de Economia Política da Faculdade de Direito da USP. São Paulo: Urupês, 1954.

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Mais uma vez sobre as rebeliões de novembro de 1935

Marly de A .G .Vianna

Nunca, em nossa história política, se mentiu tanto sobre deter-minado fato histórico como sobre os levantes de novembro de 1935. Criou-se sobre os acontecimentos uma lenda men-

tirosa e difamadora, gestada na violenta repressão anticomunista da época e que se consolidou no período da Guerra Fria.

Não é uma tarefa fácil avaliar as rebeliões de novembro de 1935 se quisermos enquadrá-las como certas ou erradas. Falar dos fatos ocorridos já é menos difícil, com as possibilidades que temos agora de documentos disponíveis em arquivos nacionais e internacionais. Pode-se então desmascarar as grosseiras histórias fabricadas pela polícia da época sobre comunistas diabólicos, assassinando traiçoeiramente seus camaradas de farda, que dor-miam tranquilos numa noite de rigorosa prontidão nos quartéis. Histórias inventadas para varrer do imaginário popular o heroísmo, o mito e o quase endeusamento que envolvia a figura do “Cava-leiro da Esperança”, para desmoralizar os ideais que Luiz Carlos Preste defendia e aniquilar as esperanças de transformar a socie-dade e construir um mundo melhor. Desde o início as rebeliões foram depreciativamente chamadas de “intentona” e, além de “intentona”, “intentona comunista”: seria contra Deus, contra a pátria e contra a família.

Se é verdade que os comunistas foram responsáveis pelo desencadeamento da revolta de novembro de 1935, em Recife, e em unidades militares do Rio, eram minoria entre seus partici-pantes – o que não tira sua responsabilidade pelos fatos, que Prestes, aliás, desde o início, assumiu integralmente. Mas nem o programa e nem o objetivo da insurreição tinham caráter sequer socialista. A plataforma do movimento era a de luta contra a exploração do Brasil pelo capital internacional, de luta pela reforma agrária e de luta pela democracia: por Pão, Terra e Liber-dade – plataforma que, por sinal, não envelheceu.

Mas se o programa era justo, o caminho para alcançá-lo mos-trou não o ser. As rebeliões foram um erro de avaliação política dos que resolveram secundar a aventura de sargentos, cabos e soldados do 21º Batalhão de Caçadores (BC) de Natal, bem dentro

160160 Marly de A.G.Vianna

da tradição das rebeldias tenentistas – fora assim que a Revolução de 1930 começara.

Ao fazer a crítica daqueles movimentos, assinalando os erros que os revolucionários cometeram, não podemos deixar de consi-derar outro aspecto da revolta, sob pena de condenar como errado qualquer movimento político derrotado e de execrar a luta por rei-vindicações, se esta correr o risco de não ser vitoriosa. Os revolu-cionários de 1935 têm um grande saldo a seu favor: o da rebeldia contra as injustiças sociais.

Sem justificar uma ação política errada, devemos lembrar a capacidade de sonhar daqueles homens que lutavam por um futuro que somente a dimensão utópica pode projetar.

A 27 de novembro de 1935, levantou-se, no Rio de Janeiro, o 3º Regimento de Infantaria (3º RI) e secundado por rebeldes da Escola de Aviação Militar, acompanhando, já anacronicamente, os levantes dos dias 23 – iniciado pelo 21º BC, sediado em Natal – e o do domingo, 24 – no 29º BC, em Recife.

Não temos espaço para discutir a efervescência política no Brasil do início dos anos 30, polarizada naquele momento entre democratas (comunistas, aliancistas, liberais) e os integralistas simpatizantes do nazifascismo. Em agosto de 1934, a repressão policial ao I Congresso Nacional contra a Guerra Imperialista e o Fascismo, que reuniu cerca de vinte mil pessoas, deixara um saldo de três mortos e muitos feridos. Os grupos antifascistas pro-motores do evento se articularam então no Comitê Jurídico Popular de Investigação, lançado a 22 de setembro de 1934 e que foi o embrião da Aliança Nacional Libertadora. Esta agrupou a esquerda antifascista, a socialista e principalmente os tenentes de esquerda desiludidos com os rumos que tomara a Revolução de 30, embora alguns ainda vissem Getúlio Vargas como revolucio-nário. Foram esses tenentes a alma da ANL, que conseguiu a adesão de inúmeros sindicatos operários. O PCB viu com descon-fiança a formação da organização e decidiu apoiá-la, mas sem aderir a ela. (Porque apoiamos a Aliança Nacional Libertadora. A Classe Operária, n. 173, 24/1/35, p. 3.).

A ANL destacava em sua plataforma três pontos principais: a luta pela democracia, contra o imperialismo e contra o latifúndio. A 12 de março de 1935 foram aprovados seus Estatutos e a 30 do mesmo mês, no Rio, a ANL foi lançada publicamente, sendo Luiz Carlos Prestes aclamado seu Presidente de Honra.

161161Mais uma vez sobre as rebeliões de novembro de 1935

Prestes, desde o início de 34, fazia planos para voltar ao Brasil e retomar a luta revolucionária, convencido, pelos informes que a direção do partido dera em Moscou, de que no Brasil a revolução estava na ordem do dia.

Se até a abertura dos arquivos da IC, com base nos relatos dos que participaram da conferência de 1934, em Moscou, e no estudo da história do Brasil da época, nada nos autorizava a con-siderar que a IC tivesse dado ordens para um movimento insur-recional no Brasil. Com os materiais da conferência, que agora temos em mãos, isso fica evidente: o que a IC fez foi dar seu bene-plácito e alguma ajuda – pequena, por sinal – para que Prestes voltasse ao país, garantindo financeiramente sua manutenção e a do Birô Sul-Americano que se transferia de Buenos Aires para o Rio de Janeiro.

Ao êxito extraordinário da ANL, o governo respondeu com a aprovação da Lei de Segurança Nacional, a 4 de abril de 1935. A adesão de militares à ANL era muito grande e preocupava ao governo, que tramava o fechamento da entidade. O discurso do Cavaleiro da Esperança, no dia 5 de julho, deu a Vargas um pre-texto para, logo no dia 11, fechar a organização.

Com a Aliança na ilegalidade, a atuação de Prestes tornou-se ainda mais destacada e o PCB passou a dominar a organização. Prestes intensificou o contato epistolar com seus ex-camaradas da Coluna, na intenção de revivê-la, sendo inúmeras as cartas que escreveu nesse sentido.

Os levantes

No Rio Grande do Norte, onde a luta se iniciou, as eleições haviam deixado o Estado conturbado, o que se exacerbou com a ordem para o desengajamento de militares do Exército, deixando indignados praças e sargentos do 21º BC, sediado em Natal. A situação ficou mais tensa ainda quando o governador eleito mandou dissolver a Guarda Civil, organizada pelo governo anterior.

O Partido Comunista em Natal, orientado pela direção nacional, mostrava-se cauteloso quanto a motins. No início de novembro, por exemplo, quando da greve na Great Western, apesar da empol-gação dos comunistas com a combatividade dos grevistas, as ordens que chegaram do Rio de Janeiro eram no sentido de não desencadear qualquer movimento que não estivesse nacional-mente articulado.

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Poucos dias antes da eclosão do movimento em Natal, praças do 21º BC assaltaram um bonde da cidade e foram presos pelo tenente Santana, logo depois vítima de um atentado, o que mostra bem como iam os ânimos e a disciplina no quartel. No dia 23, a notícia da expulsão dos baderneiros deixou os militares em polvorosa. O sargento Quintino e o cabo Dias foram procurar a direção do Partido: o sapateiro José Praxedes e João Lopes, conhecido como “Santa”. Comunicaram que os militares subalternos do 21º iam rebelar-se, às sete e meia da noite, e queriam que o partido se colo-casse à frente da revolta. A direção era contrária à rebelião, naquele momento, mas, diante da insistência de Dias e Quintino, resolveu participar. Na hora marcada, o quartel foi tomado com facilidade, prenderam o comandante da guarda e os outros oficiais que se encontravam no local, dando vivas à ANL e a Luiz Carlos Prestes. Os revoltosos saíram em busca de algum oficial que dirigisse a rebelião, mas não conseguiram que nenhum aderisse.

Os rebeldes, do 21 e comunistas civis que chegaram para par-ticipar, formaram grupos que partiram em diversas missões: tomar o quartel da Inspetoria de Polícia, o Esquadrão de Cava-laria, os Correios e Telégrafos, o aeroporto, estradas de ferro, a central elétrica, delegacias, cartórios. A Polícia Militar foi a única que lhes opôs resistência, assim mesmo não por muito tempo. É importante notar que no ataque ao quartel da PM ocorreu a única morte durante a ação em Natal, a de um soldado legalista. Requisitaram-se carros, armas, mantimentos, dinheiro. Apesar dos esforços da Junta para controlar a situação, os dias 25 e 26 foram de assalto ao comércio local, principalmente de comida, tecidos, vestuário, bebidas e cigarros. Os rebeldes confiscaram todo o dinheiro que encontraram nos cofres do Banco do Brasil, da Recebedoria de Rendas e do Banco do Rio Grande do Norte, dinheiro este que distribuíram entre a população, sem qualquer critério. A Junta publicou o jornal A Liberdade, do qual só saiu o primeiro número. O povo nas ruas festejava a queda de um governo impopular e a farra da distribuição de comida e de dinheiro, enquanto que a Junta continuava a avaliar que se feste-java a revolução nacional-libertadora.

No Rio Grande do Norte, a rebelião estendeu-se pelo interior do Estado, onde a população, na sua grande maioria, via o movi-mento como coisa dos partidários do ex-governador Mário Câmara, derrotado nas recentes eleições. Mas a resistência aos rebeldes foi logo organizada. Dinarte Mariz, fazendeiro e político em Caicó, reuniu grupos armados e pediu ajuda ao governador da Paraíba

163163Mais uma vez sobre as rebeliões de novembro de 1935

que, imediatamente, enviou tropas contra o Rio Grande do Norte. No dia 26, depois de vários combates com os rebeldes do interior, as tropas sertanejas seguiram para Natal, onde, a 27, já encon-traram a cidade ocupada pela polícia paraibana.

A repressão começou imediatamente, com apreensão de armas, munições e muito dinheiro. É importante notar que o governador do Estado, Rafael Fernandes, começou a acusar como cabeças do levante seus inimigos políticos locais. Só depois do levante de 27 de novembro, no Rio, de acordo com a campanha anticomunista orquestrada nacionalmente – e também para justificar a fuga em massa das autoridades do Estado e a nenhuma resistência dos oficiais do 21º BC – que se passou a falar do que fora uma quar-telada, legitimada pela anarquia popular, como um movimento cuidadosamente organizado, “uma solerte e traiçoeira trama” ordenada e comandada por Moscou.

Em Pernambuco

Recife sediava uma direção comunista regional, o Secretariado do Nordeste, de que faziam parte o ex-tenente Silo Meireles, o padeiro Caetano Machado e Pascácio de Souza Fonseca, funcio-nário público. O trabalho do partido entre os militares era organi-zado pelo sargento Gregório Bezerra, instrutor do Tiro de Guerra que, além de elementos do Exército, contatava também com a Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros e a Guarda Civil. A situação política era agitada e a greve na Estrada de Ferro Great Western, desencadeada em todo o Nordeste, foi especialmente combativa na capital pernambucana, contando com a solidariedade de outros setores, inclusive, de praças do 29º BC.

Foi nesse clima que, na noite de 23 de novembro, chegou ao Secretariado do Nordeste a notícia do levante do 21º em Natal. Resolveram desencadear imediatamente uma rebelião no 29º. Gregório Bezerra, embora fosse a favor da insurreição, conside-rava loucura começá-la num domingo, quando os soldados estavam dispensados do comparecimento ao quartel, mas o Secre-tariado insistiu na data e o levante foi marcado para nove horas da amanhã do dia seguinte, domingo, 24 de novembro.

Lamartine Coutinho, naquela época jovem tenente do 29º BC, ligado à ANL e aos comunistas, foi escolhido para desencadear o movimento, contando com o apoio do tenente Alberto Besouchet, também membro do partido. Foram os únicos oficiais do 29º a

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participar da insurreição. O quartel foi tomado, apesar da resis-tência dos oficiais que lá se encontravam e deslocaram-se dois pelotões: um para tomar o centro da cidade e o outro, comandado por Lamartine, seguiu para o Largo da Paz, onde o tenente, depois de parlamentar com o padre, conseguiu instalar duas metralha-doras na torre da igreja.

Gregório Bezerra, que passara a noite mobilizando os praças do CPOR, esperava a adesão de estivadores, portuários e outros operários que o Partido garantia estarem prontos para a luta, mas não apareceu ninguém e Gregório tomou sozinho o Quartel General, sede da 7ª Região Militar. Ferido, teve que abandonar o quartel, seguiu para o Largo da Paz, teve que ser hospitalizado e, com a derrota do movimento, foi preso.

Na segunda-feira, 25, com a chegada de reforços da Paraíba e a ameaça de bombardeio aéreo, o pânico tomou conta da popu-lação. À tarde, os rebeldes se retiraram do Largo da Paz e o quartel do 29º foi abandonado: o movimento estava derrotado.

No Rio

Enquanto isso, na capital da República, tanto a direção nacional do PCB quanto Prestes e os assessores da IC desconhe-ciam por completo os acontecimentos do Nordeste. Basta lembrar que, no dia 23 de novembro, na mesma hora em que começava o levante em Natal, terminava no Rio uma reunião da direção nacional do PCB com representantes das direções estaduais, inclusive do Rio Grande do Norte, sem que ninguém suspeitasse do que acontecia. Quando, mais tarde, as notícias começaram a chegar, eram muito vagas e a verdade é que ninguém, nem o governo, nem a oposição, muito menos os comunistas, sabia ao certo o quê se passava.

Café Filho, deputado federal do partido de Mário Câmara, afir-mava que o movimento em seu Estado era, além de anti-integra-lista, “resultado das arbitrariedades e violências praticadas pelo governo Rafael Fernandes” (Café Filho, “Não tem caráter extre-mista o movimento no Rio Grande do Norte!”, A Manhã, n. 184, 25/11/1935.)

Apesar disso, Prestes tomou a decisão de levantar as unidades militares do Rio. Miranda, o secretário-geral do PCB, já fora infor-mado do que ocorria, não deu grande importância aos aconteci-mentos e demorou a ir procurar Prestes e os assessores da IC.

165165Mais uma vez sobre as rebeliões de novembro de 1935

Quando finalmente realizaram a reunião, o Cavaleiro da Espe-rança jogou todo o peso de sua autoridade para desencadear a luta no Rio. Miranda vacilava em apoiar a proposta, enquanto que Ghioldi e Berger não queriam dar seu aval sem o apoio do secre-tário-geral, mas Prestes acabou por convencer a todos da justeza de sua posição: seria uma iniquidade não se solidarizar com com-panheiros do Nordeste.

Foram enviados emissários a outros Estados e a unidades militares fluminenses, com ordens para o levante, mas não conse-guiram cumprir suas tarefas. No Rio de Janeiro, receberam as ordens para sublevar-se as unidades da Vila Militar, do Realengo, a Escola de Aviação, no Campo dos Afonsos, e o 3º Regimento de Infantaria.

Os civis não estavam no plano insurrecional de Prestes, tipica-mente tenentista: só depois de vitoriosa a rebelião nos quartéis o povo seria chamado a apoiar os militares.

No 3º RI, as ordens de Prestes foram recebidas com enorme entusiasmo e ninguém duvidou da vitória. A tensão era grande no quartel, onde a prontidão era rigorosa e, evidentemente, não havia ninguém dormindo. Desencadeado o movimento e apesar da reação imediata dos oficiais legalistas, só houve dois mortos em combate: o tenente rebelde Tomás Meireles e o major legalista Misael Mendonça.

A tomada do 3º RI não ocorreu de acordo com os planos de Prestes, pois a resistência da companhia de metralhadoras retardou o domínio do Regimento e permitiu o cerco das forças governistas antes que os rebeldes pudessem sair: situado entre os dois morros da Praia Vermelha, o mar aos fundos e tendo como única saída a avenida Pasteur, quando esta foi ocupada pelas tropas do governo os rebeldes ficaram encurralados, esperando reforços da Vila Militar e da Escola de Aviação, que não chegaram. Cerca de onze e meia da manhã do dia 27, o 3º RI começou a ser bombardeado, arrasando-se o quartel. Só então os revolucioná-rios se renderam.

Na Escola de Aviação Militar, onde o número de oficiais comu-nistas era maior – os capitães Agliberto Vieira de Azevedo e Sócrates Gonçalves, os tenentes Benedito de Carvalho, Dinarco Reis e Ivã Ramos Ribeiro, e ainda o então cabo José Homem Correa de Sá – o movimento não contou com o elemento surpresa, pois o levante tinha começado mais cedo no 3º Regimento e a direção da EAM já estava avisada. Apesar disso, depois de uma luta ferrenha,

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os rebeldes conseguiram dominar a Escola até o amanhecer. Com o clarear do dia e a reação legalista cada vez mais forte, ficou evi-dente para os revolucionários que estavam derrotados. A Vila Militar – a maior concentração do 1º Exército – e que os rebeldes consideravam comprometida com o levante – não se revoltou. Mobilização houve, mas foi para combatê-los.

Luiz Carlos Prestes, que ficara em seu quartel-general espe-rando a vitória do movimento para assumir o comando revolucio-nário, ao saber da derrota voltou para casa, seguro, como estavam todos, de que sofreram apenas uma derrota, a luta ia continuar.

A repressão

Logo a 3 de dezembro foi criada a Comissão de Repressão ao Comunismo. Com ajuda do Inteligence Service e da Gestapo para identificar os revolucionários estrangeiros, o chefe de Polícia, Filinto Strubing Müller, iniciou a repressão. O número de pessoas atingidas por ela foi imenso, incluindo comunistas, aliancistas, democratas e todos os que se opusessem ao governo.

Em dezembro, com a prisão de dois membros da direção do partido que não resistiram às torturas e o auxílio do Inteligence Service, Arthur Ernst Ewert foi identificado e pouco depois locali-zado. Olga Benário que, por acaso, assistiu a prisão do casal Berger, teve tempo de avisar Prestes e conseguiram fugir. Berger, torturado bestialmente, declarou apenas seu verdadeiro nome, naturalidade e sua condição de comunista.

Na manhã de 13 de janeiro de 1936, o Partido sofreu outro sério golpe, com a prisão de Miranda. O cerco sobre Prestes se fechava. Desde a prisão de Ghioldi, que sabia e informou à polícia que Prestes iria para o Meier, a polícia começou a bater o bairro rua por rua, casa por casa, com quatro turmas que se revezavam a cada seis horas. E, na noite de 5 de março, Prestes e Olga foram presos.

É importante frisar que, se os levantes foram derrotados, sendo, além do mais, um grave erro de avaliação política, isso não tira o mérito dos revolucionários. Foram homens e mulheres que, embora equivocados, embora sectários, embora com carência de cultura política – frutos que eram da sociedade brasileira – foram capazes de dar a vida por um mundo de fraternidade, de solidarie-dade, sem a exploração do homem pelo homem. Uma têmpera bolchevique que, como diz Hobsbawm, nenhuma organização leiga conseguiu jamais produzir.

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O que eu vi e vivi

Esther Kuperman

Histórias de vida são fragmentos da História. São pontos de vista, janelas através das quais se vê o todo. Neste pequeno texto, conto um pouco do que vi e vivi nos anos

da ditadura empresarial-militar inaugurada pelo golpe de abril de 1964 e que teve seu fim em 1985, há 30 anos.

Lembro que, antes de 1964, vivíamos como uma família quase comum. A diferença era que sempre havia alguém “de fora” para almoçar e as refeições eram regadas a debate político. E, à noite, havia encontros políticos na sala. Em casa, não faltava o jornal que, em geral, era a Última Hora, disputada por toda a família. Lembro perfeitamente da coluna do Stanislaw Ponte Preta (pseu-dônimo do jornalista Sérgio Porto), sempre ilustrada com mulheres em trajes de banho. Eram “As certinhas do Lalau”.

Outro dia fui à Biblioteca Nacional rever a Ultima Hora daqueles tempos, e me dei conta de que as “certinhas”, hoje em dia, seriam consideradas gorduchas, portanto fora de forma. Questão de mudança no padrão de beleza, que atualmente valoriza mulheres esquálidas. Mas o que se lia e comentava, lá em casa, era a parte de política e a crítica de cinema do jornal. Volta e meia se com-prava, também, o Jornal do Brasil, que passou a ser o jornal mais lido pela família quando a Última Hora acabou...

Eu era pequena, quando deram o golpe. Mas ficaram algumas impressões daquele dia e dos tempos que vieram depois. Uma delas foi de meu pai chegando à casa mais cedo do que o costume, ligando o rádio bem alto para saber das notícias. Era um rádio grande, de válvulas, com a caixa de madeira escura, e ficava no escritório. Papai escutava, religiosamente, um programa na Rádio JB que se chamava “O Jornal do Brasil Informa”, sempre às 18 horas.

Mas, naquele dia, ele chegou bem cedo. E a rádio tinha aberto espaço para as notícias muito antes do horário habitual. Lembro do seu rosto, desde o momento de sua chegada, e que ele parecia assustado. Lembro da sensação de que havia algo diferente no ar. Não sei exatamente o que ele escutou no rádio, mas saiu nova-mente, sem dizer aonde ia. Naquele 1º de abril, na TV, se falava

168168 Esther Kuperman

em “salvar o Brasil”, do “grande perigo” etc. Como se o país esti-vesse perdido.

Passamos a sentir medo. E nos pediram para não comentar com ninguém o que se falava ou o que fazíamos em casa. Os debates políticos que aconteciam na nossa sala de espera foram diminuindo. Cada vez menos gente chegava para conversar e agora se falava em voz baixa, como se eles contassem segredos uns para os outros.

Algum tempo se passou e meu pai já estava no Uruguai. Tinha conseguido entrar na embaixada e pedira asilo naquele país vizinho. Minha mãe ia visitá-lo com regularidade e não teve pro-blemas por isso. Mas éramos sempre vigiados e tínhamos cons-tantemente uma sensação de insegurança. Como no dia em que entraram na nossa casa para procurar papai, considerado “peri-goso subversivo”. Mamãe, que sabia onde ele estava, disse ao poli-cial que não sabia, porque estavam separados, pois ele nos havia abandonado para morar com uma “sirigaita”. O policial pediu des-culpas e saiu sem revistar a casa. Depois, quando viu nossa cara de choro, ela avisou que era mentira. E que dissera tudo aquilo para que os policiais fossem embora sem nos incomodar. Bela e boa mentira. Presença de espírito!!!

Mas meu pai não ficou muito tempo no Uruguai: voltou clan-destinamente para participar da guerrilha que ajudara a orga-nizar. Caparaó foi um ensaio de resistência, sufocado antes que seus guerrilheiros começassem a pôr em prática os planos gran-diosos para conquistar o apoio dos brasileiros e retomar o Brasil...

Os guerrilheiros foram pegos quando ainda faziam manobras e treinamento. Foram levados para interrogatório e um deles, Milton Soares da Costa, morreu “misteriosamente” no quartel, durante os “trabalhos” de investigação. Os dirigentes do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), organização que havia articulado Caparaó, que estavam no Rio de Janeiro, também foram levados para “averiguações”, dentre eles o professor Bayard Boiteux e meu pai.

Aí veio a prisão deste, em Juiz de Fora, o julgamento, a absol-vição e a liberdade. Mas a nossa casa nunca mais foi a mesma desde aquele dia em que papai chegou mais cedo e ligou o rádio. Havia sempre uma impressão de que o Estado estava contra todos nós. Éramos envolvidos pela sensação de sermos pequenos frente aos coturnos, às armas, aos telefones vigiados, aos investigadores na esquina.

169169O que eu vi e vivi

Cresci, me formei e me transformei também em “perigosa sub-versiva”. Era o caminho natural depois de tudo o que tinha visto, vivido e lido. A militância era a saída, a organização a ferramenta. Não havia como não resistir. Tínhamos planos grandiosos para conquistar o apoio dos trabalhadores e reconquistar o Brasil...

Durante os anos 70, quando eu cursava a faculdade, as assem-bleias de estudantes, no Instituto de Ciências Humanas e Filo-sofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), eram sempre invadidas por policiais, mesmo que fossem convocadas apenas para debater nosso currículo. Estudante não tinha que debater, tinha que estudar, diziam eles. E quando saíamos da faculdade, com frequência, aquelas sinistras Veraneios nos acompanhavam.

Depois foram as prisões. O MEP (Movimento pela Emancipação do Proletariado) foi uma das últimas organizações a ser alcançada em massa pela polícia política, sendo presos e torturados quase todos os militantes da direção. E de novo aquela sensação de sermos pequenos diante dos coturnos. Ficamos de fora, apenas alguns, que resolveram rearticular os que ainda estavam livres e retomar a luta.

Toda a minha relação com este período foi de resistência. Apesar do medo, a ideia de resistir, de enfrentar, trazia a sensação de que havia uma saída, mesmo que fosse pequena. Era a única forma de sobreviver.

Em meados dos anos 80, já era professora, conversava com os alunos sobre tudo o que havia visto, era ativista no sindicato. Tes-temunhei o recrudescimento das lutas e das manifestações. Os sindicatos foram retomados das mãos dos interventores. Criaram-se novas estruturas e organizações: Comitê pela Anistia, associa-ções de moradores, Famerj, Faferj, Brasil Nunca Mais, Tortura Nunca Mais, movimentos contra a carestia, movimentos de mulheres, a luta pelas eleições diretas para Presidente da Repú-blica, passeatas, comícios, campanhas. Era a sociedade civil se reorganizando e articulando a resistência.

Claro que eu estava lá! Meninos, eu vi e vivi tudo! Tenho muito orgulho de ter feito parte deste reflorescimento das instituições. Havia muito que dizer e fazer. Estávamos ocupados com a retomada da vida e do Brasil. Veio a anistia, voltamos à vida civil e conti-nuamos atuando nas associações e sindicatos. Era por aí o caminho.

Muita gente entende que o período da ditadura terminou. Jus-tificam com o esgotamento do modelo vigente e também com a crise

170170 Esther Kuperman

do petróleo, que afetou as relações econômicas, fazendo a balança pender para outro lado, mudando a correlação de forças. Claro que há tudo isso. Mas não dá para esquecer que as mudanças foram também – e principalmente – fruto da resistência. As pequenas portas abertas, as mínimas brechas, foram conquistas dos movi-mentos sociais, que brigavam por novos espaços de manifestação e de organização. Conquistamos as eleições, o direito de greve, a pos-sibilidade de nos manifestar livremente, de viver normalmente.

Hoje, a pergunta que não quer calar é: será que o tudo real-mente mudou? Será que o arrocho salarial, a repressão aos movi-mentos sociais, o crescimento da dívida pública, típicas do período inaugurado em abril de 1964 não continuam, em escala maior, usando mecanismos diversos, mas nem por isso menos eficazes? Será isso a tão falada democracia?

A mudança foi significativa quanto à censura e à possibilidade de manifestação e organização. Mas esta mudança foi conquis-tada por nós. Não podemos esquecer disso. Há muito a se fazer. A História não muda por si mesma. Ela muda porque nós a fazemos mudar. Estamos aí pra isso.

XI. Mundo

Autores

Carla SoavinskiBacharel em Ciência Política pela Universidade de Brasília .

Claudio SardoJornalista, ex-diretor do diário L’Unitá, de Roma, hoje faz assessoria à Presidência da República italiana por ser especialista em estudos da religião e do catolicismo .

Isaac RoitmanProfessor emérito e coordenador do Núcleo do Futuro da Universidade de Brasília, membro da Academia Brasileira de Ciências, presidente da Comissão 2002 O Brasil que queremos (UnB/União Planetária) .

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Visões do Papa Francisco

Claudio Sardo

Visto de Roma, da Europa cristã, do Norte do planeta, não é fácil catalogar o Papa Francisco. É mais fácil contestá--lo usando as categorias tradicionais dos conservadores e

aquelas modernas dos teocons: de resto, é o que ocorre desde as primeiras semanas de pontificado, com ataques explícitos como há muito não se recordava. O cânon do reformador, no entanto, parece insuficiente, demasiadamente parcial, para Francisco. Seu magistério não é impulsionado pela ânsia de definir uma nova doutrina social: assinala os limites e, mais ainda, denuncia a insustentabilidade do sistema econômico e político atual, mas não se empenha numa ideia alternativa de governo da globali-dade. O magistério não se faz sequer porta-voz de uma nova teo-logia moral: preocupa-se, antes, em testemunhar a misericórdia, em fazer com que ela encontre o homem que sofre e pede ajuda, em levar sobretudo o perdão, a fraternidade antes de qualquer norma ou ética.

A radicalidade de Francisco tem a ver com o homem, com sua profundidade existencial, com a originalidade da mensagem cristã, até com a necessidade de depurá-lo das inculturações da fé. É uma radicalidade que rompe a mediação. É um cristianismo sem mediações. Renuncia até à mediação cultural porque esta perdeu a eficácia. Porque a sociedade globalizada baseia-se na desintermediação. Porque toda mediação arrisca-se hoje a se tornar o campo do relativismo, e não da reconstrução de uma comunidade de valores.

174174 Claudio Sardo

E, no entanto, o retorno ao Evangelho, ao compartilhamento com os pobres e os últimos, à carta a Diogneto – os cristãos “habitam, cada qual, a própria pátria”, mas “toda pátria para eles é terra estrangeira” – comporta um distanciamento do poder tem-poral a que é impossível não atribuir forte valor histórico. As per-guntas para mim mais fascinantes são justamente as que tentam ler Francisco na perspectiva da história do homem e da história da salvação. Por que acontece agora? O que o Papa está pedindo aos crentes? Que juízo seu magistério contém sobre a crise do Ocidente, do liberalismo e do capitalismo que se tornaram suas estruturas de sustentação?

Para tentar algumas respostas, pode-se recorrer a um carisma muitas vezes negligenciado: a profecia. “O profeta – disse o Papa numa de suas homilias a Santa Marta – é um homem de três tempos: promessa do passado; contemplação do presente; coragem para indicar o caminho para o futuro. O Senhor sempre protegeu seu povo, com os profetas, nos momentos difíceis, nos momentos em que o povo estava prostrado ou destruído, quando não havia o Templo, quando Jerusalém estava sob o poder dos inimigos, quando o povo se perguntava dentro de si: mas, Senhor, tu nos prometeste isso! E agora o que acontece?”.

A redescoberta da profecia é uma chave do magistério de Fran-cisco e da travessia pela qual está guiando a Igreja Católica. Uma chave interpretativa que permite – sei que a questão é controver-tida – identificar fios de continuidade com o precedente papado e com a espetacular renúncia de Bento XVI.

A Igreja vivia uma imensa dificuldade quando se reuniu o último conclave. Estava cercada no plano midiático, mostrava-se incapaz de acompanhar o ritmo da sociedade secularizada, acos-sada por escândalos de homens e estruturas curiais, apanhada em falta de coerência ao testemunhar os valores que enunciava. Papa Ratzinger – a par da vastíssima produção teológica – deixou reflexões muito agudas sobre a crise de sentido e de horizontes comuns que caracterizam nosso tempo, sobretudo no Ocidente. No entanto, um preconceito pesou sobre Bento: boa parte das elites intelectuais considerou-o um Papa “antimoderno”. Como se aquela sua fala sobre “verdade” constituísse, por si só, um obstá-culo insuperável ao diálogo. Como se a Igreja já estivesse inexora-velmente condenada a entocar-se num bunker, assediata na Europa por um individualismo que recusa qualquer transcen-dência e hostilizada no resto do mundo por integralismos reli-giosos cada vez mais agressivos.

175175Visões do Papa Francisco

Não favoreceram o Papa Bento alguns de seus adeptos – a começar pelas correntes conservadoras do catolicismo americano – que dele fizeram o estandarte desta fortaleza, convencidos também de que o horizonte cristão se reduzia à mera resistência. No entanto, Bento estava levando a cabo uma crítica da moderni-dade, a mais severa crítica das transformações induzidas sobre o sentido da vida e do próprio homem.

Portanto, foi a renúncia que abriu uma brecha inesperada. Um gesto de profecia, exatamente. Na Igreja, teve o efeito de um terre-moto e, fora dela, foi percebida quase como “ruptura revolucio-nária”. Aquele ato tão radical de humildade e de entrega a Deus atingiu profundamente crentes e não crentes. Mais do que muitas palavras. A renúnica teria sido impossível sem o Concílio, sem a abertura para o mundo, sem a centralidade do Evangelho repro-posta pelo Vaticano II. Teria sido impossível no quadro de uma concepção régia do papado, de um poder hierárquico que precede a comunhão, de uma lei separada da caridade. Neste contexto de significados – e também em plena crise de relação entre a Igreja e o século –, o conclave elegeu Jorge Mario Bergoglio. Também por isso não me convence a tese da contraposição entre Bento e Fran-cisco: é próprio sobretudo aos ambientes conservadores e reacio-nários que pretendem isolar Francisco, encerrá-lo num parêntese, descrevê-lo como um incidente no caminho da Igreja, como um modernizador imprudente que logo será redimensionado, quando não diretamente cancelado.

Mas também não convence a tese segundo a qual a novidade de Papa Bergoglio consistiria em sua exterioridade, na capacidade de se comunicar de modo amigável com o mundo: esta é uma banalização que prejudica a compreensão das grandes mudanças globais que hoje abalam a natureza mesma do homem, que põem em crise as democracias, perturbam os equilíbrios políticos, trans-formam o capitalismo e modificam, e até amplificam, os instru-mentos de abuso e as medidas de desigualdade. Ambas estas lei-turas levam a descontextualizar a mudança em curso na Igreja, a desconectá-la daquelas modificações que não poupam nem mesmo o povo de Deus.

As diferenças entre Francisco e Bento existem e são inegáveis. Diferenças que deixarão marcas na doutrina. No entanto, o extraordinário abalo pretendido pelo Papa proveniente “do fim do mundo” encontra, em seus fundamentos, um terreno por muito tempo preparado pelo Papa Ratzinger, com suas reflexões sobre a crise antropológica, as inquietações e as injustiças das sociedades

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avançadas, sobre a fé como instrumento de conhecimento e também de reconstrução da unidade da razão. Não só a imagem dos dois Papas em oração, um junto do outro na capela de Castel Gandolfo, desmente os reacionários que pontificam sobre um Rat-zinger traído, a ordem violentada, a lei divina obscurecida por um relativismo que já penetrou na Igreja pela porta principal. A des-menti-los está, por exemplo, a encíclica Lumen fidei, escrita a quatro mãos por Bento e Francisco. Nesse texto, que representa o ponto de chegada do magistério de Papa Ratzinger em relação ao diálogo entre fé e razão, existe a tentativa de reconciliar num novo humanismo o que a “luz da razão” (o Iluminismo) havia libertado, mas também dividido. E existem os sinais da aceleração de Fran-cisco: a fé – que “nasce de um encontro que ocorre na história” e não de uma lei ou de uma teologia – só pode iluminar o mundo em virtude de “sua conexão com o amor”, pondo-se assim “ao serviço concreto da justiça, do direito e da paz”. A fé que dialoga com a razão, e não se contrapõe a ela, é oferecida ao mundo como “um bem comum”. A fé como bem comum. Para ajudar todo homem, independentemente do próprio credo, a libertar-se de velhas e novas escravidões.

A profecia de Papa Francisco tem longas raízes no percurso – difícil e às vezes contraditório – que a Igreja realizou do Vaticano II até nossos dias. Um tempo de mudanças radicais, que chegam a colocar em discussão a própria ideia de futuro. E também, obviamente, a ideia de Deus.

Não bastam os “princípios éticos irrenunciáveis” da famosa Nota de 2002 da Congregação para a Doutrina da Fé – depois trans-formados em “valores não negociáveis” com uma simplificação polí-tica e jurídica bastante discutível – para tachar Bento como um Papa meramente conservador. Ao contrário, dever-se-ia perguntar por que uma certa frente laica polemizou com Bento muito mais do que o fez com João Paulo II. Ou então dever-se-ia perguntar quanto e como a cultura da esquerda ainda está disposta a alimentar o pensamento crítico sobre a modernidade e a ordem liberal. Não é um acaso que o juízo negativo sobre o Papa Ratzinger tenha sido expresso, mesmo à esquerda, por quem parece mais resignado à hegemonia privatista, à supremacia do indivíduo sobre a pessoa, e, portanto, persegue a expansão tendencialmente infinita dos direitos subjetivos para contrabalançar uma inevitável compressão dos direitos sociais e dos valores de solidariedade. A busca de um novo humanismo – que se baseia hoje necessariamente no diálogo entre crentes e não crentes, e entre crentes de diferentes fés – não pode

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deixar de partir do desafio à economia que tenta plasmar o homem e as comunidades, pretendendo arrogantemente constituir o novo “direito natural” vigente.

O Papa Francisco não revirou teologia e doutrina. Não partiu daí. Só mudou o olhar sobre o mundo, o ponto de observação do cristão. Tal como a residência do Papa, transferida do terceiro andar do Palácio Apostólico para Santa Marta. Se a Igreja não reencontra a profecia, sua palavra corre o risco de se perder no labirinto da contemporaneidade, na Babel das linguagens e dos pensamentos débeis. Não bastam os códigos canônicos hoje para preservar o anúncio cristão: é preciso a coragem de desafiar as convenções e as próprias conveniências. Se o Papa Bento decidiu se demitir, com um ato cujos precedentes se perdem em séculos distantes, porque não tinha mais a força para enfrentar obstá-culos tão grandes como os que se lhe apresentavam, não era só de um Papa dez anos mais jovem que a Igreja precisava. Precisava libertar seu anúncio.

O desafio histórico, epocal, de Francisco é este: libertar a palavra de Deus do emaranhado de estruturas, culturas, precon-ceitos e incompreensões que a comprimem. Libertá-la daquele mundo eurocêntrico que já pertence ao passado. A mensagem cristã hoje corre o risco de terminar na armadilha do declínio do Ocidente. Corre o risco de ser esmagada pelas ruínas de um sis-tema que está morrendo, de um equilíbrio que não existe mais. Esconjurar este perigo é a prioridade para a Igreja-instituição e a Igreja-comunidade.

É verdade que muitas coisas boas que compõem nossa estru-tura social são o fruto do pensamento e da cultura cristãs. Mas o mundo globalizado não é mais cristão-cêntrico (demonstram-no tanto a dramática perseguição dos cristãos em várias áreas do planeta, quanto a mudança do centro de gravidade da própria Igreja para a África e a América Latina). Em resumo, não é só uma esclerose da vida interna da Igreja a lhe pedir que saia dos pró-prios muros e reencontre coerência. Jogando na defensiva e usando mais ou menos a mesma linguagem de sempre, a Igreja seria associada ao velho poder forçado a ceder passagem ao novo poder. Ao contrário, a profecia pode se tornar um trampolim na história. É a sociedade global que hoje precisa de uma Igreja pro-fética. De uma Igreja “sinal de contradição”. É tempo de recons-truir, reforçar a ligação entre a história e a escatologia, como queria o Concílio. Porque a humanidade corre o risco de sufocar se não romper a ditadura do presente, se não reconquistar a liber-

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dade de projetar o amanhã. A dimensão universalista da Igreja hoje não pode ser estranha a esta liberdade, bem que escasseia apesar de ser indispensável como o oxigênio no ar.

O Papa Francisco, primeiro entre os sucessores de Pedro, nasceu no Sul do planeta: é-lhe natural observar a sociedade capitalista e a globalização dos mercados do lado de quem sofre as injustiças. Ao contrário, não lhe é natural colocar o testemunho cristão do lado do poder. Porque o poder se corrompeu, mesmo onde os cristãos o exerceram (não será fácil fazer com que o mundo esqueça a guerra celerada no Iraque, desejada e conduzida por dois líderes cristãos, como Bush e Blair). Por outro lado, o poder democrático, aquele acessível ao povo através das Constituições, se tornou cada vez mais impotente. Débil demais em relação à soberania do dinheiro que produz dinheiro. Débil demais em relação a um individualismo que promete liberdades cada vez maiores e, depois, atraiciona-as com a solidão e o medo. Não existe nenhum desprezo por parte do Papa pelas instituições, pela política ou pelo empenho cívico, que, antes, considera, como Paulo VI, um serviço à caridade. Não existe uma fuga da modernidade. Mas existe uma convicção que é ao mesmo tempo histórica e pas-toral: hoje os cristãos, para enfrentar a modernidade, devem voltar ao espírito das primeiras comunidades cristãs.

Quando Francisco diz que a Igreja é um hospital de cam-panha, acredito que tenha em mente menos os valorosos “Médicos sem fronteiras” do que, sobretudo, as comunidades cristãs dos primeiros dois séculos nos territórios do Império. Os cristãos sofriam pesadas perseguições e mesmo assim tais comunidades se expandiam, desafiando o ostracismo e as condenações à morte, porque eram as únicas a cuidar dos doentes de populações nômades e supersticiosas que de outro modo eram excluídas, des-cartadas. A raiz evangélica alimentava deste modo a vida social. Não era uma opção política ou eclesial a determinar um compor-tamento, mas era a fidelidade à Cruz a produzir um efeito social, político e mesmo eclesial. Voltar às origens da mensagem cristã significa voltar a olhar a cidade do homem da perspectiva de quem é mais fraco, não de quem elabora estratégias de poder. Significa tornar-se portador de uma contradição antes de tentar uma nova mediação. “Vim trazer não a paz, mas a espada”.

Colocar em primeiro lugar a Cruz, desarmada dos escudos que os cristãos construíram nos séculos. Mesmo o anticapitalismo do Papa deve ser lido nessa perspectiva. “Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida

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humana – recita uma das passagens mais conhecidas do Evangelii Gaudium –, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa”. Não acredito que se encontre na doutrina social uma contestação do capitalismo tão radical. Ainda que o Papa Francisco não busque uma ideologia alternativa, o que se critica são os próprios funda-mentos do mercado como equilibrador dos recursos. Os teo-cons americanos e Michael Novak se insurgiram porque no capitalismo compassivo, assim como na europeia economia social de mercado, colocam o sedimento e a identidade social do cristianismo. Ao con-trário, o Papa diz que a ordem capitalista – por mais que hoje seja proposta como indiscutível e insubstituível – não é tutora nem aliada do cristianismo: antes, este é o nexo que deve ser quebrado para que a Palavra possa ser de novo escutada. Os cristãos não podem ficar na defesa, tanto mais que esta defesa os induz à neutralidade ou à cumplicidade em relação às desigualdades e às injustiças.

“Não se pode conhecer Jesus na primeira classe” – repete Francisco. “O trabalho é um direito fundamental” da pessoa – disse mais – e “não pode ser considerado uma variável dependente dos mercados financeiros e monetários”. Nenhum homem de governo, nem mesmo de esquerda, pode se permitir hoje falar assim: puni-lo-iam os mercados antes do que os eleitores. A dis-tância em relação aos códigos políticos é deliberada, mas, como o Papa não despreza a política e não se mostra indulgente com a antipolítica ou o rebeldismo, esta distância deve ser acolhida – penso – como uma grande oportunidade para manter vivo o pen-samento crítico.

Precisamos voltar a olhar o mundo com a liberdade de quem não o considera imutável: e, para fazê-lo, é preciso falar da crise de nosso tempo com uma profundidade e uma intensidade que são inalcançáveis por parte do “poder”. Neste sentido, o magistério de Francisco tem mais a ver com o “contrapoder” (desde que enten-dido, exatamente, como reserva de humanidade e de transcen-dência, não como plataforma ideológica ou programática alterna-tiva). Se esta é a dimensão religiosa da radicalidade de Francisco, pode-se compreender melhor por que seu magistério não deve ser entendido como simples correção da doutrina social, a qual – da Rerum novarum, de Leão XIII, até a Caritas in veritate, de Bento XVI – é, no fundo, uma tentativa de encontrar um compromisso cristão entre capital e trabalho, entre democracia e mercado.

180180 Claudio Sardo

Também as questões debatidas no Sínodo sobre a família per-tencem só em parte à teologia moral. Os conservadores contra-põem a suposta pureza da doutrina às impurezas do perdão e da misericórdia. Separam a fé da caridade, enquanto acusam os outros de separar a teologia da pastoral. Mas a missão da Igreja não pode ser encerrada na lei canônica, como se a esta – ao poder constituído e não a Deus – competisse o juízo último. A humani-dade dos homens não está irremediavelmente corrompida pelo demônio: ao contrário, o perdão de Deus é parte de sua força cria-dora. A propósito de Satanás: na epístola de Tiago está escrito que também o demônio crê em Deus e o teme, mas a diferença é que ele, o demônio, não sabe amar.

Duas breves considerações conclusivas. A primeira diz res-peito ao catolicismo político, que tanto contribuiu para o cresci-mento democrático e social da Itália, que tanto deu e recebeu no debate com as outras culturas. Já o Concílio corroera o funda-mento doutrinário da unidade política dos crentes. Em seguida, o eclipse da Primeira República (que seria correto datar não de 1992, mas de 1978, ano do assassinato de Aldo Moro) emperrou os mecanismos reprodutivos dos católicos democráticos. A crise da mediação, de que já falamos, fez o resto: no mundo sem media-ções, com corpos intermediários e autonomias sociais frágeis, parece que sequer se pode imaginar um catolicismo político. E, no entanto, creio que a radicalidade de Francisco é uma extraordi-nária oportunidade para os católicos empenhados na vida pública. O fim do temporalismo comporta o fim de toda correia de trans-missão, mesmo aquelas camufladas, em tempos de valores não negociáveis. Dizia-se que, numa lógica conciliar, cabia ao crente a responsabilidade de estar na ponta final. Ligado à Igreja por um forte vínculo comunitário, na cidade do homem o crente, de todo modo, devia se arriscar em pessoa no momento terminal da escolha política. Com Francisco aquela ponta se ampliou muito. O risco é maior. O pluralismo das opções é irredutível. A respon-sabilidade dos cristãos é também a de não envolver a Igreja em escolhas discutíveis. No entanto, o cristão pode e deve se expressar, investindo valores e talentos. Pode e deve buscar com outros uma nova, mais avançada mediação política e cultural. A radicalidade evangélica contém grande reserva de esperança, de confiança, de capacidade de projetar. O que não mais se mostra justificado é o binômio católico/moderado. Seja qual for a escolha política, seja qual for o campo em que milite, o católico está chamado a ser mais inovador do que tímido reformista.

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A segunda consideração diz respeito à esquerda. Já falamos do paradoxo de um Papa que diz coisas de esquerda como nenhuma esquerda no mundo seria capaz de fazer. Na simplificação existe uma leitura política do magistério que se mostra pouco convin-cente. Todavia, há um tema a que a esquerda não pode fugir: a reconquista da dimensão dual da política. Por um lado, ação con-creta para melhorar o que pode ser melhorado aqui e agora; por outro, esperança e visão de um mundo mais justo. Se a política e, de modo especial, a esquerda não conseguem mais fazer com que estas duas dimensões convivam, então vence o pragmatismo, os ideais se consomem, o presente mata o futuro, a política se reduz à técnica de poder ou do consenso. A radicalidade evangélica pode ajudar a reabrir a contradição ou a dialética, como queiramos chamar. À esquerda não falta tanto uma narrativa reformista válida para a contingência. O que falta é a capacidade de olhar mais para o alto, mobilizar esperanças, projetar igualdade, frater-nidade, libertação. Falta uma ideia revolucionária, que não é a catarse violenta, mas, antes de mais nada, visão da mudança para além das compatibilidades atuais. A radicalidade evangélica pode se tornar um bem comum, porque pode difundir uma pacífica amplitude de perspectivas. Para todos. Num belo ensaio recente – “O ocaso da revolução” –, Paolo Prodi refuta a tese predominante do assédio ao Ocidente cristão. Sua crise não nasce da agressão externa ou da corrosão interna. A crise nasce da vitória de seu modelo e da homogeneização que provoca esterilidade e não deixa sequer imaginar um futuro diverso e melhor para nossos filhos. O desenvolvimento do Ocidente foi sustentado pela ideia de revo-lução, pela capacidade de inovações audaciosas a ponto de garantir passos epocais à frente. Não precisamos de um bunker no qual nos encerrarmos, mas de um ideal ao qual nos abrirmos. Não vencerá o Islã – diz Paolo Prodi –, mas uma mistura de confu-cianismo e dirigismo capitalista. Penso que ainda podemos parti-cipar da obra da Criação e que o pensamento cristão, sob novas modalidades, possa se tornar uma semente útil para todos os homens de boa vontade.

Tradução: Luiz Sérgio Henriques.

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Paz, shalom, peace, paix, frieden, perdamaian...

Isaac Roitman

Segundo o historiador John Baines, da Universidade de Oxford, o primeiro registro de uma guerra se deu por volta do ano 2525 antes de Cristo, no estado de Lagash, locali-

zado na Suméria (sudeste do Iraque), contra o estado Umma. Ao longo do último milênio, o avanço tecnológico das máquinas de matar fez com que os conflitos fizessem muito mais vítimas em menos tempo.

Estima-se que, no período de 4.540 anos, cerca de 14 bilhões de pessoas morreram em 14 mil guerras. A ilimitada crueldade amplamente demonstrada pela humanidade não tem analogia no mundo dos animais superiores. O professor Boris Porshnev intro-duziu o conceito que a humanidade no seu desenvolvimento passou por um estado de adelphophagy (canibalismo). Até hoje, o ser humano não conseguiu viver pacificamente.

Imaginar, então, um mundo com guerras, escassez de água e alimentos é assustador. Infelizmente, esse é o futuro que aguarda as futuras gerações se não revertermos esse processo por meio da implantação de uma cultura de paz planetária.

Paz não é apenas a ausência de guerra entre os países. Paz é garantir que todas as pessoas tenham moradia, alimento, roupa, educação, saúde, amor e compreensão. Paz é cuidar do ambiente em que vivemos, garantir a qualidade da água, o saneamento básico, a despoluição do ar, o bom aproveitamento da terra. Paz é buscar serenidade dentro da gente para viver com alegria.

Paz é a capacidade de se criar clima de harmonia entre todos, lembrando-se sempre de que onde existe amor, existe paz. Ao longo do tempo, a humanidade se preocupa a construir a cultura da paz. Na nossa história recente, bebemos na fonte alimentada por pensamentos e ações de grandes pacifistas, tais como Mah-atma Gandi, Martin Luther King Jr., Dalai Lama, Albert Einstein, Nelson Mandela, madre Teresa e Amoz Oz.

Para que a paz possa se tornar algo viável, palpável e possível de ser conquistada é necessário começar a pensá-la como cons-trução individual. Quando cada indivíduo perceber que o coletivo

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é fruto do individual, que sociedade pacífica se constrói com indi-víduos pacíficos, tolerantes, desprovidos de preconceitos e ati-tudes discriminatórias, poderemos pensar na paz universal com mais esperança.

A conquista da paz passa também por ações governamentais, políticas públicas que proporcionem condições mínimas de vivência digna, com perspectiva de futuro para as novas gerações, criação de emprego para a população jovem e adulta, pela não discriminação do idoso ou do diferente, incluindo nessas dife-renças a religião, a raça, a opção sexual, o deficiente, o obeso, o índio, o estrangeiro. Há que ser percebido que a diferença enri-quece, acrescenta e aprimora.

É importante, nesse aspecto, a educação em direitos humanos e na promoção dos valores éticos, desde a educação infantil, o ensino fundamental, o ensino médio e no âmbito universitário. Deve englobar o educando, os professores e toda a comunidade escolar e a família, com ações multidisciplinares integradas e com a promoção dos valores e virtudes.

Os grandes líderes da humanidade nos ensinam que a não violência não se confunde com passividade ou harmonia ideali-zada. A não violência é caminho que exige exercício contínuo e incansável de diálogo, luta determinada e persistente contra as injustiças, prática constante de ações criativas em prol da huma-nidade. Como vivemos numa época em que carecemos de bons modelos éticos para guiar nossas ações, busquemos nas belas páginas das vidas dos grandes líderes do passado a inspiração necessária para fazer a nossa parte na construção de cultura da paz no presente.

Em seu famoso discurso em 1963, “Eu tenho um sonho”, Martin Luther King pregou a luta pela liberdade e pela dignidade dos negros nos Estados Unidos. Porém, acrescentou ao discurso: “Não devemos permitir que o nosso criativo protesto degenere em vio-lência física. Sempre e cada vez mais devemos nos erguer às alturas majestosas de enfrentar a força física com a força da alma”.

Vamos fazer jus à nossa classificação como Homo sapiens, lembrando o pensamento de Albert Einstein: “A paz é a única forma de nos sentirmos realmente humanos”.

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Hegemonia e identidade no conflito entre a Rússia e a Ucrânia

Carla Soavinski

Em fins de 2013, surgiu na Ucrânia uma onda de pro-testos que ficou conhecida como Euromaidan, e cuja prin-cipal reivindicação consistia em maior integração com a

União Europeia. Considerada a maior manifestação pró-UE até o presente, o Euromaidan engendrou a Revolução Ucraniana de 2014, que por sua vez depôs o presidente Viktor Yanukovych, de orientação favorável à Rússia, e levou a uma rápida sequência de mudanças no sistema político-social da Ucrânia.

Tais mudanças, entretanto, iam de encontro aos interesses russos, fazendo com que, em resposta, a Rússia invadisse o terri-tório ucraniano, subsequentemente anexando a península da Cri-meia por meio de um duvidoso referendo. Além disso, tudo indica que Moscou esteja oferecendo apoio direto a grupos separatistas pró-Rússia nas regiões orientais da Ucrânia.

Deve-se notar, contudo, que o conflito – que já toma proporções de guerra internacional –, tem suas raízes muito além de 2013: elas estão presentes, na verdade, desde o início da história das nações envolvidas, em questões profundamente relacionadas à formação de ambas as identidades nacionais – questões estas que ainda hoje têm força suficiente para influenciar os rumos da política e, em última instância, dar origem a um conflito já duradouro.

Segundo teoria proposta pela socióloga Liah Greenfeld (1998, p.17-24), as nações seriam construídas em uma ambígua relação de alteridade envolvendo tanto admiração quanto hostilidade uma com as outras, que nesse processo são tomadas, a um só tempo, por modelo e antimodelo: objetos a serem emulados mas também rechaçados.

Essa alteridade, a eterna presença do Outro, que é ponto de comparação e causa de desconforto existencial, é grande parte da questão dentro da qual se insere o conflito russo-ucraniano e os nacionalismos que o delineiam:

Também a Rússia enquanto nação se teria assim desenvol-vido. Foi no século XVIII, sob direta influência de dois autocratas – nomeadamente Pedro I e Catarina II –, que teve início a ideação

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da nação russa. O Outro, no qual ora se inspirava e ao qual ora se opunha foi, desde o princípio, o Ocidente. Com relação a ele, com-petindo com ele, buscou-se moldar a Rússia-nação, e foi contra o Ocidente que a Rússia se voltou quando de seus fracassos.

Assim como se deu com sua contraparte russa, foi também a partir da oposição ao Outro que o nacionalismo ucraniano se formou: esse Outro era, dessa vez, não mais o Ocidente, mas a Rússia e a Polônia; países que, à época, dominavam partes do território que hoje corresponde à Ucrânia. Foi do desejo de se definir como separada de ambos, de ser reconhecida em sua exis-tência própria e de operar por seus próprios termos, que surgiu a ideia nacional ucraniana.

Entretanto, porque o projeto de construção da nação russa pretendia que esta fosse formada, em sua integridade, pelos grão-russos, pequenos russos e russos brancos, o movimento nacio-nalista ucraniano foi declarado perigoso por Moscou, que via nele um fator de subversão à sua própria unidade nacional.

O atual conflito entre Rússia e Ucrânia é fruto direto dessa oposição de orientações. Mais uma vez, a figura do Ocidente se mostra quase onipresente: é em resposta a ela que ambos os países traçam os rumos de suas políticas externas, que delineiam as causas e desdobramentos da disputa. Seu papel é ainda tão relevante quanto o foi à época dos primeiros nacionalistas russos e ucranianos.

As identidades nacionais enquanto determinantes da política externa

O aspecto imperial da história russa, que existiu de forma quase contínua durante os regimes czarista e depois comunista, teve forte impacto na formação de sua identidade nacional. Daí decorre que a visão de mundo russa esteja fortemente pautada em sua identidade imperial e na sua crença de desempenhar uma missão global.

Entretanto, a autoimagem russa difere muito das percepções que o Ocidente tem sobre ela, e isso resulta no chamado padrão de centro/periferia: sua identidade de império faz com que a Rússia se acredite um poder central; enquanto isso, o Ocidente a vê sempre como atrasada e pouco civilizada, um poder, no máximo, periférico.

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Essa é a chave para compreendermos porque as relações entre a Rússia e o Ocidente se reciclam dentro de um mesmo padrão: buscando obter o reconhecimento dos poderes centrais e eliminar de seu imaginário a imagem da Rússia como periferia, esta des-preza a cooperação com aqueles. Ao invés disso, utiliza-se de medidas cada vez mais drásticas com intuito de ter sua impor-tância reconhecida, fazendo aumentar as desconfianças do Oci-dente em relação a ela.

Essa lógica, que permeia o posicionamento internacional russo desde os tempos czaristas, se reflete também em sua rígida diplo-macia em relação aos países da Comunidade de Estados Indepen-dentes (criada após a queda da URSS), em especial à Ucrânia e Bielorrússia, já que a reintegração desses três Estados – partes do triângulo eslavo –, é tida por muitos russos como chave para o reestabelecimento da posição da Rússia enquanto grande potência.

Ainda que com diversas oscilações – principalmente a partir de 2004, quando ocorreu na Ucrânia a chamada Revolução Laranja –, as relações entre Ucrânia e Rússia no contexto pós-Guerra Fria se mantiveram razoavelmente estáveis até os acontecimentos do Euromaidan em 2013, quando negociações para um tratado comercial com a União Europeia (EU) foram suspensas por pressão russa, fazendo com que protestos tomassem a Praça da Indepen-dência em Kiev por uma maior integração com a UE e contra o governo pró-Rússia de Viktor Yanukovych.

Tal onda de protestos levou, eventualmente, à Revolução Ucraniana de 2014, que resultou na queda, em fevereiro do mesmo ano, do presidente Yanukovich, supostamente envolvido em casos de fraude e corrupção. A isso seguiu-se uma rápida sucessão de mudanças no sistema político da Ucrânia, bem como uma esca-lada das tensões entre os dois países.

A crise tomou proporções internacionais quando a Rússia pôs de lado estratégias puramente diplomáticas e invadiu o terri-tório ucraniano, ocupando a península da Criméia – que per-tenceu à Rússia até a União Soviética a ceder à Ucrânia, em 1954, e cuja população, em sua maioria, se identifica como russa –, e anexando-a através de referendo.

Logo após, eclodiram insurgências separatistas no leste ucra-niano, outra região de maioria russa e presente foco da disputa. Ainda que a Rússia negue estar dando apoio direto aos dissi-dentes, são numerosas as evidências que atestam o contrário.

187187Hegemonia e identidade no conflito entre a Rússia e a Ucrânia

Os Estados Unidos e a União Europeia reagiram à ane-xação da Crimeia impondo à Rússia diversas sanções; em uma fase na qual a economia russa já desacelerava, uma maior dificul-dade de acesso aos mercados de capitais europeu e norte-ameri-canos seria particularmente prejudicial à Rússia.

Assim, apesar das questões de distribuição energética; da alta industrialização do sudeste ucraniano; e da presença da Frota do Mar Negro na Crimeia, que é de interesse estratégico para a Rússia, é pouco provável que sua motivação advenha de fatores econômicos.

Mais verossímil é a hipótese de que as razões para a inves-tida da Rússia contra a Ucrânia tenham em fatores ideológicos e civilizacionais sua força motriz. É bastante possível que o des-membramento da Ucrânia seja uma demonstração de força russa perante o Ocidente, provocada pela aspiração de não mais ser tida por ele como periférica; uma radicalização de comportamento já prevista pelo padrão centro/periferia.

Do lado ucraniano, a ênfase também está em valores: apesar de sua relativa dependência econômica em relação à Rússia, que lhe fornece cerca de 70% de seu petróleo e 90% de seu gás natural – produtos pelos quais a Ucrânia nem sempre pode pagar em dia, o que dá à Rússia grande margem para barganha e pressão –, ela escolheu o caminho do Ocidente.

Isso porque integrar-se à Europa representa para a Ucrânia a libertação de resquícios do período soviético e do totalitarismo: a consolidação de sua democracia. Mais até que isso, a integração é para a nação ucraniana uma questão de sobrevivência: a única via pela qual a Ucrânia pode assegurar sua identidade e sua existência independente e soberana, encontrando seu lugar entre os países europeus, como já haviam percebido seus primeiros nacionalistas.

Considerações finais

É possível que uma Ucrânia geopoliticamente neutra, que mantivesse o status quo pré-Euromaidan, satisfizesse a Rússia. Esse caminho, entretanto, já não é mais viável. Agora, a anexação das regiões do sudeste ucraniano à Rússia, ou ao menos o estabe-lecimento ali de um protetorado russo, parecem ser as únicas opções consideradas satisfatórias pela Rússia; mesmo um federa-lismo, que desse maior autonomia a essas regiões, não seria con-siderado suficiente.

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Cabe notar, porém, que a dinâmica por trás do padrão de centro/periferia indica que ações drásticas tomadas pela Rússia tendem a fazer não com que ela seja vista como uma força a ser reconhecida, mas sim como uma ameaça a ser rechaçada. Assim, é provável que a demonstração de poder em que consistem a ane-xação da Ucrânia e o apoio aos grupos separatistas das regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk levem a um ostracismo ainda mais acentuado da Rússia.

Não obstante, a mensagem transmitida por tais desafios à sobe-rania ucraniana é bastante clara: o Ocidente está de mãos atadas, já não pode dominar a Rússia, cujo poderio militar e arsenal nuclear, combinados à sua clara disposição de desafiar a qualquer preço a lógica centro/periferia a tornam, de certa forma, intocável.

Já que qualquer confrontação direta com a Rússia teria alto potencial explosivo, resta aos Estados Unidos e à Europa apenas o dispositivo das sanções econômicas e diplomáticas. Estas, a bem da verdade, jamais serão suficientes para mitigar as ambi-ções russas, pois não atingem seu cerne imaterial, calcado em sua identidade nacional e no desconforto existencial que dela emana.

A aparentemente eterna posição de periferia que o Ocidente relega à Rússia é equivocada e, por isso, perigosa. É bastante pos-sível que Sergei Lavrov, o chanceler russo, esteja certo quando declarou existir um “processo de diminuição das possibilidades do Ocidente histórico de desempenhar o papel-chave na economia e na política mundial”. (LAVROV, 2013, p.18)

Isto posto, a recusa europeia de reconhecer tal tendência, atri-buindo a países o indelével status de periferia em razão de dife-renças civilizacionais, é incúria. Já não se pode mais ignorar a verdade da emergência de diversos outros polos de poder.

A despeito das chances da Rússia renunciar a seu corrente empreendimento em território ucraniano serem apenas residuais, e por mais que os países do centro tenham poucas possibilidades de retaliação, são eles a única esperança para uma Ucrânia em risco eminente de desintegração.

Afinal, persiste uma possível via inexplorada para se apla-carem os conflitos na região – o de agora e os que ainda estão por vir: a quebra do padrão/centro periferia. Um Ocidente histórico que não mais coaja a Rússia à posição de periferia – na qual ela há muito não cabe –, deixa de alimentar esse ciclo que engendra reações radicais, inevitavelmente delineando conflitos. Mesmo

189189Hegemonia e identidade no conflito entre a Rússia e a Ucrânia

que esta seja uma solução menos do que ideal, uma vez que seus efeitos só poderiam ser observados a longo prazo, é presumível que seja a única que ainda se nos apresenta.

Ademais, seria prudente que o Ocidente prestasse mais atenção à natureza da atual guerra entra Rússia e Ucrânia. Isso porque seu estopim foram as manifestações ucranianas de cunho abertamente pró-UE, o que carrega um forte simbolismo no que tange os valores ocidentais e traz, por essa razão, grandes respon-sabilidades para a comunidade europeia, no sentido de apoiar e fomentar os ensejos que moveram tais protestos.

A força da ideia ucraniana já se prova desde seu princípio. Os nacionalistas da Ucrânia não são responsáveis apenas pela orga-nização dos eventos do Euromaidan: sua luta pela independência nacional já se estende por mais de dois séculos, e sua renúncia é tão pouco provável quanto a russa. Até que a soberania de seu país esteja assegurada e a Ucrânia integrado à Europa, sua luta deve continuar.

Referências

GREENFELD, Liah. Nacionalismo: cinco caminhos para a modernidade . Lisboa, Portugal: Publicações Europa-América, 1998.

LAVROV, Sergey. Filosofia da política externa russa. Vida Internacional, Digest 2013.

XII. Resenha

Autores

Adelson Vidal AlvesHistoriador, pós-graduado em História Contemporânea e editor do blog Luta democrática .

Silvio R. A. SalinasProfessor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo .

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Rui Facó: o homem e sua missão

Adelson Vidal Alves

Rui Facó foi um jornalista, escritor, intelectual e dirigente comunista. Relativamente desconhecido entre nós, até mesmo entre os atuais militantes da esquerda, recebeu

merecida atenção do também jornalista Luís-Sérgio Santos, que lhe dedicou esta bela e extensa biografia.

O livro não é só um relato de vida, o que em si já seria obriga-toriamente relevante, mas também um estudo profundo que envolve a trajetória de um grande pensador social e o contexto em que viveu, escreveu, militou e morreu. Um momento rico de nossa história, protagonizado pelo esforço valoroso de erguer por aqui uma esquerda combativa, representada, basicamente, pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro), a versão nacional de todo o movi-mento que se expandia a partir da revolução de 1917 na Rússia.

O trabalho de Luís-Sérgio é detalhista, indo além da figura pes-soal do biografado, alcançando amigos, parentes e adversários inte-lectuais, todos ganhando significativa atenção na pesquisa, o que, às vezes, faz o leitor perder o foco, tornando a leitura cansativa e dispersa. Ainda assim, o livro tem linguagem fácil e agradável, acessível a todos os interessados na vida do autor de Cangaceiros e fanáticos, assim como em todo o cenário político que o envolveu.

O primeiro capítulo traz minuciosa narrativa do acidente fatal que vitimou Facó, em 15 de março de 1963. A perigosa região dos Andes foi o lugar que abreviou a vida deste grande brasileiro. Foi ali que o Douglas DC-6B, da Companhia Lloyd Aéreo, se chocou contra as rochas do Peru, matando todos os seus 39 tripulantes,

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entre eles o nosso Rui. O traslado do corpo, assim como o enterro dos restos mortais carbonizados, ficaram por conta de Luiz Mario Gazzaneo, jornalista e militante do PCB, num processo que durou mais de um mês. No sepultamento estavam companheiros de par-tido, intelectuais, dirigentes políticos e grandes figuras da esquerda, como Luiz Carlos Prestes e Carlos Marighella.

Neste capítulo, outros personagens importantes, como o sau-doso Armênio Guedes, que nos deixou recentemente, recebem dedicada atenção do biógrafo, que tentou manter o cuidado de falar de Rui sempre em articulação com todos os homens e mulheres que participaram de sua vida, assim como com as várias publicações que dirigiu ou em que colaborou. Ponto importante, ainda, a ser ressaltado é a enigmática causa do acidente. Dentro da pesquisa, depoimentos e acontecimentos, como a chegada antecipada de agentes da CIA ao local do acidente, parecem sus-tentar a tese, nunca provada, de que a tragédia teria sido fruto de um atentado que não necessariamente visava Facó.

O segundo capítulo é destinado a contar a vida de Rui, com sua origem rural, que se inicia em 1913, em Beberibe, no litoral leste do Ceará. A preocupação está em apresentar a caminhada de vida do biografado, as intrigas familiares, seu perfil, seu humor, sua relação com muita gente. Com a competência de um autor atento, conhecemos detalhadamente o homem Facó, leitor com-pulsivo que sempre exigiu de seus próximos o mesmo apreço à leitura. Travamos contato com a figura do jovem que sonhou, assumiu escolhas, errou, militou, cresceu, ingressou nos estudos, formou-se como um sonhador, um utópico em questões de um país mais justo. Percebemos também a já citada prática do bió-grafo em se estender aos personagens que cercaram Rui, como o pai Américo Facó e o tio Gustavo Facó. Trata-se do capitulo que menos empolga os leitores sedentos por uma biografia mais clara e direta do protagonista. No entanto, guardando um pouco de paciência, é possível captar curiosidades interessantes, como a homenagem a Rui Barbosa feita por Américo por meio do nome dado ao filho.

O terceiro capítulo nos apresenta o homem público Rui Facó. Trata-se da parte política e historicamente mais rica da obra. Trazem-se à tona personagens importantes, como Astrojildo Pereira, um dos fundadores do PCB, publicações emblemáticas na vida comunista, como a revista Novos Rumos, assim como Brasil século XX, obra escrita pelo próprio Rui.

195195Rui Facó: o homem e sua missão

O biógrafo ainda faz um passeio agradável e penetrante por etapas importantes da história do Brasil contemporâneo, sobre-tudo o Estado Novo. Traz as posições fortes e polêmicas de Rui em meio a toda a confusão causada pelo famoso XX Congresso do PCUS, na União Soviética visitada por Rui. Podemos ver questio-namentos importantes sobre o comunismo oficial soviético, sem falar que neste momento vemos com clareza a principal preocu-pação teórica de Rui, que será até a morte a questão camponesa e seu papel revolucionário. Cangaceiros e fanáticos será sua grande consagração teórica. Pena que não pôde viver para ver a publi-cação de seu grande clássico.

Finalizando o terceiro capítulo, impossível não notar a apresen-tação de fragmentos do próprio Rui tratando da questão de Lam-pião e Padre Cícero. Este último, criticado ferozmente como um aliado cínico das classes dominantes – e, correndo o risco de trair a verdadeira posição de Facó, é possível arriscar que ele julgava o Padre “Ciço” tão somente um enganador dos pobres camponeses.

No capítulo quatro, o mais curto do livro, aborda-se a viagem de Rui a Moscou. Novamente o livro registra fatos históricos que envolveram o momento da vida de nosso biografado, como o epi-sódio da morte do ditador soviético Josef Stalin e também o já citado XX Congresso do PCUS. Revela-se um Rui que sente falta dos filhos e da companheira morta, lamentando-se a ausência de um relato pessoal de Facó sobre sua estada em Moscou, tratada como momento precioso de sua aprendizagem.

Encerrando o livro está a abordagem da vida de Rui em Novos Rumos, publicação que nasceu dos ventos democráticos que sopraram no PCB, então impactado pela valorosa “Declaração de Março de 1958”, que, por sua vez, refletia a “revisão” do comu-nismo histórico a partir das denúncias de Khruschev em 1956.

A publicação, que revelou jornalistas como Elio Gaspari, então um jovem de 17 anos, recebeu a contribuição de Rui Facó, tida como uma das mais competentes e diferenciadas, seja pela eru-dição, seja pelo equilíbrio político. Sua participação foi determi-nante para que o periódico se tornasse uma das expressões his-tóricas mais significativas da alta cultura da esquerda. Infelizmente, como todas as publicações desse tipo, Novos Rumos foi fechada pelo golpe civil-militar de 1964, obrigando editores e colaboradores a atuar na clandestinidade. Depois da circulação relativamente pacífica sob o governo Goulart, Novos Rumos teve o destino da grande maioria das iniciativas jornalísticas e acadê-

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micas que refletissem algum viés de esquerda, fosse comunista ou trabalhista.

Finalizando, o livro de Luís-Sérgio Santos tem todos os méritos por recuperar a vida exemplar e combativa de um homem convicto de suas ideias. Um pensador responsável e equilibrado, amante da cultura, um dirigente que sabia dirigir e servir como soldado da causa popular. Um verdadeiro intelectual orgânico das classes subalternas, para o usar o conceito gramsciano.

Deve-se, também, registrar o rico acervo de imagens e publica-ções históricas que o livro apresenta, o que faz dele uma excelente fonte de pesquisa não só para compreender e admirar um grande brasileiro, mas também para entender melhor a história do comu-nismo entre nós.

Sobre a obra: Rui Facó. Uma biografia: o homem e sua missão, de Luís-Sérgio Santos. Fortaleza: Omni, 2014. Coedição Brasília: Fundação Astrojildo Pereira. 382p.

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O cientista e o político – Mario Schenberg

Silvio R . A . Salinas

Este texto de Dina Lida Kinoshita é a biografia política de um militante notável, intelectual que se manteve fiel às perspec-tivas socialistas desde a sua juventude, e que foi também um

dos grandes cientistas brasileiros. Como é bem descrito no texto, Mario Schenberg foi homem de partido, participante ativo das lutas democráticas no país. Mas era um militante muito especial, pois foi um daqueles intelectuais de formação e interesse amplos, her-deiros do Renascimento e do Iluminismo, que fazem muita falta na cultura especializada do país contemporâneo. Além de físico teó-rico de trânsito internacional, com trabalhos de pesquisa científica admirados pelos seus pares, ele foi colecionador e crítico de arte, contribuindo para a carreira de diversos artistas brasileiros.

Mario Schenberg nasceu em Recife, filho de pais imigrantes europeus. Iniciou o curso universitário na antiga Escola de Enge-nharia de Recife, mas se transferiu para a Escola Politécnica de São Paulo em 1933. No ano seguinte foi fundada a Universidade de São Paulo, que trouxe ao país os primeiros professores estran-geiros para iniciar os cursos de ciências e humanidades da nova Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Essa deve ter sido uma época maravilhosa. A física do século XX já havia passado por enormes transformações, associadas à teoria da relatividade e à nova mecânica quântica, mas que ainda não tinham chegado ao país. Alguns alunos da Escola Politécnica se encantaram com as aulas de um físico excepcional, Gleb Wataghin, de origem italiana, e se transformaram nos fundadores da física moderna no Brasil. Mario Schenberg era o físico teórico desse grupo. A partir de 1936, quando publicou o seu primeiro trabalho científico numa revista italiana de muito prestígio, sobre problemas da “eletrodinâmica quântica”, Schenberg manteve uma produção científica respeita-díssima no Brasil e no exterior, que há pouco tempo foi recupe-rada em dois alentados volumes publicados pela Editora da Uni-versidade de São Paulo.

Estimulado pelo ambiente da universidade que se organizava, Schenberg fez longas viagens ao exterior. Ainda antes da Segunda Guerra, trabalhou em Roma, junto ao grupo de Enrico Fermi, um

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dos maiores físicos do século XX, mas também esteve na Suíça e na França. Essas viagens devem ter sido intelectualmente mar-cantes. Mais tarde ele mesmo relata que gostou muito da Itália, “onde me identifiquei com o povo e vi muita coisa sobre arte. Foi quando comecei a me interessar de novo pela arte. Em Paris, conheci Di Cavalcanti, que tinha um atelier junto com De Chirico. Foi muito interessante fazer essa viagem à Europa, antes da guerra. Paris antes da guerra era outra coisa. Foi um mundo que ainda pude conhecer e que desapareceu ...” Schenberg também viaja para os Estados Unidos, durante a Guerra, colaborando em dois trabalhos sobre a “evolução das estrelas”, problemas impor-tantes da área de astrofísica que ainda são muito lembrados. Num desses trabalhos, com George Gamow, aparece a proposta do “efeito Urca” para explicar a explosão estelar; as estrelas perdem muita energia, rapidamente, que é carregada pelos neutrinos pos-tulados por Fermi, da mesma maneira como grandes fortunas trocam de mão, rapidamente, nas mesas de jogo do Cassino da Urca ... Em 1944, esse cientista que “pensava nas estrelas” subs-titui Monteiro Lobato como paraninfo da turma de formandos da Faculdade de Filosofia da USP. Faz então um discurso, reprodu-zido nessa biografia, que é um bom resumo das preocupações da época, no final da Guerra, com amplas perspectivas democráticas para o mundo e para o país. Essas preocupações democráticas, abaladas pela “guerra fria”, vão ser uma constante nos artigos e pronunciamentos políticos de Mario Schenberg nos anos seguintes.

Um dos retratos mais fieis de Mario Schenberg foi traçado num poema do seu amigo Haroldo de Campos,

... o olhar transfinito do mário ... nos ensina ... a ponderar melhor a indecifrada ... equação cósmica ... na estante de mário ... física e poesia coexistem ... como asas de um pássaro – espaço curvo – ... colhidas pela têmpera absoluta de volpi...

O “espaço curvo ... como as asas de um pássaro” é uma lem-brança da geometria não euclidiana da relatividade, que dominou o trabalho de maturidade do professor Schenberg. Os alunos que visitavam a sua casa, para longas conversas sobre física e filo-sofia, como era muito comum nos anos 50 e 60, ou então para os indefectíveis “exames orais”, conheciam a “estante do Mario”. Os livros, sobre todos os assuntos, eram muito bem encadernados; ele até emprestava para consulta, mas recomendava sempre “muito cuidado”. Além dos livros, havia os quadros, quadros por toda a parte, empilhados e ocupando todo o espaço das paredes, de pintores nacionais como Volpi, que ele valorizava. Eu me

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lembro de um óleo de Pancetti, com um marinheiro de boina e a inscrição “anistia”.

O poema de Haroldo de Campos contém ainda uma referência ao “marxismo zen” de Mario Schenberg, que ... “é dialético ... e dialógico ... e deixa ver que a sabedoria ... pode ser tocável como uma planta ... que cresce das raízes e deita folhas ... e viça ... e logo se resolve numa flor de lótus”. Como está registrado em várias passagens dessa biografia, Schenberg é um marxista heterodoxo e antiestalinista, muito antes da morte de Stalin e do XX Con-gresso do PCUS. Schenberg sempre pertenceu à “alma civilista”, institucional, parlamentar e democrática, do comunismo brasi-leiro. Nos anos 1950, a USP acolheu David Bohm, notável físico americano, refugiado do maccartismo, que se lembrava de algumas conversas com Schenberg, especialmente das suas “lições de dialética hegeliana”...

Há várias questões que acompanharam a trajetória de Mario Schenberg e que aparecem muito bem retratadas nessa biografia. Ele sempre foi um defensor da pesquisa científica universitária, do desenvolvimento tecnológico nacional, e da educação de quali-dade. Assumindo uma cadeira na Assembleia Legislativa, defendeu a criação de cursos universitários no interior, inclusive no período noturno, apontando a importância da dedicação integral e das bolsas de estudo para os alunos habilitados (como ele tinha visto em Princeton, nos Estados Unidos). No início da década de 1960, como chefe do Departamento de Física na USP, contando com promessas de apoio federal, promoveu a duplicação de vagas no curso de física para que o país dispusesse de pessoal altamente qualificado. Intuindo a importância de novas áreas, como a física dos semicondutores, propôs a expansão dos laboratórios de pes-quisa, que eram muito restritos à física nuclear.

As questões da paz mundial o acompanharam desde a juven-tude. Em meados do século XX estava muito claro para Mario Schenberg que a organização de um mundo mais justo e democrá-tico passava pela luta contra as ameaças de um conflito nuclear. Ele então se torna um dos primeiros proponentes da colaboração pacífica entre capitalismo e comunismo, como está registrado em vários trechos dessa biografia. Também antevê um papel positivo da Igreja Católica em países como o Brasil, muito antes do Con-cílio Vaticano II. Mario Schenberg foi membro do Conselho Mun-dial da Paz; escreveu artigos e participou de debates a favor do desarmamento nuclear global, participou de forma ativa dos debates sobre a energia nuclear no Brasil, com muitas críticas a

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certas questões, como a política do tório e o acordo nuclear com a Alemanha. Chegou a antever a relevância da questão ambiental, que não era levada em consideração na sua época. Todos esses debates são abordados com propriedade nessa biografia política.

Este texto preenche uma lacuna importante, trazendo ao público mais jovem a visão política de um dos nossos grandes cientistas.

Sobre a obra: Mario Schenberg – O cientista e o político, de Dina Lida Kinoshita, Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2014.

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