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8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades
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ESTRATÉGIAS ESPACIAIS, RECONVERSÕES IDENTITÁRIAS E
NOVAS RURALIDADES EM TERRAS REMANESCENTES DE
QUILOMBOS
Renata Medeiros Paoliello
ABSTRACT: The aim of this paper is an analysis of social processes basedupon an ethnographic approach to small land tenants of Ribeira valley, SE ofSão Paulo state-Br, turned into “quilombolas” by the incidence of constitutionalarticle 68, which ascribes them the condition of remnants. The focus falls onsocial change derived from this new relation between land and ethnic identity,and how this new institutional mediation falls on current territorial strategies,considering answers shaped by these agents in this new context. Theseanswers, related to familiar or individual choices, vary, since staying on landuntil reinforced dynamics of exit, updating values and practices, according topresent social, economic and political relations, which blurs rural/urbanboundaries.
Introdução
A partir de uma etnografia de um conjunto de “bairros rurais”,distribuídos em dois municípios do Vale do Ribeira paulista – Eldorado e
Iporanga -, hoje definidos como remanescentes de quilombos1, o que se
pretende aqui é esboçar uma interpretação dos processos sociais que os vêm
re-configurando. E, com isto, levantar algumas questões pertinentes aos
estudos sobre o espaço rural brasileiro contemporâneo, especialmente no que
toca a um mapeamento de sua diversidade empírica, para sugerir, a partir dela,
algumas linhas de comparação em face de outros contextos, que tambémcompartilham, além da condição de remanescentes, a incidência das políticas
1 “Quilombo”, historicamente, é a área de terra ocupada por negros evadidos de sua condição escrava, oulibertos que receberam terra por doação, ou simplesmente se situaram em terra livre, abandonada oudevoluta, e que, ao longo do tempo, reconhecem-se, e são reconhecidos, como ligados de alguma forma aum grupo de parentes descendentes desses escravos. Compondo a expressão “remanescente dequilombo”, é ressemantizada e converte-se em categoria legal atribuível a um grupo, por meio de umtrâmite jurídico de reconhecimento, que assegura o direito à terra. Ao longo da estrada que liga Eldoradoa Iporanga, margeando o rio Ribeira à direita, localizam-se vários “bairros de pretos”: Sapatu, André
Lopes, Nhunguara, e Castelhano. E Ivaporunduva, Pedro Cubas, São Pedro e Pilões na margem esquerda,ao lado de outros, rio acima, já em direção ao alto Ribeira, que configuram particularmente a situaçãoaqui abordada.
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conservacionistas, bem como de interesses ligados à captação de recursos
hídricos.
O que se visa, especialmente, é uma reflexão sobre se e como uma
“ruralidade”, no contexto regional em foco, vem se processando e modificando,
e como ali se atualizam identidades. Esta trajetória se desenrola pontuada por
intervenções governamentais visando a regularização fundiária e a reforma
agrária, nos anos 80, pela recorrente possibilidade de construção de quatro
barragens no Ribeira2, e por restrições ambientalistas incidentes sobre as
formas usuais de apropriação e uso da terra e dos recursos naturais na “última
reserva de Mata Atlântica” do estado de São Paulo.
O contexto e as estratégias
O Vale do Ribeira, abrangendo o sudeste de São Paulo e o nordeste do
estado do Paraná, costuma ser apontado como região em crônico atraso
relativamente ao desenvolvimento agro-industrial paulista. Um dos fatores
pelos quais se costuma explicar esse descompasso, entre outros, relativos a
solo e clima, é a indefinição fundiária. Esta indefinição pode ser acompanhada
em um trajeto histórico no qual o Vale, já no século XIX, deixa de integrar-se à
economia cafeeira, sofrendo a drenagem do braço escravo para as regiões do
planalto, e o abandono de terras, dadas de sesmaria e/ou ocupadas por posse.
Este quadro conforma aquilo que alguns entendem como processo de
“caipirização”, ou seja, o refluxo para uma agricultura “de subsistência” ( Muller,
1980 ), itinerante, “de coivara”, ou queimada ( Petrone, 1961, 1966 ). Do ponto
de vista das relações sociais, esta prática se sustenta numa dinâmica
constante de re-apossamentos e de reconstituição de “pequenos’ patrimôniosterritoriais, em face da disponibilidade de terras. E se processa precisamente a
partir do período de vigência da Lei de Terras, de 1850, cujas exigências de
divisão geodésica e de registro de propriedades até então constituídas por
posse, nesta, como em outras regiões do país, não são acessíveis aos
pequenos sitiantes.
2
As barragens projetadas são quatro: Batatal, Funil, Itaoca e Tijuco Alto, envolvendo interesses daCompanhia Brasileira de Alumínio, empresa do Grupo Votorantim, voltados à mineração e à construçãocivil.
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Emerge daí um perfil de indefinição do que é propriedade particular ou
terra devoluta, e de imprecisão de divisas e de títulos, agravado pelo
dispositivo da primeira Constituição republicana, de 1891, que transfere o
devoluto aos estados, Bem como pelo decreto 19924, de 1931, que veta a
apropriação da terra devoluta por posse, e dá suporte à política de
discriminação de terras, em particular do governo do estado de São Paulo, por
meio de ações discriminatórias, de resto até hoje inconclusas.
A indefinição fundiária, no Vale, vem, assim, sendo alimentada desde os
anos 30, por uma política “patrimonialista” do governo estadual, embora se
tenha tentado promover a regularização ( GEAF/SEAF, 1987 ). Vem se
constituindo, portanto, como terreno fértil para a especulação imobiliária e para
conflitos por posse e domínio. Este é o cenário da intervenção para
regularização e reforma agrária, na segunda metade dos anos 80.
Esta intervenção logo se dilui, substituída pelo preservacionismo, em
face da mudança de prioridades na agenda política. A política ambientalista
atinge, entre outros, os pequenos posseiros e suas formas correntes de
apropriação e cultivo da terra, além de traçar as divisas de parques estaduais
principalmente sobre a terra devoluta, nas quais se localiza boa parte das
áreas de posse, impedindo sua expansão. Esta limitação à disponibilidade de
terra é significativa, mesmo nos casos de recuo das divisas de parques em
função do reconhecimento como remanescentes de quilombos 3.
Agrega-se ao risco implicado na política ambientalista, um outro,
projetado desde os anos 60, retomado e confrontado com ela: o da construção
das barragens, sob a justificativa da promoção do desenvolvimento regional e
da ampliação da oferta de postos de trabalho ( DAEE/BRASCONSULT, 1966;
Queiroz, 1967 ), conformando um quadro de disputas que envolve váriosagentes, movimentos sociais e redefinições de alianças.
Ao problema fundiário, nunca solucionado, sobrepõem-se então a
política ambientalista e os interesses envolvidos nas barragens. Em face desse
quadro, os moradores dos bairros que são o alvo direto dessas incidências –
em particular os sitiantes posseiros do médio e alto Ribeira – encontram no
3
. É o caso dos Parques Estaduais Intervales e Alto Ribeira, que fechou os fundos de bairros comoIvaporunduva, São Pedro e Galvão, à margem esquerda do Ribeira, entre os municípios de Eldorado eIporanga, bem como do Parque Estadual de Jacupiranga, que confina as àreas à margem direita do rio.
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artigo 68 da Constituição, quando podem invocá-lo a seu favor, a possibilidade
de assegurarem seus patrimônios territoriais, compondo estratégias jurídico-
políticas de reafirmação de um direito à terra.
Este direito é o que uma etnografia permite entender como
historicamente construído, oriundo do apossamento, da abertura da mata ao
cultivo, que constitui a condição de sitiante, a autonomia de “dono”. “Posseiro”,
nesse sentido, é categoria que atualiza, nos contextos mais recentes de
disputa, “dono”, fundada no ato que inaugura o patrimônio, exprimindo no
espaço e no tempo, pelo parentesco e pela herança, o vínculo familiar, não só
referido a conjugalidade e filiação, mas também a uma genealogia bilateral que
pode assegurar direitos em outros sítios e bairros. Esta é a rede que constitui
os bairros e seus conjuntos, conformando as possibilidades de trânsito entre
um e outro. A condição de dono, e de sucessor, que deriva dessa rede, define
antes de tudo um lugar social que ultrapassa o local, uma identidade que se
projeta na vida pública, nas cidades, na cena política. Não por outro motivo,
mais recentemente, a alegação do direito possessório fundado nessas relações
e projetada nos planos jurídico e político, manifesta-se como um valor forte na
orientação de estratégias em situações de conflito ( Paoliello, 1998; 1999 ).
Esses aspectos, que se manifestam nos remanescentes, são
compartilhados com outros, não remanescentes, incluindo, além da condição
possessória, formas organizativas relativas ao parentesco, à sociabilidade,
crenças, vínculos extra-bairro, mobilidade territorial e práticas de cultivo, entre
outras. Embora manifestem uma gama de origens e arranjos distintos, um traço
é comum: o direito de posse é concebido como individualizado na pessoa do
“dono”, que, ou abriu a mata, fundando o direito, ou o recebeu por compra ou
herança. E isto mesmo nas áreas de quilombos, em que a pertença a um grupode parentes pode definir um “exo-esqueleto” territorial que enquadra direitos
específicos de uso e apropriação.
Em face desse ethos , a presença de interesses ligados às barragens,
por um lado, e ao ambientalismo, por outro, surge como ameaça à expectativa,
recorrentemente frustrada, do reconhecimento do direito à terra, vindo do
apossamento, da abertura da mata ao cultivo, que constitui a condição de
sitiante, a autonomia de “dono”, transmissível aos herdeiros.
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No entanto, um aspecto importante que estes contextos propiciam
destacar é o de que o vínculo com uma parcela fixa de terra não é tão decisivo
quanto em outros contextos rurais, mesmo em face da recente restrição à
disponibilidade de terras na região. Estudos como os de Queiroz ( 1973a;
1973b ) e Candido ( 1979 ) permitem relacionar esse aspecto à mobilidade
histórica de um campesinato autônomo, para o qual ela é um fator decisivo na
incorporação da terra às relações sociais, a princípio como patrimônio. É esta
mobilidade que se atualiza, abrindo possibilidades de trânsitos, retornos e
fundações de novos sítios e bairros, sustentados pelas redes de parentesco
que se projetam no espaço, constituindo conjuntos de bairros, à medida que,
para o recém-aberto, chamam-se os parentes para constituírem vizinhanças.
Estas dinâmicas se conformam, assim, em redes móveis, mais importantes que
a terra, ela própria móvel, sendo o parentesco o instrumento de sua reposição.
As práticas de movimentação, orientadas para a reposição dos
patrimônios territoriais, seja em locais já estabelecidos, seja pela abertura de
novos espaços, favorecem estratégias diversas e recorrentes de atualização da
condição de sitiantes. Inclui-se aí a destinação dos patrimônios a reserva de
valor, para eventualmente serem revertidos em dinheiro, para que se adquira
terra em outro local, mais terra, ou mesmo moradia urbana, quando a escolha é
a de saída, total ou parcial, da terra. Nas situações mais recentes, e
crescentes, de quase ausência de alternativas de produção e de baixa oferta
de trabalho, e de risco de fechamento da terra, procuram-se redefinir
estratégias de acesso a ela, acionando-se uma gama de possibilidades que
essa menor fixação e a mobilidade propiciam: novos apossamentos, compras,
arrendamentos, bem como a reivindicação de um direito como remanescente
de quilombo, podendo-se sugerir que aí opera um habitus aberto à mudança.Esses processos levam a repensar os sentidos atribuídos à terra.
Patrimônio herdável, mas também divisível e negociável, certamente um capital
simbólico, já que é o atributo de “dono”, pode tornar-se reserva de valor. No
limite, sua venda assegura a passagem à vida urbana, quando este é o
caminho escolhido. A terra-patimônio pode ser re-significada sob todas estas
modalidades, em função das quais uma gama variada de arranjos pode ser
acionada. E é aí que o direito a ela pode se converter em demanda de inserçãonos campos jurídico e político.
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Na situação presente, focalizar as possíveis reconstruções de uma
ruralidade, a partir de tais mecanismos e estratégias, implica em considerar a
variedade de arranjos para fazer face às dificuldades produtivas e ao vínculo
não legalizado com a terra, cuja precariedade é percebida. Em particular diante
das incertezas quanto ao futuro do patrimônio, que conduzem a mudanças de
expectativas e projetos, especialmente no que toca ao destino das novas
gerações. Formulam-se nesta situação, estratégias familiares, em particular as
voltadas ao trabalho não agrícola, e/ou fora do sítio ou bairro, para que se
obtenham ingressos monetários que assegurem a continuidade desses
patrimônios, re-significados, e freqüentemente destinado, hoje, a moradia.
Nesse sentido, devem-se levar em conta tanto os aspectos
compartilhados entre os remanescentes e os não remanescentes - quais
sejam, a condição possessória e as formas organizativas relativas ao
parentesco, à sociabilidade, à mobilidade territorial, aos vínculos extra-bairro e
a práticas político-culturais orientadas por um ethos cujo núcleo é o
reconhecimento do direito à condição de “dono” de um patrimônio territorial -
como aqueles específicos aos remanescentes. Tendo em vista que uma
identidade quilombola é ali acionada estrategicamente em face da possibilidade
de permanência assegurada por um instrumento legal, cabe refletir a respeito
de como uma ruralidade pode assumir, nesses contextos, inflexões
particulares. Além disso, apresentam alguns diferenciais quanto a suas origens,
seus arranjos, e a situações mais recentes de risco de perda dos patrimônios e
de intervenção estatal. São estes aspectos que se visa sistematizar, levando
em conta a incorporação de uma identidade estratégica e seus trajetos. No
momento reconhecidos como remanescentes de quilombos, ou em vias de o
serem, os moradores dos bairros se articulam ao cenário macro-político,opondo-se às barragens, que atingiriam principalmente suas áreas de cultivo, e
às interdições ambientais, que inviabilizam o uso dos recursos e fecham as
áreas de expansão com as divisas de parques.
Por outro lado, se no presente ganha força a avaliação negativa da
implantação das barragens, porque o risco de perda da terra sem indenização
se sobrepõe ao discurso do desenvolvimento e da oferta de emprego, com
relação ao ambientalismo, uma primeira hostilidade agora parece abrandada:os ecologistas podem ser aliados contra as barragens, e as atividades ligadas
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ao eco-turismo surgem como possibilidades que não atingem o direito ao
patrimônio. Isto parece dever-se a um momento mais confortável relativamente
ao reconhecimento como remanescente, que reforça a oposição às barragens,
e no limite viabiliza exigir indenização pela terra inundada. Como também,
diante de condições reprodutivas que refletem a crise por que passa o principal
produto comercial da região – a banana -, abre nova perspectiva de atividade
rentável, fundada justamente no direito a um patrimônio que ultrapassa o
estritamente territorial, comportando dimensões culturais que podem funcionar
como capital simbólico no circuito eco-turístico.
Proposta de abordagem
Em face de tais limites e desafios quanto a condições produtivas,
situação fundiária e políticas públicas, a pluriatividade vem se constituindo
como um aporte decisivo, integrando-se a redes de relações que o parentesco
prefigura, mas que o ultrapassam e englobam, levando a reconsiderar as
especificidades do espaço rural, e indagar, do ponto de vista das estratégias
familiares e individuais, e das reformulações identitárias, a respeito de como se
atualiza ali uma ruralidade, envolvendo aspectos não territorializados das
dinâmicas localizadas, diante desse contexto, em que múltiplas experiências,
estratégias e identidades se organizam, e se entrecruzam com uma identidade
político-territorial decisiva para a manutenção da terra. Trata-se de acompanhar
os possíveis desdobramentos dessa experiência, qual é o sentido da terra no
presente, o que significa ser, nessas circunstâncias, remanescente de
quilombo, e quais as expectativas e projetos envolvidos nessa escolha.
Assim, o destaque à tendência à organização familiar pluriativa, comofenômeno marcante no espaço rural contemporâneo ( Schneider: 2003 ),
permite abordar as identidades formuladas pelos agentes sociais enquanto
relacionais e políticas ( Cunha: 1986 ), bem como ficar atento a uma
flexibilidade de suas categorias culturais e de suas práticas, favorável a ajustes
que, mais do que orientados para a reafirmação de um modo de vida particular,
procuram reconstruir um espaço social de existência que demanda inclusão
jurídica e política, através do reconhecimento de direitos.
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A pluriatividade, portanto, é o fenômeno privilegiado como ponto de
partida revelador de uma dinâmica de redes cujo núcleo é a família, unidade
que procura agregar terra e trabalho, mas que também se move em relação a
níveis crescentemente ampliados de parentesco e de atividades, culturais,
políticas e econômicas. São estas redes de relações que se considera como
propícias a uma visão sistemática dos processos econômicos, sociais, culturais
e políticos em curso neste espaço rural. Pode-se, assim, deixar de lado a pré-
construção que opõe rural e urbano, e dificulta a apreensão de interações cujo
epicentro é o espaço urbano ( Garcia & Grynzpan: 2002 ). Em busca dessas
redes, a observação recai sobre os indivíduos e seus movimentos
atravessando fronteiras entre espaços, em direção a campos de ação
crescentemente ampliados, para apanhar a organização de seu fluxo (
Vincent:1987 ).
O foco sobre as famílias, assim, não prioriza o aspecto de sua fixação
em uma determinada unidade territorial, pois, para o contexto em questão, a
mobilidade territorial é a tônica. Ela pode ser interpretada como um habitus
ligado à posse, fundamental para a autonomia, valor relevante do ponto de
vista desses agentes. A mobilidade, como vimos, é o instrumento constitutivo e
reconstitutivo dos patrimônios territoriais, desdobrando no espaço físico as
redes de parentesco. Mas também é suportada por outras redes de atuação,
complementares, que se projetam a partir do âmbito do parentesco, dirigindo-
se a outros níveis de relações sociais, agregando-lhe uma dimensão política,
na medida em que a partir dele se definem direitos, e, portanto, tomadas de
posição frente a outros grupos e interesses, ao mercado e ao Estado. Assim, a
noção analítica de que lanço mão para pensar as relações e processos sob
observação é a de “condição” ( Bourdieu: 1962;1987 ), tal como pode serpensada para o contexto presente destes remanescentes.
Entre os agentes em pauta, esta condição, do ponto de vista histórico,
carrega uma auto-representação como possuidores de um direito à terra,
constituído principalmente porque têm o papel de abri-la ao cultivo . Direito este
a ser reconhecido e legitimado, assegurando-lhes um lugar numa estrutura de
relações, pelo que sua identidade manifesta seu cunho político. Como visto,
esta condição se atualiza, orienta-se por um senso prático ( Bourdieu: 1980 ).O que significa que incorpora novas determinantes e orientações estratégicas
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diante de mudanças, re-significando práticas e representações. Tal abordagem,
supõe-se, propicia a análise das estratégias do habitus , de seus desajustes e
reajustes em face de condições objetivas que se modificam.
Assim, o que se procura traçar é um perfil em movimento dos sitiantes
posseiros do Vale do Ribeira, em particular daqueles que lançam mão de uma
identidade quilombola, articulada a outras, conformando distintas estratégias de
ingresso na arena política, buscando ativamente a defesa de seus múltiplos
interesses, na medida das possibilidades abertas nas suas redes de relações,
que perpassam agências estatais, incluindo órgãos jurídico-legais, partidos
políticos, organizações religiosas, movimentos sociais, etc. Tais identidades e
estratégias, como vimos, adquirem seus sentidos por referência a expectativas,
projetos e arranjos familiares, orientados por possibilidades e limites variáveis
no que toca à produção, às condições de mercado, à disponibilidade de terra, à
oferta de trabalho, às perspectivas de destinação das novas gerações à vida
urbana. Estas novas gerações, em particular, ao circularem para fora dos
“bairros” para estudar e trabalhar, são significativas nas tomadas de decisão e
na organização dos fluxos familiares, na reorientação de suas práticas visando
atualizar condições de “reprodução” das unidades familiares – que não se
configuram estritamente como “unidades de produção e consumo” –
incorporando valores ”jovens”, veiculados no âmbito de suas relações extra-
locais, bem como pelo influxo das dinâmicas culturais contemporâneas que
lhes chegam através dos meios de comunicação. Assim, suas demandas,
possibilidades e limites, especialmente quanto à escolha da atividade agrícola,
e da permanência na terra, compõem decisivamente a incorporação de novos
valores e práticas que estes contextos vêm acionando.
Considerando esse quadro, e o conjunto de estratégias que ocaracteriza, com o objetivo de problematizar a discussão em torno dos
conceitos aproximando-a do empírico, cabe retomar brevemente o traço
distintivo dessas situações, a tendência a uma organização familiar pluriativa.
De saída, é preciso, para justificar a escolha de um foco voltado à família,
portanto a sua relação com a “unidade de produção e consumo”, que também é
o “sítio”, dentro do “bairro”, o patrimônio fundado ou herdado, ressaltar a
dinâmica presente, marcada pela dificuldade produtiva e de mercado, pelalimitação da terra disponível, e da atividade agrícola, o que em geral vem
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transformando as unidades em local de moradia. Em suma, à medida que
produção e consumo atravessam um momento crítico, estratégias alternativas
entram em ação, reconformando o que se está reconhecendo como
pluriatividade.
Não se pode esquecer de assinalar aqui o aspecto comunitário dessas
situações de “bairros”, como importantes análises do meio rural brasileiro
destacam ( Candido: 1979; Queiroz: 1973; Woortmann: 1983, 1995). As
práticas territoriais, aqui, como em outras situações no campo brasileiro,
combinam apropriação privada familiar e direitos de uso comum da terra e dos
recursos, que emolduram a apropriação familiar na medida do pertencimento
ao grupo. No entanto, no caso do Vale, percebe-se uma tendência à
individualização dos sítios, que se expandem a partir de um núcleo central,
como patrimônios de famílias conjugais que avançam para o sertão, para o
“comum”, na medida em que a divisão hereditária se inviabiliza na área
originária dos “bairros”, e que os limites da terra disponível são difusos. É este
conjunto de práticas que constitui concretamente a mobilidade, na forma de
uma rede móvel que multiplica os bairros, estabelecendo a complementaridade
bairro/sítio, que viabiliza o apossamento e funda o direito de quem abriu a terra
( Paoliello: 1999 ). No caso dos territórios negros, essa dinâmica opera
igualmente, mas se especifica, em particular hoje, na vigência do artigo 68,
pela referência a uma terra ancestral de um grupo de parentes ( Carvalho:
2006 ), que possibilita fazer frente às pressões sobre as áreas complementares
de extração de recursos naturais e de expansão dos roçados e sítios.
Porém, considerando essa tendência corrente à autonomização e à
individualização do patrimônio familiar, que marca esse contexto de
campesinato livre e posseiro, bem como o momento presente, em quesimultaneamente a terra se restringe, a produção agrícola se enfraquece, e as
alternativas ocupacionais não deixam de se oferecer, embora escassas, o que
se vê é uma rarefação dos laços comunitários. Isto em virtude de uma
avaliação desfavorável dos custos das formas tradicionais de cooperação, da
possibilidade de compra de trabalho eventual e, acima de tudo, da
possibilidade de assalariamento complementar ou pleno, inclusive não agrícola,
e de outras atividades, como o pequeno comércio, serviços, emprego público,etc.
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Tudo isto conduz a uma reformulação das práticas e orientações
culturais, reforçando estratégias de individualização e de organização interna
às famílias. Mais do que isto, o declínio da atividade agrícola leva a uma re-
significação do patrimônio, que não mais é visto apenas como lugar de trabalho
e de vida. Como já dito, novos sentidos se sobrepõem, e ele se torna também
local de moradia, objeto de valorização econômica, e de um direito que
comporta a possibilidade de reconhecimento legal. A referência aos sentidos
tradicionais, reconstruídos na memória, converte-se então em demanda
política, de participação mais inclusiva, e ponto de articulação da nova
identidade, que sustenta direitos específicos.
Cabe assim entender como a reposição do vínculo entre terra e trabalho,
que essa identidade reivindica, alimenta a recomposição de uma ruralidade
que, ao mesmo tempo, opera segundo estratégias que incorporam a atividade
não agrícola, podendo-se inclusive lançar mão da referência ao patrimônio
como bem de consumo cultural revestido de privilégios jurídicos, para a
permanência na terra, cujo sentido se modifica.
O foco na família e na orientação pluriativa, aí, faz-se relevante para
abordar essa dinâmica, econômica, cultural, política e territorial – e território
aqui agrega todas essas dimensões -, e não pretende assumir uma feição
estritamente econômica na abordagem do vínculo entre terra, trabalho e
família. Como é possível perceber, tal enfoque não é suficiente para o
entendimento dos processos sociais que estes contextos acionam.
Especialmente, trata-se de entender o sentido das práticas pluriativas como
meio de repor um vínculo com o patrimônio, territorial e cultural ( Wanderley:
2001, 35 ), mas agora re-significado.
Resta, contudo, relembrar um aspecto das re-significações dessepatrimônio no contexto dos quilombos, tensas, na medida em que opõem
patrimônios familiares e patrimônio coletivo, em face do dispositivo legal que
impõe a titulação do conjunto territorial em nome das associações de
moradores, e torna a terra inalienável 4. E ressaltar que a observação de
estratégias familiares de organização do fluxo de pessoas, ao longo de redes
4
. De acordo com o artigo 2º da Lei estadual nº 9757/97, o título de legitimação de posse deve serexpedido a cada associação representante da coletividade remanescente, com obrigatória inserção decláusula de inalienabilidade ( grifos meus )
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que atravessam espaços sociais, é central para que se possa pensar se e
como se recompõe um rural. Bem como a incidência destas reorganizações de
redes e fluxos sobre dinâmicas territoriais que, no caso dos quilombos,
atualizam tensões internas, relativas a direitos especificados e distintos, à
sucessão hereditária ( Carvalho: 2006 ) e à titulação da “terra-território” em
nome de uma associação, e de modo inalienável, além de não se conformar
como título de propriedade. Como hipótese, constitui-se, aí, um mecanismo de
“exclusão” de herdeiros, e de reforço do trânsito de pessoas para atividades
assalariadas e/ou não agrícolas, de reativação de práticas de apossamento, de
migrações, e mesmo de reorientação dos valores familiares e de pertencimento
ao grupo de parentes.
A contribuição pretendida deste enfoque está no destaque que dá à
família , mais do que à comunidade, como estrutura de inserção no contexto
englobante contemporâneo, o que, como já comentado acima, constitui uma
linha de força nas situações de quilombo aqui focalizadas, como a organização
pluriativa e a dinâmica de redes que ela alimenta indicam, apontando para as
formas de mediação que se reconfiguram no presente, e que não passam mais
prioritariamente pelos poderes locais, pelos centros urbanos mais próximos. As
estruturas mediadoras, hoje, estão em um plano mais macro, relacionado à
produção, à ordenação fundiária, ao mercado, à política, aos valores que se
incorporam, etc., como nota Schneider (: 2003 ). Tenha-se em conta o próprio
efeito do dispositivo constitucional, e da presença efetiva das agências estatais
de diversos escalões, bem como de agências não governamentais, incluindo aí
as ambientais, e os movimentos anti-barragens, nas reafirmações locais de um
direito à terra.
São essas mesmas mediações que apontam para uma apreensão dearranjos em movimento. Para as situações em questão, isto se orienta para a
análise de trajetórias de dissolução e/ou de recomposição de um rural. E não
só as mediações sugerem uma abordagem processual, mas também aquela
mesma “lógica familiar”, ou um habitus de mobilidade ao longo de redes – de
parentesco, comerciais, políticas e territoriais – já inscritas numa “tradição” que
se pode considerar aberta à mudança.
Com isto não se quer negar a vigência de um ethos “camponês” emqualquer momento dessa trajetória, ou fechar os olhos para os momentos
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dramáticos em que estes contextos sofreram rupturas, mas apenas sugerir que
este ethos – que afinal não necessariamente exclui, aqui como alhures,
atividades variadas e não agrícolas - agrega uma flexibilidade decisiva para as
atualizações de um “modo de vida”, comportando inclusive riscos à sua
permanência, acoplados às próprias escolhas familiares que procuram afastar
o risco de perda da terra e da condição, e que podem ser considerados como
efeitos da incorporação das mudanças nos “próprios termos” ( Sahlins: 1990 )
desse “modo de vida”. E que esta flexibilidade, portanto, liga-se aos
dinamismos que articulam esses contextos ao contexto mais geral.
São essas dinâmicas que a orientação pluriativa propicia acompanhar,
na medida em que opera, como visto, compondo estratégias de permanência
na terra, reforçando a reivindicação territorial, que se viabiliza pelo
reconhecimento como remanescente de quilombo, e projetando como possível
a recomposição de um rural: pode-se ficar no local, ou reclamar um direito a
ele, na medida da oferta de atividades que tornem viável a vida ali, de acordo
com critérios que não são mais aqueles estritamente inscritos numa “tradição”.
A partir dessas estratégias, fica visível a re-significação do patrimônio territorial,
que condensa hoje, como antes, as dimensões econômica, política e cultural
de uma experiência social, mas que sobrepõe a ela novos sentidos, na medida
em que, envolvidos em um espaço de relações ampliado e em seus processos,
seus agentes incorporam novos valores e práticas, pelos quais orientam suas
escolhas e fazem sua história, redefinindo sua condição.
Ruralidade e novas dinâmicas territoriais
Indagar sobre a reconstrução de uma ruralidade a partir dos contextosde sitiantes posseiros do Ribeira implica situar o tema nesse universo concreto
de significações e de práticas que se orienta, dentro de seus possíveis, para
atualizar um espaço de existência, em particular na condição de remanescente
de quilombo. Se, nesses processos, uma ruralidade pode estar sendo reposta,
isto provavelmente acontece informado por aquele “modelo móvel” de vida
social, de trânsito através de redes de relações, estratégico para esses
agentes, na sua incorporação localizada de transformações econômicas,
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políticas, culturais e técnicas. Acompanhar mais de perto este movimento
permite sopesar os limites e possibilidades dessas estratégias.
Nunca é demais ressaltar que o mote dessa movimentação é repor
condições de existência, é buscar saídas para as dificuldades reprodutivas, e
para a precariedade do vínculo não legalizado com a terra: há outros canais
que não os estritamente políticos e jurídicos, para organizar a vida e minimizar
o risco de perda do patrimônio, ou a ausência de chance para recontruí-lo: a
busca de atividades complementares para o ingresso de renda monetária que
favoreça a permanência na terra.
Esta está sendo abordada aqui, na medida em que, como dito antes, ela
reforça as situações territorializadas, mas também pode mostrar caminhos de
saída da terra para muitos. Em vários casos, é também reveladora de projetos
de futuro. Olha-se, assim, para as estratégias familiares e individuais pelas
quais a movimentação de pessoas, particularmente mulheres, jovens e não
possuidores de terras, organiza-se nas redes de relações, procurando-se
perceber se e como ali se delineiam projetos, particularmente para as novas
gerações, em função de avaliações quanto às possibilidades presentes, no que
toca a educação, acesso à terra, produção, oferta de trabalho, participação
política, ingresso na esfera pública, etc., e em que medida isto altera as
próprias relações no âmbito privado, familiar.
Isto certamente produz efeitos na dinâmica territorial, inclusive excluindo
herdeiros e repondo a mobilidade em outros locais, num momento crítico da
trajetória desses agentes para os quais esta mobilidade vem sendo central. Em
suma, esses efeitos modificam a sucessão patrimonial, exigindo a definição de
quem sai e quem permanece, e produzindo também outras formas de
mobilidade, de incorporação de outros patrimônios, territoriais ou nãoterritoriais, de capitais simbólicos que redefinem expectativas e projetos,
inclusive quanto à condição de produtores no campo.
Do ponto de vista das estratégias familiares, a partir das quais as
diferentes categorias de agentes delineiam seus trajetos, tudo depende do grau
de incerteza quanto ao futuro do patrimônio, estreitamente ligada à expectativa
quanto ao futuro dos filhos. Em função das dificuldades reprodutivas e da
exigüidade da terra a ser partilhada, o trabalho fora da unidade se delineiacomo alternativa. Um cálculo orienta a ação, procurando-se sempre
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redimensionar recursos, tanto destinados ao consumo quanto a um projeto de
acumulação, ainda que parca. Este cálculo não se restringe aos recursos
materiais. Capitais simbólicos, como educação, inserção política, etc, são
valorizados. O que se almeja é contornar o fechamento efetivo da terra,
inevitável, mas ainda adiável, quando se consegue utilizar estrategicamente os
patrimônios, para produzir, morar ou negociar, nos mercados de terras, no
“político” e no de bens culturais.
O reconhecimento como remanescente, como já mencionado, altera
algumas dessas dinâmicas. Em particular a negociação de terras, que se torna
problemática em face do reconhecimento como remanescente, dada a
inalienabilidade que este impõe, estimulando então a conversão do patrimônio
em capital cultural e político. Ela até aqui ocorria, envolvendo tensões internas
quanto a direitos diferenciados atribuídos às famílias, e introduziu estranhos,
“fazendeiros”, que se aproveitaram da indefinição de divisas geodésicas para
promover “grilagens”5,. São os casos do Nhunguara ( Paoliello: 1999 ) e do
São Pedro ( Carvalho: 2006 ), por exemplo. O Nhunguara já havia perdido
parte de sua área para o fazendeiro a quem um de seus moradores vendeu
uma parcela 6- além da grande parte que perde para o Parque Estadual de
Jacupiranga. Os bairros à margem esquerda do rio, além da terra perdida para
o fazendeiro, perdem uma significativa extensão para o Intervales e para o
Parque Estadual do Alto Ribeira, embora, no caso destes, as divisas dos
parques tenham sido parcialmente recuadas em face do reconhecimento da
condição quilombola 7. Também se modifica a prática da abertura de novas
roças e sítios, bem como as de extração de recursos naturais, porque a terra-
território é demarcada, além de ficar confinada pelas áreas de parques que a
circundam, e sujeita às normas de preservação ambiental.
5 . A “grilagem” é a prática pela qual alguém com interesses especulativos e/ou de grande exploraçãocomercial, adquire direitos de posse sobre parcela imprecisamente delimitada, e os legaliza judicialmente,revestindo-os do caráter de título dominial sobre uma área extensa, “abraçando” direitos de outrosmoradores. É prática corrente de expropriação de pequenos possuidores e de constituição de propriedadetitulada, no campo brasileiro.6 . A reivindicação dominial deste fazendeiro é contestada pelo estado, que considera sua área pertencenteao parque.7 . O PETAR – Parque Estadual do Alto Ribeira – produz um grande impacto nas áreas rurais do
município de Iporanga, incidindo sobre as condições produtivas e a oferta de trabalho, e gerando umaqueda demográfica acentuada, na medida em que as pessoas têm deixado o município em busca deemprego.
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Essas duas modificações se juntam ao fato8 de que a titulação da terra
impõe restrições a sua apropriação e a seu uso, e, como visto, remontam-se às
restrições ambientais incidentes não só sobre as práticas extrativas e de cultivo
como às derrubadas para formação de novas roças e sítios. Demarcar a terra-
território, e prescrever a natureza coletiva e inalienável do direito que a recobre,
ao lado da proteção e da estabilidade que introduz, restringe e fixa a extensão
territorial e fecha a possibilidade de expansão. Traz à tona, ainda, tensões
internas quanto aos direitos diferenciados de uso e apropriação familiar frente
ao comum, que é a moldura desses direitos específicos. Esse conjunto de
limitações pode produzir o que já foi apontado acima, um processo de
“exclusão” de alguns, para os quais a terra não será suficiente.
Nesse processo, certamente se formularão práticas compensatórias, de
resto já vigentes, relativas a direitos de herdeiros, tais como ajuda para a
continuidade dos estudos9, ou para aquisição de moradia ou terra em outro
local, conformando mesmo trajetos de re-territorialização10. Mas também se
reforçarão estratégias familiares e individuais, incluindo o abandono da
atividade agrícola e da terra. Por outro lado, também arranjos no sentido de
reforço a uma organização pluriativa, em que alguns permanecerão morando
na unidade familiar, contribuindo com ingressos oriundos de suas variadas
atividades, como também já acontece. Mais importante, o que essa
compensação pode oferecer aos “deserdados” é justamente o capital simbólico
que as redes de relações em que as famílias se inserem significam, em termos
de oportunidades de circulação e de trabalho.
Em síntese, o que esta mudança introduzida por um instrumento legal
pode acarretar é o reforço a esta permeabilidade de fronteiras entre o rural e o
urbano, que as estratégias pluriativas, e a inserção em camposcrescentemente ampliados de atuação política, social e cultural já vêm
trazendo. E isto tanto no âmbito de quem se dirige ao espaço urbano, como no
de quem permanece no espaço rural, e converte seu patrimônio em bem de
consumo cultural, uma das possibilidades que se abrem para esses
8 . ver a nota 4, acima.9 . Nos bairros, há ensino fundamental. Para o ensino médio, os jovens se dirigem a núcleos urbanospróximos, ou às cidades.
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contextos11, ao incorporarem uma identidade quilombola, e ao valorizarem
seus saberes tradicionais relativos a recursos naturais, conferindo-lhes
sentidos e usos urbanos, ou, melhor dizendo, orientados para dinâmicas
contemporâneas mais gerais, no que toca ao mercado e ao revestimento legal
que abre espaço às diferenças, e que tende a se impor em escala mundial ao
Estado.
Do ponto de vista das estratégias descritas acima, foi possível
reconstruir alguns caminhos pelos quais se atualiza o que está sendo referido
aqui como uma condição “camponesa”; ou, de como se recompõe uma
ruralidade nesse contexto concreto, envolvendo dinâmicas não territorializadas:
a desvinculação, total ou parcial, de membros das famílias relativamente ao
patrimônio, pela limitação das áreas de expansão, pela divisão hereditária, pelo
acesso ao assalariamento e aos serviços, à atividade não agrícola, à educação
e ao emprego urbano, abertos especialmente para as novas gerações, reforça
a incorporação de valores e práticas urbanos, ampliando as referências
culturais. Tudo isto, pode-se perceber, oscila em função das conjunturas do
mercado, e das variações na agenda político-institucional.
No que toca às dinâmicas de reforço à territorialização, as estratégias
ligadas à condição de remanescentes de quilombos são centrais, e encontram
respaldo nas estruturas macro-políticas em que as situações específicas se
inserem. E que, como já dito, definem orientações variáveis quanto ao
reconhecimento e à titulação das terras, mas fixam numa forma legal o
conteúdo do direito titulado, produzindo inflexões restritivas às dinâmicas
territoriais localizadas e exclusões na sucessão territorial. Isto tem um efeito de
retorno e de reforço sobre as dinâmicas de desterritorialização, na medida em
que alimenta trânsitos em direção a campos de ação ampliados para além dolocal e da atividade agrícola, sem, no entanto, eliminar este nível de
experiência. Com efeito, as atividades exercidas nesses campos revertem ao
território e aos patrimônios, na forma de renda e de aportes culturais e
políticos, que fortalecem a permanência na terra,.
10 . Re-territorializações, contudo, provavelmente não escaparão das dinâmicas do “espaço rural”contemporâneo, repondo-se, nos novos locais, os desafios e estratégias que aqui se está buscandodelinear.
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Em suma, são estes os dinamismos pelos quais os sitiantes
remanescentes de quilombos do vale do Ribeira atualizam as redes sociais
que lhes são vitais na reconstrução de seu espaço de existência. E o fazem
inserindo-se, hoje, em circuitos ampliados, econômicos, políticos e culturais.
Pode-se dizer que estes dinamismos pautam-se pela complementaridade entre
dois conjuntos de estratégias. Um primeiro, alicerçado no reconhecimento legal
da condição de remanescente, pelo que se atribuem uma identidade
quilombola, reafirmando, em um novo contexto, o caráter “tradicional” de seu
“modo de vida”, mas que leva a alterações nas formas até então correntes de
incorporação de terras às relações sociais, de produção e organização do
trabalho e de transmissão sucessória de seus patrimônios territoriais. E outro,
que se implementa a partir dessas mudanças e das “exclusões” de herdeiros
que pode gerar, reforçando uma organização pluriativa, por seu turno com
efeito de retorno sobre a condição quilombola, alimentando, com aportes
econômicos e culturais, as possibilidades de permanência no local e no espaço
rural, mas também reabrindo possibilidades de trânsito para fora dele.
São estas as condições sociais de emergência de novas, e múltiplas,
identidades, das quais uma mesma pessoa pode lançar mão, conforme o
contexto, para seus trânsitos ao longo de relações que ultrapassam o local e
que permitem re-inseri-lo em um universo ampliado.
Conclusões
Olhar para este contexto dos quilombos do Ribeira propicia uma
reaproximação à diversidade de situações no campo brasileiro contemporâneo,
e que compartilham processos de mudanças em que a fronteira entre o rural eo urbano se torna permeável. O que se procurou aqui delinear, a partir de um
concreto, foi uma discussão que favoreça aproximações a outras situações
rurais, ou de “comunidades tradicionais”, que historicamente encontram pontos
de convergência com a aqui descrita, quanto à constituição e funcionamento do
patrimônio, quanto aos contextos ampliados em que se inserem, e quanto à
11
. Em Ivaporunduva, acabou de ser construída uma pousada para receber turistas. Além disto, registra-sea presença de conhecida empresa de cosméticos em alguns bairros, em busca de saberes tradicionais arespeito de espécies nativas.
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condição de terra de quilombo. Pode-se dizer que todas se marcam por
experiências de transformações sociais em que os agentes se empenham
ativamente, fazendo sua própria história, compartilhada no âmbito político, na
medida em que agregam ao geral, demandas específicas. É nessa senda que
se pode ter uma preocupação comparativa, visando acompanhar novas
possibilidades e limites, particularmente políticos e legais, de atualização de
uma “condição” para a qual a demanda de reconhecimento de direitos
específicos supõe o reconhecimento de um direito maior, de inserção jurídico-
política, de inclusão e cidadania.
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