Johann Mattheson e o ideal do Músico Perfeito - scielo.br · definir o mestre‐de‐capela...

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LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

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DOI:10.1590/permusi20163506

ARTIGOCIENTÍFICO

JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito

JohannMatthesonandtheidealofthePerfectMusician

MônicaLucasUniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,SãoPaulo,Brasilmonicalucas@usp.br

Resumo:ODerVollkommeneCapellmeister(“Omestre‐de‐capelaPerfeito”)éoúltimoescrito musical de Johann Mattheson (1671‐1764) e, sem dúvida, sua obra maisambiciosa.Elarepresentaomaisimportantedosescritospertencentesaogênerodepreceptivas musicais conhecidas comoMusica Poetica – um conjunto de tratadossurgidosentreossécs.XVIeXVIIIquefazusosistemáticodeconceitosoriundosdainstituiçãooratóriaparadescreveros elementosda composiçãoedaactiomusical.Nestetextodiscorrer‐se‐ásobreanoçãodomúsico‐oradorperfeito.Inicialmente,seráexaminadaamaneiracomoMatthesonserepresentaemsuaautobiografia,nãocomosujeitoindividual,mascomotipocortesãohumanista,cristão,luterano,propondoumaleitura da mesma a partir do universo poético‐retórico. Nesta parte, será possíveldefinirtambémotipoconstituídopelosdestinatáriosdaobra.Comisto,serápossívelevidenciarcomooautoralemãoemulalugares‐comunsjáapresentadosemretóricaslatinas,emespecialoDeOratoreciceronianoeaInstitutioOratoria,deQuintilianoaodefinir o mestre‐de‐capela perfeito. Finalmente, serão examinados lugares‐comunsdiretamenteligadosàideiadomúsicoperfeito:apossibilidadedeseatingiraperfeição,osrequisitosparaalcançá‐la,assimcomoacontribuiçãodanaturezaedaarteparaestatarefaeaimportânciadeconhecimentosextrínsecosàtécnicamusicalparaseatingiresteideal.Palavras‐chave:retóricamusicalemJohannMattheson;idealdomúsicoperfeito;MusicaPoeticanoséc.XVIII.Abstract:DerVollkommeneCapellmeister (“Theperfectmasterofchapel”) is JohannMattheson´s(1681‐1767)lastandmostambitiouswork.ItisalsothemostimportantwritingbelongingtothegenreofmusicalpreceptivesknownasMusicaPoetica,agroupoftreatiseseditedbetweenthe16thand18thcenturieswhichmakesystematicimportof concepts of the rhetoric tradition in order to describemusical elements. In thisarticle,weconcentrateonthenotionoftheperfectmusic‐orator.First,weexaminethe

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manner by which Mattheson represents himself in his autobiography, not as anindividualsubject,butasatype–humanist,cortesan,christian,lutheran–suggestingareadingof thisworkfromthepoetic‐rhetoricalperspective.Thisallowsustoalsodiscussthepotentialaddresseesofthiswork.ThisarticlealsoshowshowMatthesonemulatescommonplacesalreadypresentedinlatinrhetorichandbooks,especiallyDeOratore,byCicero,andIntitutioOratoria,byQuintilian,whenhediscussestheperfectKapellmeister.Finally,wewillexaminecommonplacesdirectlyconnectedtotheideaofthe Perfect Musician: the possibility to attain perfection and the requirements toaccomplishit,aswellasthecontributionofnatureandartandtheimportanceofnon‐musicalknowledgetoperformthistask.Keywords:MusicalRhetoricinJohannMattheson;theidealofthePerfectMusician;MusicaPoeticainthe18thcentury.

Dataderecebimento:12/12/2015

Datadeaprovaçãofinal:15/04/2016

1‐Introdução

Entregueparaaimpressão,comoafirmaJohannMatthesson,nodia7dejulhode1738,

e vindo à luz em 1739, o Der Vollkommene Capellmeister – “O mestre‐de‐capela

Perfeito”‐éseuúltimoescritomusicale,semdúvida,suamaiorobra.Elaconstitui,

ainda,omaisimportantedosescritospertencentesaogênerodepreceptivasmusicais

conhecidascomoMusicaPoetica–umconjuntodeescritosdossécs.XVIaoXVIIIque

fazusosistemáticodeelementosoriundosda instituiçãooratóriaparadescreveros

elementosdacomposiçãoedaactiomusical.

Estetextoconcentrar‐se‐ánanoçãoretóricadomúsico‐oradorperfeitoapresentada

por Mattheson em sua importante obra, mostrando como ele emula autoridades

antigas. Para isto, inicialmente, será examinada a maneira como Mattheson se

representaemsuaautobiografia,nãocomosujeito,mascomotipocortesãohumanista,

cristão, luterano,propondoumaleituradamesmaapartirdogêneroliterárioquea

retóricaconhececomovida.Esta leiturapermitirásupor tambémo tipo constituído

pelosdestinatáriosdaobra–ocortesãoigualmenteeruditoeengenhoso.

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Aseguir,discutireialgunsdoslugares‐comunsjáapresentadosemretóricaslatinase

tambémusadosporMatthesonparaconstituiro idealdomestre‐de‐capelaperfeito.

Serãoexaminadoslugares‐comunsdiretamenteligadosàideiadomúsicoperfeito:a

possibilidade de se atingir a perfeição, os requisitos para alcançá‐la, assim como a

contribuiçãodanaturezaedaarteparaestatarefaeaimportânciadeconhecimentos

extrínsecosàtécnicamusicalparaseatingiresteideal.

2. JohannMatthesonsegundoo“FundamentoparaumArcoTriunfal”

Aprincipal fontede informaçãoarespeitodocompositor JohannMattheson(1681‐

1764)ésuaautobiografia,incluídaem“Fundamentoparaumarcotriunfal,emqueas

vidas,obraseméritosdosmaisvirtuososmestres‐de‐capela,compositores,estudiosos

musicais,artistassãoapresentadasparamaioredificação”,1porelepublicadaem1740.

Trata‐sedeumaobraabrangente,queincluividasde149músicos,queeleconheceu

emgrandepartepessoalmente.Estacoleçãodebiografiasestáclaramenteinseridano

gênerodasvidasdepersonagensilustres(Suetônio,Plutarco,Tácito,e,jánoséc.XVI,

asvidasdeartistaspublicadasporVasari).Sendoassim,éobradirigidaahomensde

letras,cujoconteúdonãodeveserlidosubjetivamente,masemchaveretórica,como

escrito de louvor ou vitupério. Nesta obra,Mattheson representa‐se como um tipo

cortesão e erudito.Nela, eledescreve suaeducação e atuaçãomusical, profissional,

literáriaefilosófica,seucontatocompoetaseseutrânsitopeloscírculosletradosde

Hamburgo.

Mattheson foi aluno da Gelehrtenschule des Johanneums, cuja história e reputação

remontamàautoridadedeLutero(ainstituiçãofoifundadaporJohannesBugenhagen,

um dos colaboradores mais próximos e diretos do Reformador). É sabido que os

ginásiosluteranosforamgrandesresponsáveispeladifusãodosstudiahumanitatisno

1GrundlageeinerEhrenpforte,vorandertüchtigstenCapellmeister,Componisten,Musikgelehrten,Tonkünstler,u.Leben,Wercke,Verdienste,u.erscheinensollen.ZumfernenAusbauangegebenvonMattheson(Hamburg,1740).

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mundoreformado2.Estaorientaçãohumanistaficaclaraemumolharàsordenanças

deensinodestesestabelecimentos,concentradasnoestudodagramática,dapoesiae

daretóricalatina(e,emmenormedida,grega).Nestaescola,Matthesontravoucontato

comautores latinosantigos, emespecialCícero,masaindaTácito,Plauto, Sêneca,e

tambémmodernos,sobretudoErasmo,mastambémVossiusePetrusRamus.3

Éinteressantenotarque,naEhrenpforte,Matthessonnãofaznenhumareferênciaaseu

mestre de música. Contudo, menciona dois importantes homens de letras que lá

ensinaram:PaulGeorgKrüsikee JohannesSchultze, ambosprofessoresdepoesiae

retóricagregaelatinanasecondaenaprima,asclassesmaisavançadas.Destaforma,

Mattheson, aomesmo tempoque se representa como letrado,desprezaa formação

musicalproporcionadapelaantiga instituiçãodaMusicaPoetica,baseadanaprática

contrapontística. Em todos os seus escritos musicais, fica clara a defesa do estilo

moderno,galante,melódicoebaseadonobaixo‐contínuo.

Matthesonmostraaindaserconhecedordasprincipaishabilidadesgalantes,externas

ao programa curricular dos ginásios luteranos: dança, desenho, cálculo, equitação,

esgrima.Alémdaslínguasestudadasnaescola,Matthesonafirmaaindatersededicado

aoaprendizadodaslínguasvulgares:italiano,francêseinglês.Elemencionaaindao

estudo da história, direito e política inglesas, além do direito, comércio e política

internacionais.Matthesonasseguraterseexercitado“noestilodacorte”,cumprindoo

protocoloesperadonaeducaçãodogalant‐homme,tipoquemencionadiversasvezes

emseusescritoscomosendoodestinatáriodesuaspreceptivasmusicais.Asatividades

ligadas ao exercício diplomático são comumente recomendadas pelos manuais

humanistasdecortesania.

A despeito da publicação de diversos tratados musicais e da estreita ligação que

mantevedurantetodaavidacomaartedossons,Matthesonnãoperseguiuacarreira

2Paramaioresinformaçõessobreestainfluência,cf.BARNES(2002),p.258‐265.

3Paramaioresinformaçõessobreaeducaçãoluterana,cf.LUCAS(2014)eVORBAUM(1863).

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demúsico,masadeadidodiplomático.Aindajovem,tornou‐sepreceptor(Hofmeister)

de CyrillWich, filho do legado britânico emHamburgo. Estesmestres particulares

foramreconhecidamenteimportantesdifusoresdosstudiahumanitatisnaAlemanha.4

Depreceptor,passouàocupaçãodesecretárioeescritordecartasedocumentosdopai

de Cyrill, JohnWich. Com amorte deste, Cyrill sucedeu o pai no cargo.Mattheson

acompanhou‐oportodaavida,comosecretário.Nãohádúvidadequeastarefasde

Matthesonnestafunçãonecessariamentesevaleramdeconhecimentosretóricos,em

especial da ars epistolaria (escrita de cartas), matéria integrante das preceptivas

escolares.AscartasdeCíceroconstamcomoleiturasobrigatóriasnasordenançasdas

escolasluteranas,tendoservidocomomodeloparaosescritosdogêneroepistolar.

Mattheson transitou por diversas academias literárias de Hamburgo, em que se

cultivavaapoesiaalemã,alémdalatinaegrega,emulandoauctoritatesantigas.Nelas,

Mattheson travou contato com os poetas Heinrich Brockes, Johann Gottsched,

FriedrichvonHagedorneFriedrichHunold(Menantes),autores importantesparaa

difusão de ideais humanistas, pela vertente francesa dagalanterie, naAlemanha.O

cultivodepoesiaemlatimeemvernáculoécentralnosstudiahumanitatis.Autores

humanistas tiveram uma reconhecida preocupação em valorizar e ampliar o

vocabuláriodaslínguasvulgares.Estaatençãotambémtransparecetambémnaobra

literáriadeMattheson,sejaemsuasprópriastraduções,sejaemsuascríticasaousode

estrangeirismosporautorescomoGottschedouJohannScheibe,eemsuaspropostas

desubstituiçãodestestermospelosequivalentesalemães.5

Mattheson também foi editor e colaborador de revistas culturais, gênero literário

surgidonaAlemanhanoiníciodoséc.XVIII.Oimportantepapelexercidopelasrevistas

nadifusãodeideiashumanistasparasegmentoscadavezmaioresdapopulaçãotem

4Paramaisinformaçõessobreesteassunto,cf.BARNES(2002),p.374‐377.

5Emummanuscritode8páginas,de1744,elediscutepormenorizadamenteatraduçãodeGottscheddosEntretienssurlaPluralitédesMondes,1686,deFontenelle.EmBeyträgezurKritischenHistorie,comentaoCritischerMusikus,deJohannScheibe.Emambososcasos,propõealternativasalemãsparaaterminologiafrancófilaempregadaporestesautores.

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sidoamplamentediscutidoenãonecessitaserretomadonesteartigo6.Matthesonfoi

editordaprimeirarevistamusicalalemã,CriticaMusica(1722‐1725),ecolaborador

ativodediversas revistas germânicasdedicadas à filosofia, artes e história, comoa

NiedersächsischeNachrichten vonGelehrte Sachen (“notícias da baixa saxônia sobre

assuntoseruditos”).

Matthesonescreveuquatroimportantestratadosmusicais.Trêsforampublicadosem

sua juventude, num espaço de tempo de 8 anos, enquanto que o último e mais

importante,foipublicadoquase20anosapósestesprimeiros,em1739.

Ostrêsescritosorquestraisdejuventude–Dasneu‐eröffneteOrchestre(“Aorquestra

recém‐Inaugurada”,1713);DasbeschützteOrchestre(“Aorquestraamparada”,1717)

e Das Forschende Orchestre (“A orquestra Investigativa”, 1721)– são geralmente

compreendidos como estudos preliminares a Der Vollkommene Capellmeister (“O

Mestre‐de‐Capela Perfeito”, 1739), já que este último amplia e aprofunda as

informaçõescontidasnosescritosanteriores.

Embora não haja dúvida que as obras de Mattheson pertençam ao gênero de

preceptivas musicais conhecido comomusica poetica, o fato de elas não estarem

escritasemlatim(línguacorrentedestaspreceptivas),esimemalemão,indicaquenão

sevoltam,comoamaiorpartedesuascongêneres,paraopúblicoescolar.Mattheson,

emdiversos pontos de seus tratados, indica seu destinatário como sendoogallant

homme.

GalantesegundoodicionáriodeRaphaelBluteau(1728,v.4p.10)éumtipocortesão,

polido,naturalmenteeducado,queconheceosprotocolosdecircunstância, tempoe

lugar da corte, sabendo sempre deleitar. No mundo germânico, o homem galante

também aparece descrito, como por exemplo no discurso referencial de Christian

Thomasius,proferidonaUniversidadedeLeipzigem1690.EmHamburgo,autoresque

6Paramaisinformaçõessobreoassunto,cf.MORROW(1997),p.1‐18.

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transitarampelosmesmoscírculossociaisqueaquelesfrequentadosporMattheson,

como Gottsched, Hagedorn e Hunold, também dirigem suas preceptivas, poesias e

novelasaopúblicogalante.EmDasForschendeOrchester(“aorquestrainvestigativa”,

1721), Mattheson diz que “entende‐se por um galant‐huomo, alguém firme, hábil,

capaz,honesto,valent’uomo(...).7(MATTHESON,2004(1721),p.276).

As “três orquestras”, como são conhecidos os tratadosmusicais deMattheson que

antecedemOMestre‐de‐CapelaPerfeito,sãoabertamentededicadasaopúblicogalante.

Estadestinaçãoaparecenotítulodedoisdeles:

“AORQUESTRArecém‐inaugurada/ouinstruçãouniversalsobre/comoumGalant‐

hommepodealcançarumacompreensãoperfeitadaelevaçãoedadignidadedanobre

música/paraformarseuGoutatravésdela,/entenderosTerminostechnicoserazoar

adequadamentesobreestaadmirávelciência”.8(Hamburgo,1713)

“AORQUESTRAprotegida(...)emquenãoapenasoverdadeirogallant‐homme,que

nãoexerceestaprofissão,mastambémmuitosdosprópriosmúsicospodemformaro

conceitomaisclaroeverdadeirosobreaciênciamusical/habilmentedepuradoda

poeira escolástica, / comunicado / e colocado verdadeira e propriamente”. 9

(Hamburgo,1717)

7Dieitaliänerverstehendurcheinengalanthuomo,einenwackern,geschickten,tüchtigerundredlichenKerl,unvalent’uomo(…).Undinsolchen,alsseinenrechtengenuinenVerstande,nehmenwirdasWortauchhier”8Neu‐eröffneteORCHESTRE/oderuniverselleundgründlicheAnleitung/wieeinGalant‐HommeeinevolkommenenBegriffvonderHoheitundWürdederedlenMusicErlangen/seinenGoutdarnachformieren/dieTerminostechnicosverstehenundgeschicklichvondieservortrefflichenWissenschafftraisonnierenmöge(Hamburg,1713).

9DasBeschützteorchestre(…)Worinnichtnureinemwürcklichengallant‐homme,derebenkeinPorofessions‐Verwandter,sondernauchmanchenMusicoselbstdiealleraufrichtigsteunddeutlichsteVorstellungmusicalischerWissenschafften/wiesichdieselbevomSchulstaubtüchtiggesäubert/eigentlichundwahrhafftigverhalten/ertheilet(Hamburg,1717).

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Nofrontispíciodeseuúltimoemaiortratado,lê‐se,comotítulocompleto,“OMESTRE‐

DE‐CAPELAPERFEITO,/Istoé/Demonstraçãodetalhada/Detodasascoisas/Que

devesaber,conhecerelevartotalmenteemcontaaquelequepretendedirigir/Uma

Capela/comdignidadeeutilidade:/Concebidocomoensaiopor/MATTHESSON.”10

(Hamburgo,1739)

Nesta leitura, chama imediatamente atenção a primeira proposta do título: a de

descreveroMestre‐de‐Capelaperfeito,assimcomoaclararelaçãocomomodelode

perfeiçãooratóriapropostaporCíceroeQuintiliano.Comonestasretóricasclássicas,

sãodiscutidasquestõesqueenvolvemaconstituiçãodestetipoideal:apossibilidade

de se alcançar a perfeição prometida no título, assim como no que constitui esta

qualidade;seaperfeiçãoéumahabilidadenatural,sepodeserpolidapelaarte,e,caso

isto sejapossível,quais conhecimentos (gerais e/ouespecíficos) contribuemparaa

construção desta perfeição. Estas ideias serão apresentadas e discutidas abaixo, de

modoafundamentaracompreensãodestaobracomoemulaçãoderetóricasclássicas.

3.Omestre‐de‐capelaperfeito

Oidealdeperfeiçãomoralquepregaumarelaçãoestreitaentreéticaeretóricaéde

origem grega, e tem como modelo principal a Retórica aristotélica. Contudo, ele

tambémestádescritonosescritoslatinos–aobratardiadeCícero,emespecialoDe

oratore,eaInstitutioOratoriadeQuintiliano.Estaquestãoé,ainda,fundamentalpara

a construção do ideal do cortesão perfeito e, sendo uma questão humanista, foi

amplamentediscutidanosmeiosaristocráticositalianosetambémnoâmbitoescolar

daAlemanhareformada.Nestesentido,épossívelcontextualizarafiguraMestre‐de‐

Capelaperfeitonumalongatradição,daqualMatthesontambémépartícipe.

                                                            10DERVOLLKOMMENECAPELLMEISTER/Dassist/GründlicheAnzeige/AllederjenigenSachen/Dieeinerwissen,können,undvollkomeninnehabenmussDereinerCapelle/MitEhrenundNutzenvorstehenwill:/ZumVersuchentworffenvon/MATTHESON(Hamburg,1739).

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O pano de fundo que norteia a preocupação em caracterizar o orador perfeito é o

conhecidodesprezodePlatãopelaarteretórica.EmdiálogoscomoGórgias(1987(380

a.C),502e)ofilósofonegaquearetóricapermitaatingiroconhecimentoverdadeiro.

Por isto,paraele,aretóricarepresentaapenasadulaçãoeengano.11Aristótelestem

opiniãodiversadadeseumestre,ecreditaumvalorpositivoàretórica,aoafirmarque

obomoradorestaránecessariamentecomprometidocomaVerdade.Estaéaposição

defendidanãoapenasporAristóteles,masaindapordoisgrandesoradoresromanos,

CíceroeQuintiliano.

Quintiliano é exaltado pelo próprio Lutero, justamente pela preocupação ética que

transparecenaInstitutioOratoria.AssimcomoCícero,Quintilianotambémsepreocupa

em responder às possíveis acusações platônicas contra a retórica. Explicitamente

baseadoemCatão,Quintilianoapresentaafamosanoçãodequeooradorperfeitoéum

vir bonus dicendi peritus: “seja, portanto, o orador que descrevemos, como aquele

definidoporM.Catão:umhomembom,hábilnafala”(QUINTILIANO,1998(c.95),XII,4,

p.354)12.Eleenfatizaocomprometimentoéticodoorador:“nãoapenasafirmoqueo

oradoridealdeveserumbomhomem,masafirmoaindaquenenhumhomempodeser

umorador, amenosque sejaumhomembom.” (QUINTILIANO,1998 (c.95),XII,I,4,

p.356).13

O ideal do vir bonus teve grande circulação durante os sécs. XVI, XVII e XVIII,

reformuladonogêneroliterárioconhecidocomoinstitutioaulica,ouescoladecorte,

que compreende os manuais devotados à descrição do príncipe ou do cortesão

perfeitos.Nomundoluterano,estesmanuaisforamutilizadosnoprogramapedagógico

                                                            11ParaumadiscussãomaisdetalhadasobrePlatãoeaRetórica,cf.Mc.COY(2010).

12sitergonobisorator,quemconstituimus,is,quiaM.Catonefinitur,virbonusdicendiperitus;verum,idquodetillepossuitpriusetipsanaturapoetiusacmaiusest,utiquevirbonus(...).”

13Necqueenimtantumiddico,eum,quisitoratorvirumbonumesseoportere,sednefuturumquidemoratoremnisivirumbonum.

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dosginásios.14Noséc.XVI,esteidealdeperfeiçãopassatambémaserdiscutidonas

poéticas musicais. No âmbito italiano, a referencial obra de Gioseffo Zarlino,

InstitutioneHarmoniche(1558),descrevedaseguintemaneiraomúsicoperfeito:

MúsicoéaquelequenaMúsicaéperitoequetemafaculdadedejulgar,

nãopelosom,maspelarazão,aquiloquetalciênciacontém;esepuser

emobraascoisaspertencentesàprática,farásuaciênciaaindamais

perfeita,eMúsicoperfeitopoderáchamar‐se(...)Nãodigo,porém,que

ocompositorequealguémqueseexercitanosinstrumentosnaturais

eartificiaisseja,oudevaserprivadodestenome,desdequeelesaiba

eentendaaquiloqueoperaetransformetudoissocomarazão.(...)Se

comumsónomedevêssemoschama‐lo,nósochamaríamosdeMúsico

Perfeito.(Zarlino,citadoporTETTAMANTI,2010,p.30‐31)15

As ideias de Zarlino são corroboradas pela instituição luterana damusica poetica, sendo

propagadas por autores de obras escolares, como Listenius, Fink, Orydrius etc. – cujas

definições domusicuspoeticus contemplam a figura domúsico que domina tanto amusica

theorica quanto a composição e a prática instrumental e do canto. Sendo assim, ao ser

retomadapeloDerVollkommeneCapellmeister, a transposiçãodo ideal dovirbonuspara o

âmbito musical já constitui um lugar‐comum, antecedido por pelo menos dois séculos de

escritosmusicais.

Mattheson deixa claro, desde o início de sua maior obra, que o mestre‐de‐capela

perfeitonãodescreveumapessoasubjetiva,massimumtipoideal,que,emessência,é

uma emulação do virbonus de Catão. Com efeito, o prefácio deOMestre‐de‐Capela

                                                            14EntreasobrasmaisdifundidasnaAlemanha,encontram‐setraduçõesdeAlbertoGuevara,BaltazarGracián,GiovannidellaCasaeBaldassareCastiglione(cf.BARNES,2002,p.138‐149).

15Musicoessercolui,chenamusicaèperito,&hàfacultadigiudicare,nonperilsuono;maperragionequello,queintalscienzasicontient.Ilqualeseallecoseappartinentialapratticadaráopera,faràlasuascienzapiùperfetta.&Musicoperfettosiportràchiamare.(...).Nondicoperò,che´lcompositore,&alcunocheessercitilinaturali,oartificialiistrumentisai,odebbaesserprivodiquestonome,purcheeglisappia&intendaquello,cheoperi;&deltuttorendaconvenevolragione(...).Secomumsolonomelodovessimochiamare,lochameremoMusicoPerfetto.(trad.deGiuliaTettamanti).

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Perfeito principia com uma explicação do título. Ele assemelha sua obra a outras

emulações do virbonus, comdestaque para a escola de corteL'Ambassadeur et ses

fonctions, (Haia,1682) de Abraham deWicquefort. Ele afirma, ainda, que este tipo

perfeitoapareceaindaemoutroscontextos:odiplomata,ogeneral,osábioestóico(ao

estilo de Sêneca). Para Mattheson (1992 (1739), p.9), todos estes autores

“descreveramcoisasepessoassegundooconceitoquepossuíamdeperfeição”.16Estes

exemplos justificamapreocupaçãodeMatthesonemredigirumaobradedicadaao

mestre‐de‐capelaperfeito.

CíceroeQuintilianonãodescartamapossibilidadedeooradorperfeitoviraexistir,aindaque

istojamaistenhaocorrido.Mattheson,operandonachavecristã,negaestapossibilidade,uma

vezque,paraele,aperfeiçãoéexclusivamenteatributodivino.Paraele,otermoperfeiçãosó

pode ser aplicado em comparação com outras coisas damesma espécie ou em oposição à

imperfeiçãoquenelasaparece:“honesto,porexemplo,nãodescreveohomemabsolutamente

honesto,masaquelequeagedemaneiramaisíntegradoqueaspessoascomuns”.Omestre‐

de‐capelaperfeito,paraMattheson,éumtipogalante.

Umavezdefinidoogalant‐hommecomodestinatáriodoDerVollkommeneCapellmeister,fica

claraapreocupaçãoéticaquesubjazaotratado,apresentadajánotítulo:“omestre‐de‐capela

perfeito, contendodescriçãodas coisasnecessáriasàquelequedeseja conduzirumacapela

com dignidade e utilidade.” Em diversos pontos de sua extensa obra teóricamusical,

Matthesonmanifestaseudirecionamentoético.NaOrquestraInvestigativa,eleafirma:

AristidesQuintiliano,quandodiscorre sobrea finalidadedamúsica,

mostradecertaformaseusentido.Elenãoécontrárioatodoprazer

quesederivadamúsica,masafirmaqueesteprazernãoéaverdadeira

intençãodamúsica.Oprazeré,poracaso,umarecreaçãodoespírito.

                                                            16InsolchergutenAbsichthabenauchandre,undauchzwarlöblicheWerkedergleichenAuffschrifftgeführet(…)SenecagestehetvonseinemstoischenWeisen,CicerovonseinemvollkommenenRedner,andrevonandernVollkommenheiten,,dasdergleichennochniemalsinderWeltanzutreffengewesen;dennochhabendieseVerfasser(…)ihreSachenundPerssonennachdenvollkommenstenBebriff,densiedavongehabt,vorgestellet.

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MasseusentidoverdadeiroéautilidadeeacompreensãodaVirtude.

(MATTHESON,2004(1721),p.174|)17

Apreocupaçãocomosefeitosmoraisdamúsicaémaisdetalhadamentedescritapor

Matthesonnumacoleçãodeescritos intitulada“Opatriotamusical,quecompartilha

suas observações detalhadas sobre as harmonias espirituais e mundanas, e sobre

aquilo que diretamente delas depende, com variedade agradável, para que seja

incentivada em todo o leitor a edificação moral” 18 , 1728. Na Décima Primeira

Consideraçãodestaobra,Matthesonafirma:

Bastarecordaràqueleaquempareceestranhoqueamúsicaserefira

aestascoisas,queestaciênciaéumaperfeitaimagemdamoderaçãoe,

consequentemente, também da tolerância, e de todas as virtudes.

Aqueleque,atravésdamúsica,nãoaprendeavirtude,nãoédignode

que sua garganta seja apta ao cantar ou seus dedos, ao tocar. 19

(MATTHESON,1728,p.89)

DentreascomposiçõesmusicaisdeMattheson,chamaatençãoacoleçãodesonatas

paraviolinooutraversoacompanhadasdebaixo‐contínuo,intituladaDerBrauchbare

Virtuoso(“Ovirtuoseútil”),de1727.Noprefáciodestaspeças,Matthesonapresentaa

etimologiadotermoitalianovirtuose,dolatimvirtus.Elequestionaseesteconceitose

refereàvirtusintelectualis,ouseja,àforçadojuízo,ouàvirtusmoralis,àretidãonos

                                                            17AristidesQuintilianus,wennervondemEndzweckderMusicredet,gibtseinenSinnungefehralsozuerkennen:EstistwederalleLust,diemanausderMusicschöpfet,zutadeln,nochauchdieseLustdieeigentlicheAbsichtbeyderMusic.DieLustistzwarzufälligerWeiseeineGemüths‐Ergötzung.AberderrechtvorgesetzteZweckistderNutzzurErgreiffungderTugend.”In:DieForschendeOrchestre,p.174p.174.18DerMusikalischePatriot,welcherseinegründlicheBetrachtungen,überGeist‐undWeltl.Harrmonien,samtdem,wasdurchgehendsdavonabhänget,InangenehmerAbwechselungzusolchemEndemittheilet,DaßGOttesEhre,dasgemeineBeste,undeinesjedenLesersbesondereErbauungdadurchbefördertwerde.AnsLichtgestelletvonMattheson(Hamburg,1728).

19Demesfrembdscheinensolte,dasssichauchdieMusikaufdieseDingedeutenlasse,derbeliebenurzuerwegen,dassdieseWissenschafteinrechtesEbenbildderMässigkeit,undfolglichauchderGeduld,jaallerTugendenist.WerkeineTugendausderMusiklernet,deristnichwerth,dassseinHalszumsingen,nochseineFingerzumspielen,geschicktseynsollen.

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costumes.Ovirtuose,ouseja,aquelequesedestacaporumaexcelênciatécnica,deve

possuirambasasqualidades,intelectualemoral.

Osvirtuosesquepossuemapenasaaptidãointelectualnãopodemser

entendidos como úteis, já que, sendo esta uma qualidade

eminentementemoral, dependedaação.Por isto, estes artistas não

podem ser considerados virtuoses no sentido estrito do termo: “é

possível ser umvirtuose (teórico),masno âmbito geral, ser inútil e

vergonhoso (...). Os músicos teóricos, se não souberem agir, serão

inúteisoumesmonocivos.Osmúsicospráticos,poroutro lado,não

sabemnecessariamenteoque sejamoshábitos (Mores), e,por isso,

podempossuirvícioscomoagula,abebida,afaltadevergonha,obafo

detabaco,afaltadegentileza,afaltadepureza,afaltadeDeus,ohábito

depraguejaretc.(MATTHESON,1720,p.3)20

Consequentemente,somentepoderáserchamadovirtuose,noverdadeirosentidoda

palavra, aquele que unir bons hábitos à excelência prática.Mattheson retoma uma

leituraobrigatóriadasescolas luteranas,oDecivilitatemorumpuerilium (1530)de

ErasmodeRotterdam,aoafirmarqueumvirtuoso,pormaishábilqueseja,develevar

os bons hábitos (Sitten) para o íntimo de sua alma” (MATTHESON, 1720, p.2). É

possívelperceber,emtodososescritosdeMattheson,apreocupaçãoemvinculara

música à edificaçãomoral. É evidente que esta preocupação está fundamentada na

concepção latinadovirbonuseemsuasemulaçõeshumanistas,emespecialo ideal

francês do galant homme, considerando a enorme circulação destas ideias na

Alemanhareformada.

20DieVirtusintellectualiskandemnachbeyeinemSubjectogänzlichoderzumTheilvondermoralentblössetseynundismancherzwareinVirtuoso,abergemeiniglicheinschändlicherundunbrauchbarer.(…)Derowegenmussmanihnen[denVirtuosen]nurteutschsagendassihrenvornehmstenSittenininfolgendenStenenbestehen:fressen,Saufen,Unverschämtheit,Tobackgestank,Unhöfflichkeit,Unreinlichkeit,Gottlosigkeit,Schweren,fluchten,Verläumden,Schelten,grstigeRedenundThaten,falscheit,Vergendung,Faulheit,Müssigangunddergleichen.

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4.Requisitosparaaperfeição

Dentre os lugares comuns que Mattheson retira de retóricas latinas e utiliza na

definição de seu mestre‐de‐capela, serão abordados neste artigo aqueles que se

referemàideiadeperfeição:aoposiçãoentrearteenaturezaeaconsequentedefinição

damúsica(assimcomodaoratória)comoarte,alémdaideiadequeooradornãodeve

restringir seus conhecimentos apenas às técnicas específicas, devendo, antes, ser

possuidordeconhecimentouniversal.

Noquedizrespeitoàoposiçãoentrearteenatureza,alémdadefiniçãodostermos,

surgemduasquestõesbásicas:épossívelprescindirdealgumadasduas,ousãoambas

essenciaisnaformaçãodobomorador?emcasodeasduasseremfundamentais,qual

delasémaisimportante?Cíceroentendepornaturezaashabilidadesinatasdoorador.

No que concerne à disposição física, é importante que ele tenha língua ágil, boa

capacidade pulmonar, voz sonora e boa aparência. Além disto, ele deve possuir

engenho,ourapidezdeespírito:“émisterqueooradorsemostreagudonainvenção,

riconaamplificaçãoenoornato,firmeetenaznamemória”(CÍCERO,1942(55a.C),

I,25,113‐114,p.80‐81).21Nodecorrerdeseulivro,Matthesontambémmenciona,como

qualidadesnaturaisdomestre‐de‐capelaperfeito,boavoz,engenhoeentusiasmo.

Aarte,demaneiradiversa,constituiacategoriadashabilidadespassíveisdeensinoe

deexposiçãosistemática.NolivroIdoDeoratore,Crasso,aoresponderumaquestão

deAntonio,afirmaquearteé,numsentidogeral,umahabilidadequesedefinepor

princípiosclaros,bemconhecidos,independentesdetodaopiniãoesujeitaàciência.

Contudo,numsentidomaisestrito,elechamaarteaoconjuntodeobservaçõesfeitas

na prática por homens discretos e entendidos, escritas, e, portanto, divididas e

classificadas.Aestasegundacategoriapertenceaartedobemdizer(CÍCERO,1942(55

a.C.),I,2,8,p.8‐9).

                                                            21Nametanimiatqueingeniiceleresquidammotusessedebent,quietadexcogitandumacuti,etadexplicandumornandumquesintuberes,etadmemoriamfirmiatquediuturni.

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HeinrichLausberg(1995(1949),§28,p.85)defineartecomo“umafaculdadepossuída

porumindivíduoecomprovadanaprática,comofimdelevaracabo,comsucessoe

repetidas vezes, empresas importantes”. A arte visa à perfeição, o que justifica as

inúmerasdescriçõesdoOrador,doCortesãooudoMúsicoperfeitos.Lausbergafirma,

ainda,que,comoobjetodeensino,aarteé“umsistemaconstituídopelaexperiência

que o mestre adquiriu na sua própria criação artística e no ensino de regras

doutrinárias(...)ordenadasconsequentemente,comofimdelevaracabo,comsucesso,

arealizaçãoartística”(CÍCERO,1942(55a.C.),§28,p.86).

Nestesentido,aretóricapodeserentendidacomoumaarte.Emumafamosadefinição

deQuintiliano,aretóricaconstitui“aartedobemdizer”(arsbenedicendi),econstitui

oassuntodaspreceptivasoratórias.

Nas preceptivas latinas, lemos que tanto arte quanto natureza concorrem para a

formação do orador perfeito. Contudo, a primeira, por se tratar de umadisposição

inata, não é ensinável. Para estar em condições de alcançar a perfeição, é preciso

conheceraarte,oudoutrina,assuntodaspreceptivasretóricas.

NaInstitutioOratoria,Quintilianonosdiz:

Bem sei que ainda se costumaquestionar se é a naturezaquemais

contribuiparaaeloquência,ouseéadoutrina(arte).Naverdadeisso

nada tem que ver com o propósito da nossa obra, pois um orador

consumadonãopodeserconstituídosenãoapartirdeambas(...)Por

que se se separaumada outra, a natureza,mesmo semadoutrina,

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valerá muito, mas a doutrina nada poderá sem a natureza.

(QUINTILIANO,1998(c.95),II,19,1‐2,p.147)22

EmseudiscursosobreopoetaÁrquias,Cícerotambémdiscorresobreestatópica,ediz

que

Frequentemente,maisvezes importaramparao louvordavirtudea

natureza sem doutrina (arte) do que a doutrina sem a natureza. E

possoaindaasseveraroseguinte:quandoadistintoseexcelentesdons

naturais se somaumacerta instruçãoedoutrina,não seiquepossa

existir demais preclaro e singular. (CÍCERO, 1986 (62 a.C.), VII,15,

p.45)23

HoráciotambémversasobreesteassuntoemsuaepístoladedicadaaosPisões(Arte

Poética):“tem‐seperguntadoseumpoemasetornadignodelouvorpelanaturezaou

pelaarte.Eunãovejodequeserveotrabalhosemumaveiafértil,nemdequeserveo

engenhorude;assimumacoisareclamaoauxíliodaoutraeconspiramamigavelmente

(HORACIO,1984(18a.C.),408‐411,p.23e36).24

Mattheson emula seus antecessores latinos, ao discorrer sobre este lugar‐comum,

emboranotratadonãohajaumadescriçãogenéricasobreoassuntoesimdiversas

referênciasaeles,porexemplo,nocapítulosobreainventio:

Muitospossuemacapacidadedeencontrarmilharesdeboasideiasa

partir do espírito livre, por possuírem uma imaginação forte (...).

22Scioquaerietiamnaturaneplusadeloquentiamconferatandoctrina.Quodadpropositumquidemoperisnostrinihilpertinet(nequeenimconsummatusoratornisiexutroquefieripotest)[...]Namsipartiutrilibetomninoalteramdetrahas,naturaetiamsinedoctrinamultumualebit,doctrinanullaessesinenaturapoterit.23Saepiusadlaudematqueuirtutemnaturamsinedoctrinaquamsinenaturaualuissedoctrinam!Atqueidemegohoccontendo:cumadnaturameximiametilustremaccesseritratioquaedamconformatioquedoctrinae,tumilludnescioquidpraeclarumacsingularesolereexsistere.Cf.aindaI,79,91e113.

24Naturafieretlaudabilecarmennaarte,quaesitumest;ergonecstudiumsinedivitevenenerudequidprositvideoingenium;alteriussicalteraposcitopemresetconiuratamice.

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Outros compõem incomparavelmente bem, mas não têm a menor

capacidade para obter pensamentos de maneira imediata, sem

raciocínio.(...)Aquelesqueencontramseuspensamentosantescomo

fantasiarsãoverdadeiramenteosmelhores.Contudo,(...)anatureza

(...) e a técnica são extremamente necessárias e requeridas para o

compositor e para omestre‐de‐capela. (MATTHESON, 1991 (1739),

II,2,50‐61,p.107‐108).25

ParaCícero,aarteapenaspodetornarmelhoroqueébompornatureza,ouaguçare

corrigirdealgummodooquenãoéperfeito.OmesmovaleparaMattheson.Paraele,o

mestre‐de‐capelaperfeitodeve ser “alegre, bemhumorado, inabalável, trabalhador,

ativo e ordeiro. A preguiça, o excesso de sono e a vida voluptuosa assim como a

impaciênciaeaansiedade,devemserodiados.”(MATTHESON,1991(1739), II,2,55,

p.107). 26 Ele afirma ainda a necessidade do trabalho, da disciplina, e do estudo

constante para alcançar a perfeição (MATTHESON, 1991 (1739), II,11,58, p.107),

fazendo,comisto,louvoràarte.

No que tange à questão do conhecimento, retóricas latinas afirmam que o orador

perfeitodeveserversadoemdiversasáreasdosaber,e,destemodo,semerudição,não

é possível se alcançar a perfeição. Para Cícero, a eloquência é possível e desejável,

contanto que o orador não discorra sobre todos os assuntos semde fato conhecer

nenhum. Neste referencial diálogo, Cícero, na pessoa de Crasso, afirma que a

eloquêncianãoserestringeapenas,comosugereseuinterlocutorQuinto,aum“certo

engenhoeexercício”(CÍCERO,1942(55a.C.),I,5,17,p.14‐15).Pelocontrário,elaexige

o concursodetodasasdemaisartesqueoshomenscultospossuem:“ooradorperfeito

25VielebesitzendieGabe,ausfreiemGeisteundstehendenFussestausenderleyguteEinfällehervorzubrinetn(…).AnderehabennichtdasgeringsteVermögen,etwasausdemStegereiffe,ohneBedenckzeit,zuvollstrecken.Diejenigen(…)soihreGedanckenerstmitFantasirenentdecken(…)sindwircklichdieallerbesten.(…)Nehmlich:dasNaturell,dieLustundderFleiss[sind]einemComponistenundVorgesetztenaufunzertrennlicheArthöchst‐nöthigunderforderlich.

26 [Es ist erfordert], dass ein Componist und Vorsteher derMusik einesmuntern, auferäumten,

unverdrossenen,arbeitsamenundthätigenWesenssey;dochauchordentlichdabey:woranesofft

beydenallerlebhafftestenfehlet.DerMüssigangmuss,gehassetwerden.

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requer a agudeza dos dialéticos, as sentenças dos filósofos, o estilo dos poetas, a

memória dos jurisconsultos, a voz dos trágicos e os gestos dos melhores atores”.

Ninguém,naopiniãodeCrasso,poderáserumoradorperfeitosenãoalcançaruma

instruçãouniversalnasciênciasenasartes”Sendoassim,asabedoriaégeradorado

poderoratório.(CÍCERO,1942(55a.C.),I,14,63,p.46‐47)27.

Cícero inclui, em sua proposta de erudição universal, o conhecimento das leis, da

Antiguidadeedodireitocivil.ParaQuintiliano(1998(c.95),I,1,4‐6,p.20‐23),oorador

deve,ainda,serversadonafilosofia,sobretudomoral,mastambémnatural,enalógica.

Além destas, ele deve conhecer a retórica, a gramática, a música, a geometria e

astronomia‐conhecimentosquefuturamentevirãoaconstituirasartesliberales.

Mattheson, igualmente, dedica um capítulo inteiro de seu importante tratado às

qualidadesextra‐musicaisdocompositor.Eleafirmaque,emprimeirolugar,

umcompositornãodestacar‐se‐áemsuaartesemerudição.Umpintor

pode ser artista, mas se não for historiador, fará um quadro que,

emboratecnicamenteperfeito,nãoexpressaráosmovimentosdealma

condizentescomoconteúdodahistória.Omesmosesubentendedo

compositor:seutrabalhopodeserobrademestrededicado,masselhe

falta erudição, não saberá levar em consideração a naturezade seu

texto,comoacontececomopintoreaspaixõesdeseuquadro.Beer

acrescenta: uma coisa é a destreza técnica no pincel, outra, a

habilidadenaexpressão.(1991(1739),II,2,4,p.100)28

                                                            27Illudverius,nequequemquamineodisertiunesseposse,quodnesciat;neque,siidoptimesciat,ignarusquesitfaciundaeacohendaeorationis,diserteidipsumposse,dequosciat,dicere.28EinungenannterFranzösischerSchrifftellermeldetausdrücklich:einComponistwerdenimmerinseinerKunsthervorragen,fallserkeineGelehrsamkeitbesitze.EinMahlerkannwoleinKünstlerseyn;isteraberkeinHistoricus,sowirderzwareinkünstlichesBild,dochnichtdieGemüths‐Bewegungen,welchees,nachdemInhaltderGeschichte,habensollte,ausdrücken.EingleichesverstehemanvoneinemComponisten;seineArbeitkanendlichdasStückeinesfleissigenMeistersheissen;weilesihmaberanderGelehrsamkeitmangelt,haterdieNaturdesTextes,wiederMahlerdieLeidenschafftenseinesBildes,nichtinAchtnehmenKönnen.Beersetzthinzu:EinandersseykünstlichimPimsel;einaderskünstlichimAusdruk.UnddarinhaterkeinUnrecht.

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Cícero (1942 (55 a.C.), II,6, p.200‐201) conclui, afirmando que a arte, ou seja, a

habilidade técnica, jamais poderá ser posta plenamente em prática sem o

conhecimentodasmatérias.Mattheson,demaneirasemelhante,enfatizaqueomúsico

quenãovaialémdesuasferramentasespecíficaséumpedante(MATTHESON,1991

(1739),II,2,31).Paraele,omúsicodeveserpoetaeatémesmoprofeta(MATTHESON,

1991(1739),II,2,9).Valelembrarqueamúsicaéumadasdisciplinasmaisimportantes

nocurrículoescolarreformado.

ParaCícero,éfundamentalqueooradorpossuaerudiçãonomaisaltograu:“senas

demais artes basta uma tolerável mediania, no orador é necessário que estejam

reunidasemgraumáximotodasasqualidades”(CÍCERO,1942(55a.C.),I,28,128)29.

MatthesonecoaCícerojánaepígrafedoMestre‐de‐CapelaPerfeito,aocitarumadágio

deErasmo:“pleraqueressunt,qussifaciasacriter,plurimusconducunt;sinignaviter,

officiunt. Velut ea, quae mediocritatem non recipiunt, quod genus est Musica

Poeticaque.Suntrursusquaedam,quaedegustassesitsatis.”(“quantasatividadessão

admiráveisseaelasnosdedicarmosintegralmente,eprejudiciaisnosaplicarmosde

maneiramorna.Hácoisasquenãoaceitamamediania;entreestas,encontram‐sea

músicaeapoesia.Hácoisasquedevemserdegustadasplenamente.”)(MATTHESON,

1991(1732),p.9)30.

Para Cícero e Quintiliano, a erudição geral antecede os conhecimentos específicos,

emboraambossejamindissociáveis.Conhecimentosquepertencemtantoaoâmbito

                                                            29Quaeenimsingularumrerumartificessingulasimediocriteradeptisunt,probantur,ea,nisiomniasiunmasuntinoratore,probarinonpossunt.30OadágiodeErasmodiz:Oportettestudiniscarnesautedereautnonedere(Quandoselheoferecemcarnedetartaruga,éprecisocomerounãocomer).Naexplicação,Erasmodiz:comeounãocomeatuatartaruga:éprecisoescolher,assimdizumiâmbicoproverbialdirigidoàquelesque,decidindorealizarumatarefa,afazemvagarosamente,nuncaaterminandooudeladesistindo.(...).Diz‐sequeacarnedetartaruga,comidaemquantidadesmoderadas,écausadoradeconstipação,queédesfeitaquandoamesmaéconsumidaemgrandesquantidades(...).Éumamaneiradedizer:decida;váaguerraounãová;estudeounãoestude.Lembre‐sedequantasatividadessãoadmiráveissenosdedicamosintegralmenteaelas,esãoprejudiciaissenosdedicamosaelasdemaneiramorna,jáqueestas,comoamúsicaeapoesia,nãoadmitemamediocridade(ERASMO,2001,X,10,60,p.130).

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geral quanto ao específico são, para Cícero, a escolha correta das palavras, o

conhecimento das paixões humanas, a amenidade e graça no discurso, a rapidez e

oportunidadenoresponderenoatacar,abelezaeagudezanoestiloeaurbanidade.

São, ainda, necessários para o orador os conhecimentos próprios do ator: a actio

(experiência acerca dos movimentos do corpo, dos gestos, dos semblantes e das

inflexõesdavoz)eamemoria.

Matthesontambémespecificaalgunsconhecimentosgeraisnecessáriosparaomúsico

perfeito:conhecimentodosaspectosmatemáticosdostemperamentosedaharmonia;

conhecimentodalínguagregaelatina,suficientesparaentenderescritossobremúsica,

alémdadalínguafrancesae,sobretudo,italiana,línguasprópriasdogalant‐homme.O

mestre‐de‐capeladevetambémserversadonamelopoesia,ouseja,apoesiaadequada

àmúsica; semo conhecimentodesta, incorreránosvíciosdamonotonia, das ideias

repetidas e do excesso de dissonâncias. O músico perfeito deve saber dominar as

paixõesdesuaaudiência,eparaisto,Matthesondescreve‐asnocapítulo3daprimeira

parte de O Mestre‐de‐Capela Perfeito. Por fim, ele deve cantar e tocar bem um

instrumento,preferencialmentedeteclado,edominarouaomenosconhecerosoutros

instrumentos.Porfim,omúsicoidealdevedominaroestilodecomposiçãoitaliano,

emboranão seja essencial ter ido àquelepaíspara aprendê‐lo (MATTHESON,1991

(1732),II,2,1‐46,p.99‐106).

UmtraçotipicamenteluteranodaobraliteráriaMatthesonéseuinteressepeloestudo

damúsica sob a perspectiva ética e teológica. Esta preocupação é característica de

escritosmusicais humanistas, como a referencial descrição domúsico perfeito por

GioseffoZarlino,emseuIstitutzioneHarmoniche,eumassuntosemprepresentenas

poéticas musicais produzidas no âmbito luterano. 31 Ela também aparece no Der

Vollkommene Capellmeister. No fim da vida, Mattheson se aprofunda nos aspectos

teológicosdamúsica.32

31Maisinformaçõessobreaideiadomúsico‐cortesãoemPORTO,Delphim(2013,p.11‐25).

32Especialmenteemumescritonãopublicado,intitulado“BehauptungderhimmlischenMusikaus

denGründenderVernunft,Kirchen‐LehreundheiligenSchrift”[Defesadamúsicacelestebaseada

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5‐Conclusão

Neste texto, ficou claro como a vida de Mattheson, publicada na Grundlage einer

Ehrenpforte pode ser lida, a partir da perspectiva retórica, não como narração

subjetiva,mas, sob a perspectiva retórica, como escrito codificado, sujeito a regras

preceituadasparadiferentesgênerosliterários.Omesmopodeserditoarespeitoda

descriçãoqueMatthesonapresentadomúsico‐oradorperfeitoemDervollkommene

Capellmeister. Neste último e referencial escrito, as descrições do músico‐orador

perfeitoemulammanuaislatinosdeeloquência.

Apartirdestachavedeleitura,oobjetivodopresentetextofoiodeevidenciarediscutir

algunsdoslugares‐comunsaplicadosporMatthesonàdescriçãodomestre‐de‐capela

perfeito. Estes lugares já figuram em preceptivas clássicas, integram os escritos

humanistasereaparecemnaspoéticasmusicais.Autilizaçãodesteslugaresépossível

poisMatthesonpartedopressupostoqueamúsicaécomparávelaodiscursoverbal,o

quepermiteaeleafirmarqueosprincípiosdaoratóriasejamtambémadequadosà

música.

O primeiro dentre os lugares comuns apresentados neste artigo é constituído pelo

própriotítulo,queprometedescreveroidealdeperfeiçãomoraldomestre‐de‐capela,

nos moldes do orador idealizado por Cícero e Quintiliano. A questão inicial, a

capacidadehumanaparaatingiraperfeição,nãoépassívelderespostataxativa,mas

serveparaabriradiscussãoparaasqualidadesdesejáveisaomúsico‐cortesão.

Asegundaquestão,queavaliaaimportânciadacontribuiçãodanaturezaedaartepara

aconstituiçãodooradorperfeito,tambémdámargemamuitasopiniões,masconstitui,

igualmente,umexcelenteartifícioparajustificaraexistênciadomaterialqueoleitor

tememsuasmãos:ummanualqueensinaospreceitosdaartemusical.Matthesonnão

narazão,nadoutrinadaIgrejaenaEscriturasagrada”].Paramaisinformações,cf.CANNON(1968)p.101ep.207.

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se detém explicitamente na dicotomia arte‐natureza,mas ela é evidente em várias

passagensdesuaobra.

Mattheson,comoseusantecessoreslatinos,enfatizaaimportânciadosconhecimentos

geraisparaaformaçãodomúsico‐oradorperfeito.Diversosdestesconhecimentossão

comunstantoaooradorquantoaomestre‐de‐capela:conhecimentodeoutrasciências

eartes,domíniosobreaspaixões,agudezaetc.Outrossãoprópriosdecadaarte,sejaa

música, seja a oratória. Contudo, a despeito destas diferenças, é possível notar que

todos afirmam que o artista perfeito deve extrapolar os conhecimentos técnicos

específicos. Esta asserção é recorrente em escritos sobre oratória, assim como nos

manuaishumanistasdecortesania.

A discussão do uso que Mattheson faz dos lugares‐comuns relativos à perfeição

oratória‐musicalmostrademaneiraclaracomooautorseamparanatradiçãoretórica,

recuperada por humanistas italianos e do mundo luterano, para produzir a mais

importanteobradainstituiçãodaMusicaPoetica,obraqueaindahojeseguesendoa

maisprofundatransposiçãodosprincípiosretóricosparaalinguagemmusical.

Referências

1.BARNES,Wilfried.(2002)Barockrhetorik.Tübingen:MaxNiemeyer.

2.BLUTEAU,Raphael.(1712)“Galante”.In:VocabulárioPortuguezeLatino(Coimbra,1712‐1728).Disponívelem:http://www.brasiliana.usp.br/pt‐br/dicionario/edicao/1.Acessoem3ago.2014.

3.CANNON,BeekmanC.(1968)JohannMattheson.SpectatorinMusic.Yale:Archon.

4.CÍCERO(1942).DeOratore(c.55a.C.).Harvard:Loeb.

5.CÍCERO(1986).EmdefesadoPoetaÁrquias(ProArchiaPoetaOratio,62a.C.).MemMartins:Inquérito(trad.MariaIsabelRebeloGonçalves).

6.ERASMOdeRotterdam.(2001)TheAdagesofErasmus.Toronto:UniversityofTorontoPress(trad.WilliamBarker).

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

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Notasobreaautora

MônicaLucasgraduou‐seemmúsicanaUniversidadedeSãoPauloeespecializou‐se

nainterpretaçãodamúsicaantiganoRealConservatóriodeHaia(Holanda),obtendo

diplomasemflauta‐doceeemclarineteshistóricos.Coordenadesde2001oConjunto

deMúsicaAntiganaECA‐USP.Seutrabalhocomopesquisadora,financiadodesde2002

pela FAPESP (doutorado, pós‐doutorado e auxílio à pesquisa), envolve o estudo da

instituiçãodaMusicaPoetica.Éautorade"HumoreAgudezaemHaydn:osQuartetos

deCordasop.33"(AnnaBlume/FAPESP,2008).Desde2013,éChefedoDepartamento

deMúsica da ECA‐USP, onde também atua como docente, sendo responsável pelas

disciplinas“HistóriadaMúsica”,"HistóriadaÓpera"e“IntroduçãoàRetóricadaMúsica

Setecentista”.