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Literatura Surda:
produes culturais de surdos em Lngua de Sinais
Cludio Henrique Nunes Mouro
Porto Alegre
2011
2
Capa: Carolina Hessel Silveira
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
Cludio Henrique Nunes Mouro
Literatura Surda:
produes culturais de surdos
em Lngua de Sinais
Porto Alegre
2011
4
Cludio Henrique Nunes Mouro
Literatura Surda:
produes culturais de surdos
em Lngua de Sinais
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao da Faculdade de Educao da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como
requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre
em Educao.
Orientadora:
Prof. Dra. Lodenir Becker Karnopp
Linha de Pesquisa: Estudos Culturais em Educao
5
Cludio Henrique Nunes Mouro
Literatura Surda:
a produo cultural de surdos
em Lngua de Sinais
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao da Faculdade de Educao da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como
requisito parcial para obteno do ttulo de mestre
em Educao.
Orientadora:
Prof. Dra. Lodenir Karnopp
Aprovada em: ___/___/____.
Prof. Dra. Lodenir Becker Karnopp Orientadora
Prof. Dra. Adriana Thoma UFRGS
Prof. Dr. Edgar Roberto Kirchof ULBRA
Prof. Dra. Madalena Klein UFPel
6
Dedico Comunidade Surda Brasileira,
cuja lngua prpria e cultura
fazem parte da minha vida...
7
AGRADECIMENTOS NESTE MOMENTO
Aos meus queridos pais e famlia
na terra maranhense, e
Anna Mouro, Wilson e famlia
na terra So Caetano do Sul/SP.
Muitssimo obrigado por acreditarem em mim,
com f e sem dvida,
longe de mim...
mas...
esto dentro e profundamente no...
meu corao .
minha mulher, Carolina Hessel
por apoio total e puro corao com flores coloridas...
minha sogra Rosa Hessel por fazer parte da minha rvore
e aumentar mais as folhas para eu crescer...
minha Tia Lidia Marinho por amizade sincera,
saudade do bom tempo entre brincadeira e implicncia.
A Shaula (canina) por apoio Au au...
- traduzindo carinho.
Aos meus amigos Nelson Pimenta e Fbio de Mello,
pelo descobrimento do mundo dos surdos...
Aos meus amigos e colegas
que compartilharam comigo durante bom tempo
na terra maranhense, carioca e gacha,
principalmente na dana...
s escolas de surdos,
que abriram as portas, possibilitando
as experincias de trabalhos
e compartilhamento com os alunos, professores, funcionrios e diretorias.
Aos meus colegas e babs (tutores)
no Plo UFSM, por tudo, que inesquecvel...
Ronice Quadros e professores
do curso de Letras/Libras - 2006 (indito no Brasil)
pelas aprendizagens e conhecimentos.
8
Aos meus colegas
com as professoras Lodenir Karnopp e Adriana Thoma,
por atividades e energias compartilhadas
durante as aulas
na UFRGS/FACED.
A minha orientadora Dra. Lodenir Karnopp,
pela amizade crescente com sua presena,
que me empurrou para engatinhar, deu mamadeira das palavras,
ajudou na evoluo de conhecimentos,
pela pacincia, apoio e carinho...
Aos professores da UFRGS/FACED,
que meus olhos abriram para a subjetividade refletida,
com emoo, sentimento, desafio,
fazendo crescer os conhecimentos...
As intrpretes de Lngua de Sinais na UFRGS/FACED
pela presena em aulas e eventos.
A dra. Adriana Thoma, dr. Edgar Kirchof e dra. Madalena Klein,
pela guerra de sugestes, idias e apoio,
que me fizeram brotar as folhas (conhecimentos e reflexo) da rvore.
Por fim, agradeo a Deus pelos meus passos, protegendo e iluminando
para o caminho certo...
Mais uma vez, obrigado Deus, por existir o ser surdo e a Lngua de Sinais!
9
Meu silncio no como o silncio de vocs.
Meu silncio verdadeiro seria o de ter
os olhos fechados, as mos paralisadas,
o corpo insensvel, a pele inerte.
Um silncio do corpo.
Emamnuelle Laborit (1994)
10
RESUMO
Com o propsito de investigar a manifestao das produes culturais dos surdos em
histrias que so contadas em Libras, o foco da pesquisa a anlise da forma como os surdos
vm apresentando e construindo a Literatura Surda, com foco na lngua de sinais. A partir
disso, os objetivos so desdobrados na anlise das temticas e do uso da lngua de sinais, ou
seja: verificar quais histrias os surdos tm contado, como so caracterizadas essas histrias e
quais so os temas apresentados, e analisar o uso da lngua de sinais e os recursos expressivos
utilizados. A base terica foi buscada nos Estudos Culturais e Estudos Surdos, em autores
como Hall (1997), Karnopp (2006, 2010), Quadros (2004), Klein e Lunardi (2006), Sutton-
Spence (2008), Lopes e Thoma (2004), Perlin (2004), Silveira (2006), Strobel (2008). O
material emprico que subsidia a investigao foi obtido atravs das atividades desenvolvidas
por alunos do Curso de Licenciatura em Letras-Libras, ensino distncia, da Universidade
Federal de Santa Catarina. Optei pela coleta de materiais produzidos (filmados, disponveis
em DVDs) na disciplina de Literatura Surda e, alm disso, realizei entrevistas que subsidiam a
anlise dos textos produzidos em Libras, verificando o depoimento dos alunos sobre as
histrias selecionadas, o uso da lngua de sinais e dos recursos expressivos utilizados. As
produes analisadas se dividiram em tradues e adaptaes de histrias conhecidas,
incluindo personagens surdos, procurando marcar uma produo da cultura surda..
Palavras-chave: Cultura Surda, Estudos Culturais, Estudos Surdos, Libras, Literatura Surda.
11
ABSTRACT
Aiming at investigating the manifestation of deaf cultural production in
stories recounted in Libras, the research focuses on the analysis of how deaf ones manage to
introduce and construct the Deaf Literature emphasising on the sign language. From this,
objectives are unfolded when analysing themes and use of the language sign, that is, checking
which stories deaf ones have recounted, how these stories are characterised and what are the
themes deaf ones have presented, and analysing the use of the language sign and its
expressive resources used. The theoretical base comes from the Cultural Studies and Deaf
Studies in writers such as Hall (1997), Karnopp (2006, 2010), Quadros (2004), Klein
andLunardi (2006), Sutton-Spence (2008), Lopes and Thoma (2004), Perlin (2004), Silveira
(2006), Strobel (2008). We have found the empirical material supporting the investigation in
activities students attended in a Libras Language Programme and in distance education at the
Federal University of Santa Catarina. I have chosen to collect produced materials (films on
DVDs) at the discipline of Deaf Literature. Furthermore, I made interviews supporting Libras
text analysis, checking testimony students gave about selected stories, sign language use and
its expressive resources used. Productions we have analysed were of two kinds: translations
and adaptations of known stories, including deaf characters, seeking to highlight a deaf
culture product.
Keywords: Deaf culture, Cultural Studies, Deaf Studies, Libras, Deaf literature.
12
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AVEA Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem
ASL American Sign Language (Lngua de Sinais Americana)
EAD Ensino Distncia
EUA United States of America (Estados Unidos da Amrica)
FENEIS Federao Nacional de Educao e Integrao de Surdos
GES Grupo de Estudos Surdos
INES Instituto Nacional de Educao de Surdos
IPA Centro Universitrio Metodista
LIBRAS Lngua Brasileira de Sinais
LS Lngua de Sinais
NTD National Theatre of the Deaf EUA (Teatro Nacional do Surdo)
SSRS Sociedade dos Surdos do Rio Grande do Sul Porto Alegre/RS
ULBRA Universidade Luterana do Brasil
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
UFSM Universidade Federal de Santa Maria
13
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 Folder (15x15) - Espetculo Catirina. Atrs Tapuios e Rajados, em Frente 1 Vaqueiro (2 Vaqueiro com varas, atrs do Chico e Catirina), Amo,
Chico, Miolo do boi (meio) e Catirina .......................................................................... 26
Figura 2 Panfleto (20x22) - Espetculo Nordestenamente:Uma viagem pelas danas e festas populares do Nordeste ........................................................................... 26
Figura 3 Folder: Cia Surda de Teatro, Grupo Lado a Lado. . Folder (15x20). Em 1999, espetculos em Rio de Janeiro/RJ no INES e o V Congresso Latino-Americano
de Educao Bilnge para Surdos, realizado em Porto Alegre/RS, na UFRGS ........... 28
Figura 4 Cia Teatro Absurdo. Panfletos (20x20). Espetculos eventos no Rio de Janeiro/RJ ...................................................................................................................... 30
Figura 5 Espetculo Nelson 6 ao vivo. Folder (12x20): Local: Teatro Calil Haddad, Maring\PR 2005, espetculos em vrias cidades do Brasil ......................... 33
Figura 6 Espetculo Nelson 6 ao vivo. Panfleto (15x20) local: Teatro GACEMSS, Volta Redonda\RJ 2004 .......................................................................... 34
Figura 7 Desenhos de Cludio Mouro ...................................................................... 35
Figura 8 Pierre de Rosard ............................................................................................ 50
Figura 9 Dorothy Miles ............................................................................................... 51
Figura 10 Livros com histrias adaptadas ................................................................... 56
Figura 11 Livros de criao de surdos .......................................................................... 57
Figura 12 livros de literatura infantil: O Canto de Bento e de A Famlia Sol, L, Si..., ambos da autora Mrcia Honora, 2008 ................................................................ 58
Figura 13 Variaes em sinais da Libras ..................................................................... 62
Figura 14 Traduo de Portugus/ Libras ................................................................... 65
Figura 15 Exemplos de traduo para a Libras ........................................................... 67
Figura 16 Exemplos de piadas em Libras . .................................................................. 67
Figura 17 Abertura e usurio / senha ............................................................................ 70
Figura 18 Disciplina de Literatura Surda .................................................................... 71
Figura 19 Cenas de O cavalo e as amigas Hienas (Grupo 1) .. ................................. 73
14
Figura 20 Cenas de Chapeuzinho Vermelho (Grupo 2) .. ......................................... 74
Figura 21 Cenas de Joo surdo p de feijo (Grupo 3) . ........................................... 76
Figura 22 Cenas de A festa no cu (Grupo 4) ......................................................... 77
Figura 23 Cenas de Trs Porquinhos e um Lobo (Grupo 5) . ................................... 78
Figura 24 Cenas de A Cigarra e as Formigas (Grupo 6) . ......................................... 81
Figura 25 Cenas de Shrek (Grupo 7) . ...................................................................... 82
Figura 26 Cenas de Pinquio Surdo (Grupo 8). ....................................................... 83
Figura 27 Cenas de Paixo dos Gatos (Grupo 9) .. ................................................... 85
Figura 28 Cenas de Os Sete Cabritinhos e o Lobo (Grupo 10) ............................... 87
Figura 29 Cenas de Joo e Maria (Grupo 11) .......................................................... 88
Figura 30 Cenas de Chapeuzinho Vermelho Surda (Grupo 12) ............................. 90
Figura 31 Site: http://sites.google.com/site/claudiomourao/ ........................................ 92
Figura 32 Representao Surda em desenho de Cludio Mouro .............................. 111
Figura 33 Divulgando I Mostra Literatura Surda.................................................... 117
15
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Utilizao de Ilustraes e Recursos Expressivos ...................................... 94
Quadro 2 Utilizao de Cenrio e tipo de apresentao ............................................... 96
Quadro 3 Tipos de Produo Literria ....................................................................... 97
Quadro 4 Sntese de utilizao de diversos recursos de apresentao de histrias ..... 98
Quadro 5 Analisando Cenrio e forma de apresentao ............................................. 99
Quadro 6 Analisando o Processo de Produo Literria ........................................... 100
16
SUMRIO
1 INTRODUO ........................................................................................................ 17
1.1 PERTENCIMENTOS E EXPERINCIAS ............................................................. 21
1.2 CONSTITUIO DA MINHA IDENTIDADE SURDA ...................................... 24
1.3 TERRITRIO ......................................................................................................... 34
2 RECONHECER A CULTURA .............................................................................. 40
2.1 ARTEFATOS CULTURAIS ................................................................................... 44
2.2 LITERATURA SURDA: UM POUCO DA HISTRIA; ADAPTAO E
CRIAO DE HISTRIAS ........................................................................................ 49
2.3 TRADUO APROFUNDANDO O TEMA ...................................................... 61
3 CAMINHOS TERICO-METODOLGICOS: A LITERATURA SURDA
PRODUZIDA PELOS ACADMICOS PESQUISADOS ....................................... 69
3.1 CURSO DE LETRAS-LIBRAS .............................................................................. 69
3.2 ANLISE DOS MATERIAIS NARRATIVAS PRODUZIDAS PELOS
ALUNOS ....................................................................................................................... 71
3.3 DOCUMENTAR AS ENTREVISTAS ................................................................... 91
3.4 REALIZANDO ANLISES .................................................................................... 93
3.4.1 Analisando os Materiais (DVDs) ....................................................................... 93
3.4.2 Anlisando os quadros ...................................................................................... 97
3.4.3 Anlise das entrevistas .................................................................................... 101
4 REPRESENTAO DOS SURDOS E LITERATURA SURDA (DA LNGUA
DE SINAIS) ................................................................................................................ 109
5 CONSIDERAES FINAIS: AS MOS NO TERMINAM AQUI ............... 113
REFERNCIAS ......................................................................................................... 119
ANEXOS ..................................................................................................................... 124
ANEXO A .................................................................................................................... 125
ANEXO B ................................................................................................................... 126
ANEXO C - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ...... 131
17
1 INTRODUO
Para comear... uma carta!
Para comear, trago um texto que escrevi em forma de carta durante as aulas com a
Prof Dr Adriana da Silva Thoma, atividade em que todos os alunos escreveram uma carta,
trocando com os colegas na sala de aula, na disciplina A Constituio de Identidades e da
Diferena Surda no Campo da Educao do curso de Ps-Graduao em Educao da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS/FACED, durante o 1 semestre de
2009.
A carta...
Bom, escrever a carta? Hum! Interessante que vamos escrever a carta para cada colega ou
interagir com pessoas durante aulas, vamos conhecer alguns segredos da vida, ou seja, histrias
individuais... Vou tentar escrever a minha histria! Falarei de mim? Nossa que vergonha! Prepare-se,
vamos comear: Quem Cacau?
O Cacau surdo, nome completo Cludio Henrique Nunes Mouro, ex-danarino
profissional, mas, por enquanto, ele ainda danarino. Pode acreditar? J imaginou como ele ouve a
msica ou o ritmo, apesar de ser surdo? Ele Formado em Educao Fsica em Licenciatura no
IPA/2007, em Porto Alegre-RS; professor de teatro e dana; professor de Libras; estudante do curso
de Letras/Libras, Plo UFSM; e mestrando na rea educao na UFRGS. Nasceu em So Lus-MA,
terra do boi... Ops! Foi mal, quero dizer que a terra do bumba-meu-boi, conhecida pelas festas
juninas durante o ms de junho. Nasceu surdo... Opa! Tambm, nasceu para dana... Ento, viveu
duas vidas em caminhos diferentes: danando e os lendo os lbios oralizado.
Vamos falar de dana: ele danarino artstico, bailarino profissional, coregrafo. Desde
criana que ele gostava de danar, quando havia festas ou aniversrios, sempre estava ali para
danar no meio do povo, das crianas e at mesmo dos adultos, no sei explicar por que ele amava
dana! Como eu disse antes, ele nasceu para dana, notou? Certa poca, Cacau ganhou uma bolsa de
estudos para danar jazz: esta foi a primeira experincia de dana, ficava apaixonado por essa
experincia e acabou ficando durante um bom tempo. Mais tarde, ele ganhou vrias bolsas de estudo
para dana popular, bal clssico, bal contemporneo, nos melhores companhias de dana do
Maranho como bailarino profissional. At chegou o dia em que ele fazia parte das melhores
companhias de dana do Maranho como bailarino profissional. Aos 24 anos de idade, ele recebeu
convite para morar no Rio de Janeiro e ao mesmo tempo em que ganhou outras bolsas de estudos
para dana de salo, bal clssico, jazz. Passou na audio (teste) para fazer parte da Cia de Dana
18
Carlinhos de Jesus e ficou durante 8 anos, fizeram shows em vrios lugares como TVs, teatros,
empresas, etc., em todos os estados do Brasil e no exterior.
Agora, vamos falar sobre oralizado, Hum! Essa histria feia. Como todos sabem as
crianas surdas atrasam no processo de aquisio de linguagem como Cacau, na escola regular, ou
seja, nas propostas de incluso em que os surdos no tm contato com a lngua de sinais. Se voc
quiser saber e aprofundar sobre Aquisio da Linguagem, sugiro a leitura de livros e teorias sobre
aquisio da linguagem (Karnopp 1994, Quadros 1997, Karnopp 1999,...) que tem toda a explicao,
tambm o que ser oralizado e ser surdo. Ele viveu vida toda nas escolas regulares at ensino mdio.
Acredita se quiser, ele conheceu o mundo surdo e da Lngua de Sinais quando ele tinha 24
anos no Rio de Janeiro e descobriu sua lngua prpria surda, ou seja, lngua natural atravs de
comunicao em Lngua de Sinais. Com o bom tempo, um surdo fazia poemas e ele viu e ficou
emocionado, caiu um pingo de lgrimas e clareza natural.
Em 1999, o descobrimento de identidade, navegou em um navio por um bom tempo entre terra
maranhense e carioca, ele tinha duas identidades: fingir ser ouvinte e o verdadeiro ser surdo.
Identidade fingir ser ouvinte: ele viveu no meio de crculo ouvinte, algo que tem limite por
vrios motivos, ele sabe que deficiente auditivo, mas no sabe qual identidade e jamais imaginou o
que identidade? Mas ele sempre dizia: EU SOU SURDO e na ficha coloca escrito deficiente
auditivo, mas ele no sabia a diferena e sempre pensou que surdo e deficiente auditivo era o mesmo
significado.
Identidade ser surdo: ele descobriu lngua de sinais que tem comunicao natural entre os
surdos ou povo surdo, que tem cultura surda como piada, poema, Literatura Surda, etc. No s
objetivo comunicao, mas lngua que tem estrutura de Libras, gramtica, sistema, lingstica,
competncia e outros, como outra lngua.
Afinal, qual identidade dele?
Ele vendeu identidade fingir ser ouvinte e comprou identidade ser surdo, ser surdo
algo natural e pura comunicao pelo visual atravs da Libras.
O Cacau surdo: esse sou eu e tenho orgulho de ser surdo!
-------------------- / / ----------------------
19
Como me narro? Sou humana, sou Surda,
usuria de Lngua de Sinais (LS),
participo na Comunidade Surda
(no vivo sem Comunidade Surda)...
(Silveira 2006, p. 9)
Hum! Literatura Surda? O que representa a Literatura Surda? Ser que a Literatura
Surda est dentro do crculo da cultura surda? Essas so algumas perguntas que motivaram a
pesquisa em torno da Literatura Surda. Com essa pesquisa, indico que as identidades surdas e
os sujeitos surdos esto envolvidos em prticas sociais, adquirindo as subjetividades de
fbricas culturais e trazendo em forma de discursos as representaes surdas.
Hum! Interessante conhecermos um pouco da longa histria do povo surdo1, para
podermos comprovar que atravs de obras de vrios autores e pesquisadores a Literatura
Surda atravs do povo surdo se faz presente h muitos sculos. Como sabemos, h milhares
de anos no existiam escritas e as histrias circulavam somente pela oralidade, passando de
gerao a gerao. No mesmo caminho o povo surdo utiliza a sinalidade2, passando de
gerao a gerao histrias em lnguas de sinais. No entanto, mesmo existindo obras e
autores, recente o uso da temtica Literatura Surda, mesmo que os surdos contassem e
recontassem histrias, narrativas, piadas e vrios gneros literrios atravs da comunidade
surda. A noo de Literatura Surda comeou a circular em alguns pases da Europa e nos
Estados Unidos, principalmente onde havia escolas de surdos. Em 1864 foi fundada a
Universidade Gallaudet (Gallaudet University)3, em Washington D.C.; com o passar do
tempo, os sujeitos surdos, acadmicos e pesquisadores construram significados em torno da
Literatura Surda, espalhando para seus prximos, na comunidade surda, como nos encontros
de surdos, escolas de surdos, associao de surdos etc. Alguns alunos surdos estrangeiros
formados na Universidade Gallaudet voltaram para sua terra natal, espalhando-os a notcia
para sua comunidade surda local, como escolas de surdos, associao de surdos, etc. Os
acadmicos e pesquisadores comearam a divulgar materiais empricos, fazendo distribuio
de livros, vdeos, etc. de fontes da Literatura Surda, da qual fazem parte a cultura surda e
identidades surdas.
1 Povo Surdo: conjunto de sujeitos surdos que no habitam no mesmo local, mas que esto ligados por uma
origem, tais como a cultura surda, costumes e interesses semelhantes, histrias e tradies comuns e qualquer
outro lao. (Strobel, 2006) 2 Sinalidade o termo que utilizo nesta Dissertao para a produo lingustica em sinais de surdos, assim
como o termo oralidade tradicionalmente utilizado para o ouvinte. 3 Gallaudet University para saber mais, acesse: http://gallaudet.edu/
20
No fcil definir a Literatura Surda. Como no h uma definio ou uma nica
conceituao para literatura em geral, tambm no h uma definio nica para Literatura
Surda... H vrios anos que se alteram os seus significados de literatura at os dias de hoje.
Cito Lajolo (2001, p. 25):
O que literatura? uma pergunta complicada justamente porque tem
vrias respostas. E no se trata de respostas que vo se aproximando cada
vez mais de uma grande verdade, da verdade-verdadeira. Cada tempo e,
dentro de cada tempo, cada grupo social tem sua resposta, sua definio.
Respostas e definies v-se para uso interno.
A proposta desta dissertao, assim, investigar a manifestao das produes
culturais dos surdos em histrias que so contadas em Libras. O foco da pesquisa a anlise
da forma como os surdos vm apresentando e construindo a Literatura Surda, atravs do uso
da lngua de sinais. A partir disso, os objetivos so desdobrados na anlise das temticas e do
uso da lngua de sinais nesta literatura, ou seja, eles so seguintes:
a) Verificar quais histrias os surdos tm contado, como so caracterizadas essas
histrias e quais so os temas apresentados;
b) Analisar o uso da lngua de sinais e os recursos expressivos utilizados.
Para desenvolver esta pesquisa, divido a dissertao em 5 captulos. Nestes captulos
da minha dissertao h diferentes maneiras de pensar, experincias vividas, leituras e
estudos. Naveguei durante um bom tempo para pescar os conhecimentos e comi bastante das
palavras e significados, compartilhei pedaos de po com outros, ativei o crebro e o motor
das mos e do visual, que agora podem compartilhar entre as muitas perguntas algumas
respostas.
No primeiro captulo, na seo Pertencimentos e Experincias, que esta, apresento
os meus interesses de pesquisa e o surgimento de meu interesse pelo tema Literatura Surda.
Busco tambm contextualizar a utilizao da expresso Literatura Surda. Mais
especificamente, na seo Constituio da minha Identidade Surda apresento minha
experincia vivida com a dana, apresentaes artsticas e culturais, o encontro com artistas
surdos, com a comunidade surda e com a lngua de sinais. Na seo Territrio relato
experincias vividas, aspectos da comunidade surda e conhecimentos adquiridos.
No captulo Reconhecer a Cultura..., trago inicialmente um breve histrico da
comunidade surda e comunidade surda brasileira, que fizeram um movimento entre a
positividade e negatividade; fala tambm sobre artefato atravs da cultura surda.
21
Na seo Literatura Surda: um pouco da histria; adaptao e criao de histrias
trago os registros das histrias de surdos, materiais em livros, DVD(s), representaes, assim
como diferenas entre traduo, adaptao e criao de histrias.
No terceiro captulo, com o ttulo Caminhos tericos-metodolgicos: a Literatura
Surda produzida pelos acadmicos pesquisados, falo sobre a situao do curso de
Letras/Libras e disciplinas, atravs Ensino a Distncia (EAD), sobre a metodologia de coleta
de materiais de DVD(s) atravs de grupos de alunos no Plo UFSM com resumos de cada
grupo que foram gravado em DVD(s). Entrevistei cada grupo perguntando sobre como foi
organizado o grupo, como construram as atividades, como surgiu a idia, como foi expressa
pelo grupo, como era a atividade. Essas perguntas foram respondidas por email e gravados em
WEBCAM. Depois analisei o material que foi filmado e produzido em DVDs, buscando
caractersticas gerais e organizando: tabelas, sobre Ilustraes/Imagens, Cenrio, e Processo
Produo Literria. Verifiquei tambm as categorias de anlise das entrevistas, que
representam as experincias em seus grupos.
Na quarto captulo, denominado Representao dos Surdos e Literatura Surda (da
Lngua de Sinais), aprofundo a questo da representao dos surdos e Literatura Surda.
No quinto captulo trago Consideraes finais: as mos no terminam aqui, a partir
da experincia em que naveguei no barco dos Estudos Culturais em que pesquei entrevistas no
Plo UFSM e matrias produzidas em DVD(s). Descobri que todas as caractersticas gerais,
entre entrevistas e materiais em DVD(s) so importantes, so algo que envolve prticas
discursivas e crescentes atividades da Literatura Surda, integrando a representao surda.
1.1 PERTECIMENTO E EXPERINCIAS
Escut-las [as histrias] o incio da aprendizagem para ser um leitor,
e ser leitor ter um caminho absolutamente infinito
de descoberta e de compreenso do mundo...
Abramovich (2002, p. 16)
A literatura no est em um nico territrio, mas est presente em vrios territrios e
em fronteiras de diferentes pases. A literatura iniciou pela oralidade, foi passando de gerao
a gerao, depois surgiu a escrita. Cada pas conta suas narrativas, diferentes histrias atravs
22
das prprias comunidades. Assim, atravs das narrativas, as histrias so contadas para as
pessoas e identificadas como pertencendo literatura japonesa, literatura rabe, literatura
chinesa, literatura grega, literatura brasileira, literatura indgena entre outras. Tribos
indgenas, na terra brasileira ou em diferentes territrios, trazem a literatura indgena atravs
da oralidade, passando de gerao a gerao, ainda at os dias de hoje. A Literatura Brasileira
do sc. XVI, considera-se que foi iniciada com a carta de Pero Vaz de Caminha, sobre o
Descobrimento do Brasil, explicando detalhes do que havia acontecido na terra brasileira.
Sobre a Literatura Brasileira, Bosi (1987, p. 15) afirma:
Os primeiros escritos de nossa vida documentam precisamente a instaurao
do processo: so informaes que viajantes e missionrios europeus
colheram sobre a natureza e o homem brasileiro (...). Dos textos de origem
portuguesa merecem destaque:
a) A Carta de Pero Vaz de Caminha a El-rei D. Manuel, referindo o descobrimento de uma nova terra e as primeiras impresses da natureza
e do aborgene. (...)
No sc. XVII, comeou o Barroco no Brasil por intermdio dos jesutas, ligando a
literatura arquitetura e escultura. Aps dois sculos, temos outra obra importante com
Gregrio de Matos (1636-1696), que produziu poesia religiosa, poesia amorosa e poesia
satrica. Tambm se deve citar o orador sacro Padre Antonio Vieira (1608 - 1697), que deixou
a famosa obra Sermes. Cada sculo trazia um movimento literrio como o Arcadismo,
Romantismo, Realismo e outros. H vrias obras, como de Antnio Francisco Lisboa,
conhecido como Aleijadinho nas artes plsticas; Machado de Assis, Castro Alves, Monteiro
Lobato, Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, entre tantos outros autores, os quais
deixaram registros histricos na Biblioteca Nacional (em obras disponveis). Os leitores
podem ler vrios textos literrios; assim os textos orais ou escritos vo sendo passados e
contados s pessoas: (...) para que exista uma literatura preciso certa continuidade, uma
transmisso de experincias que s o estabelecimento em carter regular da relao
AUTORES OBRAS PBLICO possibilita. (GONZAGA, 1989, p. 25). Logo, leitores ou
ouvintes podem ter idia ao ler ouvir textos, possibilitando o surgimento de outros autores e
outras obras literrias. A literatura inclui o conjunto de contos de fadas, poemas, piadas,
crnicas, contos, mitos, lendas e outros gneros. Citando Coelho (1987, p. 10):
A literatura , sem dvida, uma das expresses mais significativas dessa
nsia permanente de saber e de domnio sobre a vida, que caracteriza o
homem de todas as pocas. nsia permanente latente nas narrativas
populares legadas pelo passado remoto. (...) Todas essas formas de narrar
23
pertencem ao caudal de narrativas nascidas entre os povos da Antiguidade,
que, fundidas, confundidas, transformadas... se espalharam por toda parte e
permanecem at hoje como uma rede, cobrindo todas as regies do globo: o
caudal de literatura folclrica e de velhos textos novelescos que, apesar de
terem origens comuns, assumem em cada nao um carter diferente.
Estive refletindo sobre como surgiu a literatura que chegou na Literatura Surda para o
povo surdo. De que forma esse tema est relacionado s identidades surdas, cultura surda e
ao ser surdo? Citando Perlin e Miranda (2003, p.217-218):
Ser surdo [...] olhar a identidade surda dentro dos componentes que
constituem as identidades essenciais com as quais se agenciam as dinmicas
de poder. uma experincia na convivncia do ser na diferena.
[...] ser surdo uma questo de vida. No se trata de uma deficincia, mas de
uma experincia visual. Experincia visual significa a utilizao da viso,
(em substituio total a audio), como meio de comunicao. Desta
experincia visual surge a cultura surda representada pela lngua de sinais,
pelo modo diferente de ser, de se expressar, de conhecer o mundo, de entrar
nas artes, no conhecimento cientfico e acadmico.
Mas como comprovar que os surdos tm uma Literatura Surda? De onde surgiu a
Literatura Surda? Para responder a essas perguntas, trago a noo de comunidade surda, para
afirmar que a Literatura Surda surgiu dentro da comunidade surda4, em associaes de surdos,
em encontros entre os surdos, em bares, colnias de frias, escolas de surdos, etc. Nesses
lugares, os surdos se encontram para bate-mos5, conversam sobre costumes em vrias
localidades, sobre suas experincias, contam histrias. Cito a autora Soares (2006, p. 36) A
literatura vista como cultura regional transmitida, na maioria das vezes, oralmente de forma
que os detalhes podem variar entre os narradores das histrias.
Tradicionalmente, a literatura vista com participando de culturas regionais em que o
sujeito ouvinte conta histrias e uma das possibilidades que todos podem ouvir as histrias,
se emocionar com o que ouvem, refletir e criar mil maneiras de pensar. Podem surgir formas
de se expressar a si mesmo, atravs de piadas e poemas, por exemplo. O mesmo pode
acontecer com o sujeito surdo ao trazer as narrativas da comunidade surda, mostrando
histrias interessantes, que usam as mos e a viso. Tais histrias em geral emocionam e
4 Strobel (2006, p. 32), cita os surdos americanos, Padden e Humphries (2000, p. 5) para afirma: Uma
comunidade surda um grupo de pessoas que vivem num determinado local, partilham os sujeitos comuns dos
seus membros, e que por diversos meios trabalham no sentido de alcanarem estes objetivos. Uma comunidade
surda pode incluir pessoas que no so elas prprias Surdas, mas que apiam ativamente os objetivos da
comunidade e trabalham em conjunto com as pessoas Surdas para os alcanar. 5 Bate-mos o termo correspondente a bate-papo ou conversa ou comunicao pela Lngua de Sinais.
24
exploram o que visualmente produzido na lngua de sinais, que atravs do olhar podemos
sentir e entender. algo que faz rir pela piada, emocionar pelo poema, etc. O surdo ouve pela
viso, e a Literatura Surda surge: como uma rvore balanada pelo vento e a folha, ao cair e
ser levada pelo vento para outros lugares, finalmente pisa na terra, se transforma, adubada e
brota na terra... feliz para sempre. A Literatura Surda emociona aqueles que ouvem pela
viso e transforma, brilha, nos arrepiando. Ento, destacando a viso, reflito que h mil
maneiras de pensar, citando Lebedeff (2005, p. 181):
De acordo com Carter, Carter e Fleischer (2005), os surdos se renem em
associaes e eventos sociais possuindo sua prprias instituies e tradies.
Segundo os autores: os surdos se unem e se aproximam em funo da lngua
de sinais e, a partir dela, desenvolvem sua prpria cultura.
Os surdos, ao contar em histrias dentro da comunidade surda, transmitem para outros
sujeitos surdos, para outras comunidades surdas, a cultura surda, que se espalha pelo pas,
possibilitando tambm a visibilidade da cultura surda atravs da traduo para outros pases.
No somente h traduo para povo surdo, tambm para povo ouvinte, atravs da traduo
para as lnguas faladas.
Mas o que Literatura Surda? Perguntas eternas, permanentes, respostas imprecisas,
vagas, provisrias! Mais do que responder a essa pergunta, talvez o contato com as narrativas,
com os poemas e as histrias que circulam nas comunidades surdas nos tragam evidncias da
forma como os surdos vm apresentando e construindo a Literatura Surda.
1.2 CONSTITUIO DA MINHA IDENTIDADE SURDA
Farei um memorial explicando como surgiu o meu interesse pelo tema da Literatura
Surda, de onde veio e como foi parar em minha mente atravs dos sinais visuais e das mos,
com a lngua de sinais. Tenho muito interesse de entrar com mais profundidade na cultura do
povo surdo, e isso est ligado minha experincia de teatro, dana e expresso corporal,
atravs de vrios espetculos no Brasil e exterior, principalmente com a Literatura Surda e
teatro surdo.
Antes de mais nada, destaco que trabalhei em vrios espetculos de dana e teatro em
So Luis, Maranho, onde nasci. uma longa histria, em que pude me certificar que tenho
25
mais facilidade de me expressar corporalmente. Quando eu era jovem, passava um bom
tempo me relacionando com os meus amigos artistas, por exemplo, quando me encontrava
com eles em bares, em casa ou na praia. A gente aproveitava para brincar com expresso nos
rostos, identificando o que marcava o rosto como triste, amor, mulher, etc. claro que desde
pequeno eu gostava de dana, ia a muitas festas como aniversrios, festas juninas, etc. Toda
minha famlia (todos so ouvintes e sou o nico surdo da famlia) e colegas me motivaram
positivamente para que eu continuasse a gostar de dana. Gostava tambm de filmes, brincava
com meu irmo mais velho, Luis Henrique, no quintal de casa, fazia como ndios contra
soldados, Zorro, etc., imitando os personagens dos filmes. Finalmente, j quase adulto,
frequentava baladas, festas juninas, festa popular, etc. Certa vez, conheci um professor de
dana Jazz, Henrique Serra, que frequentava balada e, assim, ele me ensinou alguns passos
dos movimentos e at brincamos com personagens. Um ano depois, ele me repassou uma
bolsa de estudo para curso de dana jazz; logo integrei um grupo de jazz para me apresentar
em vrios eventos, que foram sucessos. Depois de um ano de dana jazz, conheci artistas,
recebi convites e ganhei bolsa de estudos para cursos de dana popular, bal clssico, bal
contemporneo, performances, nas melhores academias de dana em So Luis/MA.
Finalmente, passei num teste de dana popular e bal clssico que fazia parte da pera Brasil,
dirigida por Fernando Bicudo (era diretor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro) no Teatro
Arthur Azevedo e apresentamos vrios espetculos como Catirina6 (Fig. 1) espetculo de
bumba-meu-boi, misturando dana e teatro; Nordestenamente7 (Fig. 2) e outros. Alm disso,
continuava a danar em sala de aula e me identificava com a expresso corporal.
6 Espetculo Catirina, dirigido por Fernando Bicudo, de 1996 a 1998. Catirina - baseada no Auto do Bumba-
meu-boi do Maranho. O cenrio uma fazenda; Catirina e Pai Francisco (Chico) so casados e os principais
personagens. Catirina est grvida, deseja comer a lngua do boi; Pai Francisco rouba o boi para satisfazer a sua
mulher. O Amo, dono da fazenda, soube e manda perseguir culpado pelos vaqueiros e pelos ndios. O Chico encontrado e levado presena de todos. Catirina, comovida, acaba confessando a culpa. Perdoados, encontram
boizinho que salvo pelos doutores e pajs, reanimando-se e urrando em meio a alegria de todos. 7 Espetculo Nordestenamente, dirigido por Fernando Bicudo, de 1996 a 1998. Nordestenamente um
espetculo de danas e festas populares do Nordeste, em trs ciclos: O grupo junino como a Quadrilha, Xaxado,
Forr, Cco e Ciranda; O grupo afro como Lundu, Maculel, Orixs e Maracatu; e o grupo carnavalesco como o
Frevo e dana do Caboclinho.
26
Chiquinho, Fauno e Catirininha.
Figura 1: Folder (15x15) - Espetculo Catirina. Atrs Tapuios e Rajados, em frente 1 Vaqueiro (2 Vaqueiro com varas,
atrs do Chico e Catirina), Amo, Chico, Miolo do boi (meio) e Catirina.
Figura 2: Panfleto (20x22) - Espetculo Nordestenamente: Uma viagem pelas danas e festas populares do Nordeste
27
Naquela poca, antes de entrar no mundo artstico, eu experienciava duas
possibilidades identitrias. Uma delas era a experincia de fingir ser ouvinte: eu vivia no
meio do territrio falante, onde se encontrava o povo majoritrio e eu precisava fingir ser
como eles para me sentir pertencente quela comunidade. Se eu demonstrasse ser deficiente
auditivo, estaria excludo do territrio falante. Mas, eu entendia como sinnima a relao
entre surdo e deficiente auditivo, era a mesma relao, os dois significavam o mesmo; eu
desconhecia a diferena entre o surdo e deficiente auditivo. Logo que eu entrei no mundo
artstico e artes, me identificava como surdo, sentia que tinha habilidade artstica e era um ser
humano como os outros, mas no sabia que existia cultura surda ou lngua de sinais, que
uma lngua prpria para surdo como primeira lngua, tudo isso era desconhecido para mim.
Quadros e Karnopp (2004) afirmam que a Libras a lngua usada pela comunidade surda no
Brasil e que h estudos que demonstram os diferentes nveis lingsticos (fonologia,
morfologia, sintaxe...) do uso e do funcionamento desta lngua. Apresenta uma gramtica,
sendo utilizada de forma visoespacial. Portanto, no se trata de mmica ou gestos
improvisados, como certos ouvintes s vezes pensam.
Em 1997, recebi convite de Fbio de Mello, um ex-coregrafo da Cia de Dana
Carlinhos de Jesus, para trabalhar no Rio de Janeiro, e l ganhei duas bolsas de estudos:
dana/teatro e teatro surdo. Ele era amigo de Nelson Pimenta8, ator, ex-professor no Centro
Educacional Pilar Velsquez, da escola de surdos, Professor de Libras e Teatro e trabalhavam
juntos num grande espetculo de teatro.
Em 1998, quando eu tinha 24 anos, mudei para Rio de Janeiro, comecei a estudar
lngua de sinais e teatro atravs da comunidade surda e dana/teatro na Casa de Dana
Carlinhos de Jesus. Nessa idade, pela primeira vez entrei em contato com a comunicao pela
lngua de sinais, atravs de Nelson Pimenta. No foi a primeira vez que vi a lngua de sinais,
antes j havia visto na minha terra maranhense, via os surdos na praia ou em pblico.
Lembro-me que eu malhava em uma academia de musculao, tinha um surdo que se
comunicava com um ouvinte atravs da lngua de sinais. Estava fazendo musculao, o
professor me apresentou a eles, eu no tinha idia de como me comunicar. Ao mesmo tempo,
fiquei impressionado que um surdo e um ouvinte estavam se comunicando pela lngua de
sinais. Ento, conversamos bastante pela oralizao, enquanto o ouvinte interpretava com a
lngua de sinais para o surdo, mas jamais imaginei que a lngua de sinais era uma lngua!
8 Nelson Pimenta nasceu em Braslia em 1963, reside no Rio de Janeiro, e foi a primeiro ator surdo a se
profissionalizar no Brasil.
28
Voltemos ao assunto anterior Rio de Janeiro, para continuao. Depois de um ano
de estudo de dana, passei no teste de audio (tipo de seleo) para fazer parte da Cia de
Dana Carlinhos de Jesus. Na Companhia, apresentamos em vrios eventos como em teatros,
novelas, filmes, desfile na comisso de frente da escola de samba da Mangueira, TV, etc.
Viajamos para o interior do Brasil e exterior como Lisboa-Portugal, Peru, Bolvia e outros.
Algumas vezes, pude passar minha experincia de expresso corporal e facial para meus
colegas ouvintes danarinos na Companhia. L tambm fortaleci senso de disciplina, alma,
leveza, representao de personagem, sensibilidade para relacionar sentimentos (alegria,
tristeza) com dana, etc.
Foi nessa poca que aconteceu uma grande surpresa pra mim: a descoberta da lngua
de sinais! Comecei a pesquisar o mundo surdo, ou seja, a cultura surda. Busquei informaes,
aprofundei mais detalhes, de onde vieram, etc. At mesmo no teatro, onde eu no esperava
tanto assim, tinha viso identidade surda: na minha viso, podia identificar expresso
corporal at nas mos, a lngua de sinais. Tudo era comunicao para mim.
Ento, fui convidado para fazer parte de teatro surdo, no espetculo de Nelson
Pimenta, Nelson 6 ao Vivo; na Cia Surda de Teatro, no Grupo Lado a Lado (Fig. 3) e na
Cia Teatro Absurdo (Fig. 4) no Instituto Nacional de Educao de Surdos INES. Fiquei
fascinado com o meio dos surdos artistas e povo surdo, at mesmo com o bate-mos.
29
Figura 3: Cia Surda de Teatro, Grupo Lado a Lado. Folder (15x20). Em 1999, espetculos em Rio de Janeiro/RJ
no INES e o V Congresso Latino-Americano de Educao Bilnge para Surdos, realizado em Porto Alegre/RS,
na UFRGS.
30
31
Figura 4: Cia Teatro Absurdo. Panfletos (20x20). Espetculos eventos no Rio de Janeiro/RJ.
Lembro-me que houve um encontro em um restaurante-pizzaria em So Paulo, numa
mesa comprida, onde eu estava com os surdos para um bate-mos. De repente, uma pessoa,
Sandro Pereira9, surdo, levantou o brao e ficou em p, todos viram que ele disse: Vou fazer
poema para vocs! Eu estava sentado no meio da mesa e pensei assim: Odeio poema! (eu
tinha trauma da escola regular, quando lia poemas, e eu no entendia seu significado,
enquanto outros ouvintes ficavam com lgrimas e emocionados ao ler poemas). Ento, eu
disse, educado e sorrindo: Por favor, comece! Assim, ele fez poema atravs da lngua de
sinais... De repente, fiquei emocionado, cheio de rvores na pele e fiquei com lgrimas nos
olhos brilhantes, pois eu nem esperava tanto assim. Poema surdo me fez descobrir que a
9 Sandro Pereira Surdo, profissional ator e professor, conhecido na comunidade surda da grande So
Paulo/SP. Saiu na revista Sentido, em 06/07/2002: ..."Se examinarem meu sangue encontraro em todas as
clulas TEATRO, teatro. minha vida. Mas no quero que aparea eu, o Sandro, e sim a cultura surda".
Disponvel site: http://sentidos.uol.com.br/canais/materia.asp?codpag=2203&cod_canal=3. Acesso em 13 de
junho de 2009.
Depois sucesso do
espetculo A LIO, em
2002, convidamos os alunos
do INES para fazer parte da
Companhia de Teatro
Absurdo, promovido
pelo INES. Direo de Alexandre Luiz (surdo) e
Breno Moroni. Coreografia
de Cacau Mouro.
32
Lngua de Sinais se tornou minha primeira lngua, a minha lngua prpria, e o portugus
minha segunda lngua. Isso faz parte da cultura surda e me identifica como surdo.
Em 2001, consegui entrar na Faculdade Estcio de S, curso de Educao Fsica em
licenciatura plena; a maior dificuldade que no tinha intrprete de lngua de sinais na sala de
aula. A maior parte do meu estudo era feita com a leitura dos livros, para conseguir
acompanhar as matrias, mas apenas uma porcentagem (mais ou menos 60%, dependendo da
linguagem dos livros) eu conseguia entender nessas leituras, e perdia muitas informaes na
prpria sala de aula. Na faculdade, tinha uma professora de Psicologia que comentou ao meu
respeito com a colega dela, coordenadora da Vila Olmpica Carlos Castilhos10
. A professora
me pediu que eu levasse meu currculo para a coordenadora. No dia seguinte, fui l para
conhec-la e apresentei meu currculo; uma semana depois, recebi email com convite para
trabalhar como estagirio e professor de dana de salo para alunos que moravam prximo da
favela ou bairro, e como professor de Libras para professores de Educao Fsica; fiquei l de
2003 a 2005. No primeiro dia do trabalho, tinha uma nica aluna para dar aula de dana de
salo; ela ficou surpresa que eu era surdo, mas me comunicava pela oralidade (no quer dizer
que sei falar oralmente com perfeio - apenas minha segunda lngua portuguesa); no outro
dia e nos dias seguintes, veio mais gente, porque essa primeira aluna espalhou na favela onde
era conhecida. Ento expliquei para meus alunos e alunas sobre minha lngua de sinais e
cultura surda. Assim, sempre tive mais de 30 alunos na sala de aula naquele lugar.
Quando eu estava no 3 semestre da faculdade, eu soube, atravs da comunidade surda,
que havia intrprete de lngua de sinais na Faculdade Universo, em Niteri-RJ. Por mim, na
hora, me transferi para l, fiquei aliviado que podia entender tudo na sala de aula sem maiores
dificuldades. Notei que, com as novas condies, durante as provas, sempre terminava mais
cedo. Assim, antes na faculdade sem intrprete, eu no tinha bom rendimento notas baixas,
recuperao e reprovao. Depois, na outra faculdade com intrprete, tirava notas boas, nunca
mais fiquei em recuperao e sempre tive bons resultados, simplesmente porque tinha
intrprete de lngua de sinais na sala de aula. nica diferena uma lngua. Essa minha lngua
lngua de sinais como primeira lngua e segunda lngua lngua portuguesa.
Durante bom tempo com Nelson Pimenta, aprendi a observar o jeito de utilizar a
lngua de sinais em alguns poemas surdos, at como contar histrias, fbulas, e cada vez me
fascinava mais a Literatura Surda. Ele morou um ano no EUA, estudou teatro surdo, passou
maior parte do tempo pesquisando na comunidade surda no teatro e poesia. Sutton-Spence &
10
A Vila Olmpica Carlos Castilhos tem ginsio, quadra de esportes, campo de futebol, pista de atletismo e
piscinas para todos os esportes, e um local mantido pela Prefeitura na favela do Morro do Alemo.
33
Quadros (2006, p. 112) afirmam: Nelson Pimenta tambm foi influenciado pela escola
potica americana, crescendo com o trabalho do NTD11
atravs do seu contato com poetas
surdos americanos contemporneos na Universidade Gallaudet12
.
Nelson Pimenta trouxe esses conhecimentos ao Brasil, para espalhar e contribuir com
o grupo de teatro surdo e escolas surdas. Eu fazia parte do espetculo de Nelson Pimenta,
Nelson 6 ao Vivo (Fig. 5 e 6) e outros trabalhos como oficinas e espetculos diferentes em
vrias partes do Brasil; felizmente eu estava por perto dele na maior parte de tempo. Todas as
vezes que fizemos trabalhos, no momento do intervalo ele me contava algumas histrias,
fbulas, at expressava poemas. Durante esse espetculo de Nelson Pimenta, quando eu
estava fora do palco, escondido na cortina, em que as platias no podiam me ver, e ele estava
no meio do palco e interpretava alguns poemas, eu no perdia ele de vista para poder assistir
ao espetculo. Jamais me cansei de v-lo repetir poemas surdos, at viajamos juntos para
fazer espetculos em vrios lugares do Brasil. claro que eu tambm fazia teatro com Nelson
Pimenta, alm de danar; fazamos teatro juntos ou sozinho, enquanto ele trocava roupas ou
vice-versa durante espetculos.
Figura 5: Espetculo Nelson 6 ao vivo. Folder (12x20): Local: Teatro Calil Haddad, Maring, PR 2005, espetculos em vrias cidades do Brasil.
11
NTD - National Theatre of the Deaf (Teatro Nacional de Surdos), Fundada em 1967, por David Hays, no
E.U.A. Disponvel em: http://www.ntd.org/. Acesso em 13 de junho de 2009. 12
Universidade Gallaudet (Gallaudet University) a nica universidade do mundo cujos programas so desenvolvidos para pessoas surdas. Est localizada em Washington, DC, a capital dos Estados Unidos da
Amrica. Acesso em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_Gallaudet. Disponvel em: 13 de junho de 2009.
34
Figura 6: Espetculo Nelson 6 ao vivo. Panfleto (15x20) local: Teatro GACEMSS, Volta Redonda\RJ - 2004
Essa experincia me mostrou como, com poema surdo, tambm teatro surdo, posso
transmitir e expressar a viso do povo surdo para reforar seu poder e identidade. Com base
em Finnegan (1977), Sutton-Spence & Quadros (2006, p. 113) afirmam: Como todas as
lnguas de sinais tradicionalmente no apresentam um sistema escrito, o conhecimento
cultural das comunidades surdas, que passado por meio da lngua de sinais, transmitido
visualmente.
1.3 TERRITRIO...
"Os outros ouvem, eu no. Mas tenho olhos,
que forosamente observam melhor do que os eles.
Tenho as minhas mos que falam..."
"Os que ouvem tm tudo a aprender
com aqueles que falam com o corpo.
A riqueza da sua lngua gestual
um dos tesouros da humanidade."
(Laborit, 1994)
Na infncia e adolescncia das pessoas, no territrio local, existem mltiplas
manifestaes culturais ou diferenas culturais. Manter algumas convivncias e participar de
alguns ambientes, interagir com as pessoas pela comunicao, respeitar um ao outro, enfim,
isso o que costumeiramente fazemos na escola, onde aprendemos a construir a vida. Cada
35
aluno adquire informaes durante as aulas, principalmente na lngua do territrio nacional,
que no somente uma manifestao de lngua, tambm uma prtica de conversao em
diferentes locais, onde encontramos diferenas como as variaes regionais. Costumamos ver
em novelas ou filmes brasileiros que a fala manifesta diferenas locais e pela fala se adquire a
linguagem e se constroem significados.
J no meio da famlia acontecem almoos, jantares, atividades de lazer, e outras
atividades que integram as crianas ou os jovens. Eles sentem prazer de participar de uma
conversao, as palavras voam pelo ar, pela boca, com velocidade, desembarcam nos ouvidos
um do(s) outro(s), que logo vo buscar as malas na esteira e dentro dessas malas existem
milhes de palavras, que habitam na casa do crebro, escolhendo uma das duas estradas:
direita ou esquerda. A direita move o motor para manter o corpo em ordem, enquanto a
esquerda constri as palavras, os significados. Elas sempre mantm contato entre as linhas,
so conectores da transversalidade, os conectores do crebro e do corpo, que envolvem as
prticas sociais, atribuindo valores s palavras e ao mesmo tempo adquirindo mltiplas
formas culturais.
Figura 7: Desenhos de Cludio Mouro
36
J imaginou como seria um surdo no meio do territrio da infncia e da adolescncia?
Relembro da minha infncia e adolescncia em que convivia em um territrio desconhecido,
estava no meio das pessoas, sempre estava l com os outros, via que eles brincavam, jogavam
futebol, enfim. Mas sentia falta de algo em minha vida; no estou fazendo crtica, algo
que no sei explicar, mas como se nada acontecesse. Os outros podiam ficar ali, aqui e l
enquanto eu permanecia parado sem saber o porqu. Mas continuava sorrindo, sem motivo,
buscava algumas coisas para entender o que era aquilo ali, mas continuava entendendo pouco.
Eu olhava meu corpo e crebro: era como eles, o que havia de errado? Eles abriam a boca
dirigindo-se aos outros e vice-versa, enquanto eu tentava imit-los, ser como eles, outras
bocas no respondiam. A diferena para mim estava na boca/fala e brincar, a boca que tentava
imitar o outro. Enquanto isso, eu brincava no meio do territrio da diferena e com o maior
prazer eu participava de natao, futebol de campo, ping-pong, sinuca, dana popular
(quadrilha, forr e outros) e outros tipos de jogos, sem maiores dificuldades. Esse tipo de
jogos fui desenvolvendo nas prticas sociais. Na infncia ficava a maior parte da vida
brincando e assim, fui descobrindo significados dos jogos enquanto a boca era desconhecida.
No quer dizer que nenhum som saa da boca, sabia emitir alguns, com a voz formando
palavras como Mame, Papai, gua, Cachorro, Coc, Casa, Parar, No,
Sim com o mnimo de palavras e sem contexto das palavras. No que fui desenvolvendo
as palavras no meio dos jogos, mas apenas pelo olhar, pois este visual mostrava as regras
dos jogos, sabia exatamente aquilo que podia e no podia, etc..., esse olhar que ensina e
captura os significados, mas isso no veio das palavras. Citando, Laborit (1994, p. 17), sobre
sua experincia de surda com a me ouvinte:
Aprendi a oralizar o -b-c. As letras eram representadas para mim por
movimentos da boca e gestos da mo. (...) Era uma ocupao me-filha. Foi
pela identificao com essa mulher que minha me reaprendeu a falar
comigo. Mas nossa maneira de nos comunicarmos era instintiva, animal,
chamo-a de umbilical. Tratava-se de coisas simples, como comer, beber, dormir. Minha me no me impedia de gesticular, como lhe haviam
recomendado. No tinha coragem de me proibir. Tnhamos signos nossos,
completamente inventados.
Fig. 7: Desenho feito em um momento que eu no agentava e me irritava, por no
entender a aula, onde no tinha intrprete de Lngua de Sinais. Logo senti que precisava de
alguma coisa para me acalmar. Peguei um pedao de papel, desenhei para me expressar.
Na disciplina de Futebol, no ms de maio de 2006, curso de Educao Fsica no Centro
Universitrio Metodista IPA, em Porto Alegre/RS.
37
Na escola o mesmo acontece entre a boca e o brincar; todas as crianas e adolescentes
tm direito de escrever, aprender e brincar, enquanto o indivduo surdo continua escrevendo
como imitao/cpia, pouco aprende e permanece muitas horas sem interagir. Em minha
viso fui descobrindo as palavras que saiam da minha voz pela boca, via as palavras voando
(daquelas que sabia significados). Indivduo surdo, eu sabia que a voz produzia as palavras
e significados, sabia tambm que algo faltava para completar as palavras, as frases, enquanto
que o sujeito ouvinte tem voz completa das palavras. Mas tenho identidade como eles e estou
assujeitado na cultura, sei exatamente como eles so e assim percebo a minha identidade.
Mas, por que no tenho identidade como eles, Voz e boca? Percebia que minha voz era a
grande desconhecida, sem cura para a identidade da voz das palavras.
Mais tarde, logo que naveguei de barco no meio das tempestades, chuvas e cheio de
troves e raios, finalmente o sol apareceu entre as nuvens, brilhou na direo do barco, a
neblina foi abaixando e percebi que no cu era lindo o dia. De repente, vi unicamente duas
mos sem corpo que apareceram voando no cu, como se fossem pssaros, voando
suavemente e me olhando com sorriso, deu sinal de arco-ris. Neste momento, meus olhos
brilharam, logo que arco-ris tocou o cho, vi que a terra vista era chamada Lngua de Sinais.
As rvores se formaram nas mos, uma mo dizia COMUNICAR, outra mo dizia:
ENSINAR, SABER, CONHECIMENTO, ESCRITA, POLITICA, AMOR e
outros. Cito Laborit (1994, p. 69), sobre uma experincia semelhante minha:
Com a descoberta de minha lngua, encontrei a grande chave que abre a
porta que me separava do mundo, posso compreender o mundo dos surdos e
tambm o mundo dos ouvintes. (...) Tinha construdo uma reflexo prpria.
Necessidade de falar, de dizer tudo, de contar tudo, de compreender tudo.
Vi que os sujeitos surdos se comunicam pelas mos que era ento a grande
desconhecida para mim. Desembarquei na terra Lngua de Sinais, os meus ps criaram razes
e descobri que esse meu mundo surdo. Como se uma semente estivesse saindo, formando
rvore de mo, ou seja, nasci em terra surda. Eles so como eu, com o mesmo territrio
visual, cultura e comunicao. Cito Perlin (2004, p.75):
Segundo Hall, (1997, p. 20): A cultura que temos determina uma forma de ver, de interpelar, de ser, de explicar, de compreender o mundo. Ento a cultura agora uma das ferramentas de mudana, de percepo de forma
nova, no mais homogeneidade, mas de vida pessoal, constitutiva de jeitos
de ser, de fazer, de compreender, de explicar.
38
Este territrio surdo algo que completa a vida para o surdo, no focalizando
somente o surdo, mas algo que acontece pela comunicao, aquilo que provoca em cada
um e no outro que recebe a informao, as palavras completas, os significados. Nosso corpo
age sob efeito de emoo, de compreenso, de entendimento, de conhecimento, enfim age
como Lngua. Isto acontece comigo, o ser surdo, que est no territrio surdo e com uma
prpria lngua como a lngua de sinais; e com o ser ouvinte, que est no territrio ouvinte,
com uma lngua prpria como a lngua falada (portugus, ingls, espanhol, etc.). Entre as
crianas ou adolescentes surdos h algo como sensao de prazer enorme que estar na
mesma cultura entre visualidade/gestos, no compartilhando somente o sistema lingstico,
tambm a identidade e ambientes, principalmente na escola com a presena de professor
surdo. No importa se o professor ouvinte ou surdo, importante que saiba fluentemente a
lngua de sinais, que entendam de cultura surda, hbitos, adquirindo a lngua e participando da
comunidade surda. A significao das palavras algo importante de saber e entender, nosso
direito na escola.
As mos, na lngua de sinais, produzem as palavras, voam como a velocidade da luz,
atravessam a viso do outro, desembarcam no aeroporto dos olhos, automaticamente as malas
vo parar no crebro, explodindo os maiores parques do mundo, onde podem brincar de roda
gigante, carrossel, montanha russa. Com as palavras gritando, entre uns e outros, so
produzidas linguagens que se conectam alm do significante/significado, se tornam signos, e
logo nasce o compreender e entender das palavras. Os alpinistas sanguneos (grupos
sanguneos), que carregam os signos, atravessam os braos, em meio rea montanhosa,
vo at o fim, chegando s mos, entregando s mos as palavras/significados que voam para
outra viso, que as recebe, com maior prazer de entendimento. Cito Laborit (1994, p. 67):
(...) me haviam dado uma lngua que me permitia faz-lo. Compreendia que
meus pais tinham sua lngua, seu meio de comunicao, e que eu tinha o
meu. Pertencia a uma comunidade, tinha uma verdadeira identidade. Tinha
compatriotas.
No significa que fechamos as fronteiras na terra surda, mas que somos diferentes
nas culturas e identidades, e interagimos com fronteiras e globalizao - onde se envolvem
prticas, ao e tudo se torna poltica social. A diferena est tambm na lngua, no somos
deficientes, somos minoria lingustica.
Portanto, se eu estivesse na escola de surdos durante a minha infncia, tendo a lngua
de sinais como a primeira lngua e a lngua portuguesa como segunda lngua na modalidade
39
escrita, estariam completas as palavras, significados e informaes. Poderia escrever cedo
com mais detalhes, teria mais histrias, mais leituras, mais poesias, enfim, principalmente
jogos e lazer com os surdos e ouvintes. Se no tivesse descoberto a terra surda, eu nem estaria
formado na faculdade muito menos como mestrando...
40
2 RECONHECER A CULTURA...
Os surdos so diferentes das pessoas que ouvem.
Eles podem fazer qualquer coisa que
os que ouvem fazem, menos ouvir.
(Wrigley, 1996, p. 81)
Recusamo-nos a ser o que vocs querem. Somos o que somos, e assim que vai ser.
Bob Marley
Surdez? Surdo? J pensou nisso ou j ouviu falar qual diferena entre eles?
comum em cursos superiores de formao, que a maioria dos profissionais conclua a
faculdade e aprenda, atravs dos textos, sobre a Surdez com base cientfica, com nfase no
conhecimento comprovado pela rea da sade, como medicina, fonoaudiologia,
otorrinolaringologia, educao especial. Tais reas enfatizam prioritariamente (ou
exclusivamente) a relao do surdo com o deficiente, enfim, sem ao mnimo fornecer
informaes sobre cultura, identidade, diferena e lngua. Neste sentido, quais representaes
os profissionais adquirem sobre os surdos? Na rea da sade, temos uma longa histria que
dominava o territrio surdo com o objetivo de transform-lo, a partir de prticas ouvintistas13
.
J se passaram sculos de muita batalha, de prticas colonialistas, mas os surdos continuam
mantendo em p rvores de sinais, visuais no ar, borboletas na mo, chuvas de lgrimas e
terremotos de emoo e sentimento. Compartilho com Skliar (1998, p. 7):
Foram mais de cem anos de prticas enceguecidas pela tentativa de correo,
normalizao e pela violncia institucional; instituies especiais que foram
reguladas tanto pela caridade e pela beneficncia, quanto pela cultura social
vigente que requeria uma capacidade para controlar, separar e negar a
existncia da comunidade surda, da lngua de sinais, das identidades surdas e
das experincias visuais, que determinam o conjunto de diferenas dos
surdos em relao a qualquer outro grupo de sujeitos.
Temos uma longa histria, de avanos e retrocessos, sculos de opresso e resistncia,
mas gostaria de registrar o que chamo de Terremoto Surdo, a partir de alguns registros que
so contados como a histria dos surdos, entre milhares de histrias que so narradas,
13
Ouvintismo Trata-se de um conjunto de representaes dos ouvintes, a partir do qual o surdo est obrigado a olhar-se, e nesse narrar-se que acontecem as percepes do ser deficiente, do no ser ouvinte; percepes que
legitimam as prticas teraputicas habituais. (Skliar, 1998, p. 15)
41
admiradas, interessantes, enfim como positividade ou como um Terremoto Surdo. Um
Terremoto Surdo aconteceu em 1880, em uma Conferncia Internacional, em Milo, Itlia,
em que foram banidas as Lnguas de Sinais, obrigando-se que os surdos fossem oralizados,
obrigando-se a ter identidade auditiva. Houve, com isso, um grande impacto, como se um
cometa tivesse cado no Territrio Surdo, explodindo como a bomba atmica. Por pouco que
no foram extintos, mas os surdos sobreviveram e assim recomearam a reconstruir a vida de
surdo. Citando Mouro (2007, p. 11):
Existia o ensino como educao para surdos, at tiveram professores surdos
que ensinaram Lngua de Sinais naquela poca.
No ano de 1880, foi realizada uma conferncia internacional em Milo com
o objetivo de discutir o futuro da educao para os surdos. Foi questionado
se o ensino deveria se dar em Lngua de Sinais ou atravs do Oralismo. O
mtodo oralismo venceu por vrios motivos, dentre eles, devido idia de
que sem fala no existe pensamento, filosofia de Aristteles, etc. Isto
demitiu professores surdos aps Congresso.
Outro autor, Carvalho (2007, p. 90) relembra:
Apesar das decises do Congresso de Milo de 1880 que proibiam a
utilizao da Lngua Gestual nas escolas, os surdos continuaram a agrupar-
se. A Lngua Gestual continuou a transmitir-se de gerao em gerao graas
aos jovens surdos, principalmente os internos das escolas residenciais, que
continuavam a exprimir-se em Lngua Gestual s escondidas, evitando os
castigos dos educadores ouvintes.
Conseqentemente, as escolas proibiram o uso da lngua de sinais, impondo somente
oralismo; se algum usasse a lngua de sinais, era castigado ou batiam nas mos; alm
disso, foram demitidos os professores surdos. Fao duas citaes sobre o oralismo:
Oralismo: (...) A concepo do sujeito surdo ali presente refere
exclusivamente um dimenso clnica a surdez como deficincia, os surdos como sujeitos patolgicos em uma perspectiva teraputica. A conjuno de idias clnicas e teraputicas levou em primeiro lugar a uma transformao
histrica do espao escolar e de suas discusses e enunciados em contextos
mdicos-hospitalares para surdos. (PERLIN 1998, p. 59).
E, citando Moura (2000, p. 52):
O oralismo se baseou em muitas tcnicas, que foram se desenvolvendo com
o avano da tecnologia (eletroacstica: aparelhos de ampliao sonora
individual e coletivo, para um maior aproveitamento dos restos auditivos),
das investigaes na reabilitao da afasia e dos trabalhos na clnica
42
fonitrica (Snchez,1990). Todos se baseavam na necessidade de oralizar o
Surdo, no permitindo a utilizao de sinais.
Atravs do livro Os Surdos, os Ouvintes e a Escola: narrativas, tradues e histrias
capixabas (Vieira-Machado, 2010) e do DVD Narrativas surdas capixabas (Vieira
Machado, 2008), podemos comprovar como so comuns as narrativas de surdos mais velhos,
que comentam como batiam mos e relatam suas experincias escolares, na comunidade
surda. A autora, Vieira-Machado, filha ouvinte com pais surdos e era uma criana que
frequentava com os surdos a associao de surdos. Destaca a experincia de surdos com a
escola:
(...) Nessas interpretaes, eu prestava muita ateno s falas indignadas
recorrentes. Lembro-me bem delas: Os professores batem nas mos, Eles obrigam a falar, Inimigos dos sinais, etc. E eu perguntava aos meus pais: Mas como bate as mos? errado... Pai, por que no pode usar sinais? Claro que pode usar sinais. Eu sei que errado o que os ouvintes falam. Eles dizem que os sinais so dos macacos. Mas no so dos macacos. So
dos surdos. Por um acaso, os surdos so macacos? (VIEIRA-MACHADO 2010, p. 23)
Na escola de surdos, somente professores ouvintes trabalhavam para que os alunos se
desenvolvessem e praticassem a oralizao. Durante a sala de aula, como de costume, um
professor ouvinte ficava escrevendo no quadro negro, enquanto alunos surdos ficavam atrs,
em bate-mos com maior silncio (ainda existe at dia de hoje). Alm disso, alguns alunos
surdos moravam na escola (internato), conheciam as regras da escola, ento, acontecia na hora
de dormir, que todos deitavam na cama enquanto funcionrio da escola verificava se estava
tudo em ordem. Mas alguns minutos ou horas depois, todos iam ao banheiro como de
costume, mas qual era o motivo? Fazer pipi ou xixi? Negativo! Era para bate-mos, pode?!
Eles combinavam fazer encontros em outros locais, fora da escola ou ficavam no meio de
parques ou escondidos no centro da cidade, etc. Segundo Moura (2000, p. 52):
A lngua de sinais continuava a ser utilizada pelos Surdos tanto nas escolas
como onde os Surdos adultos se encontrassem. Ela era proibida, mas como
aconteceu no decorrer dos sculos, continuou viva onde quer que os surdos
se encontrassem. Nas escolas, a metodologia poderia ser oral, mas nos
dormitrios (no caso de escolas residenciais), no recreio, em qualquer
momento em que os Surdos se encontrassem fora do domnio de seus
professores e determinadores de seus comportamentos, a sua comunicao se
dava atravs da lngua que lhes pertencia.
43
Em casa de famlia ouvinte com filho surdo, surdo ficava impaciente sem
comunicao, por isso, fugia ou fingia que ia fazer passeio ou, por exemplo, ia jogar futebol e
ficavam desviando para ir ao encontro de outros surdos. Como afirmei acima, citando Mouro
(2007, p.11):
A comunicao de surdos, atravs da Lngua de Sinais, se dava em
ambientes escondidos, como por exemplo, no banheiro, no ptio das escolas,
nos quartos de internatos, antes de dormir, e nos pontos de encontros de
surdos. Devido a esse fato, a Lngua de Sinais nunca se extinguiu,
permanecendo como lngua na vida dos surdos.
At os dias de hoje, a maioria dos profissionais que atuam na rea de sade, educao,
cincias desconhecem histria dos surdos. Podemos ver que a rea da sade, como a
Medicina, obedece a certas regras, centradas no corpo humano. Para eles, desse ponto de
vista, h a preocupao com o ouvir e com o som, objetivando que o ouvido seja curado
para poder transformar o surdo da orelha (sem som) em milagre da orelha (cura), ou seja,
sujeito surdo deveria se transformar em ouvinte, inserindo-se principalmente no oralismo,
sem considerar o direito que o sujeito surdo tem de opinar e escolher o territrio surdo.
Mouro (2007, p. 1) afirma:
Ao longo da histria, existem relatos negativos sobre surdos desde a
Antiguidade, mas ainda hoje as pessoas desconhecem o que ser uma pessoa
surda, geralmente a consideram como doente ou portadora de um defeito. O
desconhecimento do mundo surdo: seu dia-a-dia, sua lngua, seus costumes,
sua cultura... pode prejudicar na educao de surdo, transformando-a num
ensino clnico. O ensino clnico quer normalizar os surdos para tornarem-se iguais aos ouvintes. comum pessoas falarem que os surdos no sabem,
tm falta de conhecimentos; alm de j serem rotulados deficientes, doentes at incapacitados.
Notamos que foram anos de contato com a comunidade surda, transmitindo um ao
outro e seguindo em frente, acreditando em nossos valores, na lngua de sinais para
comunicao e na visibilidade da diferena/identidade. Como sabemos, os surdos ou
membros da comunidade surda foram construindo processos sociais, prticas discursivas,
polticas educacionais, foram produzindo significados, se envolvendo entre o conhecimento e
o poder, constituindo a cultura surda e identidades surdas. Eles atravessaram a fronteira do
territrio ouvinte, buscaram informaes, estudaram para construir conhecimentos prprios,
buscaram a rea acadmica, escolas e curso de graduao. Alguns surdos compartilharam com
os/as colegas ouvintes, participaram de grupos de pesquisas, tornaram-se professores, fizeram
44
doutorados, dando visibilidade e empoderamento ao povo surdo, cultura das comunidades
surdas, principalmente nossa lngua de sinais.
Muitos deles so considerados heris, surdos ou ouvintes, pois continuam at os dias
de hoje estudando o campo. Temos registros da histria de surdo, como os americanos
Willian Stokoe (1965), surda Carol Padden e Tom Humphries (1988); surda francesa
Emmanuelle Laborit (1994); britnico Oliver Sacks (1998), surda portuguesa Marta Morgano
(2009) e os brasileiros tal como Ronice Quadros (2006, 2007), Lodenir Karnopp (2004,
2006), Carlos Skliar (1998), Adriana Thoma (2004), Mrcia Lunardi (2006), Madalena Klein
(2006), surda Karin Strobel (2008), surda Gladis Perlin (1998, 2003, 2006), surda Carolina
Hessel Silveira (2007), surda Shirley Vilhava (2009), surda Emiliana Rosa (2009), surdo
Nelson Pimenta (2006), entre outros, que contam histrias para que ns surdos possamos
reconhecer nossa ptria de sinais.
Surdez um termo recorrente na rea clnica, que se preocupa em focalizar o ouvido
para propor a cura. Nesse caso, a abordagem clnica produz prticas consideradas ouvintistas,
cujo objetivo fazer o deficiente auditivo14
ser ou parecer um ouvinte. Como Bianca Ribeiro
Pontin, surda, fez frase para pensar15
: Todos os Surdos so deficientes auditivos, mas nem
todos deficientes auditivos so Surdos. Citando Wrigley (1996, p. 94):
Assim a surdez vista como uma diferena que deveria ser por fim abolida, seja atravs de tticas a curto prazo polticas de assimilao e prticas de amplificao acstica ou atravs de consertos neurocirrgicos permanentes e os sonhos finais de geneticamente produzir um pool de gens
purificados.
2.1 ARTEFATOS CULTURAIS
Estando nos espaos da cultura surda pode-se dizer
que muito bom ser surdo hoje. A vida surda
hospedeira com seu espao de comunidade.
(PERLIN; MIRANDA 2003, p. 222)
14
O Deficiente auditivo o sujeito nico, centrado e homogeneizado, constitudo a partir de um discurso cientfico, mdico e teraputico, tem sido considerado como o problema a ser solucionado pela instituio escola e clnica atravs de prticas e metodologias reabilitadoras da audio e da fala. (Lunardi, 1998, p. 162) 15
Frase de Bianca Ribeiro Pontin no blog Palavra ao Vento: O MUNDO DOS SURDOS: Saiba como vivem os surdos e aprenda sobre a sua cultura. De Jerusa Campani e Sayuri Kubo. Disponvel site:
http://sazinhaaa.blogspot.com/2010/03/o-mundo-dos-surdos-saiba-como-vivem-os_6923.html. Acesso em maro
de 2010.
45
Os artefatos culturais criam representaes sobre como o surdo. A cultura que
caracteriza um local, onde convivem os sujeitos, construda nos processos sociais e prticas
discursivas, atravs dos artefatos culturais. As manifestaes das tradies culturais, dos
valores e das artes de diferentes grupos correm o risco de desaparecer com o tempo, mas para
que no desapaream, essas manifestaes so frequentemente modificadas, hibridizadas,
tendo a possibilidade de circular em muitos locais.
Costumamos assistir a produes culturais de territrios locais, por exemplo: dana do
frevo tpica do estado de Pernambuco; dana de Bumba-meu-boi do estado do Maranho;
Samba tpico do estado do Rio de Janeiro; dana de CTG - Centro de Tradies Gachas
do estado do Rio Grande do Sul entre outros. Assim percebemos as manifestaes culturais
no jeito de falar, na comida tpica, (como comida baiana, maranhense etc.), nas roupas tpicas
(o jeito brasileiro, italiano ou japons etc.). Mas essas no so formas puras ou com um jeito
nico de se manifestar. Tais produes culturais tambm so frequentemente hibridizadas,
modificadas. Dessa forma, podemos comer churrasco na Bahia, acaraj no Rio de Janeiro,
sambar no Rio Grande do Sul e danar ax no Maranho.
As comunidades surdas manifestam traos de sua cultura no territrio local, onde
habitam ou se encontram os surdos, no convvio dos sujeitos surdos e atravs de processos
sociais e discursivos da cultura surda. Os adultos surdos contam as narrativas para as crianas
surdas como poemas surdos, piadas surdas, narrativas surdas, e outros.
Acredito que importante trazer a temtica cultura e cultura surda. Em geral, costuma-
se dizer que cultura faz parte do povo e de seus costumes compreendendo seu modo de vestir,
sua comida, sua lngua, sua crena, lendas e mitos, enfim so manifestaes de suas prticas
sociais. Utilizo o conceito de cultura segundo Hall (1997, p. 33):
O que aqui se argumenta, de fato, no que tudo cultura, mas que toda prtica social depende e tem relao com o significado: conseqentemente,
que a cultura uma das condies constitutivas de existncia dessa prtica,
que toda prtica social tem uma dimenso cultural. No que no haja nada
alm do discurso, mas que toda prtica social tem o seu carter discursivo.
Ento, como entendemos cultura surda? Os modos de vida de surdos em seus
territrios ou em cada regio, suas prticas sociais e os discursos produzidos em sua prpria
lngua ou em outras, isso circula, produz e se consome. O mesmo acontece em comunidades
surdas, que compartilham as experincias e as diferenas entre as fronteiras. Para Karnopp
46
(2010, p. 04), a nfase na dimenso centralizadora de uma cultura universal tem
impossibilitado o aparecimento de processos culturais existentes em comunidades de surdos.
Portanto, cultura surda se manifesta em formas e discursos; isto , forma de sinalizar
como lngua de sinais e experincias visuais, compreendendo o mesmo mundo, formas de
contar, narrativas, piadas, poemas. Os surdos tambm frequentam ambientes como associao
de surdos e eventos como olimpada surda, encontro de jovens surdos, colnias de frias, etc.
todos em modalidade visual e prticas sociais. Cito Perlin e Miranda (2003, p. 218):
Experincia visual significa a utilizao da viso, (em substituio total a
audio), como meio de comunicao. Desta experincia visual surge a
cultura surda representada pela lngua de sinais, pelo modo diferente de ser,
de se expressar, de conhecer o mundo, de entrar nas artes, no conhecimento
cientfico e acadmico. (...)
Como podemos relacionar cultura surda com Literatura Surda? Como podemos
encontrar o material de Literatura? Uma parcela do povo brasileiro costuma ler livros ou ver
os CD-ROM de Literatura (clssicos, conto de fadas, crnicas, contos e outros), nas escolas
ou faculdades, casas e outros lares, para que os leitores sintam prazer de leitura! No somente
so os leitores que possuem materiais, pois tambm existe literatura disponvel em sites
(gratuitamente), at leitura de livros de imagem, que mostram somente figuras. interessante
porque que os leitores aumentam vocabulrio, seus conhecimentos gerais, exercitam a
imaginao, reflexo.
Como se apresenta a Literatura Surda? Antes eu nem imaginava, nem nunca pensei
nisso! Depois que convivi com a comunidade surda, eles comentaram que existiam materiais,
achei interessante. Resolvi procurar e encontrei materiais em CD-ROM como As aventuras de
Pinquio (Carlo Lorenzini); Iracema (Jos de Alencar); O alienista (Machado de Assis);
Alice no pas das maravilhas (Lewis Carroll) e outros, em Libras/Portugus e alguns livros de
Literatura Surda como Cinderela Surda (SILVEIRA; ROSA; KARNOPP, 2003); Rapunzel
Surda (SILVEIRA; ROSA; KARNOPP, 2003); Patinho Surdo (ROSA; KARNOPP, 2005);
Ado e Eva (ROSA; KARNOPP, 2005); Tibi e Joca, (BISOL, 2001); e outros. Todos esses
CDs e livros de certas maneiras fazem parte da cultura surda. Segundo Strobel (2008, p. 56):
A literatura se multiplica em diferentes gneros: poesia, histria de surdos,
piadas, literatura infantil, clssicos, fbulas, contos, romances, lendas e
outras manifestaes culturais. Karnopp faz referncia a respeito desse
artefato cultural: [...] utilizamos a expresso literatura surda para histrias que tm a lngua de sinais, a questo da identidade e da cultura surda
presentes na narrativa [...].
47
Todos esses artefatos trazem informaes e sensaes que entram na minha mente,
sinto que se espalham como se corressem no meu sangue, me emocionam e me inspiram, pois
posso transmitir aos outros, para que os surdos obtenham empoderamento e sua diferena
cultural seja visibilizada.
Em 2006, mudei para Porto Alegre e me transferi para o Centro Universitrio
Metodista IPA, continuando o curso de Educao Fsica, claro que com intrprete de lngua
de sinais. Mais tarde, consegui ingressar na Universidade Federal de Santa Maria, no curso de
Letras/Libras, na modalidade de Ensino a Distncia (EAD), no qual cursei uma disciplina de
Introduo aos Estudos da Literatura (1 semestre). Naquela disciplina, houve uma
distribuio de tarefas e cada um tinha que elaborar e apresentar poemas. Ento, fui o
primeiro, e apresentei o poema Deusa Ronice & Virgem Santa Maria (na aula presencial do
Plo UFSM, 2007 anexo A CD ROM) e, no outro dia, a partir da temtica Romantismo -
Uma mo com 5 dedos (presencial, na aula no Plo UFSM, anexo A CD ROM).
Sucessivamente, compartilhamos experincias com colegas durante aulas, sobre como fazer
poemas, como se expressar e quase houve encontro do Sarau Poesia Surda; s no foi
possvel por vrios motivos, como excesso de trabalhos, ou falta de tempo, etc.
Alm disso, na mesma poca eu trabalhava no Centro Social Marista Mario Quintana,
em Gravata-RS, como professor de teatro e dana para alunos surdos, e tambm de Libras.
Um dia fizemos ensaio geral com alunos surdos para se apresentarem, com o espetculo
Amazonas e Paz (algumas partes continham poemas). Assim, houve sucessivamente
apresentao em alguns eventos at numa apresentao na pr-festa da Sociedade dos Surdos
do Rio Grande do Sul, em comemorao aos 45 anos da SSRS16
, em 2007.
Em 2009, no mesmo Plo da UFSM17
, finalmente cursei a disciplina de Literatura
Surda, com Prof Lodenir Karnopp. Houve uma distribuio de tarefas e cada grupo tinha que
elaborar e apresentar trabalhos para os colegas. Ento, reunimos um grupo na casa do nosso
colega e fizemos a traduo do conto A Mulher e sua Galinha e a adaptao do conto
infantil Trs porquinhos (presencial, na aula no Plo UFSM, anexo A CD ROM).
Posteriormente na sala de aula, demos muitas risadas, discutimos, refletimos sobre a
atividade. E aproveitamos a idia para usar em outras escolas, oficinas e outros, atravs do
nosso grupo, pois somos professores de Libras.
16
SSRS Sociedade dos Surdos do Rio Grande do Sul Porto Alegre/RS. 17
Plo UFSM: EAD Ensino Distncia do Plo Universidade Federal de Santa Maria, curso de Letras/Libras 2006.
48
Com essas experincias, das quais eu nem esperava tanto, percebi a possibilidade de
mostrar e desenvolver com alunos surdos, na escola, a arte surda e a Literatura Surda.
Podemos ver que temos cultura surda e estamos vivendo um momento de seu
reconhecimento, de querer aprofundar mais e buscar ativamente conhecer e explorar o tema
Literatura Surda. Creio que podemos ver os livros com histrias clssicas de literatura,
escritas por ouvintes, pesquisar e adaptar, fazendo uma releitura da histria a partir da cultura
surda ou mesmo podemos buscar inspirao para criar outros textos, tais como poemas
surdos. Citando Perlin e Strobel (2006, p. 34):
(...) cultura surda constituda de significantes e significados, tal como
contada nas narrativas surdas. Vejamos alguns aspectos da cultura surda
contidos nas narrativas surdas. Primeiramente temos narrativas pedaggicas
onde enfatiza o jeito surdo de ensinar, onde apela por estratgias de ensino
visuais, transmisso de conhecimentos em lngua de sinais, com presena de
professores surdos; (...)
Podemos tomar como ponto de anlise o estudo feito por Sutton-Spence e Quadros,
que escreveram um artigo que analisa como os temas e a linguagem usada na poesia em
lngua de sinais se constituem para criar e traduzir a cultura surda e a identidade das pessoas
surdas (2006, p. 1
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