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Universidade de So Paulo- USP
Programa de Ps Graduao em Cincia Ambiental - PROCAM
Comitiva de boiadeiros no Pantanal Sul-Mato-Grossense: modo de vida e leitura da paisagem
Fig. 1 - Sr. Z Preto atravessando a boiada no rio Cerradinho. Abobral. Acompanhamento segunda Comitiva.
Maria Olivia Ferreira Leite
So Paulo, 2010
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MARIA OLIVIA FERREIRA LEITE
COMITIVA DE BOIADEIROS NO PANTANAL SUL-MATO-GROSSENSE:
modo de vida e leitura da paisagem
v. 1
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Cincia Ambiental (PROCAM) da
Universidade de So Paulo para obteno do ttulo
de Mestre em Cincia Ambiental.
Orientadora: Profa. Dra. Sueli Angelo Furlan
So Paulo, 2010
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
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FOLHA DE APROVAO
Maria Olivia Ferreira Leite
Comitiva de boiadeiros no Pantanal Sul-Mato-Grossense: modo de vida e leitura da paisagem.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Cincia Ambiental da Universidade de So Paulo
para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Ambiental
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ______________________________________________________________
Instituio: ________________________________ Assinatura: __________________
Prof. Dr. ______________________________________________________________
Instituio: ________________________________ Assinatura: __________________
Prof. Dr. ______________________________________________________________
Instituio: ________________________________ Assinatura: __________________
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Aos boiadeiros do Pantanal,
que tanto me inspiraram no trajeto desta pesquisa,
por sua beleza, sabedoria e coragem.
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AGRADECIMENTOS
Esta dissertao no poderia ter sido realizada sem a contribuio dos boiadeiros. Portanto,
primeiramente, quero agradecer a todos estes por compartilharem suas histrias e
conhecimentos, em especial ao v Alfredo e Ramon Miranda. Do mesmo modo, foram
essenciais as colaboraes dos entrevistados Juarez, Jos Aparecido (Barriga), Sr. Sebastio
Rolon e Lus Martins (Bigu). Ao Sr. Oscar (Seu Z Preto), que sempre foi disposto a
colaborar.
Pousada Xaras e a Fazenda Nossa Senhora do Carmo pelo apoio durante todo o trajeto
desta pesquisa e tambm, por me possibilitarem participar de uma Comitiva. Ao
Hidephotgraphy, especialmente ao fotgrafo Csaba pelas timas fotos fornecidas.
Ao casal Dona Edite e Sr. Wilson e Pousada Caiman, em especial, Csar e Lousiane, pelo
carinho e autorizao para o acompanhamento das Comitivas.
Ao Programa de Ps-Graduao em Cincia Ambiental PROCAM, pela oportunidade
do curso de mestrado, especialmente, ao secretrio Luciano e Priscila, pelas gentilezas e
apoio prestado, que foram alm de suas obrigaes. Ao Departamento de Geografia pelo
solicto atendimento.
Ao Programa de Apoio Ps-Graduao PROAP da Coordenao de Aperfeioamento
de Pessoal de Nvel Superior Capes, pela concesso de bolsa auxlio para a realizao dos
trabalhos de campo.
A minha orientadora Profa. Sueli Angelo Furlan, por ter acreditado na minha capacidade
e pelas suas fundamentais contribuies. Aos professores Wagner Ribeiro, Prof. Antnio
Carlos Diegues, e em especial ao Prof. Euler Sandeville, por compartilharem seu
conhecimento e tambm pelas orientaes preciosas ao desenvolvimento deste estudo.
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Aos colegas da USP, especialmente a Juliana Moreno, que se mostrou to disposta a
contribuir com leituras, sugestes, edio e ainda escutar minhas angstias. Ao seu esposo
Fbio, por tambm ter colaborado.
A Profa. Albana Nogueira e ao Prof. Erom Brum por terem me recebido de braos abertos e
compartilharem seus conhecimentos sobre a cultura pantaneira.
Ao Schumacher College por conceder-me uma bolsa de estudos integral para o curso
Indigenous peoples & the natural world: Is ancient wisdom important to the modern
world?. A participao neste curso no s transformou este trabalho, mas tambm promoveu
uma rica experincia de vida.
minha me Teca, peo desculpas pelas ausncias e agradeo por estar sempre ao meu
lado. A senhora um exemplo para mim!
Ao Joo Simas, pelo companheirismo, pacincia, e por tanto me ensinar acerca de sua
vivncia pantaneira!
Aos meus familiares, que tanto me apoiaram e aconselharam nos momentos mais difceis,
minha irm Denise, Tia Neidinha, Tia Cida, Tio Zezinho, Tia Maria do Carmo, Telma, Pri,
Flavinha. Em especial, aos primos Raquel e Benardo pelas orientaes, Bia, pelo amor com
que sempre me hospedou em So Paulo, ainda me ajudando com correes no texto e Ana
Maria pelas correes do resumo em ingls.
Aos amigos que me incentivaram e me aconselharam em diversos momentos, Marcel, Beth,
ao casal Patrcia e Arnaud. Ao Thiago e Mari, pelas lindas fotos cedidas.
A Alessandra Fontana, que caminhou comigo durante todo o mestrado, alm de contribuir
com correes textuais. sua me Vera, que tambm me hospedou carinhosamente.
No tenho palavras para agradecer todos vocs, mas os agradecimentos so de corao!
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Para ser grande, s inteiro: nada
Teu exagera ou exclui
S todo em cada coisa. Pe quanto s
No mnimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Fernando Pessoa.
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RESUMO
Esta dissertao aborda o modo de vida e a leitura da paisagem dos boiadeiros no Complexo
Pantanal Sul-Mato-Grossense. Os boiadeiros representam parte dos trabalhadores da pecuria,
uma importante atividade econmica nesta regio. Montados em burros, atravessam diversas
paisagens viajando at meses, conduzindo grande quantidade de gado pertencente a
pecuaristas. Devido escassez de material disponvel na literatura foram coletados relatos,
principalmente, de entrevistas com interlocutores locais, suas histrias de vida e atravs do
acompanhamento presencial de Comitivas de boiadeiros. Para compreenso do tema adotou-
se a concepo de paisagem como lugar no contexto de populaes tradicionais, considerando
o significado dado pelas experincias vividas e representaes simblicas. A descrio
contextualizada de Geertz (1989) trouxe contribuies metodolgicas para fundamentar o
trabalho de campo e auxiliar na interpretao dos dados. Deste modo, buscou-se esboar o
universo cultural do boiadeiro, descrevendo a estrutura e o cotidiano desta atividade, que
segue o ritmo das guas do Pantanal, estabelecendo as fases de enchentes, cheias, vazantes e
estiagens. Alm disto, por meio de relatos de boiadeiros foram elaborados mapas de alguns
dos roteiros destas viagens, identificando-se os marcos referenciais da paisagem cultural e um
matiz de linguagens como estratgias de orientao. A interpretao de dados proporcionou
uma discusso sobre as contradies e adaptaes no modo de vida dos boiadeiros frente s
mudanas econmicas e sociais, reconhecendo sua persistncia, singularidade e complexidade
como um conhecimento extreitamente integrado s paisagens pantaneiras. As reflexes nesta
pesquisa pretendem apontar uma diferente perspectiva, de acordo com a importncia do valor
cultural dos boiadeiros pantaneiros.
Palavras - Chaves: Comitiva de boiadeiros; Pantanal; leitura da paisagem; populaes
tradicionais; modo de vida.
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ABSTRACT
This dissertation discusses the way of life and the landscape reading of cattle drovers in the
South-Mato-Grosso Pantanal Complex. The drovers represent part of the workforce in the
cattle raising, which is an important economic activity in this region. Mounted on donkeys,
they cross different landscapes, traveling even for months and driving a large number of herds
owned by ranchers. Due to the scarcity of available research material in literature, data was
collected mainly from interviews with local counterparts about their life stories and through
the monitoring of cattle drovers grouped together. To comprehend the theme, it was adopted
the landscape conception as a place in the context of traditional people, taking into
consideration the meaning given by life experiences and symbolic representations. The
contextual description of Geertz (1989) brought methodological contributions to support the
field work and to assist in data interpretation. Thus, we attempted to sketch the cultural
universe of the drovers, describing the structure and daily life of this activity, which follows
the rhythm of the Pantanal waters, establishing the stages of rising waters, floods, receding
waters and droughts. Moreover, maps of some itineraries of these trips were drawn through
drovers reports, identifying the landmarks and a tinge of languages as strategic orientation.
The data interpretation provided a discussion about the contradictions and changes in the way
of life of drovers once facing economic and social changes, recognizing its persistence,
uniqueness and complexity as a closely integrated knowledge to the Pantanal landscapes. The
reflections in this research intend to target a different perspective, according to the importance
of the cultural value of the Pantanal drovers.
Key-words: Cattle drovers, Pantanal, reading landscape, traditional people, way of life.
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LISTA DE FIGURAS1
Fig. 1 - Sr. Z Preto atravessando a boiada no rio Cerradinho. Abobral. Acompanhamento
segunda Comitiva. ...................................................................................................................... 1 Fig. 2 - V Olvia, eu e minha irm Denise ( direita). ............................................................ 25
Fig. 3 - Fazenda Sanharo (avs maternos). ............................................................................. 25 Fig. 4- V Baslio, minha irm Denise e prima Telma ( direita). ........................................... 25 Fig. 5 - Refgio Ecolgico Caiman. Miranda-MS. (Fonte: Refgio Ecolgico Caiman). ....... 27 Fig. 6 - Trabalhando como guia (de costas, explicando sobre a palmeira Acuri): Trilha
Cordilheira do X. ...................................................................................................................... 27
Fig. 7- Trabalhando como guia (em p, prxima a baa), informando sobre o passeio de canoa.
.................................................................................................................................................. 27 Fig. 8 - Sada da Comitiva na Fazenda Caiman. Primeiro acompanhamento presencial de uma
Comitiva de boiadeiros (ao meu lado direito est o Condutor Sr. Ramon Miranda, logo atrs
est o seu pai, Sr. Alfredo, e ao fundo esto os Meeiros, Fiadores e um acompanhador do
Retiro Santa Via, Fazenda Caiman). ...................................................................................... 27 Fig. 9 Ciclo das guas e boiadeiros no Pantanal-MS. ( esquerda seguindo o sentido da seta: 1. Enchente: Ponte sobre o Rio Miranda. Segunda Comitiva. 2.Cheia: Travessia Rio
Cerradinho. Segunda Comitiva. 3. Vazante: Ponteiro Morcego. Primeira Comitiva. 4. Seca:
Sada de Comitiva da Fazenda Ftima). Montagem das fotos: Juliana Moreno. ..................... 37 Fig. 10 - Observao participante (primeira comitiva). minha esquerda, os boiadeiros V
Alfredo, Ramon, Morcego e Zumba. ........................................................................................ 63
Fig. 11- minha esquerda, Zumba e direita Morcego, com berrante. Primeira Comitiva. .. 64 Fig. 12 - Sapo, minha montaria. Terceira Comitiva. ................................................................ 65
Fig. 13 - Sr. Alfredo Miranda, pai de Ramon ........................................................................... 68 Fig. 14 - Cozinheiro annimo seguindo viagem. Faz. Nossa Sra do Carmo. ........................... 68
Fig. 15 - Sr. Z Preto trabalhando na estao da cheia. Fonte: Pousada Xaras. ..................... 69 Fig. 16 Juarez Rodrigues da Silva. ........................................................................................ 71 Fig. 17 Sebastio Rolon ......................................................................................................... 71 Fig. 18 Luis Martins (Bigu) ................................................................................................. 71 Fig.19-Jos Aparecido F. da Silva (Barriga). Fonte: Pousada Xaras. .................................... 71 Fig. 20. Quadro Colaboradores. ............................................................................................... 71 Fig. 21 - Comitiva da Fazenda Redeno no ponto de pouso da Fazenda Nossa Senhora do
Carmo. ...................................................................................................................................... 75 Fig. 22 - Rdio em ponto de parada, na Comitiva da Fazenda Redeno. ............................... 83
Fig. 23 - Juarez. Fonte: Mari Baldissera. .................................................................................. 84
Fig. 24 - Seu Z Preto tomando terer. ..................................................................................... 85
Fig. 25- Bomba ......................................................................................................................... 85 Fig. 26 - Guampa e bomba amarradas a traia. ......................................................................... 85 Fig. 27 - Sr. Jair (Beto Carreiro), Wilson e Barba tomando terer durante a marcha. ............. 86 Fig. 28 - Isopor (apelido). Detalhe do chapu enfeitado com lacres de latas de alumnio. .... 87 Fig. 29 - Sr. Z Preto trabalhando com o couro de vaca para uso na prpria tralha. Fonte:
Pousada Xaras. ........................................................................................................................ 88 Fig. 30 Ramon. Detalhe para acessrios. Fonte: Thiago Rocha. ........................................... 88 Fig. 31 - Boiadeiro annimo. Ponto de pouso, fazenda Nossa Senhora do Carmo. ................. 89 Fig. 32 - Ponteiro Lus com o arreiador, surrando o animal. (terceira Comitiva)................. 89 Fig. 33 Uso do reio por Ramon Miranda. Fonte: Thiago Rocha ........................................... 90
1 As fotos que no possuem fonte so de autoria da pesquisadora.
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Fig. 34- Sada da terceira Comitiva. Cozinheiro e tropa cargueira passando frente da boiada.
.................................................................................................................................................. 93 Fig. 35- Sr. Geraldo dirigindo trator at o local de sada da primeira Comitiva acompanhada.
Zumba (boiadiero) direita. ..................................................................................................... 97 Fig. 36 - Simulao das funes dos boiadeiros em Comitiva. .............................................. 102 Fig. 37- Ponteiro Lus tocando o berrante. ............................................................................. 104
Fig. 38. Ponteiro Morcego na Comitiva Fazenda Caiman ( 2005). Fonte: Thiago Rocha. .... 104 Fig. 39 - Contagem de bois pelo Condutor. Terceira Comitiva. ............................................ 106 Fig. 40 Acompanhador de fazenda e Cozinheiro Dourado. ................................................ 109 Fig. 41 - Cozinheiro Dourado encilhando burro cargueiro (bruacas em baixo, dobros
dispostos sobre a mesma e lona para cobri-los). .................................................................... 110
Fig. 42- Burro cargueiro encilhado. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha. ..................... 110
Fig. 43- Mula cargueira encilhada. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha. ...................... 110 Fig. 44 Ponto de pouso Fazenda Buriti. Terceira Comitiva. ............................................... 110 Fig. 45 - Ponto de pouso. Redes armadas. Fonte: Csaba Gdny. ........................................ 111 Fig. 46. Tropa formada (em fila organizada) ..................................................................... 111 Fig. 47 Marcas dos boiadeiros em ponto de parada (cinzas e postes para redes). ............... 112 Fig. 48 - Cozinheiro e sua cozinha. Fonte: Csaba Gdny .................................................... 112 Fig. 49. Organizao da cozinha. Pesquisadora e Ramon Miranda. ...................................... 114 Fig. 50 Cozinheiro Gilberto preparando arroz carreteiro. Comitiva Caima. Fonte: Thiago Rocha (2005) .......................................................................................................................... 114 Fig. 51 Cozinheiro Gilberto preparando almoo. Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha (2005) ..................................................................................................................................... 114
Fig. 52- Organizao da cozinha. Panelas de comida sobre trempe e o fogo. Outros utenslios
sobre pequena mesa de madeira. ............................................................................................ 116
Fig. 53 - Bule de caf e coador. Panela com gua fervida, colher de concha e canecas de caf.
................................................................................................................................................ 116
Fig.54- Latas d gua penduradas em figueira (Fcus sp), colheres de concha, caneca maior para pegar gua, menores para beb-la . ................................................................................ 116 Fig. 55 Poeira no estrado: terceira Comitiva. .................................................................... 120 Fig. 56 - Estouro de boiada na travessia do Rio Abobral. Comitiva da Nossa Senhora de
Ftima. .................................................................................................................................... 121 Fig. 57 Amanhecer no ponto de pouso da fazenda Nossa Senhora do Carmo. Comitiva
desconhecida. .......................................................................................................................... 125 Fig. 58. Canto de cerca. Fazenda So Bento. ......................................................................... 127 Fig. 59 - Porteira de varas. Fazenda Nossa Senhora do Carmo. ............................................ 128
Fig. 60 Simbra. Fazenda Nossa Senhora do Carmo. ........................................................... 128 Fig. 61 - Porto. Fazenda Nossa Senhora do Carmo. ............................................................. 128
Fig. 62 Mata- burro. Faz. Nossa Senhora do Carmo. .......................................................... 128 Fig. 63 Cocho. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ................................................................... 128 Fig. 64 Ponte sobre o Rio Abobral. Segunda Comitiva. Pousada Xaras. .......................... 129 Fig. 65 Comitiva Caiman. Fonte: Thiago Rocha. ................................................................ 129 Fig. 66. Poo na invernada Antena. Faz. Nossa Senhora do Carmo. Terceira Comitiva. ...... 129
Fig. 67 Corredor Faz. So Bento. Regio Abobral. ............................................................. 130 Fig. 68 Aterro. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ................................................................... 130 Fig. 69 Boiadeira Central. Faz. So Carlos (seta branca indica estrada). ............................ 130 Fig. 70 Estrada dgua. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ..................................................... 131 Fig. 71. Batida de Boiada. Regio Abobral ............................................................................ 131 Fig. 72 Estrada de cascalho. Regio Nabileque................................................................... 131 Fig. 73. Magro (apelido) na Comitiva da Fazenda Caiman. Fonte: Thiago Rocha. ............... 132
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Fig. 74 - Asfalto. BR164. Regio Nabileque. ......................................................................... 132
Fig. 75 Marca de boiadeiro em rvore. ................................................................................ 135 Fig. 76 Escrito de boiadeiro em ponto de pouso. ................................................................ 135 Fig. 77Escrito boiadeiro em pouso. ...................................................................................... 135 Fig. 78 Restos de cinza em ponto de pouso. ........................................................................ 135 Fig. 79. Lixo em pontos de pouso (montagem). ..................................................................... 135
Fig. 80 Rabo de burro (A. bicornis). Regio Abobral. ........................................................ 137 Fig. 81 - Pasto formado com humidcula. Regio do abobral. ............................................... 137 Fig. 82Carandazal (Copernicia Alba) ................................................................................... 137 Fig. 83 Estrada com mato fechado. Primeira Comitiva. Regio Aquidauana/ .................... 137 Fig. 84 Campina. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ............................................................... 138 Fig. 86 Cordilheira. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ........................................................... 138 Fig. 87 Capo. Refgio Ecolgico Caiman ......................................................................... 138 Fig. 88 Raque e pecolo de Acuri como espeto de churrasco. ............................................. 138 Fig. 85 - Campina ................................................................................................................... 138 Fig. 89- Fedegoso (Cassia occidentalis L.): ........................................................................... 139 Fig. 90- Erva de Santa Luzia (Euphorbia hirta L.): ............................................................... 139 Fig. 91- Cnfora (Bacopa monnierioides): ............................................................................ 139
Fig. 92- Caramujo Aru .......................................................................................................... 139 Fig. 93- Tach ......................................................................................................................... 140
Fig. 94- Saracura Trs- ........................................................................................................... 140 Fig.95- Bugio .......................................................................................................................... 140 Fig. 96- Tropa de burros (Equus asinus) ................................................................................ 140
Fig. 97- Cupins ....................................................................................................................... 140 Fig. 98 Areio. Retiro Santo Onofre. Faz. Santa Filomena. ................................................ 142 Fig. 99 - Morro do Azeite. Fonte: Eric de Vito (2009). ......................................................... 142 Fig. 100 - Campo aberto. Estrada Parque. .............................................................................. 142
Fig. 101 Bola p. Travessia boiada no rio Cerradinho. Segunda Comitiva. Fazenda Ftima. ................................................................................................................................................ 145 Fig. 102 - Vazante Cerradinho. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ............................................ 146
Fig. 103 Rio Paraguai. Porto da Manga. Embarcadouro de gado. ...................................... 146 Fig. 104 - Corixo do inferno. Faz. Nossa Senhora do Carmo. ............................................... 146 Fig. 105. Marcos Antonio Vaca (Babuno). Segunda Comitva. Carandazal. ......................... 153 Fig. 106 Orelhas do Sapo. Fazenda Santa Filomena. Segunda Comitiva. .......................... 166
20
MAPAS
Mapa 1 - Sub- Regies ou pantanais do Pantanal: Bacia do Alto Paraguai no Brasil. Fonte: Silva; Abdon (1998). ................................................................................................................ 41
Mapa 2 Mapa ilustrativo: Fazendas Pantanal- MS e roteiros das trs Comitivas acompanhadas. Fonte: EMBRAPA (modificado). ................................................................... 66
Mapa 3 Mapa falado por Bigu (2009) do roteiro de Comitiva de Aquidauana a Fazenda Central. ................................................................................................................................... 126
21
TABELAS
Tabela 1 - Acompanhamento de Comitivas ............................................................................. 65
Tabela 2 Entrevistas............................................................................................................... 71 Tabela 3 - Simulao de custos para o comprador de gado na contratao do servio de uma
Comitiva com durao de 11 marchas. ..................................................................................... 99
Tabela 4 - Simulao de custos do Condutor pela prestao do servio de uma Comitiva de 11
marchas. .................................................................................................................................. 100
Tabela 5 - Marcos referenciais da paisagem: paisagens da fazenda....................................... 127
Tabela 6 - Marcos referenciais na leitura da paisagem: marcas e escritos de boiadeiros. ...... 135
Tabela 7 Marcos referenciais na leitura da paisagem: vegetao ........................................ 137 Tabela 8 Exemplos de plantas medicinais e formas de utilizao citadas pelos boiadeiros. ................................................................................................................................................ 139
Tabela 9 Marcos Referenciais na leitura da paisagem: exemplos de animais ..................... 139 Tabela 10 Marcos referenciais na leitura da paisagem: solos e relevo ................................ 142 Tabela 11 Marcos referenciais na leitura da paisagem: paisagens aquticas ...................... 146 Tabela 12 Diferenas entre o ciclo das guas (cheia e seca) e seus significados para boiadeiros ............................................................................................................................... 147
22
23
SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................ 25
Mundo vida: Um conto que eu conto .................................................................................... 25 Uma pesquisadora no ambiente de trabalho masculino ........................................................... 31
Estrutura dos captulos ............................................................................................................. 34
CAPTULO 1 O CAMINHO TRAADO NA PESQUISA ................................................. 37 1.1 Contextualizao do tema de estudo .................................................................................. 39
1.1.1 O Pantanal ............................................................................................................... 39
1.1.2 O homem pantaneiro e a pecuria ........................................................................... 43
1.2 Marco conceitual: A interpretao da paisagem como lugar no contexto de populaes
tradicionais ............................................................................................................................... 46
1.2.1 Populaes tradicionais ........................................................................................... 55
1.3 Trajetria Metodolgica ..................................................................................................... 59
1.3.1 Os Colaboradores .................................................................................................... 68
1.3.2 Construo dos Resultados ...................................................................................... 72
CAPTULO 2. COMITIVA DE BOIADEIROS: MODO DE VIDA ...................................... 75
2.1 Viajantes do estrado .......................................................................................................... 77
2.2 Na batida das Comitivas de boiadeiros............................................................................... 93
2.3 Puxando a boiada .............................................................................................................. 101
CAPTULO 3 - COMITIVA PANTANEIRA: LEITURAS DAS PAISAGENS .................. 121
3.1 Na batida do Estrado - marcos referenciais na paisagem ............................................... 124
3.2 No ritmo das guas ........................................................................................................... 144
CAPTULO 4: APROXIMAES PARA UMA CONCLUSO ........................................ 153
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 166
APNDICE ............................................................................................................................ 169
REFERNCIA BIBLIOGRFICA ........................................................................................ 223
24
25
INTRODUO
Mundo vida: Um conto que eu conto
Faz-se necessrio, como parte da trajetria metodolgica2 escolhida para esta pesquisa,
discorrer sobre as razes pessoais que motivaram este trabalho. Expor um pouco da minha
histria de vida atravs de memrias, imaginao, percepes e antecipaes.
Talvez a inspirao para esta pesquisa tenha se iniciado quando pequena no convvio
com minha famlia materna, em uma fazenda na regio do Vale do Ribeira, Mata Atlntica,
no municpio de Barra do Turvo, So Paulo (Fig.2, 3 e 4). Meus avs eram produtores rurais,
meu av, mesmo analfabeto, negociava e viajava transportando gado e conduzindo porcos a
p. Coisas vividas que contadas nos caminhos da pesquisa renderam boas risadas com alguns
boiadeiros, pois no Pantanal so acostumados apenas a conduzir gado a cavalo. Tocar porco a
p soa muito esquisito! Foram anos marcantes de minha vida, dos quais guardo lembranas e
2 Ver mais em no item 1. 3, p. 59
Fig. 2 - V Olvia, eu e
minha irm Denise (
direita).
Fig. 3 - Fazenda Sanharo (avs maternos).
Fig. 4- V Baslio, minha
irm Denise e prima
Telma ( direita).
26
ouo histrias contadas e re-contadas na famlia que aguam minha curiosidade at os dias de
hoje sobre o modo de viver, sentir e trabalhar na pecuria e agricultura.
Dessas vivncias, credito o surgimento do interesse pelo modo de vida rural e o
interesse pela pesquisa da vida da gente do campo. Um pouco difcil, porm, tem sido
relacionar emoo e razo ou corao e cientificidade. Desenvolver o mestrado para mim foi
algo quase que visceral e apesar de haver tantas regras formais nessa trajetria, ainda acredito
que no necessrio se perder a paixo. De qualquer forma, compreendo que h muita
responsabilidade em escrever sobre outros modos de vida, outras vises de mundo, que so
diferentes de minha experincia, portanto o cuidado cientfico proporcionou uma segurana
necessria durante a elaborao deste trajeto acadmico.
Este estudo a continuidade de uma experincia de pesquisa que realizei na monografia
de concluso da graduao em Ecologia na Universidade Estadual de So Paulo (UNESP- Rio
Claro) em 20023. Naquele momento, buscava compreender a relao entre homem e ambiente
por meio do espao vivido por moradores limtrofes s reas naturais protegidas na regio do
Vale do Ribeira, no mesmo municpio onde residiam meus avs maternos. Meu interesse foi
buscar compreender como viviam populaes estreitamente dependentes dos ritmos da
natureza, quais saberes ou conhecimentos emergiam dessa relao e como tm se mantido
diante da realidade atual.
Aps esta experincia com a pesquisa acadmica vivi uma curta experincia trabalhando
em So Paulo, quando surgiu uma oportunidade para trabalhar como guia de ecoturismo em
uma pousada no Pantanal (Refgio Ecolgico Caiman- Fig. 5, 6 e 7). A entrevista foi feita em
So Paulo e acho que fiquei o tempo todo olhando e refletindo, de certo modo encantada com
um quadro que mostrava a fotografia da pousada beira de uma baa imensa. Fui ao encontro
3 LEITE, Maria Olivia Ferreira. Homem e ambiente: Um estudo sobre a compreenso de moradores do Vale do
Ribeira-SP. Trabalho de Concluso de Curso, UNESP, Instituto de Biocincias, Rio Claro: maio, 2002.
ilust. 5
27
da paisagem do quadro... Assim, pude apaixonar-me pelo Pantanal e aos poucos, aproximar-
me do ritmo da regio, das estaes e da cultura pantaneira.
Foi desta convivncia que surgiu a chance, em 2005, de acompanhar uma Comitiva de
boiadeiros (Fig. 8), onde o intuito era o de transportar cerca de 500 vacas da Fazenda Estncia
Caiman para outra fazenda, do mesmo proprietrio 4.
Fig. 5 - Refgio Ecolgico
Caiman. Miranda-MS. (Fonte:
Refgio Ecolgico Caiman).
Fig. 6 - Trabalhando como
guia (de costas, explicando
sobre a palmeira Acuri):
Trilha Cordilheira do X.
Fig. 7- Trabalhando como guia (em p,
prxima a baa), informando sobre o
passeio de canoa.
Fig. 8 - Sada da Comitiva na Fazenda Caiman. Primeiro
acompanhamento presencial de uma Comitiva de
boiadeiros (ao meu lado direito est o Condutor Sr. Ramon
Miranda, logo atrs est o seu pai, Sr. Alfredo, e ao fundo
esto os Meeiros, Fiadores e um acompanhador do Retiro
Santa Via, Fazenda Caiman).
Acompanhei esta viagem durante
quatro dias e quando retornei acabei
escrevendo um pouco sobre minha
experincia5, mais como uma primeira
reflexo que queria partilhar.
Naquele momento no havia
intenes conceituais de pesquisa
acadmica, porm, pouco tempo depois,
conversando com uns amigos sobre meu entusiasmo com o trabalho das Comitivas,
trouxeram-me uma reportagem, capa da revista Terra. O ttulo dizia: Pantaneiro, um ser em
extino (FRUET, 2004). O senhor que aparecia na capa era o pai da pessoa que me
mostrava. O que me chamou a ateno foi que, na mesma poca, em outra revista, li o
comentrio de pesquisador do Grupo de Estudos de Agronegcios da UFMS (Universidade
4 Apesar de esta oportunidade ter surgido atravs do trabalho como guia de ecoturismo, a Comitiva acompanhada
no possua qualquer fim turstico. 5 Ver Apndice A.
ilust. 8
28
Federal do Mato Grosso do Sul) afirmando que No h dados disponveis, mas as comitivas
de boiadeiros esto diminuindo e, no futuro, deixaro de existir. (BRUM, 1998).
Da em diante foram mais e mais investigaes, sempre constatando a falta de dados
sobre os boiadeiros, principalmente, no que se refere s publicaes cientficas. E no
obstante seja possvel encontrar pesquisas sobre modos de vida de pees de fazenda
pantaneiros, com similaridades ao modo de vida dos boiadeiros, estes executam outros
trabalhos e possuem costumes diferentes6.
Como o boiadeiro costuma trabalhar informalmente (sem contrato de trabalho ou
registro em carteira) e as Comitivas so itinerantes, difcil obter dados estatsticos sobre sua
ocorrncia e, alm disto, no costumam ser foco das problemticas debatidas. Aparecem
envolvidos em uma conjuntura econmica centralizada na discusso sobre o desenvolvimento
da pecuria.
Em uma pesquisa historiogrfica, onde foram analisadas as Comitivas de boiadeiros
no Pantanal afirmou-se que, embora os boiadeiros ocupassem - e ainda ocupam - papel
destacvel na introduo e expanso da pecuria, sua presena na histria precariamente
tratada, as informaes so esparsas e pouco expressivas. O autor expe, retoricamente, que
apesar de ser tema recorrente entre poesias e msicas, de forma indireta que a maior parte da
bibliografia se apresenta: comum encontrar boiadas, no boiadeiros (LEITE, 2003).
Estes dados chamam ateno por evidenciarem a escassez de dados disponveis, mas
tambm se apresenta como assunto emergente devido ocorrncia de mudanas que podem
acarretar na perda do conhecimento deste segmento culturalmente diferenciado das
populaes tradicionais brasileiras. Acredita-se que o assunto pesquisado possui significativo
valor no que diz respeito a uma forma de manejo7 exercida por um conhecimento tradicional,
6 Ver mais detalhes sobre as similaridades e diferenas entre estes ofcios a seguir, no item 2.1, p.77.
7 Nesta pesquisa, adotou-se o termo manejo como o conjunto de aes e estratgias que visam a produo
pecuria, sendo considerado como umas destas formas, o transporte do gado pelas Comitivas de boiadeiros.
Segundo Pott (1994 apud RODELA et al., 2007, p. 4188), os criadores pantaneiros manejam a utilizao dos
29
aplicado h centenas de anos, e que no Pantanal, devido a seu regime de alagamento , muitas
vezes, a nica alternativa de transportar o gado de uma regio para outra.
Em referncia importncia de pesquisas sobre populaes tradicionais e os motivos
pelo quais devemos estar atentos a esse conhecimento, podemos citar Marques (1999, p. 141),
que conclui sobre seus estudos referentes a populaes tradicionais:
[...] o foco das minhas preocupaes, neste agora, concentra-se no fato de
que esse conhecimento - chamemo-lo de nativo, tradicional, indgena ou
como queiramos! existe, resiste e est ameaado. Esse conhecimento, alm de extremamente til, revela compatibilidade como a nossa ecologia - e no
que ele no for compatvel, muitas vezes trata-se apenas de uma questo de
incomensurabilidade. Pois bem, esse conhecimento pode desaparecer. (). Trata-se, na realidade, de um conjunto de sistemas de conhecimento
altamente ameaado de extino e isto o que mais me preocupa.
Em maro de 2007, acredito que devido, principalmente, ao enfoque desta pesquisa,
ganhei uma bolsa de estudos para o curso de um ms em um colgio na Inglaterra
Schumacher College8, cujo tema era Indigenous peoples & the natural world: Is ancient
wisdom important to the modern world?. Participaram pessoas de diversos pases: ndia,
Noruega, Austrlia, EUA, Alemanha, Blgica, Filipinas, entre outros. S a existncia deste
curso e a representao de tantos pases, j remete a relevncia da discusso.
Um dos palestrantes, fundador do Frum Social Mundial, Jerry Mander, colocou que
embora a globalizao exera forte presso para homogeneizao do conhecimento, e o
conhecimento indgena/tradicional9 signifique assim, uma viso atrasada na tica do
capitalismo e at mesmo um impedimento ao progresso, ele afirma que a diversidade a
chave da vitalidade, resilincia e capacidade inovativa de qualquer sistema vivo. Isto vale
pastos nativos de duas formas. O gado permanece durante o ano todo (maior ocorrncia) ou o gado colocado somente na fase seca e retirado na iminncia da enchente. Para efetuar esta segunda forma de manejo, alguns
criadores possuem duas propriedades, uma na plancie e outra na parte alta, podendo fazer manejo para
contornar os perodos crticos de forragem. (...). O perodo da retirada do gado depende da durao e
intensidade da inundao, varivel entre ano e local. Uma das formas de retirada deste gado, pode ser ento, por meio das Comitivas de boiadeiros, alm disto, as Comitivas tambm podem ocorrer quando h
comercializao do gado e este precisa ser transportado. 8 Schumacher College, Totnes - Devon. (www.schumachercollege.org.uk).
9 Nesta pesquisa, compreende-se o termo conhecimento indgena tambm como conhecimento tradicional, tal
como foi utilizado durante o curso. Ver item 1.2.1, p. 55.
30
tambm para sociedades humanas (informao verbal)10
. Ainda segundo, Cavanagh; Mander
(2004, p. 89):
The rich variety of human experience and potential is reflected in
cultural diversity (grifo do autor), which provides a sort of cultural
gene pool to spur innovation toward ever higher levels of social,
intellectual, and spiritual accomplishment and creates a sense of
identity, community, and meaning.11
No caso, a cultura pantaneira e em particular as Comitivas de boiadeiros representam
uma atividade em que se realiza o transporte de espcies exticas, o gado, inserida em
determinadas paisagens12
. Esto expostas as influncias do mundo exterior; mudanas
ocorridas em seu meio, que podem alterar seus valores e atitudes e ao mesmo tempo,
mudanas que podem advir do prprio homem, da sua criao, pois um ir e vir que faz do
sujeito a sua existncia, estando no mundo e com o mundo.
Compreende-se que estas relaes construdas entre homem e ambiente muitas vezes
so contraditrias e exprimem prticas que podem tanto contribuir para conservao como
degradar o meio em que vivemos. Admite-se ento, que h impactos ambientais gerados pela
atividade pecuria, assim como pelo movimento destas boiadas, mesmo no Pantanal, onde h
extensas reas de pastos nativos. Entretanto, nesta pesquisa no se pretende aprofundar sobre
este tema, mas expor um pouco da complexidade do conhecimento dos boiadeiros que ocorre
atravs do convvio com as paisagens pantaneiras.
Face s diferentes vises do homem, se buscou inserir neste fenmeno e perceber uma
forma de manejo tradicional, como prtica que est diretamente conectada ao ciclo das guas
do Pantanal. Procurou-se descrever sobre o modo de vida dos boiadeiros e a estrutura desta
atividade ligada a uma forma de leitura das diferentes paisagens do Pantanal, levando em conta
a temporalidade dos acontecimentos e a dinmica da sociedade.
10
Informao fornecida por Jerry Mander durante o curso citado no texto, em 2007. 11
A rica variedade de experincia e potencial humanos refletida na diversidade cultural (grifo do autor), que
prev uma espcie de banco de genes culturais para estimular a inovao em direo a nveis cada vez maiores
da vida social, intelectual, e realizao espiritual e cria um senso de identidade, comunidade, e significado.
(Traduo livre da pesquisadora). 12
Sobre paisagem, ver item 1.2, p.46.
31
O acolhimento deste projeto no Programa de Ps-Graduao em Cincia Ambiental
(PROCAM) pode me auxiliar justamente na viso interdisciplinar de pesquisa que o
entendimento deste tipo cultural o boiadeiro do pantanal poderia ter. Pela minha formao
em ecologia e crescente interesse em cincias humanas, o dilogo entre esses campos foi
favorvel ao tema pesquisado.
Este trabalho era para ser fundamentado atravs do acompanhamento presencial de
Comitivas, mas no segundo semestre de 2007 sofri um grave acidente a cavalo e tive que
interromper meus estudos por um ano e meio. No incio do ano de 2009 renovei minha
matrcula, mas por causa do meu estado de sade, infelizmente, no foi possvel acompanhar
outras Comitivas, acarretando algumas alteraes nos objetivos iniciais da pesquisa.
Uma pesquisadora no ambiente de trabalho masculino
Quando recebi a sugesto do comit do PROCAM para escrever sobre o desafio da
pesquisadora num contexto de pesquisa tipicamente masculino, apesar de saber da sua
relevncia, senti-me um pouco constrangida. Talvez pelo respeito com que os boiadeiros
sempre me trataram ou talvez mesmo pela curiosidade latente e decorrncia do trabalho, no
havia parado para pensar sobre isso. Porm esta pergunta era recorrente quando expunha a
pesquisa em diferentes mbitos acadmicos, afinal numa pesquisa com mtodos qualitativos e
dialgicos, essa questo pode ter fundamento, uma vez que se considera que a
intersubjetividade um assunto essencial.
A questo central da pergunta era pertinente, principalmente no que se refere
operacionalidade do acompanhamento das Comitivas e a interao/ tenso pesquisador,
32
pesquisado durante o convvio e entrevistas com os boiadeiros. Como seria pra eles relatar o
que vivem ou sentem, para uma mulher, e como seria se o fosse para um homem?
Acredito que por esta condio perdi algumas histrias e relatos, mas sei tambm que
ganhei outros. O respeito que tive por eles foi sempre correspondido, e se em um primeiro
momento eram mais fechados, no decorrer da Comitiva ou da entrevista ficavam cada mais
familiarizados comigo e com meu compromisso de valorizar os saberes que relatavam,
falando mais dos familiares e das dificuldades em suas vidas.
Sempre muito cuidadosos, davam-me o burro mais manso da tropa para montar e
mesmo tendo o hbito de revezar seus burros para descanso, no quiseram, em nenhum
momento trocar minha montaria. Apesar de estar acostumada a encilhar cavalos, nas viagens
eu somente os auxiliava, pois queriam encilhar os animais para que estes estivessem bem
seguros. Na primeira Comitiva, este cuidado foi tanto, que preocupados que eu sentisse dor
por permanecer tanto tempo sobre o cavalo e com a inteno de deixar meu arreio mais
confortvel, ao invs de colocarem apenas um pelego13
sobre o mesmo (como de costume),
quiseram colocar dois e infelizmente o efeito foi o oposto. Ento, no ponto de almoo, pedi
gentilmente para que retirassem um dos pelegos e mesmo no estando acostumada a andar o
dia inteiro a cavalo, como andava com frequncia, fiquei cansada, mas no tive nenhuma
indisposio fsica.
Por eu querer conhecer um pouco de cada funo na Comitiva, procurei no concentrar
a ateno em uma s pessoa, a no ser que fosse algum com mais experincia, mais velha,
normalmente lder do grupo. Apenas durante a primeira Comitiva, no fui a nica mulher que
estava viajando, pois uma amiga, Elizabeth Leite (Bete), que tambm trabalhava na Pousada
Caiman, quis ir conosco e assim, pudemos compartilhar algumas situaes.
13
Pelego uma manta de l e arreio pode ser considerado como um tipo de cela.
33
Acabei por participar de poucas Comitivas, por motivos alheios a minha vontade e
talvez, muito destes momentos tenham ocorrido com certa naturalidade por meu interesse
nesta pesquisa ter surgido da relao com a experincia de meu av materno e por j conviver,
um pouco com a cultura dos pees pantaneiros. No que se refere s relaes de classe, talvez
por este motivo, tambm no senti que houvesse distanciamento ou diferenciao por ser
pesquisadora. Na primeira Comitiva, realmente no estava nesta condio, mas mesmo
durante as outras Comitivas, o que pude observar foi uma diferenciao cultural por ser de
outro Estado, ou por ser da cidade, e em alguns momentos notei que buscavam explicar-se
melhor para que eu pudesse compreend-los.
Porm interessante colocar, que minha relao com os boiadeiros foi mais marcada
pela relao de gnero. O trabalho que executam predominantemente ocupado pela mo de
obra masculina14
, e pode ser que pela falta de costume com a presena feminina neste
ambiente, havia todo o tempo, um excesso de zlo e uma viso fragilizada da mulher. E
assim, ficavam tambm surpresos por eu conseguir acompanh-los.
Sobre questes mais difceis de compreender para quem no tem uma imagem sobre a
vida dos boiadeiros gostaria de partilhar um pouco desta relao assimtrica e heterognea
entre pesquisadora e pesquisados.
Para dormir numa comitiva, como dormem todos juntos, em redes individuais, no
houve nenhum problema e estranhamento, mas para necessidades fisiolgicas, como era ao ar
livre, eu apenas esperava a Comitiva seguir, ficando para trs, buscando alguma moita e
cuidando bem para meu burro no fugir! J para tomar banho, talvez tenha sido o momento
mais delicado. Fui preparada, levando traje de banho discreto, para tomar banho com eles em
algum aude, rio, ou onde quer em que houvesse gua disponvel. Mas percebi que eles no
queriam que eu fosse junto, pediam sempre para que eu fosse antes, que assim seria melhor.
14
Oliveira (2004) e outras fontes orais tm conhecimento de apenas uma mulher que trabalhe em Comitivas. A
mesma chama-se Mirela, Condutora e aprendeu a profisso com o prprio pai.
34
Por muitas vezes, tambm, quando estvamos chegando ao pouso, e se ocorria de estarmos
prximos a alguma sede de fazenda, eles acabavam perguntando ao praieiro15
se havia algum
banheiro disponvel para banho, e antes mesmo de conversar comigo, j ficava tudo
combinado.
Procurei aceitar o que me estavam orientando, pois eles ficariam mais vontade e eu
no os incomodaria. E assim, com cuidado, respeito e delicadeza, essas questes foram sendo
resolvidas. Nos captulos que seguem, um pouco mais sobre o perfil destes homens ser
relatado.
Estrutura dos captulos
Para organizao desta pesquisa, optou-se por divid-la em captulos. No primeiro
captulo apresenta-se breve contextualizao do Pantanal e a formao do homem pantaneiro
por meio da reviso da literatura sobre a regio de estudo. Para maior familiarizao ao
assunto, foi feita uma introduo sobre estas paisagens relacionadas ao ciclo das guas, o que
influencia diretamente na definio de roteiros das Comitivas. Em seguida, retratado, de
forma sucinta, o processo de ocupao e a consolidao da pecuria no Pantanal.
Ainda neste primeiro captulo, busca-se retratar o marco conceitual e o caminho
traado neste estudo. O marco conceitual foi elaboradao a partir de uma abordagem sobre a
interpretao cultural da paisagem como lugar no contexto de populaes tradicionais. J a
15
Pessoa que toma conta dos arredores prximos a sede da fazenda. Termo este, que conheo em So Paulo
como caseiro. Segundo Banducci Junior (1995) o indivduo que realiza as tarefas ligadas praia, o terreno que
circunda a casa grande, a diferena bsica que trabalha sem cavalo.
35
trajetria metodolgica se deu inicialmente, a partir de interrogaes16 voltadas aos sujeitos
que vivenciam o fenmeno17
, ou seja, os boiadeiros no Pantanal Sul Matogrosssense.
Posteriormente, por meio de coletas de entrevistas, histrias de vida, acompanhamento
presencial de Comitivas, estes dados foram sendo construdos, analisados e tematizados
(captulos II, III, IV), compondo os elementos para buscar esboar o universo cultural do
boiadeiro de acordo com o recorte ao que se pretendeu pesquisar, ou seja, sobre seu modo de
vida e as leituras das paisagens pantaneiras.
O segundo captulo: Comitiva de boiadeiros - modo de vida est dividido em trs
subtemas. No primeiro, Viajantes do estrado foi feita uma descrio sobre o modo de ser
boiadeiro. O segundo tema: Na batida das Comitivas de boiadeiros, trata-se de como
ocorrem estas Comitivas, e o terceiro: Puxando a boiada, atenta-se para a diviso de ofcios
nas Comitivas.
No terceiro captulo: Comitiva pantaneira dada a descrio sobre a leitura da
paisagem. A partir do tema: Na Batida do estrado: Marcos referenciais nas paisagens, so
tratados os significados atribudos s paisagens pantaneiras. J no tema: No ritmo das guas,
so abordados os significados dados s estaes sazonais, de acordo com a definio de
trajetos nas Comitivas.
No quarto captulo prope-se Aproximaes para uma concluso, incluindo algumas
reflexes acerca dos dados reunidos, bem como a importncia e valorizao do conhecimento
dos boiadeiros. Por ser um assunto identificado como recorrente, tambm se procurou tratar
sobre quais motivos tm levado s transformaes recentes neste trabalho humano ou at
mesmo o seu declnio, suas consequncias e contradies. No ltimo captulo esto
apresentadas as consideraes finais, onde se procurou apontar as contribuies e limites
deste trabalho, sugerindo novas linhas de pesquisa sobre o tema.
16
Interrogao sugere algo mais amplo. Ver item 1.3, p. 59. 17
Ver definio de fenmeno na nota de rodap n 35, p. 54.
36
Todos estes temas e captulos se interpenetram, porm so focados em grandes reas,
que procuram adentrar aos poucos ao mundo dos boiadeiros. Mundo este que se torna utpico
a ser desvendado medida que se conhecem cada vez mais as habilidades exigidas para este
trabalho e suas dificuldades, mas no menos passvel de apreender elementos que demonstrem
uma relao de interdependncia entre homem e ambiente.
37
CAPTULO 1 O CAMINHO TRAADO NA PESQUISA
No pantanal ningum pode passar a rgua. Sobre muito quando
chove. A rgua existidura de limite. E o pantanal no tem limites.
(...).
O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai o garoto
pelo piquete com olho de descobrir. Choveu tanto que h ruas de
gua. Sem placas, sem nome, sem esquinas. (...).
A pelagem do gado est limpa. A alma do fazendeiro est limpa.
Manoel de Barros (1990: 237).
Fig. 9 Ciclo das guas e boiadeiros no Pantanal-MS. ( esquerda seguindo o sentido da seta: 1. Enchente: Ponte sobre o Rio Miranda. Segunda Comitiva. 2.Cheia: Travessia Rio Cerradinho.
Segunda Comitiva. 3. Vazante: Ponteiro Morcego. Primeira Comitiva. 4. Seca: Sada de Comitiva da
Fazenda Ftima). Montagem das fotos: Juliana Moreno.
38
39
1.1 Contextualizao do tema de estudo
1.1.1 O Pantanal
fundamental explanar sobre a dinmica complexa nas paisagens do Pantanal, para que
tambm se desvele o modo de vida e a leitura da paisagem pelos boiadeiros, pois estes so
assuntos considerados interdependentes. assim que afirma Proena (1997, p.72):
No Pantanal tudo depende das guas. So elas que condicionam os
diversos tipos de lida, levam o homem a ter necessidade de mudanas nas
grandes enchentes, modificam os solos, obrigam certas aves a migrar para
outros lugares do planeta, empurrando o gado para cima das cordilheiras,
quebram a monotonia da plancie, ilhando muitas fazendas.
O Pantanal a maior plancie inundvel do mundo. Sua rea total de 210.000 Km2,
abrangendo o Brasil, a Bolvia e o Paraguai. Deste total, 138.183 Km2 esto no Brasil, ou seja,
cerca de 70% ocorrem distribudos entre os Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
(ALHO; LACHER JUNIOR; GONCALVES, 1988). Neste ltimo Estado, presente rea de
estudo, o Pantanal corresponde a 89.318 km 2, equivalendo a 64,64% da rea total do Pantanal
no Brasil (ABDON e SILVA, 1998).
Ab Saber (1988), discorre sobre a origem do Pantanal Matogrossense, propondo a
teoria de que o que hoje uma depresso teria sido no passado uma vasta abbada de escudo,
que funcionava como rea de fornecimento de materiais detrticos para as bacias sedimentares
do Grupo Bauru (Alto Paran) e Parecis, formada at o Cretceo. Durante o soerguimento
ps-cretceo teria ocorrido ento, uma desestabilizao tectnica, devido a falhamentos
estruturais facilitando seu aplainamento e assim, comportando-se, como anticlinal esvaziada.
Atualmente, o Pantanal Matogrossense se caracteriza por extensas plancies de acumulao de
sedimentos fluviais.
40
A plancie pantaneira faz parte da Bacia do Alto Paraguai, que possui rea de 496.000
km2, sendo ainda parte integrante da Bacia do Prata. Est sujeita a um regime das guas
fortemente sazonal, com precipitao mdia de 1.396mm, variando entre 800 e 1.600 mm. A
declividade dos rios de 0,1 a 0,3 m/km com um gradiente topogrfico de 0,3-0,5 m/km na
direo leste-oeste e 0,03-0,15 m/km na direo norte-sul. As altitudes na plancie variam de
80 a 150 metros (AGNCIA NACIONAL DAS GUAS, 2003).
De acordo com a classificao de Keppen o tipo climtico desta regio Aw,
apresentando dois perodos distintos: chuvoso (outubro a maro), quando ocorre cerca de 80%
do total anual das chuvas e seco (abril a setembro). A temperatura mdia anual do ar de
25,5 C, com mdias mnimas e mximas de 20C e 32C, respectivamente (SORIANO,
2002).
Existe um atraso de aproximadamente quatro meses entre o pico da cheia do norte e do
sul do Pantanal, o que faz com que a estao seca vigore na poro norte do Pantanal
enquanto o nvel das guas atinge seu pico na poro sul. Os nveis da gua no norte so
extremamente variveis, subindo e descendo em resposta direta ao volume de chuvas. Os
nveis da gua no sul, por outro lado, aumentam e diminuem mais suavemente ao longo dos
anos, devido reteno natural da inundao que amortece as flutuaes causadas pelas
chuvas intensas Heckman18
(1999 apud HARRIS et al., 2005).
Os perodos mais frios, bem como a durao da estiagem so diferentes e imprevisveis
de ano em ano, resultando em fortes presses sobre as populaes animais e vegetais. Apesar
disso, o solo hidromrfico e a forte inundao anual, que estende bastante dentro da seca,
amenizam os efeitos dessas variaes, pelo menos para parte dessas populaes. (BROWN
JUNIOR, 1984). Ou seja, enquanto algumas espcies se adaptam constante mudana e
18
HECKMAN, C.H. Geographical and climatic factors as determinants of the biotic differences between the
northern and southern parts of the Pantanal Mato-grossense. In: SIMPSIO SOBRE RECURSOS NATURAIS
E SCIO-ECONMICOS DO PANTANAL: MANEJO E CONSERVAO, 2., 1999, Corumb. Anais....
Corumb: EMBRAPA PANTANAL, 1999, p. 167-175
41
sobrevivem s extremas condies, outras definem seus ciclos de vida de acordo com as
estaes.
Mapa 1 - Sub- Regies ou pantanais do Pantanal: Bacia do Alto Paraguai no Brasil. Fonte: Silva; Abdon (1998).
42
A vegetao heterognea e influenciada por quatro biomas: Floresta Amaznica,
Cerrado (predominante), Chaco e Floresta Atlntica. Adamoli19
(1981 apud HARRIS et al.,
2005). Segundo Silva et al. 20
(2000 apud HARRIS et al, 2005), um levantamento areo do
Pantanal brasileiro identificou 16 classes de vegetao com base nas fitofisionomias, sendo os
campos a fisionomia mais representativa (31%), seguida do cerrado (22%), cerrado (14%),
campos inundveis (7%), floresta semidecdua (4%), mata de galeria (2,4%) e tapetes de
vegetao flutuante ou baceiros (2,4%).
devido a este mosaico de fisionomias vegetais que a regio considerada como
Complexo Pantanal, sendo declarado Patrimnio Natural da Humanidade e Reserva da
Biosfera (ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS PARA A EDUCAO, A CINCIA E
A CULTURA, 2009). Sua importncia tambm est estabelecida na Constituio brasileira, no
artigo 225, 4, sendo reconhecido como Patrimnio Nacional.
As principais razes pelas quais o Pantanal merece este reconhecimento internacional
podem ser elencadas em: trata-se de um complexo de ecossistemas nicos no mundo; constitui
o habitat de espcies animais e vegetais diversificadas, muitas delas consideradas raras e
algumas em processo de extino; protegido nacionalmente; pertence e tem influncia sobre
mais de um pas; revela em muitos aspectos uma sociodiversidade peculiar dada ao processo
histrico de formao scio-espacial. Essa formao conhecida popularmente como a cultura
do pantaneiro por seu trabalho, culinria, vesturio, costumes, festas, suas manifestaes
artsticas e religiosas. (WERTHEIN, 2000).
19
ADMOLI, J. 1981. O Pantanal e suas relaes fitogeogrficas com os cerrados. Discusso sobre o conceito de Complexo do Pantanal. In: Anais do XXXII Congresso Nacional de Botnica. pp. 109-119. Sociedade Brasileira de Botnica, Teresina, 1981 20
SILVA, M.P. da, e tal. Distribuio e quantificao de classes de vegetao do Pantanal atravs de
levantamento areo. Revista Brasileira de Botnica, 2000. 23: 143-152.
43
1.1.2 O homem pantaneiro e a pecuria
Diegues Junior (1960) caracterizou o Brasil em regies culturais, atravs do processo de
ocupao humana em estabelecimentos de explorao econmica, como ncleos de
povoamento que conferia uma organizao social e criava tipos sociais a ele ligados. Deste
modo, constituiu-se o ambiente das relaes entre estes grupos tnicos, que participaram da
formao scioespacial brasileira e igualmente das relaes culturais, com todas suas
diversidades e peculiaridades. Os engenhos de acar foram os primeiros focos de povoamento
criados e desenvolvidos no Brasil, logo depois apareceram as fazendas de criao; de um
lado, das necessidades do engenho em gado para determinados trabalhos e para alimentao
e de outro lado, do desenvolvimento natural da pecuria (Id., 1952, p.11). Ainda segundo
este autor foi na fazenda que se fundamentou a estrutura social do Brasil; definiu-se esta
preferentemente, ou mais exatamente, nas reas rurais, e s modernamente se pode consider-
la em funo do meio urbano (DIEGUES JUNIOR, op. cit., p. 84).
Foi assim tambm que ocorreu a ocupao no Centro Oeste e consequentemente, no
Pantanal. A origem do pantaneiro produto da miscigenao entre as diversas sociedades
indgenas que habitavam a regio, os colonizadores e os escravizados negros africanos que
chegaram aps o sculo XVI. (Id., 1952). Entre os indgenas estavam os Guat, Guaicuru,
Terena, Payagus, Kayaps e Bororo, sendo que, atualmente, muitos deles so apenas
remanescentes de uma histria que no se deixou contar.
Apesar das primeiras invases terem sido dos espanhis, a colonizao massiva do
Pantanal comeou no sculo XVIII. Segundo Silva e Silva (1995), inumerveis bandeiras
foram expedidas com o objetivo de povoar e explorar recursos naturais, principalmente o ouro,
iniciando nessa poca, os conflitos intertnicos, que causaram o declnio das sociedades
indgenas.
44
O rpido esgotamento do ouro, j na primeira metade do perodo setecentista, levou
procura de novas reas mineradoras, como a do Vale do Guapor, na bacia amaznica
(COSTA, 1999). Em Mato Grosso21
, as populaes desenvolveram outras atividades, sem
prejuzo da continuidade da explorao mineira nas margens de rios - a extrao da erva mate
na regio sul, a pequena agricultura e a criao de gado no Pantanal, onde surge um tipo
caracterstico de gado, o boi pantaneiro, em mestiagem com o zebu. (DIEGUES JUNIOR,
1960). A gradativa introduo de lotes de gado para a subsistncia da regio foi constituindo o
que viria a ser a expressiva pecuria no Pantanal.
Logo aps 1719, (...) sentiu-se a necessidade de importao de gado vacum
como prenncio da vocao agropecuria da regio (...) Assim, adquiriram-
se as primeiras reses da histria de Mato Grosso, que se tornou autnomo
em 1748. Provenientes, por certo, de criatrios paulistas, os lotes
precursores chegaram por via fluvial, de canoas, pelo roteiro das mones.
(...) encontraram bom meio ambiente, pastos timos, abundantes, gua com
fartura. Cresceram, engordaram e multiplicaram-se. (SOUZA, 1986, p. 202).
A pecuria, iniciada h mais de duzentos e cinquenta anos, continua com o mesmo
regime de criao extensivo nas pastagens. O manejo tradicional das pastagens, baseado na
experincia de sucessivas geraes, consiste na utilizao da cobertura vegetal nativa e nas
reservas de vegetao original, chamadas capes (locais importantes para o trato com o gado,
porque os abriga das chuvas e do frio). Outro tipo de manejo a prtica da veda, ou seja, a
retirada do gado do campo para a recuperao natural das forrageiras, e a queimada utilizada
para a limpeza e manuteno do pasto. Estas tcnicas utilizadas so elementos da cultura
material do pantaneiro e permanecem em algumas fazendas. (ABDON e SILVA, 1998).
Ainda que o gado tenha sido uma espcie introduzida, alguns autores atestam que a
pecuria extensiva uma aptido agroecolgica do Pantanal (MOURO et al., 2000), tendo
sido responsvel pela manuteno do equilbrio e da sustentabilidade desses ecossistemas.
Entretanto, apesar desta afirmao, Abdon e Silva (1998), reconhecem que, as inovaes
tecnolgicas como inseminao artificial, criao de novas raas e a substituio das
21
Na data referida, Mato Grosso do Sul no era um estado independente, o que veio ocorrer apenas em 1977.
45
forrageiras nativas pelas exticas (com maior teor nutritivo para o gado), sinalizam
transformaes substanciais na antiga relao do pantaneiro tradicional com o ecossistema,
colocando em risco o esteretipo do convvio harmonioso, responsvel pela sustentabilidade
da regio.
Segundo Campos Filho (1998) pode-se dizer que uma crise na identidade pantaneira
instalou-se a partir de uma violenta entrada de migrantes e agenciamentos globalizantes,
atravs de novos interesses, desejos e necessidades, deixando perplexa sua populao. No
entanto, enquanto alguns estavam seduzidos, outros internalizavam aportes externos e ainda
havia aqueles que permaneceram inclumes ao passado.
Em relao dimenso das reas das fazendas, tambm houve alteraes. Hoje tem
ocorrido a retaliao das mesmas para contemplar os direitos dos muitos herdeiros dos
grandes fazendeiros. Alm disto, a lucratividade do gado est diminuindo e muitos tm
procurado outras atividades para sobreviver, como o caso do ecoturismo (FRUET, 2004).
Estes fatores podem significar aumento na presso de produo pecuria, em reas cada vez
menores, caso haja aumento no nmero de cabeas de boi por unidade de rea.
A economia pantaneira caracteriza-se ento, basicamente, por atividades agropecurias
nas fazendas da regio ou em pequenas propriedades nas beiras dos rios. A pesca tambm
significa fonte de emprego e renda, incluindo a pesca esportiva, que est diretamente associada
ao turismo. Essas atividades revelam o contraste entre os perodos de estiagem e o das grandes
enchentes. (ARRUDA; DIEGUES, 2001).
H estimativa de que o rebanho bovino no Pantanal seja consttuido de 3,8 milhes de
indivduos (POTT; VIEIRA; COMASTRI FILHO, 2008), o que fazem da pecuria de corte a
principal atividade econmica do Pantanal. Esta pecuria baseia-se nas fases de cria e recria,
com a comercializao de bezerros de sobreano, bois magros e vacas de descarte, que tendem
46
raa Nelore. A produtividade animal limitada pelo regime de cheias e de secas. Pott;
Catto; Brum (1989 apud MAZZA et al., 1994). 22
O transporte das reses pode ser realizado por ferrovia, rodovia, via fluvial e a p,
dependendo dos mtodos de comercializao, tipos de animais, custos e disponibilidade
destes meios, porm, grande parte deste rebanho faz longos percursos a p. (ABRO, 1983).
Nesse ltimo caso, atravs das Comitivas de boiadeiros que so transportados.
A transumncia de animais tem sido realizada em diversos pases h milhares de anos.
uma atividade que possui importncia histrica, scio-econmica e ambiental, pois tem
ocorrido, concomitantemente, s ocupaes humanas e colonizaes, isto quer dizer, ao
desenvolvimento das civilizaes em diferentes paisagens. Em muitos pases e em Estados
brasileiros est atividade se extinguiu devido a fatores como, por exemplo, a construo de
rodovias e mudanas de produo para escalas industriais. Sabe-se que no Pantanal as
Comitivas permaneceram, mas compreender como tm permanecido e quando so optadas,
faz parte da abordagem desenvolvida neste trabalho.
1.2 Marco conceitual: A interpretao da paisagem como lugar no contexto de
populaes tradicionais
Apresenta-se a seguir algumas reflexes e referenciais sobre conceitos23
chave que
foram adotados no desenvolvimento da pesquisa. Cabe dizer que no se pretende esgot-los
ao defini-los, mas delinear em quais campos do conhecimento optou-se por construir
22
POTT, E.B., CATTO, J.B., BRUM, P.A.R. Perodos crticos de alimentao para bovinos em pastagens
nativas no Pantanal Mato-Grossense. Braslia: EMBRAPA, 1989. 23
Os conceitos so construes lgicas, estabelecidas de acordo com um quadro de referncias. Adquirem seu significado dentro do esquema do pensamento no qual so colocados. (MENDONA, 1983, p. 17).
47
dilogos. A inteno fazer-se entender melhor, quando citados durante o texto e identificar
no campo da linguagem acadmica os referenciais tericos de apoio.
O marco conceitual desta pesquisa a interpretao da paisagem como lugar no
contexto de populaes tradicionais. Assim, seguem aproximaes a partir de autores que
beneficiam estas complexas conexes entrelaando diferentes reas do conhecimento.
Procurou-se utilizar o que se considera essencial dentro desta perspectiva, mas evidente que
os conceitos e autores citados esto incorporados a linguagem da dissertao.
FURLAN24
coloca que as possibilidades de abordagem interdisciplinar tm
demonstrado dificuldades e avanos. Tratando-se dos avanos so propostas trs dimenses:
(informao pessoal):
1) Temtica; onde temas multidisciplinares so expostos, mas no esto conectados
conceitualmente.
2) Conexes por procedimentos metodolgicos; onde estabelecido um dilogo entre
campos do conhecimento atravs de procedimentos operacionais. Como por exemplo, a
interface deste trabalho entre a descrio contextualizada de Geertz (1989) e a paisagem
cultural (vrios autores)25
, atravs da leitura da paisagem.
3) Conexes por conceitos; onde estabelecido um dilogo entre categorias, noes e
conceitos de diferentes campos do conhecimento. Neste trabalho podemos exemplificar a
conexo entre paisagem e cultura atravs de autores como Claval (2001) e Geertz (op. cit.).
Conceitos abrangentes como paisagem e cultura so importantes interfaces neste
estudo sobre o homem e suas relaes com o ambiente, ou seja, as Comitivas de boiadeiros no
Pantanal Sul Mato-Grossense. Mais especificamente a Antropologia Cultural com o conceito
interpretativo de cultura e na Geografia de abordagem humanista, com o conceito de
paisagem cultural. Nesse sentido admite-se a afirmao de Nogueira (2002), que compreende
24
FURLAN, S. . Informao fornecida durante reunio de orientao em 17 de set. 2009. 25
Tais como Claval (1999, 2001) e Meneses (2002).
48
o pantanal e o pantaneiro como duas entidades que se fundem numa realidade
antropogeogrfica nica.
importante ressaltar que a investigao sobre o modo de vida e a cultura dos boiadeiros
emergiu, principalmente, atravs de mtodos empricos fundamentados em dados primrios
obtidos durante esta pesquisa e em trajetrias de vida anteriores na regio estudada. Por este
motivo, os conceitos da Antropologia proporcionaram amparo em certos procedimentos, a
partir da descrio contextualizada, possibilitando uma segurana metodolgica.
Segundo Geertz (1989, p. 37) fazer etnografia como tentar ler (no sentido construir
uma leitura de) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerncias, emendas
suspeitas, comentrios tendenciosos, buscando interpretar estes dados e compreender
experincias variadas. Desta forma enfatizada a descrio26
contextualizada e minuciosa,
onde se procura no generalizar atravs dos casos, mas dentro deles. A etnografia significa,
nesta pesquisa, observar e compreender relaes, experincias vividas, selecionar e entrevistar
informantes, transcrever textos, aprender vocabulrios, mapear campos, manter um dirio.
Alm disso, dada complexidade do conceito de cultura, optou-se pelo conceito adotado
por este autor, que a coloca como sistemas entrelaados de signos interpretveis (o que eu
chamaria smbolos, ignorando as utilizaes provinciais. Este sistema simblico
compreendido como um sistema de concepes, percepes, sem o qual no haveria o homem.
Nossas idias, nossos valores, at mesmo nossas emoes so, como nosso prprio sistema
nervoso, produtos culturais manufaturados a partir de tendncias, capacidades e disposies.
Assume-se que homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu,
sendo a cultura, estas teias e sua anlise. O autor prope ento, uma abordagem semitica da
cultura, auxiliando a ganhar acesso ao mundo conceptual no qual vivem os nossos sujeitos, de
26
Sobre descrio, ver tem 1.3, p. 60.
49
forma a podermos, num sentido um tanto mais amplo, conversar com eles, interpretando os
significados que emergem de sua fala. (GEERTZ, 1989, p.15-24).
Para construir conexes importantes com o conceito de paisagem buscou-se na literatura
geogrfica autores que puderam se alinhar a esta concepo descrita acima. Claval (1999)
ressalta a emergncia sobre a discusso de temas relacionados afirmao cultural de povos,
lugares, etnias e identidades culturais em determinadas paisagens como diferenciao social.
Deste modo, propicia a construo do dilogo com a antropologia de Geertz (op. cit.), atravs
da observao participante, a descrio etnolgica.
Antes de aprofundar o modo como se trabalhou o conceito de paisagem necessrio um
pequeno prembulo sobre o tema. Considera-se que a paisagem uma palavra polissmica, e
que esta flexibilidade de significados pode trazer vantagens, mas tambm a banalizao.
Mesmo sendo uma categoria chave da Geografia, tambm utilizado na Histria, e embora
ambas as cincias tenham elaborado slidos conceitos, estas no a definem como fato cultural,
pois no basta supormos um objeto (uma extenso da superfcie da terra), a ao humana
que o transforma e a interao (material ou simblica) que se estabelece, preciso
consider-la como processo cultural. (MENESES, 2002, p. 31).
O conceito de paisagem cultural foi proposto por Carl Sauer, sob influncia da Geografia
Alem e influenciando a Geografia Cultural27
norte americana, pela Escola de Berkeley. Sua
primeira obra terica importante foi Morfologia da paisagem, publicada em 1925, onde se
ponderou a ao humana para caracterizar a paisagem, respeitando a diversidade de temas e de
interesses como modus vivendi, o que a mantm aberta para temas novos como o da
percepo ambiental, e propondo assim, uma viso interdisciplinar (SAUER, 1925). Seus
27
A Geografia cultural o campo da Geografia Humana que surge por volta do sculo XX, como alternativa ao
pensamento determinista sobre o meio ambiente. Esta abordagem se caracteriza pelos estudos voltados s
relaes entre sociedade, cultura, natureza e paisagem, principalmente no que se refere a cultura material
(artefatos, tcnicas, utenslios, habitat e instrumentos de trabalho). (ZANATTA, 2010; MATHEWSON;
SEEMANN, 2008).
50
trabalhos valorizaram o trabalho de campo, a observao, a descrio e a explicao de acordo
com os melhores mtodos ao nosso alcance, mas sem postulados a priori. (SAUER, 2000).
Apesar das crticas a este autor, reconhecida sua contribuio efetiva para que novas
abordagens e temas fossem incorporados Geografia. (CORRA, 2001). Por propor o
conceito paisagem cultural sob influncia da Antropologia e da Histria, este autor significa
uma aproximao interessante para esta pesquisa e mais uma razo para construo de uma
abordagem apoiada na representao (simblica e material).
A partir da dcada de 70, Claval (2001) expe que transformaes nos estudos culturais
conduzidos pelos gegrafos comeam a incluir a expresso de processos cognitivos, de
atividades mentais, percepes, ou seja, as relaes entre homens com o meio ambiente e
espao, medidos pela representao simblica. O papel das paisagens para os grupos humanos
considerado complexo e passa a desempenhar um suporte de mensagens e smbolos,
traduzindo-se no significado dado pela experincia vivida de diferentes grupos sociais28
.
Ou seja, so experincias subjetivas que revelam desejos, aspiraes, sonhos.
No momento em que as paisagens deixam de ser consideradas como
realidades objetivas, a maneira como so concebidas pelas populaes
locais torna-se um tema de estudo apaixonante. (Ibid., p. 57).
Nesta pesquisa admite-se que a paisagem no universal, no possui apenas objetividade
morfolgica, nem somente objeto real que se d a percepo, pois isso a resumiria como
mera projeo do observador, assume-se que considerando a paisagem uma estrutura de
interao que se tem sua verdadeira natureza cultural. (MENESES, 2002, p. 32).
Dada a relevncia do conceito de paisagem, a Constituio brasileira de 1988,29
a
introduz no corpo do Patrimnio Cultural Brasileiro, o que gerou diversas discusses entre
a dicotomia cultura e natureza, mas no Encontro Tcnico do Comit do Patrimnio Mundial
28
O autor o precursor destas idias, que fazem parte da Nova Geografia Cultural. 29
(BRASIL, 1988). Constituio Federal, art. 216, v.
51
em La Petite, Frana, 1992, que ocorre a introduo da categoria paisagem cultural referindo-
se a obra combinada da natureza e do homem 30.
Desta forma, compreendendo o homem e a paisagem como indissociveis, podemos
afirmar que a paisagem tem histria, que ela pode ser objeto de conhecimento histrico e que
essa histria pode ser narrada. Isto diz respeito tambm os usos que dela fizeram as sociedades
ou segmentos sociais, onde se concentram os significados mais profundos da paisagem,
sendo possvel explor-la nas mais variadas direes, e interpret-la atravs de certos cdigos
de leituras31
. O papel da paisagem indiscutvel no campo da identidade e dos processos
identitrios desempenhando como componente na fixao das identidades nacionais. Esta
necessidade de incluir nossa trajetria bibliogrfica no s num eixo temporal, mas tambm
espacial, atende a requisitos de produo e reproduo material da vida, e que vem carregada
de sentidos, emoes, valores, expectativas, sendo indispensvel em nossa interao
consciente com o mundo (MENESES, 2002, p. 41).
Na percepo do mundo e do consumo de recursos (utilitrios ou
simblicos) desse mundo, os significados incorporados nos objetos
ambientais so canalizados para as experincias dos sujeitos. A percepo
de mundo e a constituio daquilo que importante ou desimportante para
as pessoas no funciona em termos de uma lousa ambiental em branco, que operada pela percepo e cognio, mas em termos de historicidade e
das experincias vividas nesse mundo. Tilley32
(1994 apud Ibid., p. 60).
Homem e natureza so constituintes do mesmo universo, que a percepo no fragmenta,
onde se deve incluir no s as leituras dos sujeitos que vivenciam o cotidiano nestas paisagens,
mas tambm as interaes resultantes das experincias de vida e entre pesquisador e pesquisa.
So mltiplos olhares permeados com intencionalidades de sujeitos distintos, que do a
paisagem significados complexos.
30
A United Nations Educational Scientific and Cultural Organization (UNESCO) define paisagem, separando-a
em 3 classes: designed cultural landscape; organically evolved landscape e associative cultural landscape.
Disponvel em: . Acesso em: 10 set. 2009. 31
No item 1.2, p. 41, est explicitada uma das formas de leitura da paisagem. 32
TILLEY, Cristopher. A phenomenology of landscape. Places, paths and monuments. Oxford: Berg, 1994.
52
Schama (1996, p. 17) descreve detalhadamente suas memrias e imaginaes de
infncia relacionadas percepo da paisagem e conclui que se a viso de uma criana j
consegue comportar lembranas, mitos e significados complexos, muito mais elaborada deve
ser a viso dos adultos.
Pois, conquanto estejamos habituados a situar a natureza e a percepo
humana em dois campos distintos, na verdade elas so inseparveis. Antes de
poder ser um repouso para os sentidos, a paisagem obra da mente.
Compe-se tanto de camadas de lembranas quanto estratos de rochas.
A paisagem significa uma construo da imaginao projetada como sobre matas, gua
e rochas, compreendendo assim, que quando uma determinada idia de paisagem, um mito,
uma viso, se forma num lugar concreto, ela mistura categorias, torna as metforas mais
reais que seus referentes, torna-se de fato parte do cenrio. (Ibid., p. 70).
Este autor coloca que o funcionamento de vrios ecossistemas pode atuar independente
do homem, mas assim como Bale (1994), Posey (2006), Diegues (1996) compreende que
difcil imaginar um nico sistema natural que a cultura humana no tenha modificado,
reconhecendo que embora o impacto da humanidade sobre a ecologia da terra no tenha sido
puro benefcio, a longa relao entre natureza e cultura tampouco tem sido uma calamidade
irremedivel e indeterminada (Ibid., p. 20).
A reflexo destes autores contribui no processo de construo do dilogo entre os
conceitos de cultura e paisagem adotados neste estudo, devendo ser compreendidos como um
fenmeno integrado, como um fluxo contnuo de interao cultura e ambiente, que transforma
ambos. Assim prope o antroplogo Bale (op. cit; p. 24), a partir da sua experincia em
etnografia e etnobotnica: comunidades e culturas humanas, junto com as paisagens e
regies, com as quais elas interagem ao longo do tempo podem ser compreendidas como
fenmenos totais33. Podemos fazer uma analogia conceituao de outro importante gegrafo
sociocultural Ab Saber (2004, p. 222) quando trata da relao dinmica e integrada com
33
Traduo livre da pesquisadora.
53
espaos produzidos pelo homem sobre os espaos herdados da natureza como espao total34
.
Desta forma, considera-se a paisagem como herana de todos estes processos que envolvem
tambm idias de incompatibilidades de funes sociais e econmicas ocorrentes em diferentes
subespaos e regies.
Neste sentido, Cabrera et al. (2001) definem que as reas culturais contextualizadas por
uma regio geogrfica so complexos culturais inter-relacionados que seguem uma
continuidade no espao-tempo. Assim, busca-se compreender como a vida dos indivduos e
dos grupos se organiza no espao, nele se imprime e nele se reflete, se avaliando a dialtica
das relaes sociais no espao, com sua ligao ao meio ambiente e ao papel complexo das
paisagens, ao mesmo tempo suportes e matrizes das culturas. (CLAVAL, 2001, p. 40).
Nesta dissertao procurou-se ponderar tambm, que a natureza processual complexa da
paisagem ocorre e se explica a partir de processos sociais e naturais35
, em certos contextos,
sendo necessrio compreend-la como um tema que permeia diversos campos do
conhecimento, incluindo o conhecimento no formal e o conhecimento de populaes
tradicionais. Trata-se de um espao que vai alm da observao, um espao construdo a
partir de vivncias, sentidos e expriencias compartilhadas, e pensada como um vasto
campo de significados, tenses e contradies. Alm disto, ela instvel, um permanente
vir a ser e permanncia em transformao. (SANDEVILLE, 2005, p.1- 9)
Sobre o espao, uma categoria complexa para a Geografia, entende-se como as idias de
um grupo ou um povo, a partir da experincia cotidiana, seus sentimentos e emoes. Esse
34
Espao total (grifo do autor): o mosaico das heranas da natureza integradas com as heranas positivas ou negativas das aes cumulativas feitas por geraes e geraes de homens. (AB SABER, 2004, p. 222). 35
Entende-se processos naturais como inscritos em um campo de fenmenos e processos sociais em um campo
de conflitos, tenses, de intencionalidade. Considerando que estes processos tambm interagem.
(SANDEVILLE, 2005).
54
espao vivido seria como um campo de representaes cheio de simbolismos, que pode ter
sentido pessoal, ou estar ligado experincia36
do outro como grupal ou mtico-conceitual.
Compreende-se o espao tambm como algo que permite movimento, que tem a
capacidade de mover-se e por este motivo pode ser experenciado de vrias maneiras: como a
localizao relativa de objetos e lugares, como as distncias e extenses que separam ou
ligam os lugares, e - mais abstramente - como a rea definida por uma rede de lugares.
(TUAN, 1983, p.14).
Apesar do significado de espao e lugar fundirem-se na experincia, o espao mais
abstrato na linguagem de Tuan, inicialmente pode ser denominado como espao e a medida
que o conhecemos e dotamos um valor37 torna-se lugar. As idias de espao e lugar no
podem ser definidas uma sem a outra, a partir da segurana e estabilidade do lugar estamos
cientes da amplido, da liberdade, do m
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